sábado, 20 de dezembro de 2025

Tábua de salvação

A suspensão voluntária da descrença proposta por Coleridge, como uma espécie de fé poética, seria aquilo que permitiria ao leitor acompanhar a leitura de obras com personagens fantásticas como se estas fossem reais; um pacto tácito entre autor e leitor. A expressão teve – e tem – um enorme sucesso, tendo-se transferido do terreno da literatura fantástica para outros géneros fantásticos, como a ficção científica, mas também para a ficção literária. Não seria descabido, todavia, pensar que, para ler, por exemplo, livros de História baseados em investigação séria, também é preciso suspender voluntariamente a descrença, descrença aqui baseada na desconfiança na possibilidade de recuperar, através da investigação, o passado – melhor, de construir uma imagem ou representação exacta desse passado. Todavia, essa não será ainda a utilização mais proveitosa e corrente que se faz da tese de Coleridge. Onde ela é mais eficaz é na nossa relação quotidiana com a realidade, tanto a natural como a social e a individual. Vivemos segundo um conjunto de crenças sobre essas realidades que estão muito longe de terem fundamento. Ora, se procurássemos o fundamento dessas crenças, a vida tornar-se-ia impossível, pois ficaríamos presos em investigações que nunca teriam fim. A educação é o processo em que aprendemos a suspender a descrença sem que nos apercebamos disso. Formamos crenças sobre a ameaça da descrença, mas esta, pelo hábito em que somos formatados, está suspensa. Voluntariamente? Não, se se olha do ponto de vista do indivíduo; sim, se se observa a partir da espécie. A espécie humana é aquela que aprendeu a suspender a descrença para poder persistir. Só de modo muito limitado e controlado é que se permite o questionamento das crenças e se põe de lado essa suspensão voluntária da descrença, que é a tábua de salvação de uma espécie que teve por destino ser dotada de razão.

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