segunda-feira, 20 de novembro de 2017

Queda

Hoje a minha tarde foi ocupada com um intenso trabalho sobre coisas ociosas. Poderia ter ido passear e ver as folhas mortas que estendem as suas garras lacrimosas pelos passeios. Teria aprendido bem mais do que aprendi. A humanidade tem sempre uma enorme capacidade de me decepcionar. Eu sei que os padrões são altos. Como pode a sabedoria humana competir com o saber que há numa folha cuja seiva secou e, nessa leveza, se entregou à vertigem do vento e da gravidade? Não pode, pois não há sabedoria maior do que aquela que nos leva ao transe da queda. 

domingo, 19 de novembro de 2017

Silêncio

Os domingos penso-os, muitas vezes, silenciosos. Não basta que as pessoas deixem, por umas horas, de se entregar ao bulício dos negócios. É preciso que dentro delas cresça um silêncio que transbordará nas praças e nas avenidas. Assim, o domingo seria santificado, e tudo teria a marca desse novo hossana ao que há de mais secreto em cada um. As conversas, os gestos, os grandes passeios dominicais. Os amantes amar-se-iam dentro do silêncio e o seu amor ficaria protegido pelo segredo e, desse modo, seria mais forte. Um amor que transborda para fora do silêncio fenece e, não tarda, passa do alvoroço com que se ostenta para o declínio que o aguarda. O silêncio, aquele que eu, aos domingos, penso que eles deveriam conter, é o alicerce que permite ao mundo persistir, apesar da rudeza do ruído que, até ao domingo, como uma folha morta, de tudo se desprende.

sexta-feira, 17 de novembro de 2017

Anarquistas

Inadvertidamente, dei por mim a ouvir Les Anarchistes, na voz de Léo Ferré. Que conjunção astral se terá desenhado para que isso acontecesse, não sei. Os desígnios dos astros são ainda mais obscuros que os de Deus. A verdade é que lá estava a voz inconfundível do cantor a prestar tributo aos anarquistas espanhóis. Lembro-me bem daquela figura vestida de preto, a cantar solitária, num cenário vazio, em concertos transmitidos pela RTP. Dizia-se na época, coisa que nunca confirmei, que para além de viver num castelo, Ferré era anarquista. Talvez vivesse e talvez fosse. Ora os anarquistas são como aqueles clubes de futebol de que toda a gente gosta, mas que ninguém leva a sério. Por exemplo, simpatizo com o Belenenses e com a Académica de Coimbra, mas… Com o anarquismo, nem isso. Li Piotr Kropotkin, as coisas que uma pessoa lê, mas acho que nunca li Mikhail Bakunin. O que li mesmo foi G. K. Chesterton e a novela O homem que era quinta-feira. Quinta-feira era um polícia infiltrado numa terrível organização anarquista. O comité central da organização era composto por sete membros e cada um tinha por pseudónimo o nome de um dia da semana. Ora o que quinta-feira vai descobrir é que ele não é o único polícia infiltrado na tenebrosa organização anarquista. Todos os membros do comité central eram polícias infiltrados e, tanto quanto me lembro, o domingo acumulava a chefia do grupo e o da polícia. Para mim, numa noite de sexta-feira, o anarquismo confunde-se com um livro de Chesterton lido há décadas. Como é possível dizer isto e ser verdade?

quinta-feira, 16 de novembro de 2017

O castelo

Às vezes, quando a noite não é propícia para fazer alguma coisa, acerco-me de uma janela e fico a olhar o velho castelo, agora iluminado por holofotes que o recortam das trevas, e o vestem de uma modernidade enigmática que o tornam vivo, embora exilado dos mistérios do tempo que foi o dele. Vejo apenas duas torres e o pano de muralha correspondente, mas isso basta-me. E fico ali, a ouvir a noite, quase extasiado, por aquela fortificação ter conseguido chegar aos dias de hoje, ultrapassando não poucas vicissitudes. Não é impunemente que se pertence a uma terra com castelo. Fazemos parte daquelas pedras e elas, em segredo, moldaram-nos o carácter. Há uma longa história atrás de nós e isso, nestas noites já tocadas pelo frio, é reconfortante. Não que estas pedras e esta longa história, penso ao olhá-lo, nos torne melhores do que outros que não pertencem a terras acasteladas. Não torna, mas nós sabemos que é melhor ter um velho castelo para olhar do que não ter nenhum. 

quarta-feira, 15 de novembro de 2017

Conspirações

Faz um ror de anos que descobri que as letras dos livros conspiravam contra mim. Letras que outrora me tinham em alta estima e se apresentavam perfiladas na sua estatura normal, a partir de certa altura deixaram de me levar a sério e começaram, com suspeita contumácia, a surgir disfarçadas de anões. Não cheguei a ficar indignado, mas não gostei da brincadeira. Não tinha inclinação para ser Branca de Neve, nem idade para ser desconsiderado no respeito que qualquer letra deve a um ser racional. Pessoa amiga, porém, olhou para mim, riu-se e acabou por me tranquilizar, dizendo que o problema estava no meu envelhecimento. Não se coibiu de me fornecer, com detalhes, a explicação científica, a qual, depois de aceite, acabei por esquecer. Disse esquecer. E aqui está uma nova conspiração. A memória, que em tempos me fora fiel, decidiu agora atraiçoar-me, talvez confiante na fraca visão, à minha frente. Quando paro o carro ao pé de casa, vejo um vizinho solícito a dar-me as boas tardes e a informar-me que me tinha esquecido das chaves de casa na fechadura da caixa do correio. Reconstruí a cena. Coloquei a chave na fechadura, abri a caixa, tirei o correio e aqui há um espaço em branco de algumas horas. Mil agradecimentos e outros tantos obrigados e vou para casa almoçar. E fui jurando que iria ter mais cuidado. E nestas juras e promessas lá se foi o tempo. Desci fui para o carro. Estava lá, mas tinha-me esquecido de o fechar. Eu sei, eu sei. Há uma explicação científica. Até para isto.

terça-feira, 14 de novembro de 2017

A moral das coisas

Certamente, por distracção minha, nunca tinha atribuído um valor moral ao ordenamento das coisas mecânicas. Persisti nesta funda ignorância até há pouco. Tendo o relógio decidido parar, apesar de a pilha, que o animava nos trabalhos e dias que lhe competiam, ser relativamente nova. Não me ocorreu que tivesse entrado em greve e dirigi-me a uma relojoaria. A senhora que me atendeu quis alargar o âmbito dos meus conhecimentos e, apesar do meu patente desinteresse pela causa da recusa do aparelho em funcionar, chamou o relojoeiro. Todos os que estudaram filosofia sabem que um relojoeiro está mais próximo de Deus que qualquer outro mortal. E foi aí que tive a percepção da ordem moral que rege o mundo dos autómatos. Explicou-me ele que a acumulação de impurezas no mecanismo conduz a que, para funcionar, este tenha de gastar mais energia. Logo, as pilhas duram menos. Não quis pormenores sobre as impurezas, bastou-me o desperdício. Traduzindo isto, aprendi que a impureza, seja ela o que for, leva à dissipação e, se não se atalhar, pode conduzir mesmo à ruína e morte do instrumento. Quando saía do estabelecimento, tive de me controlar e não voltar atrás para perguntar se não seria sensato levar o relógio a um padre confessor. O melhor é manter as aparências, pensei, e mergulhei no frio que a noite, ao cair, trazia consigo.

segunda-feira, 13 de novembro de 2017

Passado

Não sei bem o motivo, mas, ao sair da escola, de uma daquelas reuniões que marcam o itinerário para nenhures, dei comigo a pensar na relação com o passado. Não com o meu passado, mas o da história. Quando era aluno, ali mesmo, naquela escola, a distância histórica para qualquer coisa que não fosse ontem era incomensurável. Por exemplo, o tempo de Eça de Queiroz parecia-me inimaginável. Isto para não falar do de Camões. Quanto aos gregos, esses teriam vivido há tanto, tanto tempo, que talvez nem fossem bem humanos. Como é possível que hoje fale aos meus alunos dos gregos e das suas obras como se isso tivesse acontecido ontem? Como é possível que, em algumas décadas, se tenha dado em mim mudança tão radical? Depois, penso que envelhecer não é adentrar-se no futuro, mas aproximar-se do passado. Quanto menos futuro temos maior é o passado que abarcamos, pensei ao fazer a rotunda em direcção à avenida marginal, onde os castanheiros se perfilam e fazem a contabilidade dos mortais que por ali passam.

domingo, 12 de novembro de 2017

Tenebrae Responsoria

Medito nas razões para que, nesta noite de domingo, tenha decidido escutar a meandrosa música de Carlo Gesualdo, o príncipe de Venosa, o torturado e tortuoso assassino da sua primeira mulher e do amante desta. Oiço Tenebrae Responsoria, o que não deixa de estar adequado com a minha hora e o espírito do autor. E, no entanto, desta música desprende-se algo tão luminoso – do mais luminoso que o Renascimento nos oferece – que consegue rasgar as trevas e dar a ver a vida na sua totalidade, nessa mistura conflituosa de dia e noite. E pela música, mais uma vez, sou instruído que a noite contém uma luz bruxuleante, mas que o dia da amanhã também traz em si a negra noite, como se a vida não fosse mais do que um perpétuo jogo entre potências que nos ultrapassam e de nós dispõem sem grande respeito pelo nosso livre-arbítrio.

sábado, 11 de novembro de 2017

Fantasmas

Desloco-me pouco dentro da cidade. Os caminhos que preciso de percorrer em Torres Novas não o exigem. Esta tarde, porém, depois de ir visitar a minha mãe, atravessei a ponte do Raro e dei uma volta pelo centro. Como se tornou hábito, sempre que o faço, desce sobre mim uma melancolia que nem a luz, ainda tão clara, consegue disfarçar. É como se tivessem roubado o espírito da velha vila onde cresci. A memória retém imagens de bulício, cenários de uma vida real marcada pelo ardor com que a esperança traçava um horizonte, para onde a existência de cada um se dirigia. Agora, mesmo nos melhores momentos, há uma sensação de tristeza e de abandono. É necessário fazer um esforço para perceber que as pessoas que avistamos são reais e não meros simulacros. É um exercício penoso viver entre fantasmas, ser um fantasma entre fantasmas, pensei, enquanto dirigia o carro para longe daquele espaço onde, há muito, houve uma vila que transportava, orgulhosa, séculos, talvez milénios de história.

sexta-feira, 10 de novembro de 2017

Fluxo

Sexta-feira à noite. Oiço Für Anna Maria, Piano Music, de Arvo Pärt. Deixo-me envolver, mas logo o vinilo termina e tenho de voltá-lo. O som do vinilo é incomparável, mas este põe disco, vira disco, muda disco passou de moda. Ou então tornou-se cansativo, num mundo em que o menor esforço triunfou. O importante, porém, é que se chegou a sexta-feira. São sempre equívocas as noites de sexta-feira. Parecem o começo do fim-de-semana, mas, na verdade, são já o anúncio de uma segunda-feira negra, turbulenta e, como tudo o que é humano, inútil, demasiado inútil. Por vezes, imagino-me a reter o tempo, a não deixar que os segundos se escoem. Depois, desisto e entrego-me ao fluxo, ao velho rio onde Heraclito não se poderia banhar duas vezes na mesma água. Num ponto do rio, não sei onde, está a minha morte. Espera-me. O melhor é deixar-me ir no Spiegel im Spiegel, de Pärt, como quem é arrastado pela torrente indomada do tempo. Sexta-feira à noite. O sábado é já uma promessa, uma ameaça no horizonte.

quinta-feira, 9 de novembro de 2017

Paradoxos e mistérios

Depois de um dia excessivo que se esvaiu entre reuniões e o magno problema do livre-arbítrio, dou comigo, quando, noite cerrada, atravesso a cidade em direcção a casa, a pensar, movido por um interesse recente, no chamado paradoxo da pedra. Será possível Deus criar uma pedra que nem Ele consiga erguer? Se não conseguir criar essa pedra, então não é omnipotente. Mas se conseguir criá-la, também não é omnipotente pois não será capaz de a levantar. Em vez de tentar descobrir a solução do paradoxo, medito, ao subir o viaduto, ali mesmo onde o rio é mais frio, que os homens, neste particular, são muito menos problemáticos que Deus. Têm tendência a criar pedras que, em pouco tempo, nem uma multidão erguerá. Livres do atributo da omnipotência, não são enredados em paradoxos. Contudo não deixa de ser, para mim, um mistério a propensão humana para criar aquilo que o há-de esmagar. O dia pesa-me toneladas e a noite promete não aliviar o peso que desaba sobre os meus ombros. 

quarta-feira, 8 de novembro de 2017

Texugo

Há muitos anos, conheci alguém que tinha por máxima de vida preservar-se do contacto com o rebanho. Era uma pessoa discreta e, por alguma razão que eu nunca quis saber, deixou que o aforismo se lhe soltasse da boca num ambiente relativamente público. Nesse momento dei pela sua existência. Foi o princípio de uma longa amizade só interrompida pela morte. O rebanho, dizia, não cheira apenas mal. Contamina-nos com o seu cheiro. E logo acrescentava que não há coisa pior que o mau odor. Um dia, numa conversa ocasional cujo assunto esqueci, acrescentou à sua tese uma taxinomia humana. Há quatro tipo de pessoas, afirmou, enquanto olhava para lá da janela. As que fazem parte do rebanho, as que são cães do rebanho, os pastores do rebanho e os inúteis, os que não sabem balir, nem ladrar, nem possuem voz de comando ou propensão para homilia. Esses tornam-se suspeitos e a única solução que possuem, para que possam preservar a vida, é tornarem-se texugos. Só o mau cheiro pode combater o mau cheiro, acrescentou não sem deixar escapar uma gargalhada.

terça-feira, 7 de novembro de 2017

Desejo

Há pouco, ainda havia luz, passei por uma mulher encostada à parede de um prédio quase pegado àquele onde moro. As costas hirtas pareciam suster o monstro de cimento, mas a cabeça inclinava-se para o chão. Os olhos, fascinados pelo rodopiar das folhas que o Outono rouba ao arvoredo, não se desprendiam do espectáculo. Tive vontade de parar e desejei ser arrastado para dentro daquele olhar. Havia nele uma tal melancolia que quase me comovi. Apressei o passo e já longe voltei-me para trás. As folhas rodopiavam e na parede havia então uma sombra, o buraco vazio de um desejo por realizar.

segunda-feira, 6 de novembro de 2017

Desassossego

São longas, muito longas, as segundas-feiras. Chega a noite e sento-me sem saber bem o que fazer do que ainda tenho para acabar. Logo, porém, esqueço os trabalhos e os dia. Um acaso, e eu sou muito atento aos acasos, influência do incerto princípio da incerteza, de Heisenberg, conduziu-me a um texto sobre o escritor norueguês Kejell Askildsen, cuja obra faz parte do infinito oceano da minha ignorância. Diz ele que escreve histórias para desassossegar os leitores. Compreendo-o, mas tenho uma funda dúvida sobre se os leitores querem ser desassossegados. Leitores desses são uma raridade. Há alguns, claro, que falam muito em desassossego, mas, por norma, gostam que sejam os outros a serem desassossegados. Eles, apesar da retórica, querem ser confirmados nas suas crenças. O desassossego é sempre algo que o outro precisa. São coisas destas que me dão para pensar às segundas-feiras depois de jantar, quando me fecho no sossego do escritório e oiço a noite ranger nos gonzos da terra.

domingo, 5 de novembro de 2017

Domingo

Sem interlúdio, transitámos de um Verão agreste, pesado e funesto para o Verão de S. Martinho. Imagino que ali ao lado, na Golegã, a azáfama seja grande. É um mundo que nunca exerceu qualquer fascínio sobre mim. Por vezes, fazia visitas etnográficas, mas a etnografia deixou de me interessar há muito. Sou um péssimo ribatejano, confesso. Prefiro ficar a ver o sol a iluminar o silêncio da manhã e a ramagem das árvores a ser sacudida por uma brisa ligeira que se desprende da Serra de Aire. Há mais verdade no vento que desce da serra do que no trote dos cavalos num concurso hípico. E rio-me deste pensamento absurdo. Uma sirene interrompe-me o devaneio, e logo avisto uma ambulância a correr para o hospital. Também eu, um dia qualquer, posso ir de urgência para lá. Encolho os ombros. Poucas são as coisas que estão na mão dos mortais e mesmo essas são incertas. A tarde chegou mansa e recordou-me que há muitos, muito anos, a esta hora, estaria na Igreja de S. Pedro, na missa do meio-dia. Talvez o mundo, naqueles dias, fosse mais perfeito. Ou talvez fosse igual ao de hoje. Eu é que perdi a paciência para a homilia. 

sábado, 4 de novembro de 2017

Um raga

Por vezes, aventuro-me na música erudita, digamos assim, de tradições não ocidentais. A que mais me fascina é a japonesa. Hoje, porém, não sei se devido à combinação do sol e das nuvens em tarde de sábado, ou se por ter andado, há pouco, a observar as folhas avermelhadas pelo Outono das árvores da avenida, acabei por escolher um raga indiano. Na raiz indo-europeia da palavra raga está a ideia de colorir, descubro-o agora numa consulta na internet. É a mesma raiz da palavra inglesa red e por certo da alemã rot ou da francesa rouge. O raga, enquanto peça musical, pretende colorir a mente, retirá-la da abstracção dos conceitos e fazê-la o centro da vida. A experiência de escuta, contudo, não é, de início, a de uma explosão vital como, por exemplo, na Sagração da Primavera de Stravinsky. Pelo contrário, o espírito que escuta volta-se para si, concentra-se na sua solidão, abstrai-se da exterioridade. É um espírito devocional. Só depois, de forma gradual mas vagarosa, a música conduz à exteriorização, à manifestação no mundo, da vida exuberante, e o corpo quase é movido pela vento que sopra da música. De súbito, percebo que o sol deste sábado ou as folhas avermelhadas do Outono, também eles, nascem desse espírito que sopra do raga que oiço. Lá fora, um vento empurra as folhas e fá-las rodopiar, rodopiar, rodopiar e, entre mim e as folhas que rodopiam há uma funda comunhão.

sexta-feira, 3 de novembro de 2017

O baile

Uma loja de roupa anuncia-me, por sms, que sente a minha falta. Apetece-me responder que eu não, não sinto, de todo, a minha falta. Contenho-me. Ainda não me habituei a estes anoiteceres temporãos. Tenho de vigiar o humor. Lá dentro, as minhas netas contendem sobre quem será a princesa e quem será a aia. Enquanto me entretenho com uma broa remanescente dos Santos, espero que o litígio se prolongue. Quando terminar, está-me reservado o papel de acompanhar a princesa ao baile. Com o tempo que está, não me apetece calcorrear a cidade numa velha carruagem. E a noite, mais negra e mais densa, desce sem piedade sobre o dia. E a luz resplandece nas trevas, e as trevas não a compreenderam, disse João. Fico a meditar na incompreensão das trevas perante a luminosidade da luz. A demanda parece resolvida. Não tarda, irrompem pelo escritório. O melhor é ir preparar-me. Será que tenho roupa para o evento?

quinta-feira, 2 de novembro de 2017

Fiéis Defuntos

Não ontem, mas hoje, sim, é o dia de Fiéis Defuntos. Consta que a tradição se teria iniciado no século II. Os fiéis oravam pelos mártires. Mais tarde, pelo século V, a Igreja dedicou um dia para que se rezasse por todos os mortos, por aqueles de que ninguém se lembrava já. Este exercício mnemónico fascina-me, como se ele fosse o resultado de um saber arcaico, uma sabedoria que não desiste de nos recordar que somos, todos nós, devedores de uma longa tradição genética. Sem cada um desses membros esquecidos da cadeia que nos liga ao início da vida, não existiríamos. Haja então um dia em que os possamos recordar, trazê-los ao coração. Não comprei crisântemos e não irei ao cemitério. Nunca o faço nestes dias. Trago, porém, os meus mortos comigo. Aqueles que conheci e amei e aqueles que teria amado se me tivessem dado essa possibilidade. Por vezes, dou comigo a falar com um ou outro dos meus avôs, os quais morreram muito antes que qualquer um dos seus netos tivesse nascido. Apesar disso, compreendemo-nos muito bem. Eles, como eu, sabem o quanto lhes devo.

quarta-feira, 1 de novembro de 2017

Banalidades

Leio: a morte está cada vez mais banalizada. Assinto sem dificuldade. Quanto mais banalizada estiver a vida, mais banalizada estará a morte. Nunca a banalização da morte ultrapassará a banalização da vida.

Todos-os-Santos

Comi há pouco uma broa, daquelas broas de azeite que só em terras de olival existem. E ela instalou-me, como por milagre, em pleno dia de Todos-os-Santos, fez-me mesmo crer que o Outono chegara. O dia, tomado pelo revoltear do vento, a chamar chuva, e pela luz desmaiada, confirma-o. Em criança, nunca participei nessas deambulações, em grupo, de porta em porta, a que aqui chamam “ir aos bolinhos” e em outros lados “pão por Deus”. Não lastimo esse espaço em branco no currículo. Por certo, os meus pais não favoreciam a aventura, mas a causa primeira, vejo-o agora, estaria na minha pouca vontade para o fazer. Tirando uma época exígua em que, tomado pela febre do tempo, julguei que a salvação do mundo estaria na força do grupo, a minha vida caminhou sempre em direcção contrária. Por isso estranhei há pouco, vinda de não sei bem onde, a voz de alguém a trautear “canta amigo canta / vem cantar a nossa canção / tu sozinho não és nada /juntos temos o mundo na mão”. Nunca percebi para que haveria de querer ter o mundo na mão. E logo me recolhi em Todos-os-Santos, que, apesar da sua natureza colectiva, faz nascer em mim o desejo de uma longa solidão.