sábado, 29 de abril de 2023

Livros e status

Ida ao aeroporto buscar alguém, almoço em Lisboa, retorno ao lar, doce lar, à cadeira do escritório. Depois de uma semana tensa, o que me apetece mesmo é dormir. Este apetite pelo sono, todavia, não é partilhado pelo corpo, ou pelo cérebro, caso este não faça parte do corpo, pois quando chega a hora de dormir, com ela vem, velada sabe-se lá por quê, a insónia. Nessas alturas, que não são poucas, aproveito para adiantar leituras. Há pouco, em viagem, ouvi, na Antena 2, que a civilizada Coreia do Sul é um dos países do mundo onde menos se lê, apesar de ser um país tecnologicamente avançado e onde as pessoas mais usufruem das novas tecnologias. O comentador, alguém cujo nome esqueci, mas que falava em castelhano, não via no facto um problema. Não estabeleceu uma correlação entre o uso das novas tecnologias e o baixo índice de leitura. Pelo contrário, sublinhou os progressos que o país está a fazer para trazer a leitura para a vida das pessoas, dando a entender que ler não fazia – e ainda não faz – parte da cultura daquele país. Se isso se passasse em França, acrescentou, seria grave, pois era a marca de um retrocesso. Talvez nós, ocidentais, tenhamos sido vítimas de um fetichismo, o dos livros. Havendo pessoas que decoram estantes com livros, ou mesmo com simulacros de livros, movidas pelo encantamento em que caíram. O encantamento seria o de um suposto estatuto social que, contra qualquer evidência, o livro daria. Os livros nunca deram status. O que acontecia era que, em tempos, tempos longínquos, as pessoas que tinham status também tinham livros. Ora democratizar o livro não implica a democratização do status. Este, por natureza, não é democratizável, pois o seu fundamento é a diferenciação, a distinção, mesmo que esta se deva a coisas que pouco ou nenhum sentido tenham. Imaginemos uma pessoa que cria canários pelo prazer de os contemplar, de cuidar deles, de ver florescer as linhagens. Ninguém alcança status a criar canários. Quem gosta verdadeiramente de livros não é diferente de um criador diletante de canários. Gosta de os contemplar, de os ler, de ver florescer as múltiplas linguagens que ali se encerram, mas isso não acrescenta um grama ao seu status social, felizmente.

sexta-feira, 28 de abril de 2023

Espíritos

Um dia para esquecer. Os motivos, omito-os. Também o clima não ajudou. Quente e abafado, com o corpo a pedir chuva, literalmente, ou mesmo uma boa trovoada. Subia com a lentidão do trânsito o viaduto e ia ouvindo a Antena 2, como é hábito. Uma peça musical para oboé, salvo erro. A certa altura pensei que toda a arte é um trabalho sobre a matéria, mas não sobre a materialidade da matéria. O artista trabalha a matéria para que se revela o espírito que ali se oculta, para manifestar a espiritualidade da matéria. Esta ideia fez-me sorrir, enquanto contornava uma nova rotunda e já me encaminhava para outra. Depois, pensei em Hegel, na sua tese de que a arte é uma forma sensível de manifestar o espírito, a ideia, mas este é o pensamento de Hegel e não aquilo que eu tinha pensado. Não se trata de um espírito absoluto a caminho de si mesmo, mas de espíritos particulares que estão presentes num bloco de mármore, na combinação de uma certa tela e da tinta que a vai tingir, na conjugação de ondas sonoras, ou de corpos que lutam contra a gravidade. Ao estacionar o carro, percebi que estava perto do politeísmo ou então de uma certa forma de angelologia. No elevador, ocorreu-me que, por exemplo, num certo bloco de mármore estão contidos inumeráveis, senão infinitos, espíritos, mas a limitação da arte humana só consegue revelar um. A consequência é que toda a arte é um exercício de homicídios espirituais. Nisto é muito idêntica à reprodução sexuada. Por cada espermatozóide que atinge a meta, morrem milhões com todas as suas infinitas potencialidades. Agora que estou sentado e escrevo tudo isto, constato que o dia não está a melhorar. Daqui a pouco irei fazer a caminhada diária, mas o ar pegajoso que adivinho nas ruas deixa-me relutante.

quinta-feira, 27 de abril de 2023

Uma viagem em verso e meio

Quase no início da quarta elegia de Duíno, Vasco Graça Moura traduz verso e meio de Rilke assim: Não somos unos. Não nos coordenados / como aves migradoras. (…) A primeira pessoa do plural gera uma feliz ambiguidade. Quem não é uno? Quem não se coordena como as aves migradoras? Será a espécie humana o referente desse nós? É verdade que entre os homens reina sem parar a discórdia, o diferendo, a desavença, que a aliteração sublinha e intensifica, e que são o sinal da falta de coordenação e de unidade. Esse nós, todavia, pode ser um plural majestático, uma referência ao eu, a uma alma desavinda consigo. Serei eu que não sou uno, nem me coordeno como se coordenam as aves migradoras. A ambiguidade, porém, não termina aqui. Esse nós, que no original está expresso, pode ser, ao mesmo tempo, um eu e um nós. Todos os eus sofrem da falta de unidade e de coordenação consigo mesmos e por isso constituem um nós. O que introduz mais uma ambiguidade. Nós, seres humanos, estamos coordenados e unidos na falta de unidade e coordenação que cada um sofre. O que nos une é a desunião. O que nos coordena é a descoordenação. Da primeira à terceira interpretação das palavras de Rilke, ou da tradução de Graça Moura, passamos da sociologia à ontologia por intermédio da psicologia. Todo o poema – ou todo o verso – é um palimpsesto.

quarta-feira, 26 de abril de 2023

Do quotidiano

Os termómetros, por aqui, chegaram aos 32 graus e Maio anuncia-se com temperaturas na ordem dos 35. A rua estava insuportável, e tudo indica que este estado de coisas é irremissível. Agora, o Verão começa em Abril e prolonga-se por dentro de Outubro, até quase Novembro. A sensação que paira nos ares é de que ninguém quer saber, como se as pessoas se entregassem a uma lógica evolucionista, em que os mais aptos se adaptarão às novas circunstâncias, e não há ninguém que se sinta excluído do grupo dos mais aptos. Ou talvez se espere um milagre que resolva aquilo que parece não ter solução. Um milagre sobrenatural ou criado pela ciência. Ouvi esta conversa a alguém que se interessa pelo clima, mas não soube o que lhe dizer. Enquanto escutava, pensava em lugares frescos, paisagens de névoa e na água fresca que me apetecia beber. Coisas simples de um exilado climático. O dia prolongou-se e eu perdi-me na azáfama, sem dar conta de algum acontecimento merecedor de narração. A entrada para a auto-estrada estava cortada, o aparato policial indicava haver problema e o trânsito acumulava-se perdido na lentidão. Foi um acidente, disseram-me pouco depois. Mais tarde, encontrei outro, mas já às portas da cidade, embora esta não tenha portas. As que havia na muralha fernandina, que circundava a antiga vila, o terramoto de 1755 levou-as com a muralha. Agora, vivo numa terra desmuralhada, incapaz de opor resistência a mouros ou castelhanos. O Word não gostou de desmuralhada, sublinhou-a a vermelho e propôs emuralhada ou mesmo desmortalhada. Pensei que o processador de texto estava numa fase tétrica. Vou fechá-lo.

terça-feira, 25 de abril de 2023

Modorrar

O feriado corre dolente, não há vento, as árvores parecem estátuas coloridas, petrificadas pela varinha mágica de algum deus irrequieto e desocupado. A avenida envelhece tomada pelo calor, pelo sol vigoroso de um Abril cada vez mais estival. Voltei ao tema recorrente da meteorologia, do estado do tempo, das peripécias do clima. Na minha secretária repousa o romance Sob a estrela do Outono, de Knut Hamsun. Tinha-o lido em espanhol, e agora que a Cavalo de Ferro o publicou em português vou relê-lo. Contudo, há uma coisa que me preocupa. Esta obra, de 1906, é apenas a primeira de um conjunto denominado Trilogia do Vagabundo. Ora, na edição portuguesa não vejo, em sítio algum, a referência ao facto. Temo que se esqueçam de publicar os outros dois volumes. Já os li em espanhol, mas já que comprei o primeiro em português, gostaria de completar o grupo de romances. Na contracapa do livro é citada a frase de Thomas Mann: Hamsun é o maior escritor de todos os tempos. Talvez Mann exagerasse, mas será um dos maiores, com lugar cimeiro no paraíso dos escritores, embora é possível que o não tenha no dos homens. Isso, porém, é um assunto que não cabe nestas linhas. Vou modorrar um pouco para fazer companhia à tarde, onde o tempo parece ter adormecido, mas nãos haja equívocos, mesmo a dormir o tempo continua a sua caminhada.

segunda-feira, 24 de abril de 2023

Citações

Tenho ideia, uma vaga memória, de que terá sido por um CD de 1994 que entrei no universo do compositor polaco Krzysztof Penderecki. Trata-se de uma recolha de peças, com destaque para Threnody to the Victims of Hiroshima, De Natura Sonoris ou Canticum Canticorum Salomonis. São peças, todas elas, de grande densidade, como se fossem o eco da tragédia que impregnou o século XX. Oiço agora esse CD e penso que, se alguém der por isso, julgará que enlouqueci. Se me acusassem de ter entontecido, eu responderia que era falso e leria alto o poema: Esclarecendo que o poema / é um duelo agudíssimo / quero eu dizer um dedo / agudíssimo claro / apontado ao coração do homem // falo / com uma agulha de sangue / a coser-me todo o corpo / à garganta // e a esta terra imóvel / onde já a minha sombra / é um traço de alarme. Depois de escrever o poema da Luiza Neto Jorge, pensei que não me livraria da acusação, que o acusador haveria de repetir que a minha sombra / é um traço de alarme. E ficaria ele mais alarmado, enquanto a trenódia – ou será tronodia? – se eleva e me toca o fundo do coração, com o qual oiço o canto lamentoso que clama na voz silenciosa dos mortos.

domingo, 23 de abril de 2023

Da posse recíproca

Não li o livro, ainda não o li, mas vejo, em pequenos episódios, o filme que adapta o romance de Octave Mirbeau, Diário de uma Criada de Quarto, com a realização de Benoît Jacquot. Existem outras adaptações, entre elas uma de Jean Renoir e outra de Luis Buñuel. Releio O Leopardo, de Giuseppe Tomasi di Lampedusa, do qual Luchino Visconti fez um grande filme. A obra de Lampedusa foi escrita entre 1954 e 57, a de Mirbeau foi publicada em 1900. De certa forma ambas têm um alvo social preciso, a burguesia. Em O Leopardo é a ironia do príncipe de Salina que pontua a ascensão da burguesia ao poder efectivo na Itália em unificação. Em O Diário de uma Criada de Quarto é o olhar penetrante de Célestine que manifesta a impiedade e corrupção moral de uma burguesia já consolidada em França. O olhar que vem de cima e o que vem de baixo encontram-se no mesmo alvo, vendo cada um deles coisas diferentes, mas que, na verdade, são complementares. O domingo progride sorrateiro, aproxima-se da hora de almoço. Já fiz uma caminhada quase matinal. Nessa viagem, não me lembrei do príncipe nem da criada, apenas de coisas que me vão preocupando, numa rememoração dos últimos dias e numa antecipação dos próximos, caso seja possível antecipar seja o que for. Imagino, neste momento em que uma nuvem cobre o sol, que num outro mundo, seria possível que Fabrizio Corbera, príncipe de Salina, e Célestine, a criada de quarto, se encontrassem como iguais. Aqui poder-se-á fazer entrar as seguintes considerações: Quanto ao comércio natural dos sexos ele tem lugar ou segundo a simples natureza animal (vaga libido, venus vulgívaga, fornicatio), ou segundo a lei. Neste caso, trata-se do casamento (matrimonium), isto é, a ligação de duas pessoas de sexo diferente, que quer, para toda a sua vida, a posse recíproca das suas faculdades sexuais. Talvez esta linguagem explique a razão pela qual Kant, o autor, nunca se casou. Os quatro artigos sobre o direito conjugal (parte da Metafísica dos Costumes – primeira parte: Doutrina do Direito) são todos eles escritos neste registo. Ora, muito mais tarde, o príncipe de Salina, depois da comunicação pelo padre Pirrone de que a sua filha Concetta estava apaixonada, pensou: Amor. Claro amor. Fogo e chamas durante um ano, cinzas durante trinta. De alguma maneira, o comentário meditativo do príncipe acaba por dar razão ao filósofo alemão. O matrimónio nada tem que ver com o amor, mas com a dura gestão das cinzas, isto é, da posse recíproca das suas faculdades sexuais até ao fim da vida. Um problema de gestão de propriedades, digamos. O que para Kant está muito acima do comércio natural dos sexos segundo a simples natureza animal.

sábado, 22 de abril de 2023

Arqueologias

Hoje desloquei-me um pouco mais para o interior, não muito, nem vinte quilómetros, mas o país já é outro. Acabei por almoçar naquele lugar, num restaurante tipicamente de interior. Nada de aparências ou comidas europeias, mas uma casa decente, empregados preocupados com o ofício – isto é, com os clientes – mesas com toalhas e guardanapos de um branco imaculado, uma boa carta de vinhos e uma comida portuguesa bem feita. Os comensais são muito distintos daqueles que se encontram nos restaurantes da moda em Lisboa, por exemplo. Uma burguesia provinciana, em que ainda se nota traços de uma vida rude, mas onde o aroma do dinheiro começa a apagar as cicatrizes dos tempos difíceis. Quanto mais se progride para o interior, maior é o número deste tipo de restaurantes, casas sólidas, de onde não se sai defraudado, pelo contrário. Isto não significa que em Lisboa ou no Porto não existam restaurantes provincianos, com a mesma cultura expressa na carta de vinhos e na qualidade da ementa. Existem e também não se sai defraudado. Contudo, a ambiência trazida pelos clientes é diferente, mais cosmopolita, com menos traços de uma vida rude, talvez por ser mais antiga. Contudo, uma saudade, que os próprios ignoram, leva àqueles lugares como peregrinos de um deus desconhecido. Enchem as mesas como resposta a um impulso arcaico ou para exercerem uma actividade de arqueólogos que, com garfo e faca, escavam memórias ancestrais desconhecidas. Para o que me havia de dar hoje.

sexta-feira, 21 de abril de 2023

Tempo e memória

As previsões concretizaram-se e, neste momento, chove. Uma chuva fina e persistente. A sexta-feira progride indiferente ao estado do tempo. Apesar de usarmos a palavra tempo tanto para a meteorologia como para a duração, as duas coisas ignoram-se ostensivamente, cada uma concentrada na sua sorte e nos seus afazeres. Uma empurrando o presente para o passado, outra distribuindo os estados climáticos de acordo com arcanos que um mortal não decifrará. Para acompanhar uma parte da tarde recorro a um CD duplo com o nome de uma deusa grega, Mnemosyne, de Jan Garbarek e The Hilliard Ensemble. Há muito que não o escutava e hoje caiu-me entre os dedos. Oiço a segunda faixa, O Lord in Thee is all My Trust, de Thomas Tallis. A meteorologia entrega-se a súbitas metamorfoses, mostrando um carácter volúvel. Imagino que possa existir um mundo em que a volubilidade seja uma virtude e não um vício. O título do CD e a fotografia da capa estabelecem uma estreita relação. Vê-se um céu nublado, onde existem nuvens de diversas colorações, do branco brilhante ao chumbo pesado e negro. É isso que é a memória, palavra portuguesa para mnemosyne. Para ser mais fiel, Mnemosyne é a deusa da memória. Deu à luz as musas que superintendem as diversas artes, o que não deixa de ser uma lição. A mãe de todas as artes é a memória, mas elas não se confundem com ela, assim como um filho não se confunde com a sua mãe. Tal como o cântaro vem do barro, mas é outra coisa, também a arte vem da memória, para ser outra coisa. A memória é o barro de toda a arte. Não tarda, tenho de sair e repito-me na composição de uma analogia, talvez para me convencer a mim mesmo.

quinta-feira, 20 de abril de 2023

Paraísos

Desconfio que tenho uma certa fixação em efemérides, pequenas efemérides, daquelas que asseguram a banalidade do mundo e a trivialidade da vida. Hoje, cumprem-se 2/3 de Abril. Daqui até Maio há apenas mais dez dias. Será isto tão relevante que mereça que se lhe dedique alguns segundos? Claro que é, pois toda a existência, e não apenas a humana, é composta por coisas sem importância, mas que são necessárias. Celebro a necessidade neste culto das efemérides que é também um tributo ao efémero. Uma aplicação que me controla o exercício diário veio a terreiro informando-me, não sem benevolência, que, para cumprir as metas diárias, me faltam 742 passos e seis pontos cardio. Penso que talvez, mais logo, quando o calor entrar em depressão, farei os possíveis para satisfazer o aplicativo. Agora, deixo-me levar pela música de Carlo Gesualdo. Nunca deixa de me fascinar a obra deste príncipe de vida negra. Se tivesse de escolher uma época musical, não seria o barroco, nem o classicismo, nem o romantismo, nem a música contemporânea. Instalar-me-ia na música da Renascença e pensaria que tinha chegado ao paraíso. Um paraíso transitório, um oásis entre os tempos antigos e os tempos modernos, onde tudo estava a acabar e tudo estava a começar. Imagino que os paraísos sejam sítios onde, ao mesmo tempo, tudo acaba e tudo começa. Isto, porém, são fantasias de um narrador desocupado.

quarta-feira, 19 de abril de 2023

Crenças

Na barra de tarefas do computador, existe um aviso – melhor, um duplo ou triplo aviso – que me informa de que o sol se está a pôr, o céu está parcialmente ensolarado e estão 22 graus de temperatura. Agradeço a solicitude informativa, mas não sei o que fazer com tanta informação. Estamos imersos num oceano de informações, um mar encapelado onde arriscamos o afogamento. Isto tinha eu escrito antes de ter de sair de casa e deixar a meditação em suspenso. Agora que retornei ao meu lugar, o sol já se pôs há muito e a escuridão desceu sobre a cidade, envolvendo-a numa seda negra rasgada pelos clarões dos faróis e das iluminações públicas. As ruas, ensonadas, entregam-se ao abandono a que os homens as votaram. As acácias da praceta começam a cobrir-se de folhas, num ritmo lento. Os castanheiros da avenida marginal, reparei de manhã, já estão floridos, mas longe do esplendor que costumam atingir. Talvez ainda seja cedo. Para acabar o périplo pelo mundo vegetal, registo que onze das quinze orquídeas já estão floridas. As que faltam também prometem fazê-lo, só que um pouco mais tarde. Voltando à barra das tarefas do computador, sou informado de que estão 15 graus, com o céu parcialmente nublado. E eu acredito.

terça-feira, 18 de abril de 2023

Viagens no tempo

A criançada ocupa o parque que lhe é destinado. Ouvem-se os gritos, enquanto o vento obriga as folhas do arvoredo a dançar, como se uma flauta humilde ao longe tocasse, talvez para se fazer ouvir nos ouvidos de uma pastora bela. É sempre possível imaginar mundos impossíveis. Talvez imaginados eles se tornem possíveis. Não há pastoras belas, nem não belas, nem estamos em tempos pastoris. Imagino que a verdade acerca desse mundo de pastoras belas e pastores musicais seja tenebrosa, mas sempre se pode sonhar com uma Arcádia, pois tudo o que nos chega da antiguidade perdeu as trevas e a sujidade na viagem para vir até nós. Fazer as coisas viajar no tempo é uma operação de limpeza, pois o tempo é uma escova implacável. Vou à rua ver se chega alguma novidade da Guerra do Peloponeso, uma carta de Tucídides, um fax de Xenofonte.

segunda-feira, 17 de abril de 2023

Uma raposa

Chegou a segunda-feira e com ela a realidade. Como se pode tratar com uma coisa tão intratável como a realidade? Talvez existam duas maneiras possíveis. A da raposa e a do ouriço. Entre mais ou menos 680 aC e 645 aC, viveu na Grécia um homem chamado Arquíloco, nascido na ilha de Paros. Era guerreiro e poeta lírico. Talvez tão famoso, nesses tempos, quanto Homero. É ele que escreve: A raposa sabe muitas coisas, mas o ouriço sabe uma muito importante. Isaiah Berlin, nos anos cinquenta do século passado, para falar acerca da visão histórica de Lev Tolstói escreveu, inspirado no poeta grego, a obra O Ouriço e a Raposa. Já no século XXI, Ronald Dworkin publica Justiça para Ouriços. Temos um confronto entre duas formas de sabedoria. Aquela que assenta num vasto acervo de informações, a da raposa, e aquela que se funda no conhecimento de uma coisa essencial. Este narrador, tal como o autor o projectou, não passa de uma raposa, ou de um candidato a raposa. Sabe muitas coisas, mas nenhuma fundamental. Uma das suas frases de auto-análise favoritas é: sei uma quantidade enorme de coisas inúteis. Ao que poderia acrescentar: mas não sei nenhuma que valha a pena saber. Ora, como lidar com a realidade quando se tem alma de raposa e não de ouriço? Este é um problema. Outro pode formular-se do seguinte modo: pode a raposa, um dia, tornar-se em ouriço? Aqui entramos em Ovídio, o poeta das Metamorfoses, e na plausibilidade de que uma coisa se transforme numa outra. Consta que os alquimistas acreditavam na possibilidade de o chumbo devir ouro, mas nunca provaram a crença. Será possível, por manipulação genética, transformar raposas em ouriços? Todo este texto, claro, foi escrito no registo da raposa ou, para ser mais exacto, de candidato a raposa. Ninguém pode deixar de ser o que é.

domingo, 16 de abril de 2023

Sol de domingo

Quando, de manhã, fui à rua, perguntei-me por onde andariam as águas mil que rimam com Abril. Claro que não me dei resposta, e ninguém veio em meu auxílio. Pelo contrário, os transeuntes desfilavam pimpões vestidos de Verão, esquecidos de que deveria chover para amenizar o clima, encher as barragens e evitar os incêndios. Ninguém quer saber disso, pensei. Depois, caí em mim, fui tocado pela humildade, e reconheci que também eu era um refinado egoísta. Só me lembrei das águas mil, porque o calor me perturba, como se eu tivesse nascido num clima frio e nebuloso e não aqui. O mal do mundo está em que há muito mais pessoas a favor do tempo quente do que do tempo frio. Por isso, não se importam com o aquecimento global. Este assunto, porém, está fora das cogitações do narrador desta gesta, um cavaleiro andante do arrefecimento global. A Primavera, por estes lados, está animada. Os pássaros não se calam, as árvores vão-se cobrindo de uma folhagem verde e vibrante, batida pelo vento, num processo aliterativo, e, por certo, haverá, por essas terras fora, gentes cujo coração foi tocado pela flauta mágica do amor. O que me impressiona, porém, é que o brilho do sol tem o selo dominical. Como todos sabem, e se não sabem deveriam sabê-lo, o sol brilha de maneira diferente aos domingos. Não conheço as razões, mas já constatei o facto. Há nesse brilhar vibrante uma melancolia inextinguível, coisa que não acontece nos outros dias. Poderia dedicar-me à abdução para estabelecer um conjunto de hipóteses científicas que explicariam o fenómeno. Contenho-me, horrorizado, ao descobrir que a palavra tem significado não apenas lógico, mas também anatómico e, pasme-se, ovnilógico. Neste caso, trata-se da gesta de pessoas que foram raptadas – abduzidas – por extraterrestres. Para a próxima vez não usarei o termo abdução, mas raciocínio abdutivo, o qual suponho, não terá ligação à anatomia e, muito menos, à ovnilogia. Hoje, porém, deixo o caso em suspenso e vou tratar da vida noutro lugar.

sábado, 15 de abril de 2023

Confissão

Passei os olhos pela imprensa online. É um acto memorial. Em tempos, a manhã de sábado era dedicada, numa esplanada, à leitura dos semanários. Por norma, três ou quatro, conforme a sorte deles. Depois, fiquei concentrado em apenas um e hoje zero. Já não frequento esplanadas nem leio semanários, seja em papel ou online. A informação e a opinião, de que fui grande consumidor, hoje, com raras excepções, entendiam-me. Imagino, agora, que me deveriam ter entediado desde sempre, pois, na verdade, apenas tocam a espuma dos dias. O problema é que a espuma que agora parece interessar o mercado de leitores e, por isso, os mercadores de informação é mais rasteira e mais suja. Há quem esteja pronto para dizer que os protagonistas são mais sujos e rasteiros. Pode ser verdade, mas julgo que o problema está do lado dos consumidores. Eles, sim, parecem-me cada vez mais ávidos de sujidade e de rasteirice, como se a alma das pessoas se tivesse vindo a tornar mais negra e desejosa do pior. Foi isto que disse ao padre Lodo, há pouco, em conversa ao telemóvel. Não falávamos há semanas. Ele disse-me que estava numa esplanada a apanhar sol e ia lendo o semanário, cujo nome omito. E eu fiz-lhe aquela confissão. Sim, sendo ele padre, achei que poderia ouvir-me neste tipo de confissão, pois deverá ter treino suficiente para abarcar todo o género de confidências e declarações de gosto. Respondeu-me que não desistia do seu jornal de sempre, isto é, aquele que adoptou desde que chegou a Portugal, mas que compreendia o meu desencanto com a imprensa. Esta compreensão, julgo, foi uma forma de absolvição. Depois, trocámos opiniões sobre política, como nunca deixamos de fazer, mas essas omito-as, pois, como narrador, estou proibido pelo autor de manifestar qualquer inclinação que possa ter pelo assunto.

sexta-feira, 14 de abril de 2023

Uma conspiração

Uma conspiração. Tinha o post escrito, usava um tom melancólico, quase elegíaco, falava, como habitualmente, de coisas diversas e sem ligação, tudo corria pelo melhor, mas um bug que vive dentro deste computador decidiu fazer-me nova visita. Usa uma substância paralisante que suspende a actividade de tudo o que esteja activo, chega mesmo a suspender a passividade do que é passivo. Carregar no botão e desligar a máquina é a única solução. Ela, a máquina, não se queixa. Ligo-a e as coisas parecem voltar à normalidade, mas o texto escrito, apesar de gravado, esfumou-se, perdeu-se na estratosfera, e o mundo foi privado para sempre de um conjunto de pensamentos que o deveriam embasbacar, profundos que eram. Talvez tenha sido o próprio mundo a conspirar para não ficar embasbacado com tanta penetração. Seriam pensamentos brocantes, que entrariam pelas paredes do mundo para lhes abrir buracos, imagino eu, mas sou parte interessada, o que me retira a imparcialidade. Consegui, contudo, salvar o ficheiro que está a chegar às 660 páginas, o que não deixa de ser impressionante. Como será possível escrever tanto e, para além dos pensamentos perfurantes, não dizer nada. Não era isto que tinha escrito naquilo que o vento levou, mas o vento leva uma coisa e logo traz outra. Por norma, pior.

quinta-feira, 13 de abril de 2023

Um saber infinito

Dia de ida ao ortopedista, não a um qualquer, mas ao que é especialista em pés e tornozelos, imaginando eu que ele já pouco saberá do joelho e nada do fémur. Ainda há dias, uma pessoa me dizia que se andava a tratar com um ortopedista devido a um problema nos ossos da mão e que se queixou também de uma dor no ombro, ao que o médico respondeu que de ombros nada sabia e lhe indicou um especialista em ombros. Constato, não sem ficar maravilhado, que na medicina nos aproximamos daquele momento onde o conhecimento atingirá a sua máxima potencialidade, isto é, quando se tiver um saber infinito acerca de absolutamente nada. O médico é um rapaz da idade dos meus filhos, não me atendeu excessivamente depois da hora marcada e gostei da estratégia retórica usada. Perguntou-me ao que ia, disse-lhe que era por causa de um calcanhar e que levava já umas radiografias e uma ecografia. Não se mostrou muito interessado. Perguntou-me há quanto tempo padecia do que estava a padecer, lá lhe respondi como fui capaz. Pediu-me para ver o pé, manipulou-o, deu-me indicações para esticar a perna, o pé, sei lá mais o quê. Acabada a sessão prática, disse que a coisa era tratável, mas um bocado chata. Olhou para os exames que eu levava, mas continuou a não demonstrar grande interesse. Então, chegou a hora da aula de anatomia. Com um modelo de um pé reduzido aos ossos explicou-me o que estava a acontecer, eu ia dizendo que sim, que percebia, embora quando ele referia o nome do terceiro músculo, pois estes também entram na equação, eu já não me lembrava do nome do primeiro. Isto, pensei, é um acordo tácito. O papel dele, enquanto jovem médico actualizado, é explicar ao paciente com pormenores científicos aquilo que se passa e o meu, enquanto doente, é fingir que me interesso pelo assunto e que percebo a explicação. Só espero que, se um acaso da vida, tiver de lhe explicar a diferença entre juízos analíticos e juízos sintéticos a priori, ou entre um modus ponens e um modus tollens, ele também finja interesse e compreensão. Feito e explicado o diagnóstico, entrou pela porta do tratamento. Nada de medicamentos nem idas à fisioterapia. Apenas realizar uns exercícios de manhã e à noite que ele exemplificou e me fez fazer. Explicou que batotas devo evitar e fez um prognóstico de umas seis semanas para ficar bom. Caso a profecia falhe, então que faça uma ressonância magnética tibiotársica, mas só nesse caso. Que não me ponha a ressonar magneticamente sem necessidade.

quarta-feira, 12 de abril de 2023

Artifícios

Hoje coube-me assistir a umas conferências sobre Inteligência Artificial. Um dos oradores questionou o uso do qualificativo artificial, preferia Inteligência Sintética. Um equívoco. Artificial é uma escolha adequada, pois contém na sua raiz a ideia de arte, feito pela arte e o engenho dos homens. Pela indústria. Arte remete para a ars latina, a qual traduz a techne dos gregos, a raiz da portuguesa técnica. A Inteligência Artificial, nem sei por que razão estou a grafar em maiúsculas, é um artefacto técnico, resultado da indústria, no sentido de engenho para fazer algo e, mas só depois, como actividade económica mecânica, que também é. O uso de artificial coloca a Inteligência Artificial numa tradição arcaica da humanidade e é lá que ela deve ficar. Essa ideia de artefacto é mais importante do que a de síntese, que remete para composição. Há composições produzidas pelo homem, pela sua ars, pela sua techne, mas haverá outras espontâneas, geradas pela natureza, o que introduz uma ambiguidade ausente do vocábulo artificial. Não perdi o tempo, embora tivesse ainda direito a uma palestra sobre a felicidade, que de algum modo usava um artefacto da Inteligência Artificial para medir os estados de felicidade e infelicidade, mas aí a coisa tinha entrado no domínio da pura ociosidade, a que não faltou o mindfulness e outras ideias aberrantes para uma mente envelhecida, incapaz de sentir qualquer empatia – acho que também esta palavra terá sido usada – pelo assunto. Valeu a prova dos vinhos, onde descobri um tinto bastante interessante e também um rosé suficientemente seco para me chamar a atenção. Comprei umas garrafas de ambos, o que teria salvado a manhã, caso as conferências sobre Inteligência Artificial tivessem sido todo cheias de empatia e mindfulness, o que não foi, Deo Gratias, o caso.

terça-feira, 11 de abril de 2023

Divagações

Depois de ler uma obra com duas novelas de Castro Soromenho, uma literatura a que se pode chamar colonial, dedico as minhas insónias ao romance Aldeia das Águias, de Guedes de Amorim, publicado em 1939. O autor é um nome quase esquecido no panorama da literatura portuguesa e o romance em questão parece ser de tendência regionalista. Do que li, não escapará à dicotomia campo - cidade, sendo o primeiro o lugar da virtude, e a segunda, o do vício. Talvez me engane. Numa outra leitura, a de um filósofo actual, sugere-se que a crença religiosa teria a sua origem no medo sentido perante a desmesura da realidade e das forças da natureza. Isso seria um argumento contra a validade das crenças religiosas, nomeadamente a da existência de Deus. Ora, este parece-me ser um mau argumento, pois pode-se argumentar que a divindade se manifesta no próprio medo sentido pelos seres humanos, o medo seria uma teofania. O argumento não será excepcional, mas valerá tanto como o seu contrário. Talvez não seja curial andar a trocar argumentos sobre aquilo para o qual não haverá caminho para encontrar provas, deixando a cada um resolver essas questões como puder, sem lhe alimentar a ilusão de que terá uma solução ali mesmo, depois de dobrar a esquina. É necessário mantar a contenção e vigiar o tamanho do texto. Fim.

segunda-feira, 10 de abril de 2023

Ardis

Um terço de Abril está consumado. Gostava de saber a razão que me leva a esta quase obsessão com a passagem dos meses, a necessidade de colocar no solo destes textos marcos miliários da viagem pelas terras do calendário. Hoje, talvez porque tivesse companhia na caminhada matinal, não reparei em nada da paisagem envolvente. Não é verdade. Notei que num certo lugar o odor floral vindo de glicínias que por ali existem, pelas tardes tão intenso, era de manhã apenas um vestígio. Fui informado de que o calor do dia as faz libertar os óleos que nelas haverá, por isso ainda não tinha chegado, naquele momento, a sua hora de se derramarem em aromas para que os passeantes dêem pela sua presença. A natureza tem uma enorme reserva de truques e ardis para se fazer notada, embora nem sempre o êxito lhe esteja assegurado. Estamos já na pós-Páscoa, mas continuo em jejum de palavras. Serve para desintoxicar da verborreia que, não poucas vezes, me acomete.

domingo, 9 de abril de 2023

Jejum

Devia começar a fazer jejum. Não, não desse, mas de palavras. Estes textos estão a tornar-se palavrosos. O de ontem tinha 494 palavras e mais de 2500 caracteres. Hoje, Domingo de Páscoa, já fui fazer uma pequena caminhada. Numa zona de moradias, reparei que a caixilharia de alumínio se apresta para liquidar a de madeira. Mesmo naquelas moradias mais antigas e modestas, o avanço do alumínio é grande. Muitas daquelas casas foram construídas num tempo em que o alumínio ainda não tinha chegado a suporte de vidros das janelas, mas estão quase todas convertidas. Resistem algumas caixilharias de madeira, esparsas, o seu estado, todavia, não lhes augura grande futuro. Tinta ressequida, um ar de cansaço, como se já não pertencessem ao lugar onde estão. Aprende-se muito sobre o mundo quando se caminha de manhã, ao contrário do que acontece nas caminhadas nocturnas, onde a consciência se entrega às paixões da alma. Não tarda estarão cá os netos e haverá bulício. Vou preparar-me.

sábado, 8 de abril de 2023

Aventuras no sertão

Continuo as minhas aventuras no sertão da Inteligência Artificial. É um lugar, por vezes, agreste e selvagem. Contém inúmeros perigos, como toda a grande floresta que se preze. Descobri que é dada à mentira. Por vezes, é mesmo uma mentirosa compulsiva. O que não sabe, a maior parte das vezes inventa, embora saiba muitas coisas, demasiadas coisas mesmo. Perguntei-lhe, para a experimentar, quem era o autor da obra Modal Logic as Metaphysics? Resposta: O autor da obra "Modal Logic as Metaphysics" é Timothy Williamson. É um filósofo britânico conhecido por seu trabalho em filosofia da linguagem, epistemologia, lógica e metafísica. A obra em questão, publicada em 2013, aborda a relação entre a lógica modal e a metafísica, argumentando que a lógica modal é essencial para se compreender a estrutura da realidade. Até aqui, tudo muito bem. Pedi-lhe para me dizer quais as três primeiras linhas do capítulo 1 “Contigentism and Necessitism” e respondeu-me: Desculpe-me, mas como um modelo de linguagem, eu não tenho acesso ao conteúdo específico de livros e capítulos. No entanto, posso lhe fornecer algumas informações gerais sobre o capítulo 1 de "Modal Logic as Metaphysics" de Timothy Williamson. E continuou fazendo uma síntese do capítulo em meia dúzia de linhas. Que probidade, ou talvez não, pensei. Então, pedi-lhe o título do capítulo 2. Respondeu-me: O título do Capítulo 2 de "Modal Logic as Metaphysics" de Timothy Williamson é "Metaphysical Necessity". Depois, apresenta um resumo desse capítulo, com aparência de grande consistência. Ora, mais depressa se apanha um mentiroso do que um coxo. O título do capítulo 2 é “The Barcan Formula and its Converse: Early Developments”. Ao apanhar a coisa em mentira flagrante fiquei muito mais descansado. Afinal, a Inteligência Artificial é humana, demasiado humana, e mente com quantos dentes tem na boca, apesar de não ter boca nem dentes. Não passa no mais indigente dos testes de um qualquer polígrafo. Imaginemos, todavia, que Newton ou Einstein eram mentirosos, que mentiam aos pais, aos amigos e às respectivas mulheres, caso as tivessem (não fui averiguar, nem tenho qualquer prova de que Newton ou Einstein tenham alguma vez faltado à verdade). Este estatuto de mentirosos dos dois génios da Física é apenas uma suposição para uma experiência de pensamento. Caso, fosse verdade que eles mentiam muitas vezes, isso implicaria que não deveríamos considerar os seus trabalhos na Física? Não, claro que não. O mesmo se passa com a Inteligência Artificial. Como as inteligências não artificiais, também ela nos obriga a testar as suas afirmações e a confirmar se está a dizer a verdade ou se está a divertir-se, como um génio maligno, à nossa custa. Descobri que ela faz resumos de capítulos de livros que nunca leu, apenas a partir dos respectivos títulos, coisa que acontece com frequência no mundo da inteligência não artificial. Era para falar de outra coisa, da razão por que Eduína, amiga de quem herdei três cadernos completamente escritos, tinha tão estranho nome, mas fica para outro dia.

sexta-feira, 7 de abril de 2023

A essência da amêndoa de Páscoa

Ontem foi Quinta-Feira de Endoenças e hoje é Sexta-Feira de Paixão. Há muitos anos, quando havia apenas um canal de televisão e a emissão começava às sete da tarde, a Sexta-Feira de Paixão televisiva era preenchida apenas com música clássica. Um dia de luto nacional que caía sobre cristãos e não cristãos. Depois, as coisas mudaram e o luto pela paixão de Cristo transitou para a subjectividade dos crentes, como foi acontecendo com os outros lutos. Para estar em harmonia com a efeméride oiço a Passio Domini nostri Jesu Christi secundum Joannem, de Arvo Pärt, pelo The Hilliard Ensemble e Paul Hiller. Mais logo, é possível que oiça a Paixão segundo São Mateus, de Bach. É uma possibilidade. Motivado pela época, tenho dado alguma atenção - há quem diga atenção excessiva - às amêndoas de Páscoa. Só há umas que me interessam, são as de chocolate e canela, embora também elas sofram de um defeito partilhado com todas as outras. Têm mesmo uma amêndoa. A chegada ao fruto, depois da travessia pelo chocolate, representa um autêntico e decepcionante anticlímax. Uma verdadeira amêndoa da Páscoa não deveria ter amêndoa, apenas chocolate que se dissolveria no nada. Não vale a pena virem com especulações filosóficas e afirmar que a essência da amêndoa pascal é a amêndoa. Para mim, é o chocolate casado com canela. Aqui por casa, há outro tipo de amêndoas, umas de chocolate preto, outras caramelizadas, mas mal olho para elas. As orquídeas continuam a florir. São já oito que entraram na luminosa glória de se abrir para os olhos dos espectadores. Segundo um relatório escutado há pouco, também todas as outras dão sinais de que, mais tarde ou mais cedo, se abrirão em flor. Frases como “se abrirão em flor” ou “abrir-se-ão em flor“ deveriam ser proibidas, mas poderá não ser curial eliminar o mau gosto. Nestes dias, fora das horas úteis, tenho sido ocupado pela exploração do ChatGPT e outras ferramentas idênticas e pela leitura de um livro de contos de Castro Soromenho, Calenga. Dois mundos tão afastados que quase caio na tentação de dizer que são incomensuráveis, o que não será verdade. O último é uma visita literária ao mundo arcaico das tribos africanas, ao seu modo de vida e valores fundamentais, o outro é uma visita a um mundo já presente, mas ainda incompreensível na sua presença. Deveria tentar descobrir amêndoas de chocolate e canela sem amêndoa, mas tenho de me apressar, pois não tarda e a Páscoa passou. Acho que vou perguntar ao ChatGPT.

quinta-feira, 6 de abril de 2023

Genes e fantasias

Alexander Kluge refere os estudos de Richard Dawkins, a quem chama darwinista – As últimas investigações do darwinista Dawkins… –, que rejeitam a ideia de que no processo evolutivo o lado dos maus tenha alguma vantagem. Parece que o gene dos bons é mais apto para sobreviver na luta pela evolução. Sendo assim, e ainda segundo Dawkins, o bem parece estar a aumentar pouco a pouco nas sociedades humanas. Isto será confirmado por estudos de outras áreas. Isto, todavia, contraria as crenças enraizadas na generalidade dos seres humanos e das sociedades. O presente é sempre visto como um tempo de decadência, o futuro é sempre negro, só no passado, nos bons velhos tempos que ninguém viveu, se encontra alguma perfeição. A História e a Biologia evolucionista contrariam esse sentimento da perfeição do passado. O sentimento tem a sua raiz na ideia de que o momento originário é um tempo de plenitude, e o afastamento desse tempo é um mergulho na degradação. Nasce ainda da decepção que todos sentem no presente, em qualquer tempo presente. Essa decepção resulta do desacordo entre aquilo que o desejo pretende e a realidade. Esta é sempre desoladora, se comparada com o que se deseja que ela seja. Essa desolação é então posta perante o temor do que virá e a mitificação do que passou. O processo de mitificação do passado implica o apagamento daquilo que nele é atroz, a rasura de tudo o que é insuportável. Não é por acaso que a Biologia evolucionista é objecto de inúmeras tentativas de descrédito vindas de fora da ciência. É possível que a evolução da espécie necessite dessa ilusão de um passado infinitamente melhor do que o presente, e talvez seja a fantasia de um passado onde os seres humanos eram melhores do que hoje que permita que os de hoje sejam, na realidade, melhores do que eram os de ontem. Sendo assim, a difusão do gene bom e a paulatina dominância deste sobre o mau são acompanhadas por uma fantasia, sendo esta que permite não apenas resistir ao gene mau, como o ir apagando da nossa própria história.

quarta-feira, 5 de abril de 2023

Certificação

Comecei com O outro nome – Septologia I-II, depois foi a Trilogia e agora apresto-me para acabar Manhã e noite. Tudo romances do norueguês Jon Fosse, tudo lido graças às insónias. A escrita de Fosse parece, muitas vezes, focar-se na trivialidade, mas fá-lo de tal maneira que torna manifesto algo de decisivo na existência, nem que seja a sua pura trivialidade. Contudo, é mais do que isso, é a exploração de territórios fronteiriços, aqueles onde o presente e o passado se misturam ou aqueles em que o reino dos vivos e o dos mortos se confundem. É possível que tenha sido nesses territórios que Orfeu tenha perdido Eurídice. É curiosa – e por certo terá ardentes inimigos – a ideia de que os mitos gregos só ganham pleno sentido lidos a partir de uma perspectiva judaico-cristã. A tentação de Orfeu, o desejo de Eurídice e a necessidade de certificação, levaram-no a olhar para ela antes da hora e com isso perdê-la. Contudo, o que Orfeu perdeu não foi a sua amada, mas a sua própria alma, perdeu-se a si mesmo, não percorreu o calvário até à morte e ressurreição. O espantoso reside na necessidade de certificação ser tido como um princípio de perda e mergulho no abismo. Esta ideia liga-se, de modo inusitado, a um momento central da nossa cultura, o início da Modernidade. O chamado projecto cartesiano está assente na busca da certeza, na procura de evidências que certifiquem as nossas crenças. Esse momento seminal da cultura europeia, momento celebrado como uma revolução, é também visto, por mentes mais sombrias, como um momento de decadência. A busca da certificação é uma queda, o mergulho no abismo. Quem precisa de certificação já perdeu o conhecimento. Descartes representaria para a cultura ocidental esse olhar para trás de Orfeu para se assegurar de que Eurídice o seguia, de que a sua alma seguia o seu corpo. Assim como Orfeu perdeu a sua sombra, também a cultura europeia a perdeu com Descartes. A partir dessa hora, a Europa entrou na mais pura errância. Não percebo por que razão esta especulação me acometeu hoje, quarta-feira. Costuma atacar-me às sextas, como prenúncio do fim-de-semana, alguma coisa está fora dos eixos. O que poderei eu dizer? O mundo está fora dos eixos. Oh! Sorte maldita! … Por que nasci para colocá-lo em ordem! Quem escreveu isto terá antecipado a errância que Descartes trouxe ao mundo.

terça-feira, 4 de abril de 2023

Arte divinatória

Num texto com o desapiedado título Mademoiselle Esqueleto, António Ferro escreve: Os dedos, os olhos, os corpos, ensaiam tangos na sombra. Eu sou um adivinho de gestos. Entretenho-me a soletrar atitudes… Eis uma arte divinatória que merece respeito. Adivinhar nos gestos as atitudes, mesmo que não se soletrem. Ler o futuro nos astros, nas entranhas dos animais, no voo das aves, tudo isso me parece falaz, fruto de uma alucinação, mas é difícil, muito difícil, que um gesto não traia uma atitude. Quem não se quer trair deve permanecer imóvel, parado como uma estátua. Deve, inclusive, deixar de respirar, pois até a própria respiração terá uma leitura reveladora de um gesto a vir. Os dias estão bem maiores, cavalgam em direcção ao solstício de Verão, para então se apaziguarem. É possível ler os desígnios da natureza nos gestos de cada dia? Eis um problema que deveria ocupar as mentes mais brilhantes, pois que coisa mais importante poderá haver para os homens do que o conhecimento daquilo que a natureza pretende? Um pássaro passou diante da janela, uma sombra rápida, que logo desapareceu. Acabei de chegar a casa, mas vou sair de novo, vou esperar o fim do dia noutro lado, para ver se descubro alguma novidade, um gesto inusitado, embora não tenha esperança de nele conseguir descortinar o desígnio da natureza.

segunda-feira, 3 de abril de 2023

SPAM

Tinha escrito uma boa dúzia de linhas, mas o computador decidiu entregar-se a uma qualquer conduta patológica que me obrigou a reiniciá-lo, tendo perdido essas linhas e o que nelas estava escrito. É argumentável que não se perdeu grande coisa, com o que estarei de acordo. Acabei de receber uma chamada que não atendi. O telemóvel deu a indicação de spam, resta-me agora bloquear o número para que aqueles que desejariam falar comigo utilizem outro, o qual haverei também de bloquear. Fiz uma pesquisa na internet e parece que o número é de um jornal de que fui assinante há anos, mas que deixei de o ser, pois a leitura online era pouco amigável. Já lhes pedi para deixarem de me contactar, pois se eu quiser ser assinante, não preciso de ajuda. E quando precisar, já não vale a pena ser assinante seja do que for. Também a caixa de correio electrónica está efervescente, há gente que não tem mais nada para fazer senão mandar emails. É segunda-feira, o dia não é propício a grandes aventuras que acrescentem glória à minha gesta. Não fora o spam e estaria aqui sem nada para contar. O mais provável, todavia, é estes textos serem puro spam. Apesar de não terem cariz publicitário ou fraudulento, penso eu, não deixam de ser mensagens irrelevantes e não solicitadas. Nunca tinha pensado nisso, mas penso-o agora e vejo que não é um pensamento destituído de sentido. A única coisa que me absolve é não escrever estas coisas em papel, não sacrificar as árvores à necessidade de me aliviar do que me vai pela cabeça. Talvez isto não passe de uma terapia. Descobri agora que o acrónimo SPAM pode querer dizer duas coisas: (1) Sending and Posting Advertisement in Mass; (2) Stupid Pointless Annoying Messages. O meu caso inscreve-se em (2). Seja como for, quem dá o que tem a mais não é obrigado. É sempre virtuoso recorrer à cultura popular. Vou preparar-me para a hora do crepúsculo.

domingo, 2 de abril de 2023

Domingo de província

É domingo. Esta constatação quase me salvava da trivialidade, mas pressinto que não. Descubro que uma das ruas que vejo passou a ter sentido único. Pode-se subir, mas não descer. Na avenida, um rapaz, poderá também ser uma rapariga, está sentado nos degraus que levam a uma agência de turismo. Fuma e mexe no telemóvel. Talvez troque mensagens ou consulte uma das redes sociais que frequenta. Está só, a luz ilumina-o, o fumo evola-se em espirais, pois é isso que o fumo deve fazer, evolar-se em espirais, os dedos de uma mão seguram o cigarro, os de outra operam no telemóvel. É a única pessoa que vislumbro na avenida. As outras recolheram a casa, é hora de almoço, de um almoço dominical. Eu almoçarei mais tarde, como é hábito ao domingo, oiço a música de Hildegard von Bingen. O Word não gosta do nome Hildegard e propõe Hildegarda ou Hildegardo, mas não aceito nenhuma das sugestões, ele continua a sublinhar a vermelho Hildegard. O pequeno bosque da escola aqui ao lado, batido pela luz, está exuberante, uma mancha verde que, daqui a uns anos, há-de tapar completamente a mancha do hospital, um edifício que começou por ser branco e agora caminha para se tornar cinzento. Também espero que tape o anúncio de uma cadeia de hambúrgueres, embora eu nada tenha contra ou a favor às cadeias ou aos hambúrgueres, apenas aquela coisa estraga a visão, introduz na paisagem de província uma retórica suburbana, um simulacro de cosmopolitismo onde não deveria haver seja o que for. Isto, todavia, é uma opinião com que a generalidade dos meus concidadãos não concordará, pois amam as cadeias de hambúrgueres, já que em frente desta há uma outra, ainda mais famosa, e no outro vértice de um triângulo há uma outra cadeia não de hambúrgueres, mas de pernas de frango ou de asas, não sei bem, e todas elas convivem, mas daqui só vejo o anúncio de uma, as outras o bosque da escola não as deixa ver, assim como esconde um lago numa rotunda, onde se ergue uma estátua à juventude que parece importada de um país de leste, quando eles saldaram a estatuária que por lá tinham, mas não veio de lá, é obra nacional, uma rapaz e uma rapariga vigorosos, ela sentada ao colo dele, ambos com uma braço erguido, braços de bronze, ela segura no braço dele e ele segura uma bola amarela. Imagino que a bola amarela seja uma antevisão da Terra quando esta for um deserto. Afinal é uma estátua futurista, mas está escondida e eu não a vejo daqui. Talvez aqueles dois jovens estejam ali, no centro do triângulo formado pelas cadeias de comida, para o caso de cansados de segurar a Terra terem fome, e então é só levantarem-se e escolherem o que os há-de revigorar para que a Terra não caia no chão e se afogue no lago, se este tiver os repuxos a funcionar e aquela banheira gigante estiver rasa de água. Chega, por hoje.

sábado, 1 de abril de 2023

As coisas mesmas

Abril nasceu tristonho e enfadado, talvez não venha a ser um mês de águas mil, disse para mim. Almocei cedo e mal me sentei à secretária adormeci. Acordei estremunhado e com uma dor no pescoço. Neste momento, o sol rompeu a muralha de nuvens e brilha, mas elas reconstituem as linhas de defesa, não tarda o céu estará de novo todo cinzento. De manhã, antes de entrar na padaria, apanhei alguma chuva, coisa de pouca monta. Não havia muita gente, mas as operações com o pão tornaram-se, naquele espaço, um ritual, oficiado por uma sacerdotisa, que me fez demorar mais do que pensava. Enquanto esperava e me afundava na demora, ia olhando os gestos, à procura de algum símbolo que me indicasse o caminho da redenção. A fracção do pão, porém, era feita numa máquina e não descortinei nada que me fizesse suspeitar de estar perante a simbólica de uma ordem resgatadora. Entrego-me a este fenomenologia, descrevo os actos da consciência, à procura das coisas mesmas, pois se não estiverem na minha consciência, onde estarão elas, as coisas mesmas, pergunto-me. Oiço alguém afirmar que sofri uma viragem idealista, mas encolho os ombros e bocejo, pois num futuro próximo haverei do sofrer uma viragem realista. A Primavera parece consolidada. Existem já múltiplos chilreios, oriundos de aves de espécies diferentes. No outro dia, pousado no murete de uma das varandas, estava um melro. Quando me aproximei, fugiu, deixou o espaço vazio. Não faltam estorninhos. Mais ao longe, quase sempre aos pares, voam corvos, mas esse é já outro reino. As ruas transpiram, dos seus poros sai um sábado de província, onde me acolho para olhar a linha do horizonte.

sexta-feira, 31 de março de 2023

A morte do trema

Não estando em casa, o homem dos CTT – ou seria uma mulher? – deixou dois postais para ir levantar duas encomendas ao posto de correio, que, por acaso, não é um posto de correio, mas uma grande superfície que vende jornais, livros, material de escritório, brinquedos, tabaco e oferece, desde que pagos, serviços de reprografia, onde se inclui a impressão de fotografias. Também oferece serviços de correio, o que para mim é um sinal de que este é o melhor dos mundos possíveis, pois vou de casa lá a pé, em dois ou três minutos. Hoje decidi ir levantar as encomendas, aproveitando a saga para me banquetear com um salgado que apesar de saber bem, há-de fazer mal. As encomendas eram, como não podia deixar de ser, livros. Talvez inclinado pelas leituras de Jon Fosse – agora, vou a meio de Trilogia –, de Karl Ove Knausgård e, acima de todos, de Knut Hamsun, comprei, num alfarrabista, a trilogia da nobel norueguesa, ou dano-norueguesa, Sigrid Undset, Cristina Lavransdatter, que é como quem diz Kristin filha de Lavrans. A edição portuguesa não será propriamente uma tradução do norueguês, mas uma versão feita de uma língua dominada pela tradutora Maria Franco, imagino. A outra encomenda era constituída por um livro editado pelo jornal Público, na sua Biblioteca da Censura. Os livros reproduzem a edição censurada e contêm o fac-simile do despacho do censor, no caso um capitão. O romance, datado de 1948, é de um autor que desconhecia por completo, Orlando Gonçalves, e tem por título, o romance e não o autor, Tormenta. As considerações para proibir o livro são fastidiosamente ideológicas, embora, desconfio, também corporativos, pois o capitão não terá gostado de umas referências aos militares. No entanto, o texto começa em modo de crítica literária, embora hesitante: Este livro, tentando ser um romance, nem sequer isso atingiu, embora quanto à sua qualificação literária eu nada tenha com isso. Estamos perante um censor militar que, imagino, teria gostado de ser um crítico, mas o curso da Academia Militar, caso ele tenha frequentado algum, não fora suficiente para ter alguma coisa que ver com a qualificação literária de uma obra, embora lhe fornecesse faculdades para a vigilância textual e uma técnica hermenêutica para a descoberta da subversão e da imoralidade. Seria, note-se, um censor dedicado e trabalhador. Como tudo está registado, ou não estivéssemos em Portugal, o livro foi-lhe distribuído para leitura a 12/10/1948 e o despacho exarado a 15/10/1948. A Direcção dos Serviços de Censura apôs-lhe o respectivo carimbo vermelho onde se podia ler em capitulares: POÏBIDO. Fiquei a olhar para o trema e como ele poderia ainda ter utilidade na nossa língua, não para declinar o que é PROÏBIDO, mas tornar as palavras mais belas. O trema, infeliz sinal gráfico, teve uma história triste em Portugal, no século XX. Ele que existia pomposo, foi substituído em 1911, por recomendação de Gonçalves Viana, por acento grave. Em 1920, houve uma recidiva estética e o trema voltou garboso. Porém, em 1945, os dois pontos que decoravam certas vogais foram objecto de supressão legal nas palavras portuguesas e nas aportuguesadas, o que mostra que a própria censura se estava nas tintas para a lei. Foi a morte do trema.

quinta-feira, 30 de março de 2023

Citações

Talvez ninguém leia Somerset Maugham, eu não o faço, embora tenha alguns livros dele. Há muito tempo, contudo, li O Fio da Navalha, que me deixou bastante impressionado, mas perdi o rasto a esse livro publicado pela gloriosa editora Edições Livros do Brasil. Mais tarde, tornei a comprar a obra, numa edição da ASA. Não voltei a ler o romance e não sei já o que me terá impressionado nesse tempo tão longínquo. Talvez fosse excessivamente impressionável, embora não seja essa imagem que cultivei de mim. Peguei, há instantes, em Mrs. Craddock, que nunca li, e abri a obra ao acaso, como muitas vezes faço. Li, na página 227, início do capítulo XXV, o seguinte: Se os deuses, que espalham a inteligência nos lugares mais inesperados – é encontrada, às vezes, sob a mitra de um bispo e, de milénio a milénio, na cabeça de um rei –, houvessem concedido a Edward Craddock um pouco desse precioso artigo, talvez ele fosse um grande homem, além de ser um homem bom. Imagino que seja de equacionar uma visita ao universo de Maugham. Talvez os deuses tenham sido tão avaros comigo quanto com Edward Craddock, e seja, como ele, um pequeno homem, embora, duvido que de mim se possa dizer que sou um homem bom. O que me entristece, reconheço, mas nem a bondade nem a maldade fazem parte do meu lote, daquilo que me calhou. Enfim, do mal o menos, a aurea mediocritas é melhor que nada. Leio mais uma passagem: Enquanto isso, Edward, alheio ao que estava sucedendo, assemelhava-se a um louco que, num hospício, exercesse poder monárquico sobre um reino imaginário. Não se dava conta da maneira desdenhosa como Bertha (a mulher) o tratava; notava, isso sim, que ela já não era tão exigente, e isso tornava-o feliz como nunca. Quer dizer: o casamento só se tornou plenamente satisfatório para Edward quando Bertha começou a perder a estima por ele, assunto que certamente interessaria a um filósofo irónico, disposto a tirar conclusões de fundo moral. Por hoje, chega de citações.

quarta-feira, 29 de março de 2023

Uma feira moribunda

Por aqui, há uma feira criada no século XVI, mas que está moribunda há décadas. Arrasta-se de lugar para lugar, sem que se vislumbre o que fazer com o acontecimento. É uma daquelas feiras com carrocéis, carros de choque, farturas, música estridente e poeira. Quando era pequeno e adolescente, ela estava mais viva. Teria poço da morte, por exemplo, o que parece uma contradição, mas não é, pois, como se sabe, onde há vida há morte. Uma feira que tinha um poço da morte estava bem mais viva do que aquela que não o tem. Não era, porém, o poço que me atraía ou a parafernália de máquinas voadoras, chocadoras, volteadoras, mas coisas bem mais simples, como bolas de serradura cobertas por papel de estanho, presas a um elástico, jogos de futebol miniatura, dentro de uma caixa redonda de metal, com um espelho no fundo, um vidro no cimo e dentro dela, desenhado num cartão, um campo de futebol, com duas pequenas balizas em metal e uma micro bola que se tentava fazer entrar na baliza. Também me fascinavam as inúmeras mesas de matraquilhos, onde havia uma pluralidade de equipas e não apenas as inevitáveis formações do Benfica e do Sporting. Havia muitas outras coisas inúteis, mas que ao serem compradas se tornavam úteis para quem as vendia. Hoje passei ao lado do recinto onde, neste ano, a velha feira suporta a sua agonia, e achei tudo aquilo triste, embora não faltasse poeira e música estridente. Se por cá estivessem os netos, haveria de os levar lá, mas por motivos egoístas, só para ver se ainda havia aquelas coisas que me fascinavam. Eles não estão cá e não tenho desculpa a dar a mim mesmo para me obrigar a enfrentar a poeira e comer uma fartura. Hélas.

terça-feira, 28 de março de 2023

Beber água

Em cima da secretária, tenho uma garrafa de vidro de meio litro quase cheia de água. Trouxe-a para ir bebericando enquanto estou sentado. O nível da água não desce há dias. Consta que se deve beber uma quantidade de água razoável – ouvi dizer entre litro e meio e dois litros – todos os dias. Reconheço que é um exercício difícil. Há dias li um comentário sobre a ideia de que beber água com gengibre ajuda emagrecer. Como de costume, o comentarista dizia que não há qualquer evidência de que isso seja verdade, mas se a pessoa, assim motivada, beber água, então algum benefício terá. Um comentário idêntico também já foi feito para outra receita para emagrecimento fácil, beber água com limão. Estas histórias dietéticas tornam manifestas duas coisas. Em primeiro lugar, o homem antes de ser um animal racional é um animal mitológico, cria mitos como quem bebe água, o que para mim não é fácil, mas também não tenho nenhuma criação de mitos. Em segundo lugar, o homem crê mais facilmente nos produtos da imaginação delirante do que nos factos. Imagino que a causa resida nos factos serem rebarbativos. Esta é uma palavra horrível e que significa, literalmente, que tem duas barbas. No sentido figurado, porém, significa rude. Os factos transportam consigo não uma dupla barba, mas uma rudeza difícil de suportar. Um facto que eu tenho dificuldade em suportar é o da necessidade de beber água. Acabei de tirar a rolha à garrafa e vou beber meia garrafa. É um objectivo para os próximos minutos. Uma aventura que daria uma epopeia.

segunda-feira, 27 de março de 2023

Uma desadequação culpada

Ainda Março não acabou e já há por aqui temperaturas estivais. Na verdade, esta afirmação é um exagero, pois temperaturas estivais, neste lugar abandonado pelo anjo dos climas temperados, são bem acima dos trinta graus, ali pela casa dos quarenta. Hoje, ao atravessar a estrada na avenida, talvez um efeito do sol, tive a sensação de que há em mim – em todos os seres humanos, por certo – uma desadequação à existência, a percepção de uma falta qualquer e inexplicável, que deixa um rasto de desconforto, também ele difuso. Esta experiência, imagino, terá levado à criação da ideia de pecado original. Uma vivência arcaica na história da espécie, na qual se manifestava uma desadequação qualquer que se reflectia num desconforto existencial e sem razão aparente, terá originado a ideia de uma falta metafísica que caiu sobre a humanidade. Uma explicação residiria em afirmar que essa experiência se funda na nossa finitude e esta se manifesta como culpabilidade. Não por acaso, um certo filósofo francês escreveu uma obra com esse título, Finitude et Culpabilité. Finitude e mortalidade não são a mesma coisa. A finitude é muito mais devastadora do que a mortalidade. Esta é apenas uma das dimensões daquela. Não somos finitos apenas porque morreremos, mas porque muitas são as limitações com que o nosso desejo se confronta, esse desejo que é infinito, seja qual for o objecto que ele deseje. Ocorre-me, neste momento, que estou sem assunto digno de escrita. A única aventura que tive foi ir às compras, mas nem aí encontrei tema para epopeia e muito menos para tragédia. Um drama, a falta de motivos narrativos e a subida das temperaturas. Reconheço que estão a tornar-se cansativos os topoi da ausência de motivo e da subida das temperaturas, mas para além da hipérbole também a iteração faz parte dos utensílios deste narrador.

domingo, 26 de março de 2023

Um génio mordaz

Está consumada a mudança da hora para horário de Verão. A partir daqui tenho o direito de me queixar da astenia da Primavera, que, afinal, não é provocada pela pobre estação do ano, mas pela alteração da hora. Bem, está assinalada a efeméride. O dia não me parece particularmente satisfeito. Vejo-o parcialmente ensolarado, visão que confirmo na aplicação meteorológica que a Microsoft, no exercício da sua ampla generosidade, me prodigaliza. Aquilo que vejo, está confirmado, é a verdade e não uma qualquer manipulação da minha mente por seres extraterrestres que a tomaram de assalto para produzirem estados mentais que eu tomo como se fossem verdadeiros. Esta história dos extraterrestres é uma actualização de última hora do Malin Génie, de Monsieur René Descartes. As traduções portuguesas optam por Génio Maligno. Contudo, Malin pode traduzir-se também por astucioso, o que daria Génio Astucioso. Ora, astucioso por astucioso, já temos o Ulisses. Outra possibilidade seria a de traduzir malin por mordaz. É a minha preferida. O Malin Génie cartesiano não passaria de um Génio Mordaz, um diabrete brincalhão que nos engana a toda a hora, apenas para gozar com a nossa cara. É evidente que Descartes é uma pessoa muito mais séria do que este narrador e não criou o Malin Génie como exercício satírico. Ele levava a Filosofia a sério, talvez se risse pouco, mas não lhe conheço a biografia, embora possa adiantar alguns mexericos sempre úteis. Julgo que não se casou, estes homens tinham pouca inclinação para o matrimónio, mas foi pai de uma menina nascida do ventre de uma empregada doméstica, de uma serviçal, como li. O pobre morreu em Estocolmo, de pneumonia. Antes de ter ido para a Suécia, Descartes trabalhava na cama até ao meio-dia. Na Suécia, a rainha Cristina exigia-lhe aulas às 5 da manhã. Preferiu morrer. Podemos também pensar que a rainha Cristina era uma encarnação do Malin Génie. Esta é uma hipótese que nunca vi trabalhada, mas deveria merecer a atenção dos mais eruditos estudiosos do pensador francês. Como se prova, a mudança horária afecta não apenas o horário ou a forma física, mas a relação com a realidade.

sábado, 25 de março de 2023

Linha recta

Há um momento espantoso em que Hannah Arendt, ao referir-se aos gregos antigos, esse lugar que nunca se pode evitar, dá uma definição de um rigor inultrapassável da condição humana. Escreve: É isto a mortalidade: mover-se ao longo de uma linha recta num universo em que tudo o que se move o faz num sentido cíclico. Trata-se assim de uma questão de geometria. As coisas imortais movem-se circularmente, submetidas a um eterno retorno do mesmo. A vida dos homens, os únicos seres mortais ao cimo da Terra, desenrola-se em linha recta, a que une o nascimento à morte. As espécies animais, essas são imortais, pensavam os gregos, pois cada uma é um corpo único que se renova a cada nascimento. A espécie humana é uma inexistência, pois o facto de cada ser humano ser dotado da consciência da sua individualidade rompe a ideia de um corpo que se renova pelo nascimento. Pelo contrário, cada nascimento é um acontecimento singular. O corte do cordão umbilical é o momento em que o recém-nascido se torna indivíduo desligado da espécie, alguém que passa a ter não apenas uma vida, mas um destino. As espécies não humanas, vegetais ou animais, têm vida, que se realiza no ciclo do eterno retorno. Os seres humanos têm uma destinação, pois, ao ser-lhes cortado o cordão que os ligava à mãe, são expulsos do eterno retorno e colocados na estrada que os conduzirá à morte. A destinação não é propriamente a morte, mas a realização do caminho pela estrada que lhe é posta em frente ou, no caso dos mais talentosos, que inventam para chegar ao fim. Por falar em estrada, há um livro, belo e terrível com o nome A Estrada. É seu autor Cormac McCarthy. Li-o quando foi publicado em Portugal, mas duvido que me apeteça voltar a ele. Talvez me tenha tornado incapaz de suportar uma obra em que o terrível excede largamente a enorme beleza que o compõe. Não é claro, todavia, que um dia não mude de opinião e de sentimento, e que volte a essa obra. Na verdade, ela é uma alegoria poderosa daquilo que Hannah Arendt escreve sobre o mover-se em linha recta, por sinuosa que esta seja, o que nos recoloca dentro da geometria, de uma geometria especial, em que a recta é composta por numerosas curvas.

sexta-feira, 24 de março de 2023

Provérbios e máximas

Março marçagão, manhãs de Inverno e tardes de Verão. Sempre que estou em apuros, recorro à minha colecção de frases feitas, lugares-comuns, provérbios ao gosto popular. Enfim, apelo à sabedoria do senso comum. Esta não apenas é tranquilizadora, como é, na verdade, sábia, contrariamente a muitas outras sabedorias que nada têm de sábias. Saí de casa, hoje de manhã, e chovia. De tal maneira que tive de usar um guarda-chuva. Céu cinzento, paisagem urbana soturna, gente com um aspecto quase lúgubre. Há pouco, na rua, perante a inclemência do sol, tive de acomodar as vestes ao fulgor estival. O céu tornou-se azul cintilante, a paisagem urbana era um revérbero, as gentes pareciam irradiar energia e um contentamento inexplicável. Como justificar isto sem recorrer a um ditado? Impossível. Por outro lado, tenho provas inescapáveis da minha proverbial estupidez, para falar claro. Irritei-me com um browser que me permitia aceder à internet. Estava apostado em não querer fazer aquilo para que fora feito. Não estou com meias medidas e, num gesto radical e hiperbólico, destituído de cuidado e sensatez, longe da justa medida por aqui apregoada, desinstalo-o. Vitória, pensei na altura. Derrota, penso agora. Ao suprimi-lo para o tornar a instalar apaguei todos os meus marcadores, aqueles que me permitiam aceder sem trabalho a lugares por onde fazia turismo. Conforta-me a frase de Thomas Carlyle: Com estupidez e boa digestão o homem pode enfrentar muita coisa. Embora, não se aplique completamente a mim, pois nem sempre as digestões são boas. A outra condição, essa está assegurada, pois contra a estupidez os próprios deuses lutam em vão, como escreveu um dia Friedrich Schiller. Seja como for, noto em mim uma tendência evolutiva. Parece que estou a transitar dos provérbios ao gosto popular para máximas cultas criadas pelo génio daqueles infelizes a quem estupidez foi poupada e que se encontram, as máximas e não os infelizes, ao deus-dará pela internet.

quinta-feira, 23 de março de 2023

Ressurreição

No diálogo Fedro, Platão, através da personagem Sócrates, lança um violento ataque à escrita. Este exercício hiperbólico, ao qual são dadas razões filosóficas, pedagógicas e conviviais, não evitou que Platão tenha construído uma obra escrita também ela hiperbólica. O artefacto hipérbole é usado para referir a dúvida cartesiana, ficando Platão adstrito ao ramo retórico da alegoria e do mito. E se toda a obra platónica não fosse mais do que um exercício hiperbólico? Faria sentido. A hipérbole é um dispositivo da família do microscópio, serve para aumentar a realidade e é nesse processo de a exagerar que talvez ela se deixe vislumbrar. A ideia platónica de que a escrita é um registo morto não resiste, todavia, ao choque com a existência de pautas musicais. Também estas são constituídas por símbolos e compõem um todo que parece morto, mas quem as sabe ler encontra nelas a vida ou, melhor, encontra nelas múltiplas vidas. Também o texto escrito está submetido à ressurreição através da leitura. Toda a vez que se lê um texto este tem o seu domingo de Páscoa. Talvez faltasse a Platão o conceito de ressurreição para perceber a natureza da escrita, mas, por certo, alguma coisa nele lhe sussurrava para que escrevesse sem parar, pois os seus textos, apesar de residirem em mausoléus, acabariam, a cada leitura, por libertar-se da morte e ressuscitar na consciência do leitor. O diálogo vivo entre pessoas vivas, que seria superior à escrita, é agora substituído pelo exercício taumatúrgico do leitor, que opera o milagre da ressurreição daquilo que jaz morto, mas não apodrece.

quarta-feira, 22 de março de 2023

Uma questão de QI

As fases da vida. Uma sabedoria popular alimenta a crença numa vida repartida por fases, uma espécie de etapas de um Tour que liga o nascimento à morte. Cada uma dessas fases terá as suas características e exigirá um modo específico de existência, com os respectivos deveres e direitos. Como não me apetece arguir, aceito a descrição e faço – pelo menos, por hoje – minha essa crença. Interrogo-me, então, que etapa é esta em que estou. Sento-me aqui e adormeço, cabeça tombada para a frente, queixo encostado ao peito. Tudo isto para acordar com uma dor no pescoço e uma sensação de inutilidade. Que direitos e deveres me caberão nesta fase? Antes de adormecer, estava a dar uma vista de olhos por um livro. Lia o seguinte: Mas tens olhado para a tua volta com olhos de ver, nestes últimos tempos? Creio que saberás até que ponto é burra uma pessoa com um QI de cem. / Western encarou-o com ar desconfiado. Acho que sim, disse. / Pois bem, metade das pessoas são mais burras do que isso. Onde é que achas que tudo isto vai parar? / Não faço ideia. Eis uma boa resposta: não faço ideia. É a resposta que encontrar para múltiplas perguntas que me faço, entre elas a da razão por que, nesta etapa do Tour existencial, adormeço sentado defronte do computador. A incapacidade de encontrar resposta talvez resida no meu QI. A média do QI português é de 95. Sendo eu um português médio, devo partilhar a média do QI que cabe aos portugueses. Como assinalou Sheddan, aquele que dialoga com Western, um QI de 100 é já um sinal acentuado de burrice, quanto não fará um de 95. É humilhante, mas basta passar a fronteira para o QI subir 2 pontos. Se foi para isto que o primeiro Rei andou por aí a espadeirar, melhor fora que estivesse quieto. Seja como for, a situação aqui ao lado também não é muito famosa. Segundo vi, o topo do QI foi monopolizado pelos asiáticos. O que me deixou intrigado foi Israel. Tem menos 1 ponto de QI médio do que nós. Será que o QI também acompanha as fases da vida? Bem, não quero saber, contento-me com a pertença a um povo com um QI médio de 95, contento-me por reflectir com precisão essa pertença. Todas as idiotices que escrevo estão justificadas. Coitado, com um QI de 95, muito já faz ele.

terça-feira, 21 de março de 2023

On s'habitue

A Primavera consolida-se. Nas ruas, há já uma quantidade considerável de gente vestida como se fosse Verão e não são turistas vindos da Escandinávia. Não sei, no entanto, se são portugueses encalorados ou apenas crentes em que as vestes atraiam um tempo que com elas se coadune. Se tivesse de votar por uma das duas opções, votaria na segunda. Somos um povo que ainda não abandonou o pensamento mágico. Outrora, isso parecer-me-ia motivo de preocupação. Hoje, não. Não é que ache essa nossa característica uma vantagem competitiva na relação com o mundo, habituei-me, apenas. Estou como o senhor Brel: on oublie rien de rien / on s’habitue c’est tout. Há, contudo, um equívoco nestes versos. Durante grande parte da vida parece que nada se esquece, mas, a partir de certa altura, tudo se esquece, a própria natureza se encarrega de abrir o caminho para a amnésia, até ela ser total. O chilrear dos pássaros – talvez fosse melhor escrever o pipilar das aves – tem-se intensificado, o que confirma que a nova estação vai de vento em popa, desliza pelo lago do tempo com ventos favoráveis. Nunca me faltam provas de que em mim reside um mar de frases feitas e uma montanha de lugares comuns. Estão sempre ao alcance dos dedos. Escrevi acima portugueses encalorados. O Word não gosta da palavra encalorado. Sublinha-a a vermelho, como se fosse um árbitro a expulsar um pobre jogador indisciplinado. Desconfio que aceitaria portugueses calorentos, mas sinto repulsa pela expressão, não a escrevo. Não tanta como por aquilo que tenho diante de mim e espera a minha atenção. E de tanto dar atenção ao repulsivo on s’habitue c’est tout.

segunda-feira, 20 de março de 2023

Astenia

Caso me sinta cansado, já posso dizer que é a astenia da Primavera, mas, segundo fui informado, tenho de esperar pela mudança da hora. Sempre pensei que o cansaço se devia aos fluidos da estação, afinal é à manipulação do relógio. Até que a manipulação se concretize não tenho o direito de ostentar fadiga. Tudo isto para dizer que chegou a Primavera. Contudo, na rua, o meu corpo pensou que estava no Verão. Para apaziguar os espíritos oiço o libanês Rabih Abou-Khalil, um tocador de oud, um instrumento que se parece com o alaúde e cuja sonoridade quase que transporta o ouvinte para um transe contemplativo. Por vezes, gosto de deambular por músicas estranhas à tradição ocidental, como a árabe, a indiana e a japonesa. É a minha forma de viajar, eu que sou das poucas pessoas que conheço que não gosta de viajar. Falta-me a alma de viajante e digo-o com pena, mas cada um é o que é. O nomadismo é-me estranho, mesmo que seja um nomadismo temporário. Por vezes, obrigo-me, mas a coisa resume-se na palavra obrigação. Isto torna este narrador um ser estranho numa cultura que incensa a viagem. O meu ser, porém, acende velas à estância. Permanecer é uma aventura mais funda do que partir, pois é viajar onde se está. A Primavera mal começou e já não me está a fazer nada bem. Trouxe os pássaros com ela e reavivou a minha inclinação para a trivialidade. Diante de mim, tenho uma pilha de trivialidades que preciso de ler. O pior é a astenia.

domingo, 19 de março de 2023

Começos

Uma outra orquídea floriu, flores brancas. Neste momento, estão floridas duas brancas, uma amarela e uma fúcsia. Começo assim, pois não me ocorre nada mais. Também podia começar com o álbum de Jazz que se derrama na aparelhagem. Tem o título sugestivo Being There e é da autoria do pianista norueguês Tord Gustavsen, que é acompanhado por Harald Johnsen e Jarle Vespestad. O CD foi editado em 2006 pela inevitável etiqueta ECM. Outro começo possível seria falar da avenida, mas não se vislumbra nela vivalma, toda a gente recolhida. De tempos a tempos, passa um carro, vai sonolento, os vidros como revérberos. Descobri, há dias, que nela existe uma igreja de uma daquelas seitas neopentecostais que florescem como cogumelos num mundo que um velho conservador diria estar à deriva. Naquele lugar já houve um café ou um bar, não sei bem, pois nunca lá entrei. Pensava que era isso que ainda existia, mas reparei que havia qualquer coisa de inusitado. Apercebi-me, então, que era um lugar de culto. Havia uma assembleia. Uma mulher falava, uma outra, na assistência, estava de pé e tinha um braço no ar. Pensei, a princípio, que fosse uma sessão de esclarecimento político, mas é provável que esse tipo de reuniões já não aconteça há muito, coisa dos anos setenta do século passado. Ninguém precisa de se esclarecer, mas parece que há cada vez mais gente à procura de uma salvação. Duvido que seja a da alma que procuram, mas a do corpo. Isto, porém, é presunção minha. Não faço a mínima ideia do que vai na cabeça das pessoas. Nem na minha, quanto fará de gente que nunca vi. Se soubéssemos o que vai na nossa cabeça, se fôssemos completamente transparentes para nós próprios, será que nos suportaríamos? Também podia começar assim: Quem, se eu gritasse, me ouviria de entre as ordens / dos anjos? E mesmo que um deles, de repente, / me cingisse ao coração: eu desfaleceria da sua / existência mais forte. Pois o belo não é mais / do que o começo do terrível, que ainda mal suportamos, / e deslumbra-nos assim porque, imperturbado, / desdenha aniquilar-nos. Todo o anjo é terrível. Poderia começar assim, caso Rainer Maria Rilke não tivesse começado deste modo a primeira das elegias de Duíno. Para dizer a verdade, Rilke não começou assim. Quem assim começou foi Vasco Graça Moura, ao traduzir as ditas elegias. Então lembro-me das ordens angélicas e repito-as para mim: anjos, arcanjos, serafins, querubins, tronos, potestades e dominações. Falta qualquer coisa e tudo parece fora do lugar. Consulto um site denominado Aleteia e recebo a verdade sobre a hierarquia angélica. Na primeira, e mais elevada, estão os Serafins, os Querubins e os Tronos. Na segunda, intermédia, encontram-se as Dominações, Potestades e Virtudes. Por fim, na terceira e mais próxima dos homens, estão os Principados, os Arcanjos e os Anjos. Será que também esta hierarquia reflecte uma escala de beleza? Quanto mais longe dos homens, mais belos os anjos? Faz sentido, pois não suportamos, com os nossos olhos mortais, um excesso de beleza. Acabo o texto sem me decidir pelo começo.

sábado, 18 de março de 2023

Considerações lastimosas

Um céu azul onde navegam, como barcos de guerra, nuvens de cinza e cal. Parecem cordatas, mas se algum comando inquieto lhes fende a bonomia e o torpor, estão prontas para disparar os canhões de água. Retornei ao exercício da hipérbole. Talvez seja o efeito do Picetoprofeno com que pulverizei o pobre do calcanhar. O odor do produto entranha-se pelas narinas, sobe ao cérebro e deixa-o incapaz de se medir com a realidade. Na descrição da droga está escrito que entre os excipientes se encontra a essência de lavanda. Ainda bem, pois se não estivesse nem sei como seria possível suportar o aroma que se evola a cada pulverização e que persiste no pé, se agarra à meia e se cola ao septo nasal. Também é verdade que entre os tais excipientes se encontra a cânfora. Em tempos, constava que nas cantinas militares misturavam cânfora com o vinho que era dado aos soldados, para fazer baixar a libido. Ora, não é sem surpresa que leio que essa mesma cânfora é um potenciador do desejo sexual, pois estimula certas regiões cerebrais responsáveis pelas pulsões eróticas e, pasme-se, pode ser usada no tratamento da disfunção eréctil. Fiquei siderado por ver refutada uma ideia que eu juraria que tinha ouvido, pelo menos assim o pensava, e, mais do que isso, tinha crido nela. Não encontrei, na internet, indício que ligasse a cânfora, mesmo misturada com vinho, a uma diminuição do interesse pelo sexo. Será que inventei a história e passei a acreditar nela? Parece-me uma ideia demasiado rebuscada. Uma pessoa a pensar que a cânfora era um potenciador da hipolibidemia, um autêntico anafrodisíaco, e afinal não passa de um concorrente verde, apesar de ser branca, do comprimido azul. Descobri que outrora os monges punham raminhos de vitex agnus-castus nas roupas dos noviços, para que nestes se acalmassem os ardores, mas o vitex agnus-castus não é cânfora, mas liamba, e nunca ouvi dizer que na tropa se misturasse liamba ao vinho para esses fins pacificadores. Também consta que já no século XIX se duvidava da eficácia da medida, refiro-me à liamba na roupa dos noviços. Um narrador ocioso começa a falar no azul do céu e acaba a perorar sobre a concorrência ao Viagra e a fazer considerações sobre coisas que uma pessoa de bem não devia considerar. 

sexta-feira, 17 de março de 2023

A discórdia

Neste momento, o sol brilha, as paredes dos prédios resplandecem, as folhas das árvores, daquelas que as têm, cintilam e, em súbitas fulgurações, quase cegam o espectador. Há pouco, porém, tudo era diferente. Um fortíssimo aguaceiro abateu-se sobre a cidade e o céu era chumbo prestes a precipitar-se sobre a terra. Estas súbitas metamorfoses talvez possam interpretar-se como um conflito entre o Inverno que se recusa a morrer, agora o que o seu tempo estar a terminar, e a Primavera desejosa de nascer, mesmo que ainda não seja a sua hora. Uma estação quer procrastinar tanto quanto a outra se deseja prematura. A discórdia dos elementos é apenas uma prova de que Heraclito, o obscuro filósofo de Éfeso, teria alguma razão. Nunca deixa de me impressionar o número de trivialidades que me saem dos dedos, e se saem dos dedos é porque me ocupavam o cérebro. Imagino, agora, que escrever estes textos seja uma forma de me alivar das banalidades que navegam no mar insípido da minha alma. Como poderia ser de outro modo? Estou desde manhã bem cedo entregue a trivialidades. Agora, porém, oiço displicente uma sonata para piano de João Domingos Bomtempo. Bocejo, apesar da música. Raramente, as noites me são propícias. Da rua, chega-me o cantar de pássaros que não vejo. A música da natureza mistura-se com a produzida pelos seres humanos, mas não será esta ainda uma música da natureza? O tempo passa depressa. Desfilam sem parar as sonatas do compositor português, enquanto a tarde entra no crepúsculo anunciador das trevas nocturnas. Ainda oiço adolescentes na praceta, jogam com uma bola. Vejo-me há muitas décadas, também a jogar à bola na rua, num tempo em que entre mim e mim não tinha entrado o vírus da discórdia. Essa patologia que fez alguém dizer: Comigo me desavim, / Sou posto em todo perigo; / Não posso viver comigo / Nem posso fugir de mim. // Com dor da gente fugia, / Antes que esta assi crecesse: / Agora já fugiria / De mim, se de mim pudesse. / Que meio espero ou que fim / Do vão trabalho que sigo, / Pois que trago a mim comigo / Tamanho imigo de mim? Bastaria este poema para Sá de Miranda ter um lugar na história da literatura portuguesa. Vou entrar pelo fim-de-semana dentro.

quinta-feira, 16 de março de 2023

Alienação

Meticulosidade será a palavra que descreve duas experiências a que me entrego de momento. Em Jeanne Dielman, 23 Quai du Commerce, 1080 Bruxelles, um filme de 1975, a cineasta belga Chantal Ackerman faz um exercício meticuloso de descrição da vida de Jeanne Dielman (uma magnífica Delphine Seyrig), uma viúva relativamente jovem, com um filho adolescente, e que se entrega pelas manhãs às rotinas domésticas, um exercício escrupuloso, e de tarde se prostitui. O filme tem mais de três horas e estou a vê-lo em pequenos episódios, digamos assim. Ackerman coloca a câmara em cima da protagonista e raramente a tira, dá-nos uma visão da exterioridade daquela mulher, uma exterioridade mecânica, rígida, como se a bela Jeanne Dielman não tivesse vida interior, e tudo nela se resumisse aos gestos precisos e ordenados com que executa as tarefas do quotidiano. Na imutabilidade da rotina doméstica, a realizadora, usando a câmara à maneira de um voyeur insistente e obcecado, mostra a alienação da mulher em relação a si mesma, a sua perda nos rituais da domesticidade. Uma outra experiência da meticulosidade é a leitura do romance O Outro Nome – Septologia I-II, de Jon Fosse. Aqui, porém, a experiência é muito diferente. O narrador e personagem central do romance também é meticuloso, excessivamente meticuloso, na narração da sua corrente de consciência, mesmo aquilo que é dito pelo outros é filtrado pela corrente de consciência. São descrições levadas ao pormenor, com repetições, num exercício encantatório provocado pela minúcia da narração. Tudo no filme de Ackerman é exterioridade. Ao contrário, no romance de Fosse tudo é interioridade. São os pontos de vista narrativos que criam a experiência de alienação de Jeanne Dielman e a experiência de profunda consciência de si de Asle, o artista plástico, personagem de Fosse. Podemos imaginar o artista plástico filmado como foi filmada a jovem viúva. Por certo, a sensação com que ficaríamos era a de uma vida alienada, estranha a si mesma. Também não é difícil conceber Jeanne Dielman a narrar a sua história a partir da corrente de consciência. Por certo, desapareceria a sensação de alienação. Quando se fala em alienação, fala-se sempre de alienação dos outros, pois é plausível pensar que a alienação só existe a partir de um olhar exterior em relação às vidas que são catalogadas como alienadas. A alienação só existe no olhar dos outros.

quarta-feira, 15 de março de 2023

Vinganças

Talvez as coisas estejam a mudar. Duas experiências no campo da saúde em que fui atendido à hora marcada. Ontem, numa consulta com um médico de clínica geral, marcada para às 12:20, entrei para o consultório precisamente às 12:20. Esta foi uma consulta em que comecei por pedir desculpa ao médico por ali estar, devido a um erro do ortopedista da mesma clínica. Este ouviu as minhas queixas relativas ao calcanhar do pé esquerdo. Observou-me o calcanhar, receitou-me um anti-inflamatório para tomar durante cinco dias. Caso a dor não se evaporasse, que fizesse umas radiografias aos pés e tornozelos e uma ecografia às partes moles do pé. Claro que a inflamação não desinflamou e eu marquei os exames, falei com a assistente, decifrei os pedidos do médico e fiquei descansado. Só que, no dia seguinte, ao acordar e colocar o pé no chão fiquei com a sensação de que a ecografia tinha sido prescrita para o pé direito e o que me doía era o esquerdo. Fui ver as prescrições e confirmei. Na clínica arranjaram-me a consulta para que um clínico geral me prescrevesse o exame ao pé esquerdo, pois o ortopedista só lá estaria depois da data dos exames. Senti-me na obrigação de me desculpar perante o médico, pois acho que os médicos são mais do que prescritores de medicamentos e exames. Ele foi simpático e disse que eu não tinha culpa. Hoje fiz os exames, à hora marcada, e recebi a notícia de que tenho uma tendinite. Já estou arrependido de ter trocado a ecografia. Se a tivesse feito ao pé direito, não tinha nenhuma tendinite. Isto é o que dá uma pessoa armar-se em esperto. O destino vinga-se. Seja como for, o mundo parece estar a melhorar, embora eu esteja a piorar.

terça-feira, 14 de março de 2023

Excesso de luz

O telhado branco do pavilhão desportivo da escola aqui ao lado resplandece. Os raios solares, ao incidirem naquelas amplas superfícies, levemente inclinadas, causam uma fulguração intensa, apesar de branca, que os olhos dificilmente suportam. É o destino dos homens não suportarem uma luz excessiva. Se algum deles traz uma luz intensa, os outros não a suportarão e não o suportarão, e haverão de o amaldiçoar, pois nem os seus olhos, nem o seu pensamento, nem o seu coração foram feitos para esse excedente de luz que, apesar de insignificante, traz consigo uma diferenciação. É plausível pensar que a estranha história narrada por Platão e que ficou conhecida por Alegoria da Caverna não seja outra coisa senão uma reflexão sobre o quão insuportável é para a humanidade ter de conviver com alguém que é portador de luz. A Alegoria da Caverna é interpretada recorrentemente de modo filosófico, tanto epistemológico como metafísico, mas na verdade ela é um arquétipo sociológico, um modo de entender as relações sociais entre o comum e o incomum. Mesmo os mais ardentes defensores das diferenças sociais se tornam igualitaristas na hora em que percebem alguém que é mais dotado do que eles. Um acaso, coisa que sucede tantas vezes, levou-me a ver uma série de reproduções de esculturas de Antony Gormley, onde o corpo humano é o tema. Imagino que o escultor tenha pegado em cada um dos prisioneiros da caverna de Platão e o tenha submetido a uma diferenciação específica. Interrogo-me como se sentirão eles nesses corpos que no lugar de os assemelhar os diferenciam, como se pertencessem a espécies estranhas. Provavelmente, tremerão de medo perante o horror do que vêem. O telhado branco do pavilhão continua preso na sua cintilação branca, cai sobre os olhos como um punhal. O melhor será ir buscar os óculos escuros.