Posso dividir em dois grupos os livros que compro repetidos. Uns compro-os por acaso e contra a minha vontade. Funcionasse a memória, e não os compraria. Por vezes, sou vítima de uma alteração gráfica: compro-o e descubro, depois, que já o tinha. Por norma, são livros que tenho, mas que não li, embora nem sempre isso seja verdade. Outros compro-os por uma decisão genuína, sabendo que os tinha e, por norma, já os lera, mas também aqui isso nem sempre é verdade. Não se trata, como no primeiro caso, dos mesmos livros. O melhor é exemplificar. Ontem, apoiei, numa editora que trabalha com apoio dos leitores, a edição de A Coroa, o primeiro volume da trilogia A Saga de Kristin Lavransdatter, da norueguesa Sigrid Undset. Ora, eu tenho a trilogia. Tenho-a numa velha edição da Portugália. O que tem a nova edição de diferente? Uma coisa simples: a nova é uma tradução a partir do norueguês, feita por João Reis. A outra é uma versão de Maria Franco, provavelmente feita a partir da tradução francesa ou inglesa. Não se trata, na realidade, do mesmo livro. Outro caso é o da minha compra de hoje. Deparei-me com uma edição que desconhecia de O Banquete, de Platão. Tenho uma anterior e respeitável tradução, feita a partir do grego, comprada há muito. Foi nela que li O Banquete, embora há pouco tenha descoberto que não sei onde pára. Esta nova edição, também feita a partir do grego por Maria Mafalda Viana, tem um pequeno, mas curioso, prefácio de José Pacheco Pereira. Dois motivos levaram-me à compra: o prefácio e a inclinação que tenho para apoiar – através da compra – tudo o que disponibilize a obra de Platão. Partilho a opinião do matemático e filósofo Alfred North Whitehead: toda a tradição filosófica consiste em notas de rodapé à obra de Platão. Sou um platónico, talvez não praticante. Platão era um génio. Inventou a filosofia, e fê-lo de um modo que, apesar de algumas tentativas sem especial repercussão, nunca mais ninguém conseguiu seguir: a encarnação dos problemas filosóficos em diálogos, onde várias posições se confrontam. Não se trata de tratados ou ensaios, mas de conversas onde pessoas diferentes trocam palavras e pontos de vista. Há uma encenação que, depois, desapareceu, salvo, como disse, uma ou outra tentativa episódica. Ora, essa encenação não é uma decoração, mas o contexto pragmático que dá sentido àquelas palavras. Perdi-me no que ia escrever. E agora que estou perdido neste louvor a Platão, já não sei o que queria escrever, nem encontro o fio de Ariadne que me leve para fora do labirinto. Talvez esteja condenado a vaguear por ele, deslumbrando-me com a possibilidade de ter encontrado uma saída para, logo depois, suportar a desilusão trazida pelo engano. Se me for permitido dar um conselho, diria que o melhor é evitar labirintos.
quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025
terça-feira, 25 de fevereiro de 2025
Da falsidade e da falsificação
Benjamin Constant criticou a ambição de Saint-Simon de levar o mundo de um estado transitório para um estado definitivo. Constant não se esqueceu de sublinhar que nada é definitivo sobre a terra. Uma evidência, mas, como todos os cultores de evidências, esqueceu-se de que o homem é uma máquina desenhada para, em certas ocasiões, desconfiar das evidências, mesmo que não sejam falsas evidências, e de se inclinar repetidamente para aquilo que nega as evidências e a própria factualidade. Saint-Simon era um membro dessa confraria maquinal que preferia a negação da evidência à própria evidência. Seria melhor sonhar um mundo definitivo do que contentar-se com a contínua transitoriedade de tudo. Essas ilusões ou fantasias não são erradicáveis da nossa espécie. A cada momento, aceitamos como verdadeiro o que é falso. Não por odiarmos a verdade, mas porque a falsidade – vinda em forma de ilusão, fantasia, devaneio, utopia ou mera mentira factual – nos faz falta. Precisamos de nos auto-iludir, para além de iludir os outros. Caso se aceite o evolucionismo darwiniano – e este narrador aceita-o –, teremos de nos perguntar por que razão o longo processo evolutivo pelo qual tem passado a nossa espécie não eliminou a propensão da humanidade para a falsificação. Ora, a resposta talvez seja simples: porque essa inclinação é uma vantagem competitiva da espécie no processo de adaptação ao meio. Com isto, não se afirma que este narrador despreza a verdade e a troca pela mentira. Diz uma coisa mais simples: a humanidade precisa de ambas e, provavelmente, sem qualquer delas, sucumbiria e entraria no extenso rol das espécies desaparecidas. Erradicar o falso é uma empresa tão inútil como erradicar o verdadeiro. O que será preciso é aprender a lidar com ambos e perceber qual é o papel da falsificação na vida dos homens. De há uns anos a esta parte, no espaço público, tem-se observado uma enorme batalha contra as denominadas fake news. A batalha parece perdida, pois não se percebe por que razão são produzidas – embora os combatentes das fake news estejam convencidíssimos de que conhecem muito bem essa razão – e percebe-se ainda menos por que motivo são não apenas acolhidas com agrado, mas intensamente desejadas. Se se quer lidar com as fake news, então há que perguntar pelas razões que levam as pessoas a revoltar-se contra a realidade e contra a verdade que descreve essa realidade. Por isso, muitas das afirmações que se fazem nestes textos são meramente ficcionais – um eufemismo para adoçar o facto de serem puras falsidades.
segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025
Inquietações
Os dias andam inquietos, e a sua inquietação contamina o mundo, as nações, cada um dos homens que habitam o planeta. Alguém dirá que os dias são indiferentes tanto à inquietação como à quietude: são apenas a emanação de um certo arranjo cósmico. A minha observação não passa de uma antropomorfização sem nexo. Aquiesço, apenas porque me falta a vontade de começar essa conversa que não foi iniciada, com um interlocutor que não existe. E continuo a pensar, enquanto escrevo e a noite toma conta da cidade, que os dias andam inquietos, e a sua inquietação atinge a vida dos homens. A inquietação dos dias é uma manifestação de uma inquietação cósmica. Na verdade, é o universo que está a passar por uma fase de grande desassossego, de uma turbulência cuja causa desconhecemos e cujo sentido nos escapa. Isto tem uma vantagem para o que se passa no mundo dos homens: dá uma raiz cósmica à perturbação por que passa. Sim, os homens andam perturbados: uns, sonâmbulos; outros, hiperactivos, todos sem saber o lugar que é o seu. Contudo, mais do que actores desse alvoroço em que vivem, são pacientes que sofrem o poder de forças que não controlam. Esta é a minha contribuição – por certo, estimável – para a compreensão daquilo que se passa neste planeta. Amanhã, caso me ocorra, poderei dar outra, muito diferente desta, se não mesmo contraditória. Sempre se pode afirmar que o próprio narrador é vítima das perturbações cósmicas de que fala. Talvez, mas o mais certo é que este seja um exercício do raciocínio abdutivo, cuja finalidade é criar hipóteses explicativas de fenómenos inesperados ou surpreendentes. E, neste mundo, não nos faltam fenómenos inesperados e surpreendentes. Quanto à qualidade da hipótese proposta hoje, não me cabe ser juiz em causa própria, ou mesmo em causa imprópria.
domingo, 23 de fevereiro de 2025
Uma triste história
Um dia de Primavera, ainda tocado por sombras fugazes, vestígios de um Inverno que está longe do fim. Ou talvez tenha acabado e ainda não o saiba. Nem ele, nem nós, pois a sabedoria das coisas é esquiva, tão esquiva que temos de construir armadilhas, cada vez mais ardilosas, para a capturar. Os resultados dessa astúcia, porém, são sempre magros e nunca enchem o coração daqueles que passam a vida a urdir truques e alçapões para capturar, desse saber, um sinal aqui, um indício acolá. Reparei agora que já usei dois verbos com a terminação em -ir, construir e urdir. Fico a meditar no feito e sou levado, por homúnculo insensato que habita no desvão da minha mente, a investigar a proporção de verbos segundo a desinência infinitiva – espero, ao meter a foice em seara alheia, não estar a dizer disparates; embora isso seja irrelevante, pois seria apenas mais um – e confirmo aquilo que sabia. Os verbos terminados em -ar – no infinitivo, claro – constituem uma larga maioria, talvez uma maioria absoluta que ronda os 70%. Somos um povo que dá muita importância ao ar, de tal modo que parte substancial dos nossos verbos tem uma terminação aérea, como amar, lavar, corar, matar, falar. Isto significa que quase todas as nossas acções são feitas, imagino eu, com a cabeça no ar. Se olhar para a percentagem de verbos com terminação em -ir, entre 5 e 10%, descobrimos que não gostamos muito de ir. Dito de outra maneira, a tendência é não ir a lado nenhum. Mas de ficar, de estar, por vezes de permanecer. Ir só mesmo quando tem de ser e se o tem de ser tiver muita força. Há um número considerável de verbos terminados em -er, entre 20% e 25%, como correr, mas jamais se aproximarão dos terminados em -ar. Quem quererá correr, se a sua ânsia é estar, ficar ou parar? Os terminados em -or, todos derivados de pôr, são fruto de uma história exemplar. Tendo a origem no latino ponere, em vez de optar por uma desinência infinitiva em -er, acabou como todos sabemos. Pensou: «Nasci poner, mas não morrerei assim.» Foi ao registo civil e mudou o nome para pôr. Disse ao funcionário que queria um acento circunflexo, pois isso era uma marca heráldica. Mais triste do que a desinência -or, é a em -ur. Nem um verbo português termina em -ur. Uma incompreensível acção discriminatória, a qual tem a sua raiz na ordenação das vogais portuguesas. Isto prova que a distribuição dos verbos pelas respectivas desinências infinitivas foi feita por Epimeteu, esse mesmo. Aquele que ficou responsável pela distribuição das qualidades aos seres vivos e as gastou todas antes de chegar ao homem. O mesmo se passou com os nossos verbos. Epimeteu, que não era particularmente inteligente, não soube dosear o seu entusiasmo distributivo e quase gastou os verbos na primeira desinência em -ar. Quando chegou à -or, foi salvo pela jactância de poner. A terminação em -ur teve um destino mais terrível que o da espécie humana. Nem um deus a salvou.
sábado, 22 de fevereiro de 2025
Escrita de pedra
Numa entrevista concedida, em 28 de Outubro de 1964, a Günter Gaus, Hannah Arendt diz algo que há muito experimentei: Escrever é uma boa maneira de procurar a compreensão, faz, pois, parte do processo de compreender… Certas coisas encontram aí a sua formulação. Cada vez que se escreve, é como estar diante de uma encruzilhada e escolher um caminho. Essa escolha de um caminho é, ao mesmo tempo, realizar a compreensão de que aquele é o caminho e abandonar a nebulosa em que se vivia perante as difusas possibilidades em aberto. Toda a compreensão é a eliminação de uma nuvem de explicações e a eleição daquela que se revelou através do acto de escrever. Temos assistido, ao longo da história da nossa espécie, com uma ou outra inflexão, à imaterialização progressiva do registo da escrita. Inicialmente, na pedra, depois na argila, em tábuas de madeira revestidas a cera, em ossos e conchas, em papiro, em pergaminho, em papel e, agora, em ambientes virtuais. Contudo, a natureza pétrea da escrita, simbolizada na gravação original em pedra, manteve-se, pois é da sua própria essência ser de pedra. Ao escrever-se um texto, este solidifica-se e consolida a compreensão daquele que escreve, que só então se torna firme. Num diálogo denominado Fedro, Platão, que tanto escreveu, dirige uma crítica severa à escrita. Enfraqueceria a memória, não passaria de uma aparência de conhecimento e, aquela que me interessa, o carácter fixo e inalterável da escrita. A sua natureza pétrea. Platão lamenta que o discurso escrito não responda aos interlocutores, limitando-se a repetir incessantemente as mesmas palavras. Ora, Platão parece ignorar a ductilidade do que é pétreo. Cada nova leitura de um texto, que materialmente se manteve igual, traz-lhe um novo sentido e, caso o interroguemos de cada vez que o lemos, obteremos sempre respostas diferentes. Isto traz, em aparência, um problema à formulação de Hannah Arendt. Ao escrever, fixa-se uma certa compreensão daquilo que se está a pensar, mas, se o autor relê o que escreve, essa compreensão sofre um questionamento, que põe em causa a solidez do que está escrito. É verdade, mas a consequência não é abandonar a escrita, e sim intensificá-la, num processo de reescrita que, idealmente, poderia ser infinito, caso o autor não fosse mortal. Um crente dirá que o mundo está sempre a mudar porque Deus o reescreve infinitamente. Alguém contestará que o processo põe em causa a omnisciência divina, que Deus sabe tudo instantaneamente e, nessa instantaneidade, o escreve. Ainda que se aceite a definição teísta de Deus, tal não invalida o que foi afirmado. A escrita infinita da divindade é ao mesmo tempo instantânea. Para a divindade é instantânea, para nós, é infinita, pois o instantâneo divino é, para um ser humano, um processo sem fim. Os sábados estão a fazer-me mal. Estes textos estão cada vez maiores e mais abstrusos. Talvez seja ainda o efeito do almoço.
sexta-feira, 21 de fevereiro de 2025
O sono e os ouriços
De tão ocupado, nem dei pela passagem desta sexta-feira. Melhor: quando dei por ela, já a luz do dia se tinha apagado e a noite tomara conta de tudo, inclusive de mim. Talvez tenha sido por isso que adormeci há pouco. Isso prova que a noite é um soporífero. Talvez estes textos sejam como a noite: escuros e soporíferos. Começo a escrever e o dia vai-se apagando à minha volta, até que, ainda antes de acabar, tudo fica negro — uma noite de lua nova. Aí, o que resta a quem lê? Adormecer. Isso deu-me uma ideia que nunca me ocorrera, mas talvez não seja muito dotado de imaginação ou de inteligência. Quando estou com aquelas insónias desagradáveis e me ponho a ler coisas que os outros escreveram, o sono parece afastar-se, mais e mais. Ora, sensato seria pôr-me a escrever, até que o efeito soporífero me trouxesse o sono desejado e tudo se apaziguasse entre mim e mim ao abrir os olhos e a manhã clara já ter derrotado, com a lança da aurora, uma noite débil que deixara o escudo no canto do quarto. Quem ler este texto — já é a segunda referência a um possível leitor — pensará que estou sem assunto. Isso não é verdade. Por exemplo, podia comentar, e com proveito, um excerto de Isaiah Berlin. Diz ele a Paul Simon: Creio que acredita verdadeiramente que prefiro raposas a ouriços, mas não é assim. Não existe nenhum poeta maior do que Dante, nenhum filósofo maior do que Platão, nenhum romancista mais profundo do que Dostoiévski. Ainda, claro. Estes, apesar de maiores, ou por o serem, são todos ouriços. A ideia parte de um verso de Arquíloco: A raposa sabe muitas coisas, mas o ouriço sabe uma grande coisa. Poderia discordar, e com algumas razões dignas de serem atendidas, que Platão fosse um ouriço. Mesmo Dostoiévski poderia ser muito menos ouriço do que pensa Berlin. Concederia, sem discussão, que Dante é um ouriço. Ora, isso conduziria o texto para a elaboração de taxonomias, o que, na minha mão, poderia ter um efeito de tal modo soporífero que poderia adormecer durante três dias e três noites. Isso ultrapassaria a justa medida, coisa que entraria em choque com a minha virtude, e eu vejo-me como um narrador virtuoso, embora não um virtuose da narração. Acabei de bocejar.
quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025
Teoria das cordas
Hoje, acordei, depois de uma noite mal dormida, fascinado com a teoria das cordas. Essa mesma, a que alimenta a hipótese de unificar a teoria da relatividade, que se debruça sobre o funcionamento macro da natureza, e a mecânica quântica, que fornece conhecimento sobre coisas muito pequenas, ou seja, partículas subatómicas. Há, entre estas duas teorias, um conflito que ultrapassa a rivalidade futebolística daqueles clubes que habitam na segunda circular da capital deste país. A teoria das cordas fornece uma esperança de unificação, o que significaria que harmonizaria leões e águias em alegre convívio, num fim-de-semana passado no Porto. Apesar de a perspectiva de criar harmonia nos seduzir a todos, não foi isso que me causou júbilo. O fascínio reside na possibilidade de o velho Pitágoras ter razão: todo o cosmos ressoa como uma grande sinfonia mahleriana; a música das esferas celestes. Ora, a teoria das cordas propõe que tudo no universo é composto por pequeníssimas cordas a vibrar. Conforme a vibração, as cordas formam electrões ou quarks, os quais compõem protões e neutrões. Toda a realidade é composta por música, e cada um de nós é um ser musical. Consta que há um pequeno problema com a teoria. Exige que a realidade tenha pelo menos dez dimensões e não as prosaicas quatro a que estamos habituados. Os físicos desconfiam de tanta dimensão, mas um ignorante como este narrador sabe mais de física que os físicos, pois é um narrador pós-moderno. Ora, a pós-modernidade é aquela época da humanidade em que os ignorantes e os idiotas sabem muito mais do que aqueles que dedicam uma vida a estudar a realidade. Estou em casa. Deixo o meu contributo para a explicação da teoria das cordas e para a unificação da teoria da relatividade com a mecânica quântica — coisas de que nada sei, mas que, nos tempos que correm, é uma vantagem competitiva. Para a teoria das cordas funcionar, são precisas exactamente onze dimensões. Não mais, não menos. Eis o meu primeiro contributo para a evolução da física. O segundo é a identificação das 11 dimensões: as quatro triviais onde existimos e as dimensões musicais. Temos uma dimensão do dó, outra do ré, outra do mi, e assim sucessivamente. E é por serem estas as autênticas dimensões da realidade que a teoria das cordas faz todo o sentido. Sob o tempo, o comprimento, a largura e a altura, estão, como se fossem a raiz do ser, as sete dimensões musicais, das quais as notas são uma emanação à grande escala e uma espécie de reminiscência platónica no mundo. Por hoje chega de contributos para o progresso da humanidade.
quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025
Sapateiros e príncipes
Na página 133 da última edição portuguesa de As Palavras, Sartre escreve: Em Sainte-Anne, um doente gritava da sua cama: «Sou um príncipe! Prendam o Grão-Duque!» Aproximavam-se, diziam-lhe ao ouvido: «Assoa-te!», e ele assoava-se; perguntavam-lhe: «Qual é o teu trabalho?», e ele respondia baixinho: «Sapateiro», e recomeçava a gritar. Sartre acrescenta: Imagino que todos sejamos parecidos com esse homem. Parece-me, porém, que o filósofo francês faz uma generalização precipitada. É possível que existam muitos que, sendo sapateiros, se proclamem príncipes. Será menos vulgar um príncipe gritar que é sapateiro, mas é possível que exista algum. Todavia, há alguns – não sei se muitos ou poucos, nunca tenho à mão as estatísticas de que preciso – que não se sentem nem sapateiros nem príncipes, seja no sentido corrente das palavras, seja no figurado. Este narrador não se sente o príncipe dos narradores, tão-pouco um sapateiro da narração. Aliás, nem se sente narrador. Não se sente seja o que for. E este não se sentir isto ou aquilo talvez seja muito mais comum do que se sentir sapateiro e príncipe, ou apenas uma das alternativas. A experiência de se sentir nada aterroriza as pessoas e, como consequência desse terror, elas perdem a cabeça e começam a sentir-se sapateiros ou príncipes, ou os dois ao mesmo tempo, caso estejam mesmo muito aterrorizadas. É um processo que, ao ser desencadeado, nunca mais pára. É em Isaiah Berlin que encontro uma explicação para esse afogamento numa identidade social. Diz ele – hoje estou em maré de citações – numa obra com o estranho título O Ouriço e a Raposa: Tanto Tolstói como Maistre pensam naquilo que acontece como uma rede espessa, opaca, inextricavelmente complexa de ocorrências, objectos e características relacionados e divididos por ligações literalmente inumeráveis e inidentificáveis – e também brechas e descontinuidades súbitas, visíveis e invisíveis. Ora, esse processo, que leva alguém do nada que sente até ao sentir-se sapateiro ou príncipe, é também ele uma rede espessa, opaca. A pessoa sente-se levada nessa torrente imparável e, um dia, ao acordar, vê-se sapateiro ou príncipe. No caso deste narrador, continua a sentir-se um nada – um zé-ninguém – talvez porque ainda não tenha acordado. Devia chamar a este texto Nota Biográfica, mas não chamo. Um narrador não tem biografia, isto é, não tem bio e não tem grafia.
terça-feira, 18 de fevereiro de 2025
O florir das orquídeas
No friso das orquídeas, há duas já floridas. Ambas brancas, o que, estatisticamente, não era uma possibilidade forte, pois constituem uma clara minoria entre o rebanho de orquídeas que são pastoreadas por aqui. É um pastoreio sem pastor ou pastora, embora com uma certa transumância, pois, de tempos a tempos, são transportadas para uma banheira, onde são regadas segundo uma metodologia que, confesso, desconheço, mas que oiço dizer ser muito adequada. A esse ritual transumante chamo a procissão das orquídeas, na qual não levo andor nem, tão-pouco, participo. Dito de outra maneira, sou apenas um contemplador e não um cuidador. A surpresa floral não se combinou com uma surpresa no estado do tempo. Se esperava que hoje tivesse um dia de um cinzento depressivo, a expectativa confirmou-se. O dia – logo pela manhã – parece ter-se arrependido de ter nascido e ostenta uma saudade da noite que chega a ser insuportável. Na avenida, as pessoas deslizam em passo incerto: avós em busca de netos na escola primária, alguém apressado para fazer um negócio numa das lojas que ali há, outros que esperam encontrar, num dos cafés, alguém com quem possam trocar umas palavras, para que o dia não seja um poço de solidão e um puzzle sem sentido. Eu sento-me à secretária como se me sentasse na borda de um poço, para colher tangerinas de uma tangerineira que havia nessa casa onde nasci, dizem-me, e cujos habitantes, excepto eu, estão todos mortos. Já não sentem o prazer do florir das orquídeas, nem saem de casa para ir ao café, levando-me pela mão, nem me chamam pelo nome. Talvez o tenham esquecido ou eu tenha trocado de nome e já não me lembre de como, naqueles dias, me chamava. São coisas que acontecem. Não falta por aí quem se tenha esquecido do nome e ostente outro que inventou para esconder a amnésia.
segunda-feira, 17 de fevereiro de 2025
Falar com os pássaros
Os pássaros, meus vizinhos, voltaram da sua longa viagem. Retornaram as longas conversas e a minha tentativa de compreender a linguagem das aves. Tenho-me esforçado, mas, confesso, os resultados obtidos até hoje são nulos. Existem várias hipóteses. A primeira, de natureza pessoal, diz que sou bastante incompetente na compreensão de linguagens estranhas. A segunda, de natureza colectiva, afirma que os seres humanos são incapazes de compreender linguagens fora da sua espécie. A terceira, de natureza ontológica, assevera que os sons emitidos pelas aves não representam uma linguagem. Caso seja verdade, isso deixa-me desolado. Um mundo em que só a nossa espécie seja detentora de linguagem é pobre, muito pobre. Um mundo desencantado. Não bastava já aquela ideia verrumante de Max Weber, a de desencantamento do mundo, para nos deixar consternados, quanto mais ter de viver num mundo onde ninguém, além de nós, fala. Se isso for verdade, há uma explicação para o facto. Isso dever-se-á a uma lei da compensação. Existe uma espécie que fala tanto, tanto, tanto, que se apoderou de todas as linguagens disponíveis, não restando para as outras qualquer fala possível. Emitem sons, mas não trocam informação estruturada. A minha esperança, porém, é que essa possibilidade seja falsa e que, um dia, cada espécie encontre, nos homens, o seu Champollion, que há de permitir que os homens falem com elas, estudem os seus vocábulos, a sua sintaxe e a sua semântica, o modo como o seu discurso alcança a natureza das coisas.
domingo, 16 de fevereiro de 2025
A Grande Pragmática
Ontem, como parte de um ritual, passei pela livraria Ler, em Campo de Ourique, casa a que volto sempre que venho a Lisboa e tenho algum tempo disponível. Imagino que seja uma faceta levemente romântica que me inclina, no caso dos livros, para o comércio local. Pelo menos, em parte. É agradável saber a quem se compra os livros. E a verdade é que, embora não se note pelas aparências, um mesmo livro comprado numa pequena e séria livraria não tem o mesmo conteúdo do que se for comprado numa grande cadeia multinacional ou mesmo nacional. As letras e as palavras parecem as mesmas, mas não são. Significam de maneira diferente, pois a significação não é apenas um assunto de semântica, mas também de pragmática. A pragmática trata do contexto onde os actos de linguagem ocorrem. Preocupa-se com o modo como a significação emerge do uso da fala em situações concretas, com os seus contextos, intenções, normas sociais, inferências, etc. Esta é, porém, a pequena pragmática. A grande pragmática, que acabei de criar, inclui os discursos escritos, a forma como são trocados e os lugares onde os leitores não apenas os lêem, mas também onde os adquirem. Toda essa constelação de lugares influencia a significação das palavras que estão impressas. Daqui posso avançar para uma nova – e criativa, embora é possível que alguém antes de mim a tivesse criado – tese: qualquer livro – por exemplo, o romance Refúgio no Tempo, de Gueorgui Gospodinov, que comprei ontem – tem, pelo menos, tantas significações quantos os exemplares postos à venda. Disse pelo menos porque se alguém compra um livro e, depois de o ler, o vende, a nova transacção comercial implica a criação de um novo sentido, pois as condições grande pragmáticas, digamos assim, são diferentes. Esta descoberta serenou-me o espírito. Até ao dia de hoje, pensava que, quando comprava uma obra pela segunda vez, isso se devia a um problemático défice da minha memória — antecâmara, sabe-se lá, de que doença do foro neurológico. Hoje descobri que nunca comprei a mesma obra duas vezes. Apesar de as aparências indicarem que são a mesma, a verdade é que os contextos grande pragmáticos são diferentes. Logo, as obras são diferentes. Não apenas acrescentei mais uma criação à minha gesta e ao progresso da ciência, como também encontrei uma explicação sólida para aquilo que eu pensava ser uma fraqueza — uma patologia — da memória pessoal. O domingo está ganho.
sábado, 15 de fevereiro de 2025
Saudades
Imagino que tudo o que se está a passar no mundo não seja mais do que a manifestação de uma saudade que os próprios saudosos não sabem de quê. O estado das coisas está perturbado e é perturbante, disse-me, numa longa chamada de telemóvel, o meu amigo Lodovico Settembrini, o padre Lodo, para a imensa roda de amigos. Está um tempo óptimo para os profetas, respondi-lhe. Ele riu-se, mas acrescentou que o problema dos profetas não é falharem nas profecias, mas de estas serem de tal modo equívocas, que conseguem, ao mesmo tempo, predizer tudo e não predizer nada. Muito me conta, exclamei, mas, continuei, de que andam as pessoas tão saudosas? De forma resumida, respondeu o meu amigo, podemos dizer que estão saudosas do tempo dos mitos. Esta saudade é o reverso do cansaço com três coisas. Quais? Não sei se existe uma ordenação nesse cansaço, respondeu. Estão cansados das explicações científicas. Elas explicam muito, mas as pessoas não entendem uma linha dessas explicações, mesmo que tenham formação superior. Estão cansadas de serem livres, de poderem orientar a vida conforme queiram, usando as suas faculdades e o seu esforço. Por fim, estão exaustas da responsabilidade. Nas nossas sociedades, somos responsáveis pelo que fazemos, mas, acima de tudo, pelo que somos. Este cansaço é o outro lado da saudade do tempo dos mitos. As explicações eram simples e claras, a esfera da liberdade, restrita. A responsabilidade limitada às acções e nunca pelo que se era, pois estava decidido ao nascer. Fiz um longo silêncio, depois perguntei: e chegou a essas conclusões pela observação do mundo ou pela escuta que faz dos crentes no segredo do confessionário. Meu caro amigo, o segredo do confessionário é pouco secreto, pois o que as pessoas confessam não é diferente daquilo que se observa do mundo. Portanto, pode escolher a origem da minha informação. As fontes são maçadoramente repetitivas.
sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025
Desconcerto na casa da consciência
O tempo galopa como um zorro enraivecido. Que abertura dramática, convenhamos. O facto, porém, é que o ano ainda mal começou, e já chegámos a meio do segundo mês. Mais quinze dias – e quinze dias não são duas semanas – e entrar-se-á em Março. Desloquei-me à capital e tive de almoçar segundo o desejo das minhas netas, que acharam que deveria ser pizza para toda a gente, ainda franzi o sobrolho, mas ninguém deu por isso. A verdade, caso haja uma verdade no assunto, é que nem desgosto por aí além, mas acho sempre que é coisa dispensável. Hoje também acharia, não fora o caso da ideia ter partido de onde partiu. Ao cair da tarde, deveria ir ver o treino de râguebi do mais novo, mas um compromisso inadiável caiu no mesmo horário. Este Fevereiro está sarapintado de Primavera, para a qual falta ainda mais de um mês. Voltemos à primeira frase, a de tonalidade dramática que inicia este texto. Está cheia de equívocos. Quem galopa são os cavalos, não o tempo e muito menos um zorro. Também num célebre filme de Martin Scorsese, no título, enraivecido é atributo de touro e não do macho da zorra. Fiz de um pobre raposo o centro de toda a confusão que me vai pela cabeça. Vejo-o como um cavalo, vejo-o como um touro, mas não o vejo como aquilo que ele é, um raposo, que terá a sua raposa e muito raposinhos e raposinhas. Uma das hipóteses aventadas por um certo homúnculo que habita no meu cérebro é que a confusão nasceu do almoço, da condescendência com que encarei a sugestão. Ora, essa criatura, que tem a pretensão de ser a voz da minha consciência, faria melhor em estar calada, antes que eu lhe dê uma ordem de despejo por ocupação ilegal de moradia de que não é legítimo proprietário ou mesmo locatário. Sim, a minha consciência é um lar, mas quando a adquiri não vi no contrato que assinei que esse lar teria um porta-voz. Já protestei perante o fornecedor de consciências, mas ele disse que era uma gentileza – vá lá, não disse que era uma atençãozinha – da administração. Vendem a consciência e oferecem um homúnculo que é o porta-voz. Respondi que dispensava a gentileza, que ficassem com o homúnculo. Nada feito, uma oferta é uma oferta. Perante a minha resistência, mudou de estratégia e recorreu à conhecida falácia do argumentum ad misericordiam: eu que ficasse com o maldito palrador, que não o devolvesse, pois a administração ainda o despedia, ao vendedor, não ao homúnculo, e que tinha mulher desempregada e filhos em idade escolar. Um drama. Condoí-me e fiquei com um homúnculo palrador dentro da consciência e para o desalojar só em tribunal, o que deverá demorar uns vinte anos. Um dia, talvez de Fevereiro, ainda vendo a consciência, desde que não confunda cavalos e touros com zorros ou alguém se lembre de almoçar pizza, não é que desgoste, mas...
quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025
O dorso de Zeus e a pata do urso
Apesar de estar proibido pelo autor de falar de política, não estou proibido de pensar sobre ela. "Livre pensar é só pensar", como escrevia o humorista brasileiro Millôr Fernandes. E eu, apesar de narrador, penso muito, não sobre política, mas sobre geopolítica. Dá um ar mais sofisticado. A política tornou-se uma coisa paroquial; a geopolítica traz com ela o véu diáfano das coisas cosmopolitas. Os meus pensamentos, apesar de livres, são negros, cada vez mais negros. Houve um momento em que este narrador pensou viver no melhor mundo que estava disponível para viver, um mundo que tem o nome de uma princesa fenícia e que Zeus, disfarçado de touro, decidiu raptar. Hoje, esse mundo, com o doce nome da princesa, ainda é o melhor dos mundos existentes, mas está a ser vendido, literalmente e sem pudor, perante a apatia dos seus sonâmbulos habitantes — não ao desejo taurino de Zeus, mas à pata do urso, à máscara de Hades, que se prepara para destruir o jardim. Talvez tenha dormido mal, talvez as notícias me estejam a perturbar a digestão, mas não consigo deixar de pensar nos meus netos e nos netos daqueles que vivem no melhor dos mundos — e na possibilidade de eles não perdoarem aos avós e aos pais o mundo que pode vir a ser o deles. O melhor será tomar um comprimido para dormir ou abdicar do livre pensar, apesar de este ser só pensar. Está a chegar o crepúsculo. Vou fechar as persianas. Talvez a noite não entre.
quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025
O calendário de Pandora
Habituados à cegarrega dos meses com trinta e trinta e um dias, nunca se deixa de estranhar as incongruências e inconstância de Fevereiro. Incongruente, porque o número de dias se fica na casa dos vinte, enquanto a dos outros meses está, como disse, na dos trinta. Parece ser o irmão mais baixo, neste caso, mais pequeno. Inconstante, porque varia, embora com constância, entre os vinte e oito e os vinte e nove dias. Este facto, embora ninguém acredite, introduz um factor de perturbação na ordem do mundo. Se o calendário admite um irregularidade, então podemos temer que seja a porta por onde pode entrar o caos. E é sempre o tempo que nos traz o caos. O pior é que, além da grande irregularidade de Fevereiro, o calendário que nos cabe em sorte tem outras fissuras desagradáveis. Meses pares e meses ímpares, por exemplo. E a própria regularidade pode ser um factor perturbante, como é o caso de Julho e Agosto terem ambos trinta e um dias, sem que, entre eles, se interponha, como é a regra, um mês de trinta dias. Foi isto que me ocupou toda a tarde. Meditar nos perigos que se escondem no escandir do tempo. E se as pessoas acham que este a prosa é fruto do desvario de uma mente desocupada, estão enganadas. Uma mente, mesmo a mais mentecapta, nunca está desocupada, pois é atravessada por inúmero fluxos de consciência. Depois, porque estas perturbações no calendário são, na realidade, aberturas por onde entra o caos. É só observar o estado do mundo. Num certo dia do calendário, um louco assume o comando de um país, num outro dia, outro louco ou o mesmo começa uma guerra. E não há louco nenhum que chegue ao poder ou comece um loucura trágica que não inscreva esses acontecimentos em dias do calendário. Tudo isto porquê? Porque o calendário, com as suas irregularidades e imperfeiçoes, abre a porta – ou o portão – para que essa gente chegue com a caterva de males que estavam presos na caixa da pobre Pandora. E se querem saber o que era a caixa de Pandora, posso explicar. A caixa de Pandora era um calendário perfeito e regular, onde não havia brechas nem fissuras. Trocado esse calendário racional e benevolente pelo nosso – seja em versão juliana ou gregoriana –, os males começaram a escapar-se, e estão a fazê-lo cada vez mais rapidamente. Fica por aqui o meu contributo para dar sentido a história humana. Não convém passar os limites da revelação, pois, como se sabe, a espécie humana não suporta demasiada realidade ou demasiada verdade.
terça-feira, 11 de fevereiro de 2025
Efeitos colaterais
E se a minha missão neste pobre planeta fosse criar uma utopia, pergunto-me depois de um almoço tendencialmente mexicano, onde um chili foi acompanhado não por uma cerveja, uma margarita ou, talvez o mais indicado, um mojito, mas por um tinto monocasta, um Syrah, esclareçamos. O pós-refeição, quando as refeições têm esta espúria natureza, não é propriamente adequado a meditar sobre coisas sérias. Resta deixar correr o fluxo de consciência, coisa que ele, fluxo, faz por si-mesmo e sem permissão, e observar o que ocorre na nossa mente toldada pelo encontro entre os sabores intensos e picantes da comida com os taninos suaves do tinto. E aquilo que se observa são ideias estapafúrdias como aquela que abriu este texto. Presumir que tenho uma missão neste planeta já indicia que qualquer coisa não vai bem, mas pensar que essa missa missão é criar uma utopia é, então, a prova provada, uma redundância pouco subtil, de que as fermentações alimentares estão a perturbar sem piedade o cérebro. Contudo, agora que os efeitos da refeição se desvaneceram, encontro alguma sensatez nesse pensamento insensato. Criar uma utopia não é outra coisa senão criar, em papel ou em escrita digital, uma sociedade perfeita. Não é, todavia, isto que confere sensatez à ideia, mas o facto de ela ser completamente adequada ao ser que sou. Ora, o que é uma utopia? Antes de avançar nesse espinhoso caminho de elucidação, é preciso esclarecer que toda utopia é uma ucronia. Sendo assim, uma utopia é uma sociedade que está fora do espaço, como se pode comprovar pela origem da palavra: οὐ+τόπος, em que οὐ significa não e τόπος, lugar. Uma utopia é um não lugar. Toda a verdadeira utopia – pelo menos, aquela que será escrita por mim – é, como disse, uma ucronia, palavra inventada, talvez depois de um almoço, pelo filósofo francês, do século XIX, um século de digestões difíceis, Charles Renouvier. Ucronia, um termo grafado por analogia à utopia, provém também do grego: οὐ+χρόνος, que se pode traduzir por não tempo. Uma utopia é então uma coisa que fora do espaço e do tempo, algo sem lugar nem época. Como se sabe, todas as coisas que existem neste mundo estão no espaço e no tempo, fora deles não há existência. Criar uma utopia, que também é uma ucronia, é criar absolutamente nada, e é essa criação que me convém em absoluto. Do nada que há em mim e do nada que sou, retiro o nada de uma sociedade perfeita.
segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025
Relato de um cérebro
Passei pelo friso das orquídeas e descobri que algumas estão perto da floração. Presumo que seja uma anunciação da Primavera, de uma Primavera temporã. Tem estado pouco frio aqui por casa. A temperatura raramente cai de modo a pôr o aquecimento central a trabalhar. Há uns anos a imperatividade de aquecimento começava pelo S. Martinho, mas nos últimos tempos só entre o Natal e o Ano Novo é que começa a ser necessário aquecer a casa, tornando-se a precisão muito intermitente logo em Fevereiro. As causas disto não as conheço. Talvez a casa esteja menos vulnerável aos frios da rua; talvez os frios da rua sejam menos verrumantes. Não faço ideia porque estou a falar destas coisas. Talvez para provar que a vida, a minha, é feita de trivialidades. Se é assim, então estou a cumprir um papel que Dominique Rabaté, um professor de literatura francesa moderna e contemporânea, vê em alguns escritores: O seu papel não é o do romancista, mas o do escrivão da realidade, garantindo com a sua experiência a veracidade do que relata. É isto que eu sou: um escrivão da realidade. Dito de outro modo, um burocrata da escrita, mas, ao contrário do que diz Rabaté, a minha experiência não garante a veracidade do que relato. Que garantias terá, quem ler isto, que algumas orquídeas estão perto de se abrirem em flor? Que garantias haverá mesmo de que existe aqui um friso de orquídeas, embora escreva sobre ele há anos? Nenhumas. Eu posso ser um escrivão da realidade, um burocrata minucioso da escrita, mas a realidade escapar-se-me sempre e aquilo que eu escrevo ser apenas fruto de uma fantasia. É possível que eu não passe de um cérebro numa tina, que é alimentado quimicamente e constrói imagens, a que chamo realidade, através de impulsos electromagnéticos que estimulam partes desse cérebro, a que me reduzo. Ora, o leitor dirá que essa história do cérebro na tina não passa de uma conhecida experiência de pensamento para fomentar debates de incidência epistemológica ou ontológica. É uma opinião, estimável e informada, mas que não desmente a hipótese de eu não passar de um cérebro numa tina, ligado a um computador que escreve aquilo que aqui está através de impulsos electromagnéticos provenientes daquela massa desagradável que existe dentro da caixa craniana dos seres humanos.
domingo, 9 de fevereiro de 2025
Agir e não agir
Foram-se embora há pouco. Refiro-me às netas, que, durante dois dias, encheram a casa. Agora, tudo está mais vazio e o silêncio que se sente não é benévolo ou inspirador, mas a marca de uma ausência. Depois, tudo vai voltar ao que estava, pois o hábito é uma segunda natureza, e a estadia delas é um rasgão no hábito, uma cesura na segunda natureza, por onde, durantes um instante, é possível recordar uma primeira natureza, mais inquieta e mais irrequieta. O domingo está a caminho do fim, e o horizonte é já o dos dias úteis, embora a utilidade esteja por provar. É nestes momentos, aqueles que antecedem o crepúsculo, que o espírito se abre para uma sabedoria estranha a nós, ocidentais, que andamos desde o século XV a correr atrás de qualquer coisa que nunca sabemos o que é, pois quando pensamos tê-la encontrado, logo descobrimos que há uma outra que vem depois dessa e que é preciso, com urgência, alcançar. Talvez, o problema seja bastante anterior, resida mesmo nos gregos. Aristóteles dividia as ciências entre teóricas e práticas. As primeiras ligavam-se ao conhecimento; as segundas, à acção. Entre estas encontrava-se a Política. Se comprarmos essa tradição com a chinesa, percebemos uma diferença notável. O ideal do soberano não é a acção, mas a não acção. Melhor, o agir não-agindo, a não interferência. Toda a interferência através da acção é já o sinal de uma patologia. É possível que na tradição ocidental também tenha havido um momento em que a acção pela não acção era sinal de sabedoria e forma de ordenar o corpo social, mas ter-se-á perdido. Perdido não apenas na prática quotidiana, mas também na memória. O filósofo alemão, Martin Heidegger, terá vislumbrado essa perda, ao dizer que a filosofia ocidental representa, desde Platão e Aristóteles, um esquecimento do problema do ser. Nesse esquecimento, estará também o esquecimento do agir não-agindo, essa forma suprema de governação de uma comunidade. Coisa que o próprio filósofo não compreendeu ao comprometer-se politicamente com quem se comprometeu, gente pouco recomendável e que fez da acção repugnante a sua forma de estar. Isso, porém, não são contas deste rosário.
sábado, 8 de fevereiro de 2025
Problemas respiratórios
Talvez me devesse tornar um narrador com uma clara orientação sobre as coisas deste mundo. Isso, mesmo que em desacordo com o autor. E qual seria essa orientação? Por certo, seria a de um narrador arcaico aprisionado numa sabedoria antiga, como aquela que se manifesta nas palavras de um xamã, o xamã Pualuna, ao geógrafo e explorador das regiões polares, Jean Malurie: Os inuítes (…) compreenderam que os seres vivos estão interligados e são interdependentes. Nada nos preocupa mais, a nós, inuítes, do que interferir nesta ordem natural. Integremo-nos, pois, respeitosamente nela, sem alterar o seu curso (…). Tudo é respiração. Em resumo, a interdependência de todos os seres vivos, a integração na ordem natural e a ideia de que tudo é respiração, esse movimento cíclico de inspiração e de expiração, entre as quais se intrometem duas pausas. Ora, esta é a ordem natural. Uma inspiração, uma pausa, uma expiração, uma pausa, e assim até ao fim dos tempos. O problema dos nossos dias, aquele que está no fundamento de todos os nossos problemas, é de que inspiração e expiração decidiram entrar em competição, para ver qual delas é dominante. A primeira consequência dessa deriva competitiva é a eliminação das pausas no processo respiratório do mundo. Eliminadas as pausas que separavam e continham nos limites o inspirar e o expirar, estes entraram em guerra. Atropelam-se, tentam conquista o espaço do outro, sonham em eliminá-lo. Ora, isto é péssimo para a respiração do mundo. E se o mundo respira mal, então os homens respiram pior. Daí as epidemias respiratórias. Como narrador, deveria orientar as narrativas que faço neste espaço para a defesa de uma respiração saudável, isto é, tornar-me um inuíte e usar uma daquelas belíssimas máscaras de madeira que é a sua marca. Uma vez por outra, trocaria a máscara inuíte por uma dos caretos de Podence e tornar-me-ia um inuíte lusitano, um xamã de uma tribo perdida, que se manifesta ora aqui, ora ali, ao sabor da respiração. O problema, porém, é que não passo de uma construção de um autor que nada tem de inuíte e não se compraz com caretos, mesmo no Carnaval. Quero dizer: um ser infeliz preso à crendice moderna, alguém que respira desordenadamente, com a inspiração e a expiração trocadas; pois, quando expira o ar entra-lhe para os pulmões e quando inspira, sai-lhe pelas narinas.
sexta-feira, 7 de fevereiro de 2025
Um tempo excepcional
Talvez vivamos tempos excepcionais. É possível que todos os seres humanos pensem assim. O tempo de cada um é, para ele, excepcional, pois é uma excepção do não tempo infinito que lhe caberá. Não estava, porém, a referir-me a essa excepcionalidade, mas a uma outra. Consideremos a afirmação de Aristóteles, na Ética a Nicómaco 1127a29: Nela mesma, a falsidade é uma coisa baixa e repreensível, e a sinceridade uma coisa nobre e digna de elogio. A excepcionalidade do nosso tempo não deriva de a falsidade ter um grande mercado, enquanto o da sinceridade é reduzido. Plausivelmente, sempre terá sido assim. A questão é outra. Trata-se da inversão das avaliações. Parece que vivemos numa época em que a falsidade é vista como coisa nobre e digna de elogio, enquanto a sinceridade é uma coisa baixa e repreensível. A vitória da falsidade sobre a sinceridade não está na sua maior presença, mas no facto de se ter tornado o valor considerado bom por excelência. É o triunfo da comédia – a representação das acções dos homens vulgares ou baixos – sobre a tragédia – a representação da acção dos homens nobres. Quando se ouve a expressão pós-verdade, sabe-se de imediato que se está no tempo da comédia, onde o baixo e repreensível não apenas se tornaram dominantes, como se arvoram em coisas dignas e nobres. Não admira a quantidade de bufões que superintendem os destinos humanos, ou que se candidatam a superintendê-los. Uma certa inocência poderá pensar que será melhor viver num mundo cómico do que num mundo trágico, valerá mais ter razões para rir do que para ter piedade. Essa inocência esquece que os comediantes-em-chefe têm uma tentação irresistível para lançar fogo ao mundo, enquanto riem. A tarde de sexta-feira está a correr apressada para os braços frios da noite. Talvez seja isso que me tenha levado a este texto tão chato quanto o preâmbulo de um decreto-lei, se é que os decretos-leis têm preâmbulos. O processador de texto que uso é um insuportável fiel da doutrina da linguagem correcta. Sublinhou-me a palavra chato. Não vou discutir com ele. Chatice e chato eram palavras inutilizáveis, mas foram adoptadas na linguem mais nobre, um fenómeno semelhante ao da elevação da falsidade à dignidade e à nobreza. Estão de acordo com o espírito do tempo. Uma chatice. Ou uma maçada, se seguir a indicação do processador.