quinta-feira, 14 de março de 2019

Serenidade

Na conversa, depois de almoço, alguém, que nunca vira dado a confidências, diz: tirando uma ou outra paixão amorosa, e mesmo essas de curta duração, nada no mundo me provocou esse estado de efervescência a que se dá o nome de paixão. O vinho não era mau, pensei ao ouvir essa declaração inusitada de serenidade. Não tenho propensão para a febre, acrescentou, e quando ela se torna iminente tomo um antipirético. Não me ocorreu perguntar qual. O início da tarde fazia já pressentir as primeiras florações do tempo quente e talvez isso me tenha feito sorrir da ironia. As paixões são exercícios difíceis, pensei, de consequências muitas vezes funestas. Na rua, passava gente desapaixonada, carros com destino obscuro e um cão vadio. Um pombo pousou no chão e caminhava plácido e tranquilo, batido pelo vento leve vindo da serra. Este desapaixonamento pelas coisas do mundo tem a vantagem de evitar certas calamidades que os corações fervorosas não hesitam em espalhar quando uma causa os abrasa, meditei, enquanto bebia o resto do vinho e a porta abria-se para dar entrada a um casal tocado pelo espírito primaveril.

2 comentários:

  1. Talvez esse alguém estivesse a falar alto para se convencer que estava a dizer a verdade, quem sabe...
    Gosto muito de uma frase, atribuída a Camus (mas não posso garantir), que diz assim:
    "Não ser amado é uma simples pouca sorte. A desgraça é não amar."
    Penso que também se pode aplicar à paixão.
    E ainda bem que o vinho não era mau.

    Maria

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Por vezes, o facto do vinho não ser mau pode salvar muita coisa.

      HV

      Eliminar