domingo, 19 de julho de 2020

As dádivas de Zeus

Troquei de versão do Word. A que tinha vai deixar de receber actualizações e comprei uma recente. Esta irrita-me. Muito, diga-se. Mancomunada com os defensores do Acordo Ortográfico de 1990, sublinha-me como erro todas as palavras portuguesas que foram banidas por arbitrária decisão política. Exceptuando os governos de Portugal, penso que mais ninguém liga ao patético Acordo. Este é uma conjuração contra as consoantes mudas, algumas das quais não são assim tão mudas. Se vivemos num mundo em combate contínuo contra discriminações e perseguições, como é que continuamos a pactuar com a perseguição às consoantes mudas? Os domingos são dias propícios à falta de assunto. Entretanto, uma das minhas netas entrou-me pelo escritório dentro, avô, avô, tenho um furo na bicicleta. Um furo? Um furo. Hoje é domingo, respondi. A oficina está fechada? Está. Noutros tempos, haveria de haver uns remendos tip-top e lá se desmontava a roda e, após uma complexa liturgia, o furo estaria remendado. Hoje a especialização leva a estas situações e a minha alma nunca teve qualquer inclinação para a mecânica. Ela encolheu os ombros. Vou andar de hoverboard. É uma boa ideia, ao menos não há risco de se furar uma roda, respondi. Olhou-me com complacência e foi-se embora. Para amanhã já tenho uma tarefa inadiável. Na nova edição de Poesia Grega, com traduções de Frederico Lourenço, há três fragmentos de poemas de Mimnermo. Em todos se encontra uma lamentação pela velhice e num deles há uma inesperada consideração sobre a igualdade dos homens: Não há ninguém a quem Zeus não dê muitas tristezas. Enquanto forem acordos ortográficos ou um furo na roda dianteira da bicicleta, as coisas não estão más, pensei num momento de optimismo. O Word, impiedoso, assinalou-me como erro optimismo. Talvez o optimismo seja um erro trágico, considerei.

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