sexta-feira, 24 de julho de 2020

As rosas da Piéria

Safo, no poema As rosas da Piéria, lança, talvez sobre alguma amante que a rejeitara, o pior dos anátemas que os ouvidos gregos podiam, naquele tempo, escutar: Morta jazerás e de ti não haverá jamais memória / nem saudade no futuro: pois não participaste das rosas / da Piéria. Ser perdido pela memória dos outros. Não haver quem no futuro de si se lembre. Os séculos edulcoraram a maldição, até a transformar em pura aceitação, como se o esquecimento dos outros fosse o próprio da condição humana. Em muitos, todavia, persiste a revolta. Persegue-os aquilo a que popularmente se chama a mania das grandezas ou o desejo da fama, mas isso não é mais do que o temor de ser esquecido pelo futuro. O colírio para esse mal não era, segundo Safo, um qualquer, mas a participação na vida das musas, as rosas da Piéria. A arte seria assim o resultado de um combate pela memória e a saudade que o futuro teria do artista. A sua ausência e a sua falta seriam sentidas. Dignos de imortalidade, de persistirem na memória dos vindouros, não eram apenas os grandes feitos, mas também as grandes palavras. O melhor seria que aquele que realizasse um grande feito dissesse também grandes palavras, que participasse no convívio com as rosas da Piéria. Gostaria de saber a razão por que me pus com estas elucubrações, enquanto a vida lá fora fervilha e as pessoas caminham para o seu próprio esquecimento. Vão esquecidas de que serão esquecidas. Recordei-me agora de um poema de David Mourão-Ferreira, Ladainha dos Póstumos Natais. Relei-o e soletro baixo para que ninguém me escute: Há-de vir um Natal e será o primeiro / em que terei de novo o Nada a sós comigo. Nem as rosas da Piéria nos salvarão. O fim-de-semana abre-se diante de mim e isso é o mais que posso desejar.

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