O sábado deslizou-me da mão num ápice. Esteve luminoso, mas já se embrulhou num cobertor de cinza e não tarda veste o roupão negro da noite. Se eu fosse o autor destas frases, haveria de pintar a cara de negro. Recordo-me com melancolia do tempo em que as horas subiam e desciam a encosta do dia com um passo tão vagaroso que parecia haver uma suspensão do tempo. Era uma antevisão da eternidade, mas nessa altura a eternidade não me interessava para nada e aquilo que mais queria era que o tempo passasse até àquela hora em que algum prazer, modesto que fosse, esperasse por mim. Pelo acumular de pretéritos imperfeitos do conjuntivo só posso suspeitar que mesmo para um prazer modesto o desejo era grande. Não devia entregar-me a hermenêuticas gramaticais que raramente levam a bom porto. Hoje comprei um bolo-rei, o primeiro da época. Confesso que me tornei desleal ao rei e, por norma, presto vassalagem à rainha, desde que esta saiu do tabuleiro de xadrez para se transformar em bolo de Natal e Ano Novo até aos Reis, mas hoje as rainhas não estavam disponíveis. Muito gente abomina a fruta cristalizada. Eu sei que é uma grande xaropada, mas condescendo com ela e não sinto que, ao comê-la, os parentes sejam arrastados pela lama. Também não devia usar expressões ao gosto popular. Ainda por cima é o segundo não devia que uso. Talvez devesse – mais um pretérito imperfeito do conjuntivo – psicanalisar-me para descobrir o trauma que me leva a repetir o desconsolado não devia.
sábado, 7 de dezembro de 2019
sexta-feira, 6 de dezembro de 2019
Passar para a página seguinte
Crianças de um jardim de infância das redondezas aterraram no parque aqui em baixo. As vozes são agulhas que se espetam pelos ouvidos, até a cabeça explodir. A quietude das tardes de sexta-feira foi imolada ao deus da infância. Como em tudo, também aqui os deuses estão em desacordo. Enquanto o da infância olha com desvelo o burburinho e a verrumante agudeza dos gritos, o da velhice franze o sobrolho e vigia o tumulto com rancor e mal dissimulado ressentimento. Apesar deste ser o melhor dos mundos possíveis, a sua ordem está longe da perfeição. Abro ao acaso um livro e a página pergunta-me, com ar sobranceiro, se as pessoas são responsáveis pelo que fazem. Não sei o que dizer. Se digo que não, serei acusado de irresponsável. Se digo que sim, não faltará quem me chame presunçoso. A solução será passar para a página seguinte e fingir que não se viu qualquer pergunta. As vozes calaram-se, as crianças voltaram para o seu lugar. Na avenida, uma mulher passeia vagarosa um cão. Um carro pára junto à passadeira e outra mulher atravessa-a. Chegada ao outro lado, hesita como se não soubesse o que fazer com o corpo. Decide-se e recomeça a caminhada, presa ao desconforto de ser quem é. Vejo as iluminações de Natal ainda apagadas e lembro-me da tristeza que sobre mim cai sempre que estão acesas. Eu sei que ninguém se interessa pelo Natal, mas as autoridades públicas podiam disfarçar. Logo à noite, terei um jantar natalício. Espero que ninguém se lembre de cantar.
quinta-feira, 5 de dezembro de 2019
Do amor aos adjectivos
A manhã desceu não sem ímpeto a escadaria em direcção aos arrabaldes da tarde. Nos dias em que o Outono se vai desfazendo das suas folhas mortas e o Inverno assoma impante no horizonte, a fronteira que separa a manhã e a tarde torna-se mais porosa, contaminando-se uma à outra, deixando-me sem saber a quantas ando. Num dos jornais de hoje, uma escritora afirma que os adjectivos não servem para nada. Fico pesaroso por eles, pela desconsideração e vexame públicos que assim os atinge. Poderia perguntar quem, se não os adjectivos, há-de, por exemplo, qualificar e determinar o pobre do substantivo, mas não pergunto. Já não sei onde, Roland Barthes diz que se usa o adjectivo agradável quando não se quer dizer nada. Como foi a nossa noite de amor, pergunta ele e ela responde, hum… agradável, agradável. É para isto que servem os adjectivos. Que achas do meu texto? Magnífico, se possível com ponto de exclamação, responde-se. Isto é uma qualificação do texto? Não, é apenas a forma que temos para não dizer nada. Usar adjectivos – e não apenas o agradável – é de uma grande utilidade, pois a maior parte das vezes não temos nada para dizer ou temos e não o queremos fazer. O adjectivo é um indício de uma civilização superior que utiliza a qualificação para ostentar o silêncio. No horizonte, nuvens esbranquiçadas toldam o azul dos céus. A tarde, depois de garrotear a manhã, chegou ameaçadora. Estou por conta da ameaça. Não posso dizer que seja agradável.
quarta-feira, 4 de dezembro de 2019
O esplendor de um dia de Inverno
Não há dias mais gloriosos que os frios banhados pelo sol.
Olho para a frase e lembro-me de um poema de Eugénio de Andrade que começa
assim Obedecem-me agora muito menos, / as palavras. Penso na sorte que ele teve
por ter havido um tempo em que elas lhe acataram as ordens. A mim sempre
recusaram submissão, talvez por falta de talento para usar nelas a rédea ou
o chicote. Ocorreu-me agora um dito de Nietzsche sobre a necessidade de levar o
chicote, mas recuso-me a partilhá-lo não vá ofender a sensibilidade da época.
Também é possível que a máxima do filósofo alemão não quisesse dizer nada, nem
aquilo que nela está dito nem aquilo que nela se subentende. Seria apenas o
esplendor de um dia de Inverno em que a neve cintila sob a luz impiedosa do
sol, um exercício de pirotecnia para semear o céu com fogos-fátuos e a terra
com invólucros destroçados pelo rebentar da pólvora. Passa-me pela cabeça que
não se deve confiar em filósofos, principalmente se são alemães, mas também
devo abjurar este pensamento, tão pouco ao gosto dos dias que correm. Como eu
quereria dizer se frequentas as palavras, não esqueças o chicote. Não o digo,
pois não foi a vocação de domador aquela que os deuses depositaram nas volutas
do meu código genético.
terça-feira, 3 de dezembro de 2019
Cair em tentação
Não sei como nem porquê, a toranja tornou-se aqui em casa um
bem de primeira necessidade. Há pessoas para tudo e até para uma coisa dessas.
Tendo-se acabado as que havia, fui ao hipermercado aqui ao lado em busca do
santo graal, não propriamente o cálice sagrado onde José de Arimateia recolheu
o sangue de Cristo, mas dos frutos amargos que dão um excelente sumo para
começar o dia. Ainda dentro da superfície comercial, não resisti a passar pela
zona dos vinhos. Trazia o cálice e o sangue. O pior foi ao sair. Um cheiro a
farturas atropelou-me. De saco de compras na mão, como um sonâmbulo, lá me
encaminhei para a roulotte. No
caminho, murmurava não me deixes cair em tentação, não me deixes cair em
tentação, olha a balança. Ninguém me ouviu, ninguém quis saber da balança, nem
do colesterol, nem da saúde, nem me quis aliviar da tentação. Eu também não.
Uma fartura. É assim que o mundo se perde. Vem a serpente, tenta uma pessoa, o
cãozinho pavloviano que há em nós saliva e o mal está consumado. Talvez o sumo
de toranja compense. Há que não perder a fé.
Há que desconfiar
Todos os dias alteio mais um pouco o muro que me rodeia.
Fecho-me lentamente ao mundo, cubro com cimento as fendas na muralha,
certifico-me da qualidade do isolamento sonoro. Ainda não é perfeito, mas a
perfeição não é coisa que se consiga de um dia para o outro. Ponho-me a
imaginar que o que sou é apenas o resultado de um programa genético. Uma bela
desculpa para a minha falência, embora tenha o inconveniente de rasurar algum
pequeno mérito que possa, aqui ou ali, ter tido. A última coisa que quero neste
momento é uma meditação sobre o livre-arbítrio. Estava a falar do software que me faz ser o que sou e este
parece que me conduz a um inexorável isolamento. Nos dias em que estou de humor
benigno digo que deveria ter entrado para um convento, daqueles mais rigorosos,
para a trapa ou para a cartuxa. Riem-se do dislate e ninguém acredita. Eu
também não, mas lentamente vou construindo a minha cartuxa, limpando-a do incómodo
que a presença do mundo traz e entregando-me a um silêncio cada vez mais
espesso. Falta-me o talento para a oração e há no mundo algumas coisas que
ainda fazem cintilar os meus olhos, mas até isso pode ser um exagero. Há que
desconfiar de tudo, principalmente de mim mesmo.
segunda-feira, 2 de dezembro de 2019
Da possibilidade da perfeição
Vinha aqui dissertar sobre a imperfeição e a identidade entre o ontem e o amanhã, mas a quem podem interessar coisas como essas? Há pessoas, cruzo-me com elas todos os dias, que aderem de tal modo à realidade que chegam a parecer reais. Há muito que desisti da minha realidade e até da minha aparência. Como se vê é muito fácil dizer coisas sem sentido. Difícil é encontrar alguma com sentido para dizer. Fará sentido afirmar que lá em baixo um bando de adolescentes se alarga na efusão dos sentimentos contaminado pela efervescência das hormonas? Sobre a espécie humana, as árvores apresentam uma vantagem desmedida. São silenciosas e nos dias de sol projectam uma sombra benfazeja. Li um romance em que a personagem central se transformava numa árvore. Parece bizarro, mas nessa transformação há mais sabedoria do que nas vãs pretensões que alimentam a mente dos homens. Enraizar-se na terra, estender-se para o céu e fazer um voto de silêncio para a vida. Talvez a perfeição não seja impossível.
domingo, 1 de dezembro de 2019
Dia da defenestração
Faz hoje anos que os Braganças substituíram os Filipes no
trono de Portugal. Por muito que goste de Espanha, e gosto muito, dá-me sempre
uma boa disposição particular o facto de não ser espanhol. Depois há aquele
pormenor insidioso da defenestração do Miguel de Vasconcelos. A política tem
destas coisas, uma certa tendência para o exagero e para actos irreversíveis. Ia
contar que a execução do colaborador dos espanhóis – supremo símbolo do traidor
em Portugal – tinha sido o primeiro assassinato político de que tinha
consciência. Seria uma mentira e embora seja obrigado a mentir muitas vezes
nestes textos não o faço de propósito. O primeiro foi o de John Kennedy e ainda
recordo o meu pai a comentar o assunto com a minha mãe. O caso do Vasconcelos,
narrado numa aula da escola primária por um professor ou professora patriota,
ficou preso à imaginação pela palavra e pelo modus operandi. Não era todos os dias que se ouvia uma palavra como
defenestrar, ainda por cima aplicada a alguém que não só não merecia ir para o
céu como todo o castigo aplicado era pouco. Não se pense que falar do céu é
coisa despropositada. Lembro-me muito bem, na sequência das aulas de história
recebidas naqueles tempos em que a razão não tinha sido contaminada pelo vírus
da crítica, de ter pensado como era bom pertencer a um povo cujos governantes e
personagens históricas eram não apenas grandes heróis como pessoas
particularmente santas. Deviam estar todas na glória de Deus. Talvez o feriado
de 1 de Dezembro sirva para assinalar o caso do único português que pela sua
aleivosia foi atirado pela janela e só parou de cair quando Satanás o apanhou e
o levou para o reino dos infernos. Ainda hoje dou comigo a pensar que as nossas
elites se já não são heróicas, os tempos não estão propícios para a coragem, continuam
firmes no caminho da santidade. Pelo menos, não tem havido defenestrações.
sábado, 30 de novembro de 2019
Disposição para a culpa
No lugar onde me encontro neste momento chove de mansinho,
uma água hesitante, como se as nuvens se sentissem culpadas de molharem quem
passa, mas a culpa não fosse suficientemente forte para se conterem. É isto que
também se passa com as acções dos homens. Se eu fosse uma pessoa decente e
moderna diria acções dos homens e das mulheres, mas sou anacrónico, certo tipo
de decências passam-me ao lado e se cultivo a anáfora tento evitar a
redundância. Como as nuvens, também eu não consegui conter-me e deixei que o
fel impregnasse a malfadada prosa e me desviasse daquilo que queria dizer. As
más acções humanas nascem muitas vezes duma hesitação trazida por um sentimento
de culpa não suficientemente treinado e vigoroso. Uma boa educação deveria
começar por incrustar bem fundo na alma a disposição para a culpa. O autor
destas palavras, ao pô-las na minha boca, não tem qualquer consideração por
mim. Que Deus lhe perdoe. A chuva não pára, as pessoas passam alheadas, chapéu
aberto, e não tarda tenho de pôr-me a caminho. O que vale é que não me esqueci
do guarda-chuva.
sexta-feira, 29 de novembro de 2019
Os lírios do campo
A sexta-feira progride entre o cinzento dos céus e a
tristeza da cidade. Há sempre neste dia da semana um pathos que, contra o que seria de esperar, faz descer nos corações
um véu de melancolia, como se o desejado fim-de-semana fosse mais uma ameaça
pela sua transitoriedade que um motivo de júbilo pela sua existência. Somos
difíceis de contentar. Talvez exista uma memória histórica que se tenha
entranhado no nosso código genético e que dispara, sem que se saiba porquê,
estes estados de alma. Li que hoje em dia os seres humanos livres trabalham
muito mais que os servos da Idade Média. Eu sei que todo o fulgor que nos
rodeia, essa possibilidade de fazer compras sem fim, de não perder qualquer
promoção, de nos atafulharmos de tudo o que não precisamos, eu sei, dizia, que
isso exige muito trabalho, que devemos estar sempre mobilizados para a grande
batalha produtiva. E depois lembro-me que os lírios do campo não trabalham nem
fiam, mas que Salomão em toda a sua glória nunca se vestiu como qualquer um
deles. Temo que a educação religiosa que recebi me tornou completamente
desadequado ao mundo onde sobrevivo. Ou talvez eu fosse já desadequado e que a
educação recebida, a que não dei a sequência que era desejada, me sirva de
desculpa. São ínvios os caminhos do Senhor.
quinta-feira, 28 de novembro de 2019
O caso do santo que não faz milagres
À tarde um acaso profissional levou-me a pensar em Perry Mason e Paul Drake. Não me esqueci, claro, de Della Street. Há muitos anos que não convivo com estas pessoas, mas houve uma altura em que a sua companhia foi para mim fonte de grande prazer. Pensei em Mason e Drake porque necessitava dos seus serviços para uma das tarefas que a existência me impõe. Foi um pensamento instrumental, confesso. Talvez eles possam ajudar-me a resolver o caso do santo que não faz milagres. Sei que estou a tornar-me obscuro, mas a vida também é feita de obscuridades. Quem seja o santo e que milagres queria eu dele, não vem agora à colação. De Della Street lembro-me da imutabilidade da sua aparência, de nunca se aventurar na casa dos trinta anos e da eficiência e fidelidade profissionais. Talvez numa parte recôndita da minha alma habitasse, naquele tempo, um fraquinho por ela. Tudo é possível, pois são mais as coisas que não sabemos que aquelas que sabemos. Estas são as cogitações que me obrigam a pensar, muitas vezes contra a minha vontade, mas quando se é o produto da imaginação doentia de um déspota não é de esperar outra coisa. Se soubesse onde é que guardei o número do escritório do Mason, ainda lhe ligava hoje.
quarta-feira, 27 de novembro de 2019
Um belo livro
Tenho entre mãos o belíssimo livro de poesia de Ana Luísa
Amaral, Ágora. Comprei-o há pouco e
ainda não tive tempo para ler qualquer poema, mas a beleza do objecto, antes
que a do espírito se manifeste, vem-lhe do corpo. Uma edição de capa dura, onde
se reproduz a pintura Jacob lutando com o
anjo, de Bartholomeus Breenbergh, nascido
em Utreque no ano de 1598. Cada poema é acompanhado pela reprodução de um
quadro. Num deles, de Georges de La Tour, vê-se uma Madalena penitente, e todo
o livro é um jogo de diluição de fronteiras ou de contaminação. A tarde parecia
propícia para a leitura. Hoje não houve até agora ensaio do grupo de baile da
escola aqui ao lado, mas um aspirador ruidoso teima em assegurar o asseio de um
dos apartamentos do prédio. Também nas instalações da antiga agência bancária,
prossegue uma batucada sem ritmo, que se repercute nas paredes e desagua em
mim. Folheio o livro com cuidado e vejo as pinturas. Há duas Salomés, mas o que
me prende os olhos é uma reprodução de Ecce
Ancilla Domini, de Dante Gabriel Rossetti. Ali vejo tudo o que há de
feminino numa mulher, mas esta minha frase precisa de ser censurada, pois os
dias não correm de feição a considerações metafísicas. Enquanto a tarde desliza
brandamente sob um céu mesclado de azul e cinza, eu fico a olhar com demora a
escrava do Senhor. Afinal, o grupo de baile sempre tem direito ao seu ensaio.
terça-feira, 26 de novembro de 2019
Submetidos à irmandade
Gostaria muito de crer que a proposição “os pinguins são
seres humanos” é verdadeira, como me afiançaram talvez por desfaçatez ou distracção.
Nunca se sabe o que move os indivíduos pertencentes à nossa espécie. Apesar do
meu esforço em torcer a consciência, tive de me declarar incrédulo. Não ser
crente num mundo como aquele que frequento para obstar à maldita necessidade é
errado e começa a ser perigoso. A minha realidade existencial é superintendida
por uma espécie particular de teólogos. Estes têm por divisa o quanto mais
absurdas forem as nossas crenças com mais empenho as devemos impor. Fazem-no
com denodo e sem cansaço. Com o passar dos anos a produção teológica tornou-se
exorbitante e não se observa nenhum sinal de abrandamento. A matéria de fé é
tão extensa e a dogmática tão hiperbólica que é impossível que qualquer um dos
superentendidos pela irmandade não seja numa qualquer altura um verdadeiro
heresiarca. Como todos sabemos, os heresiarcas não costumam ter um bom destino,
e talvez seja por isso que aqueles que como eu se submetem à irmandade tenham
sempre a consciência pesada. Não por um qualquer pecado capital, mas por sustentarem
por palavras e acções uma qualquer heresia da qual não têm consciência. Já
pensei estabelecer uma correlação entre o tipo de textos que escrevo e os dias
da semana. Talvez se mostrasse que as terças-feiras não são especialmente
propícias para escrever coisas com nexo. Fico por aqui, pois espera-me uma
tarefa sem a qual o mundo ficaria bem pior.
segunda-feira, 25 de novembro de 2019
Versão free
Avariou-se o termóstato da caldeira. Pressuroso, fui à
etiqueta colada ao dispositivo para ver o número de telemóvel de quem cuida
destas coisas, uma empresa familiar. Queria falar para o filho, mas digitei o
número do pai que estava na linha de cima. Apareceu uma senhora que não era a
mãe, nada sabia de termóstatos e muito menos de caldeiras. Depois de me
desculpar, pensei que não estava mal. Dois erros numa única tarefa, das mais
simples que se pode atribuir a alguém. Se pudesse despedia-me a mim mesmo e
substituía-me por uma versão melhorada, que se enganasse menos ou visse melhor.
Temo, porém, que nem numa versão premium,
daquelas pagas e renováveis ano a ano, o serviço estaria ao nível desejado.
Pensando bem fico-me pela versão gratuita ou para parecer cosmopolita,
coisa que não sou, pela free. Não é
grande coisa mas tem a vantagem de
contribuir para a poupança nacional.
domingo, 24 de novembro de 2019
Neblinas e inacabamentos
O domingo nasceu coberto de neblina. O hospital é apenas um esboço suave perdido numa planície de cinza e o arvoredo da escola ao fundo parece uma cortina de pano escuro suspensa de um tecto indeciso. Os pombos rasgam o céu de penumbra, abrindo pequenas fendas por onde brota mais e mais neblina. Um corvo perdido na paisagem urbana funde-se na névoa e tudo é quietude e silêncio. O café da praceta aqui ao lado está fechado e as crianças que costumam ocupar o parque infantil desertaram, levadas pelos pais para lugares menos húmidos. Estou aqui sentado a enrolar palavras como quem enrola tabaco para se entregar ao prazer de o queimar. Também todas as minhas palavras têm como destino arder, dissolver-se em fumo e mostrar que nelas nada há. Daqui a pouco o meu neto será baptizado e talvez isso mude a sua vida. A minha teria sido muito diferente caso não tivesse sido levado à pia baptismal? O hospital acabou de desaparecer. Agora só vejo um prédio erguido num descampado que uma qualquer crise não deixou acabar. Aquele prédio não é mais que a imagem da vida, um exercício inacabado que dura até que a última crise consagra o inacabamento definitivo. Talvez um dia fale aqui de uma carta que Max Weber dirigiu à viúva de um amigo acabado de morrer. Talvez.
sábado, 23 de novembro de 2019
Encontro com o mordomo
Hoje tive, logo pela manhã, um novo desentendimento com a balança. Mais trezentos gramas que no sábado passado. Depois de uma semana inteira de intensa meditação transcendental e de recitações do mantra sagrado e as coisas estão piores. Só pode ser da pilha, pensei. O mais assisado é mudar-lhe a fonte de energia. E foi com estes pensamentos que saí de casa. No café que, uma vez por outra, me acolhe, alguém, voltando-se para mim, diz bom dia. Havia por certo no meu rosto um sinal de perplexidade, pois ouço-o dizer então não me conhece? E sem deixar-me responder, acrescentou sou o mordomo. Ainda há dias falou de mim. Claro, era o mordomo. Deixei a cozinheira de lado e perguntei-lhe pela duquesa. É espanhola, respondeu-me. Não sabia. Sim, continuou, muito próxima do Rei. Ao ver o ricto que se me desenhou na face, riu-se com duas gargalhadas sonoras. Você é um patriota, mas não se preocupe, o Filipe está muito ocupado com a Catalunha que não tem tempo para pensar em invadir Portugal. Essa coisa dos Filipes foi há muito e a traição dos Braganças já foi vingada. Além disso esses eram Habsburgos e este é Bourbon, disse ele com entoação castelhana. Pensei perguntar-lhe o que fazia ali, mas evitei dar-lhe oportunidade à confissão. Declarei que um dia gostaria de conhecer a duquesa, embora estivesse mais interessado na cozinheira, o que omiti. Como despedida perguntei-lhe se ele se lembrava da frase de Talleyrand sobre os Bourbons, ao que respondeu que era um simples mordomo. Eu sorri da vitória e saí. O sábado começou mal, mas compôs-se.
sexta-feira, 22 de novembro de 2019
A aceleração do tempo
As minhas sextas-feiras estão longe da perfeição. Começam
com uma lentidão exasperante, com os segundos a arrastarem-se trôpegos e
indecisos pelo caminho, quase incapazes de se transformarem em minutos,
evitando o mais que podem que estes se combinem em horas, ronceiros a fazer
gala na indolência, madraços subjugados ao pecado mortal da preguiça. Imagino
que por virtude de um almoço revigorante, chegada a tarde, esses mesmos
segundos são tomados por uma louca azáfama e dão em acelerar pela pista fora,
como se tivessem por missão conquistar a pole
position e saírem na frente da corrida. Nada lhes tolhe as pernas e quanto
maior é a presteza com que passam, mais rápido se movem. Chegada a noite, cada
minuto passa à velocidade de um segundo e não há sinalização de trânsito nem
radar que os leve a amolecer o ímpeto. Se eu fosse um homem de engenho,
apunhalava uns tantos, deixando-os a sangrar para que os outros segundos os
vissem com olhos de ver e tomassem tento, aprendendo com Zenão e tornando-se em
verdadeiros Aquiles que nunca hão-de alcançar a vagarosa tartaruga. Falta-me veia para executor e, dir-me-ão, arte para encontrar motivo para escrever
coisas decentes, que animem o mundo ou edifiquem as gentes para que estas não entrem
no caminho da perdição. Muitas são as vias que nos levam à loucura, umas mais
lentas outras mais rápidas. Haverei de lá chegar.
quinta-feira, 21 de novembro de 2019
Moral da história
Estava a ler uma pequena história que metia um mordomo e uma cozinheira. Histórias destas são sempre edificantes, mas não a vou contar, pois falta-me talento para pregador. O mais que posso desejar é que um e outro possam prosseguir tranquilos a vida dentro da história, que esta cresça e se torne primeiro numa novela e, depois, num grande romance. Aqui, porém, a realidade torna-se complexa e pode acontecer que o mordomo de passagem pela cozinha e ao ver a faca da cozinheira se sinta inclinado ou a matá-la, ao sentir-se traído pelo motorista, ou a suicidar-se, cansado de esperar o amor da proprietária da faca. Nessa altura o leitor fica confuso, pois não sabe se a faca pertence à cozinheira ou se é propriedade da duquesa para quem a cozinheira dá o melhor dos seus talentos. E uma nova perturbação é introduzida com esta última frase, pois não fica claro que talentos oferece à duquesa a sua cozinheira, pois esta pode ser pessoa de engenho e que sirva na cozinha e noutros lugares do palácio, que por pudor, não me atrevo a especificar. O mais certo, porém, é que o mordomo evite a cozinha, não veja a faca e à falta do objecto não se desencadeie nele a pulsão de morte, o que seria de lamentar. Sempre gostava de saber, por mórbida curiosidade, quem é que anda a dormir com quem e que relações há entre a duquesa e o pessoal que dela cuida, para poder extrair uma moral para história e vir aqui fazer grande pregação.
quarta-feira, 20 de novembro de 2019
Inclinação para o plágio
Hoje enrolei o dia com o manto das coisas inúteis. A frase é pretensiosa, mas não me ocorreu melhor início para este diário. Quanto mais inúteis são elas, mais merecem aplauso e consideração. Não estou a protestar contra a ordem da natureza, mas a sublinhar que é assim. Já não tenho idade para me revoltar contra a realidade, até porque ela não deixaria de ser o que é, por mais que eu reclamasse. Este é o melhor dos mundos possíveis e as coisas estão sabiamente ordenadas. Contrariam os meus desejos, desmentem as minhas crenças, riem-se das minhas convicções. Não fosse assim, o mundo não seria mais que a projecção do caos que me habita. Não sei se estas filosofices que me saem dos dedos – e não da razão, pois a minha já teve melhores dias – se devem ao culto do inútil a que me ative todo o dia ou se à sanha esburacadora com que o homem do berbequim eléctrico enfrenta a dureza das paredes naquele sítio que já foi uma agência bancária. Tenho a secretária cheia de livros, mas não se pense que é por avidez de leitura. Estão desarrumados, esperam que tenha piedade deles e os ponha nos seus devidos lugares. Sobre o homem do berbequim têm a infinita vantagem de não fazerem barulho e, se os interrogo sobre o que está neles, mantêm-se mudos. Esta é a segunda citação filosófica não identificada que faço. Ainda sou acusado de plágio. Na escola aqui do lado, o grupo de baile continua perdido no seu Brideshead. Acho que tenho de ir mostrar a garganta à médica. Aposto que um dos dois não vai cumprir o horário.
terça-feira, 19 de novembro de 2019
Da imperfeição do mundo
Um brruuum contínuo
está apostado em estragar-me os poucos momentos que tenho para aqui estar. Decorrem
obras no lugar onde existia uma agência bancária que, tomada de inquietação, se
cansou de estar onde estava, no rés-do-chão deste prédio. O cansaço dos bancos
nunca é coisa que tenha bons resultados. Em vez de haver lá por baixo pessoas
com ar grave a tratar de negócios em surdina, temos gente armada de berbequim que
fez uma promessa de propagar dores de cabeça pelo prédio inteiro. O mundo nunca
se cansa de nos fazer reparar na sua imperfeição. O brruuum persiste e mistura-se com o som de um alarme, os latidos de
um cão e os gritos de adolescentes que correm à chuva. Não tarda e há-de passar
uma ambulância com a sirene a multiplicar aflição. A realidade não passa de um
concerto, embora os nossos ouvidos nem sempre estejam preparados para a
musicalidade que dela nasce. Olho para a rua e as árvores estão imóveis, estátuas
vivas de deuses cujos nomes esquecemos. Terei de sair e talvez quando voltar o
silêncio tenha regressado. A esperança não deixa de ser uma virtude, apesar de alguém
ter confundido as paredes com um bombo, em que bate numa cadência descuidada e
irritadiça. Uma ópera.
segunda-feira, 18 de novembro de 2019
Vou espirrar
Uma das acácias que ainda há poucos dias mostrava a folhagem de um verde exuberante deixa agora ver os primeiros assaltos do amarelo. Só a terceira resiste. Que não amareleçam as três ao mesmo tempo, elas que estão tão próximas, é um enigma ou, para ser mais exacto, a prova da minha ignorância acerca do mundo vegetal. Parece que me constipei. Entrego-me ao ritual dos espirros como quem está numa cerimónia religiosa. Devoto e compungido. Os dias continuam a encolher devorados pelas trevas da noite. É pena que já não temamos a possibilidade do Sol desaparecer e sintamos pleno júbilo no momento em que a luz vence as trevas e os dias vão-se tornando maiores. Havia grandeza no temor e no júbilo, como se o futuro nunca estivesse garantido e fosse preciso propiciar as forças ocultas para que elas não nos arrastassem sabe-se lá para onde. Isto, porém, sou eu a falar comigo, levado pela minha tentação de anacronismo, uma doença grave no dizer dos profetas do progresso e do futuro, os quais não sabem que o único futuro que nos espera é a morte. Não estou tétrico, mas acordei com pouca paciência para os anunciadores de futuros risonhos, frades pregadores da felicidade e comerciantes da auto-ajuda. Vou espirrar, o que vale é que tenho um lenço à mão.
domingo, 17 de novembro de 2019
A minha bipolaridade
Segundo opiniões escutadas aqui e ali, consta que sofro de bipolaridade. Umas vezes pareço leve e irónico e outras que transporto em mim toda a escuridão disponível no mercado dos lutos. Aquilo que sou, eu que não passo de um ser virtual, pois nem sequer de papel é a minha natureza, devo-o ao autor destas palavras, que manipula o meu ser, fazendo-me à sua vontade, mas talvez não à sua imagem e semelhança. Ele não é Deus, por muito que isso lhe possa doer. Se vejo o mundo como um dia escuro e tempestuoso, uma sexta-feira santa, ou se me entrego ao júbilo de um domingo de Páscoa, isso está para além da minha vontade. Todos os meus exageros, todas os meus esgares, todo o riso sardónico que ostento, nada disso sendo meu me pertence. Sofro-o sem possibilidade de lhe fugir. Um raio de luz fende as nuvens e abre-se com um sorriso triste sobre o casario, logo em mim se esboça uma alegria, não porque eu seja alegre, mas porque aquele que escreve quer que o seja por instantes. Lá fora passa um cão e eu sinto-me irmanado com ele, pois a realidade do animal não é maior nem menor que a minha. O pior é a tosse, se tivesse uns rebuçados peitorais Dr. Bayard seria mais fácil.
sábado, 16 de novembro de 2019
Balanças incrédulas
Guardo para os sábados, ao levantar-me, um ritual que não
aconselho a ninguém. Ponho-me em cima da balança e vejo o veredicto. Hoje não
foi diferente. A julgadora, amante de hipérboles, concedeu-me uns números
excessivos, que não lhe asseguram a meus olhos qualquer credibilidade. Saí de
cima dela, respirei fundo e dei-lhe uns segundos para repensar a mensagem que
me queria transmitir. Voltei ao rito, ela, contudo, também cultiva a anáfora e
devolveu-me o mesmo peso. Tudo isto é inexplicável. Há três semanas que sigo um
programa rigoroso de emagrecimento e nada. Todos os dias sento-me tranquilo e
apaziguado e dedico vinte minutos a uma profunda meditação transcendental,
seguida de cinquenta recitações do mantra Om
Mani Padme Hum e, no fim de cada uma, projecto no universo a minha imagem
sem barriga e outras adiposidades que não vêm ao caso. A balança, na sua
essência digital, não se comove. Estou arrependido de a ter comprado, mancomunada
que está com a interpretação científica do mundo, pouco dada à espiritualidade.
Se ela não se arrepende e converte substituo-a por uma analógica, que não há-de
ter aqueles inconvenientes que Heidegger aponta à técnica moderna. Oiço uma voz
insidiosa a exclamar e que tal fazer exercício. Atónito, nem consigo perceber
se foi alguém que falou ou se a minha consciência adquiriu alforria e pensa que
deve ser o meu personal trainer. Digo
silêncio, sento-me e a partir de agora serão trinta minutos de meditação
transcendental e cem recitações do mantra sagrado. Hei-de chegar ao peso dos vinte
anos.
sexta-feira, 15 de novembro de 2019
Ser apócrifo
Entre o original que foi concebido e o que sou vai uma grande distância. Não passo de uma falsificação de mim mesmo, um exercício de apocrifia, como aqueles evangelhos onde Cristo se excede em actos e revelações mas que a Igreja nega-se a reconhecer. Estão lá coisas interessantes, a verdade, porém, está noutro lado. Como todas as pessoas, também gostava de ser o eu autêntico, mas chegado a sexta-feira à noite descubro que não passo de um apócrifo. Vieram os dias frios e isso consola-me. Imagino estar sentado à lareira, com um gato ao pé, a fumar cachimbo, enquanto o lume crepita e o tempo passa a caminho da Primavera. É o meu lado de contrafacção, aliás o único que tenho. A casa não tem lareira, eu não tenho gato nem fumo e o crepitar da lenha no lume não me comove. Quando era adolescente imaginava-me piloto de fórmula 1 e talvez essa tenha sido a única coisa em que me imaginei, embora por escasso tempo. Hoje conduzo resignado e não tenho paciência para saber de carros. Só espero não me enganar na via quando entro para uma auto-estrada. A vida não passa de um conjunto de foras-de-jogo e penaltis falhados.
quinta-feira, 14 de novembro de 2019
Da bastardia das acácias
Há pouco desesperei do meu talento de taxinomista (quando escrevo esta palavra penso sempre em taxidermista). Tinha classificado duas árvores que vejo daqui como acácias bastardas. Ter chegado a essa categorização não foi para mim, possuidor de uma ignorância generalizada sobre tudo o que é flora, um exercício fácil. Hoje ao olhar para as árvores lembrei-me que essas acácias são de folha caduca e elas, com Novembro já meio vazio, estão de um verde contumaz. Se são de folha persistente, então não são acácias vítimas de bastardia. Logo veio a ironia fácil e pensei que terão nascido dentro do casamento e são legítimas. Levantei-me, fui à janela para as olhar com mais atenção e tentar perceber mais uma vez o formato da folha. Nesse momento fui salvo. Ao lado das duas está uma irmã, que não via da secretária, já com a folhagem amarela, prenunciando a caducidade das folhas. São-me ocultas as razões que terão levado uma a amarelecer mais depressa que as outras. O meu mundo reduz-se a cada dia que passa. Chove, venta, os astros e os humores andam indispostos e eu penso em coisas tão importantes como a bastardia das acácias, a caducidade das folhas, a caducidade de tudo o que penso, a minha caducidade inexorável. Teria sido mais sensato ter-me dedicado à taxidermia, mas agora é tarde.
quarta-feira, 13 de novembro de 2019
Ida à lavandaria
Saí para ir buscar uns livros à lavandaria. Os tempos
modernos são assim. Encomendam-se livros online,
escolhe-se um sítio onde se podem ir buscar e vai-se lá levantá-los. Antes de
termos atingido este grau de modernidade, íamos aos correios e cumpríamos um
denso e complicado ritual até termos na mão aquilo que era nosso. Agora, neste
tempo em que tudo foi dessacralizado, pode-se fazê-lo na lavandaria ao lado de
casa, o que é uma vantagem muito grande. Ficamos certos de que os livros vêm
lavados e engomados, prontos a vestir. Também é verdade que já ninguém põe goma
na roupa, mas tenho uma certa inclinação para o anacronismo. Quando saí com a
encomenda debaixo do braço, a noite tinha caído e na rua havia já vestígios do
frio que a partir de amanhã há-de vir da serra para cair sobre os incautos
transeuntes. Pego nos livros, cheiro-os, sinto o aroma a asseado. Para ser
sincero, dois deles têm um papel reles e é possível que não aguentem muitas idas
à máquina de lavar. Quando o mundo começa a trocar as categorias, quando tudo
parece fora dos eixos, não sou eu que tenho a sorte maldita de ter de o endireitar. Não há nada como acabar com uma citação de Shakespeare e assim
encobrir a funda ignorância que me acomete.
terça-feira, 12 de novembro de 2019
Shift+F7
Chega-se a terça-feira e tudo está perdido. Nessas alturas, tomado por um desvario, quase acredito que seria óptimo crer no bom selvagem, mas logo penso que me falta tempo para conviver com a prolixidade do senhor Rousseau e passo à frente. Da janela avisto um bando de adolescentes. Não disfarçam o selvagem, mas esquivam-se a mostrar a bondade. Já estão corrompidos pelo processo civilizacional, admito. Agora deixo mesmo o genebrino em paz. Tenho uns documentos para concluir, mas sempre convivi não sem beatitude com a procrastinação. Alguém me segreda não guardes para amanhã o que podes fazer hoje. Ah essas memórias vindas do passado são insolências que se intrometem para impedir uma vida feliz. Também o thesaurus do word deu em protelar. Com a palavra a substituir seleccionada, bem carrego no Shif+F7, mas nada se move, deixando-me desolado na minha ânsia de trocar o vocábulo amaldiçoado. Se pudesse também me seleccionava, carregava em Shift+F7 e ficaria à espera de um sinónimo que me servisse melhor do que o original, mas nem para isso estou apto. O céu está cinzento, respiro devagar e vejo o tempo a escorrer. Pressinto a glória do futuro, esse momento em que estaremos todos mortos, e rio como se riem os loucos.
segunda-feira, 11 de novembro de 2019
Zé ninguém
Acordei com uma ideia que não me abandonou até agora. Não há grandeza maior do que ser nada, não ter nome, ser ninguém. Terá sido um mau sonho ou terei acordado com os pés de fora. Ao ouvir a algaravia vinda da rua, rio-me da ideia ou de mim, que não serei mais que uma ideia. Toda a gente quer ser alguma coisa, até o maior dos colectivistas ama a colectividade para lhe impor o seu nome. Se a vida fosse uma cartuxa ou uma trapa, haveria menos ruído e qualquer zé ninguém não seria mais nem menos que um zé ninguém. De súbito, descubro que num mundo onde toda a gente é alguém o melhor é ser um zé ninguém. Por vezes, sou levado a dizer coisas com que não concordo, mas não está nas minhas mãos ser dono das palavras que escrevo. Poderia acabar com uma injunção bíblica do tipo quem tiver ouvidos, oiça!, mas não acabo, pois ainda não é chegado o tempo.
domingo, 10 de novembro de 2019
Nostalgia de domingo à tarde
Há pouco tive de passar por um dos supermercados de origem alemã que existem por aqui. Fiquei espantado com a quantidade de pessoas que falavam uma língua que não sei se era russo ou ucraniano. É possível que uns falassem uma e outros, a outra, mas aos meus ouvidos a musicalidade era a mesma. Imaginei que combinassem encontrar-se num sítio daqueles para sentirem estar perto do lugar onde nasceram, criando por instantes uma ilusão que lhes suavizasse a nostalgia das terras do norte. Talvez fosse apenas um mero acaso, irrepetível, fruto do dia triste e chuvoso que desabou sobre a cidade. Os domingos são sempre tristes nas pequenas cidades de província. E ao dizer isto também eu fui tocado pela nostalgia do tempo em que esta cidade era uma vila. Essa designação era justa e nela havia uma nobreza reforçada pela história. Se eu vivesse agora nas terras frias da Ucrânia e da Rússia, também iria a um supermercado para ver se alguém falava a minha língua, para poder recordar-me do pequeno rio que, sob o olhar apaziguado das torres do castelo, atravessa a avenida, numa caminhada solta até se afogar no Tejo. A noite bate-me à janela e eu recebo-a como se recebesse a dádiva de um deus.
sábado, 9 de novembro de 2019
Quantos-queres
Armada com o origami
preso aos polegares e indicadores, a minha neta mais velha, apanhando-me
distraído, perguntou-me quantos quer? Sete, respondi-lhe inconsciente das
consequências, e ela lá manipulou o dispositivo de papel para trás e para
frente de modo a que o número cabalístico se cumprisse. Que cor quer? Verde, repliquei
incauto. Ela desdobra a maquineta e diz: feio, o avô é feio. É grave,
pergunto-lhe. Não, mas o avô é lindo. Esta minha neta tem uma propensão indisfarçável
para a correcção social. Eu agradeço-lhe, mais vale uma bela mentira do que
sentir o estilete da verdade a sair-lhe da boca. Está uma tarde lacrimosa, batida
pelo vento, propícia a um stabat mater.
Levá-las a andar de bicicleta ou de hoverboard na rua está fora de causa, mas
elas não se importam. Quem paga são as folhas A4, vítimas de uma súbita
inclinação para o desenho. Daqui a pouco chega o outro neto, mas esse ainda não
quer papel para dar vazão à veia artística, ocupado que está em consolidar os
passos para poder explorar a casa e semear o chão com livros e CD. O sábado
escorre em direcção à noite, para desaguar num domingo de inverno, imagino.
sexta-feira, 8 de novembro de 2019
O terceiro-excluído
Pensava que o terceiro estava excluído, mas não é verdade. Afinal o velho princípio do terceiro-excluído é contingente. A revelação aconteceu inopinadamente, como todas as verdadeiras revelações, ao abrir a conta da água e, por curiosidade mórbida, ter olhado para as parcelas que a compõem. Contas de água, constas de saneamento e contas de terceiros. Quando menos se espera descobrimos que o que pagamos são formas de solidariedade muito activas e capazes de sacrificar os velhos princípios lógicos em nome duma luta contra a exclusão. Alguém menos caridoso dir-me-á que já devia ter há muito lido a factura para ver o que dela consta. É verdade, mas nem tenho propensão para esse tipo de literatura nem sou excessivamente cioso das coisas que o mundo me impinge. Sofro-as sem grande protesto ou particular curiosidade. Um caso perdido. O que vale é que hoje é sexta-feira, a noite caiu e eu espero que o silêncio se propague pelo mundo que me envolve. Depois hei-de sentar-me e, sabendo que não passo do terceiro que é excluído, bendirei quem tal exclusão ditou.
quinta-feira, 7 de novembro de 2019
Desengano
Por vezes, vejo num jornal ou numa revista a fotografia de
uma mulher e penso que poderia apaixonar-me por ela até que o coração se
desengonçasse e o peito rasgado oferecesse ao mundo o espectáculo do amor, pois
o mundo nunca o viu, a esse castelo derrubado pelo tempo, a essas ruínas onde
crescem ervas daninhas, as entranhas reviradas e o sangue seco e malcheiroso de
tudo o que é sentimento. Quando acordo, a fotografia lá está, espera o meu
olhar sem a súplica do meu amor. Olho-a e na legenda descubro que a beleza
daquela mulher feneceu há muito e o seu corpo foi devolvido à poeira de onde
veio. Depois procuro outro retrato da mesma mulher e ao descobri-lo vejo o amor
a desvanecer-se ali mesmo, na falta de coerência com que os fotógrafos manejam
a câmara, semeando ilusões e desenganos, apenas porque o tempo passou e lhes
falta o talento para apagar os vestígios do crime. É assim que o amor está
pendente do acaso e da pérfida desatenção do retratista. Não faço ideia por que
razão o autor me faz dizer estas coisas, pois o nosso contrato tinha uma
cláusula, escorada num direito a rescisão, que o impedia de me dar uma vida
privada ou fazer-me falar de coisas para as quais o meu ser não foi criado.
Desinscrição
Em cima da secretária está uma ficha de inscrição. Por certo
irei inscrever-me em qualquer coisa, pois assim determina o fado. As pessoas
gostam muito de pertencer e não haverá caminho mais fácil para ser parte do que
inscreverem-se. Inscritas, logo serão chamadas e o desejo diz-lhes que hão-de
ser escolhidas. Olho para a rua e vejo um sol tímido com vergonha de refulgir nas
paredes, avisto as folhas agitadas pelo vento nas árvores que por aqui há. Em
tudo o que observo há uma tristeza, uma hesitação, como se a realidade não
soubesse que caminho tomar na encruzilhada que um deus colocou diante dela. Não
tarda terei de abandonar o lugar onde estou para ir para outro onde me esperam.
No caminho não há encruzilhadas, apenas rotundas e cruzamentos. A encruzilhada
encontrei-a há muito e escolhi o caminho errado, mas nunca sabemos se, mesmo
numa encruzilhada, há um caminho certo. O melhor é preencher a ficha e
inscrever-me antes que seja tarde, embora eu pratique a despertença e de tudo me
desinscreva. Parece que hoje não chove. Uma pena, as barragens precisam de água
como eu de me calar.
quarta-feira, 6 de novembro de 2019
Errata
Sentei-me para fazer alguma coisa que me alivie do facto de
estar vivo. É preciso não levar este tipo de declarações a sério. Quando se
escreve um texto, e quando ele é em si mesmo irrisório, temos de começar de
alguma maneira. O pathos do começo pode ser uma coisa deplorável, mas se
eliminássemos do mundo tudo o que é deplorável, ficaríamos com quê? Comigo não.
Sentei-me, dizia, mas esquecera-me que hoje é quarta-feira, o dia em que o grupo
de baile da escola vizinha aproveita para a sua sessão de reviver o passado em
Brideshead. Cada um tem o Brideshead que pode. Essa é a justiça do mundo e não
há outra, foi o que me ocorreu. Estou perturbado. Andei dois dias para me
lembrar de uma palavra para título de um singelo documento e, por mais que
porfiasse, a memória nunca me deu o que lhe implorava. É uma senhora caprichosa
e recusa-se a conceder os seus favores ao primeiro idiota que apareça a
cortejá-la. Quando já não necessitava da palavra, ela caiu-me do céu. Errata.
Era por esta a palavra que suspirava há dois dias. Que faço agora com ela? O
melhor é fazer uma errata, escrever onde se vê (a minha fotografia) deve-se ver
(uma outra fotografia corrigida e melhorada), e depois distribuí-la por aí. O
grupo de baile silenciou-se, já tem que chegue da sua Brideshead, ou talvez
não. O problema dos seres humanos é que eles só aparecem no lado a substituir
da errata. Se não os outros, pelo menos eu.
terça-feira, 5 de novembro de 2019
A verdade pela mentira
Acabei de comprar um presente para uma das minhas netas. Já lhe tinha dito várias vezes que não lho daria e ela sempre fingiu acreditar. O avô finge, a neta finge e é nessa ficção que se aprende a lidar com a realidade. Talvez um dia estes jogos em que se diz a verdade através da mentira sejam proibidos e um avô terá de dizer brutalmente a um neto que já lhe comprou o que ele deseja, impedindo o divertimento que ensina a ver para lá das aparências, a lidar com a frustração e, acima de tudo, a ser civilizado ao aprender que o prazer está na incerteza e no diferimento do gozo. Enquanto pensava nisto ia olhando pela janela e via a luz diminuir lentamente como se estivesse ainda na sua mão evitar a chegada da noite, adiá-la para que ela venha festiva e seja o mais desejado dos convidados. Também a natureza ama a verdade dita sob a forma da mentira e, por isso, ela é tão enigmática para aqueles que escondem a estultícia na proclamação que são muito directos e manejam a verdade como se fosse um punhal a cravar nas costas distraídas do próximo. Quando vir a minha neta e ela me falar do presente, dir-lhe-ei “nem pensar” e ela há-de pensar que tudo se encaminha para o seu destino, enquanto diz com ar resignado “está bem”.
segunda-feira, 4 de novembro de 2019
Incongruência
As persianas tamborilam nas calhas por onde correm, tocadas
pelo trote do vento, inquietas e temerosas de alguma tempestade que venha
tirá-las do sossego bonançoso em que vivem. Uma réstia de sol perfura o negro
das nuvens para desabar na humidade das paredes e reverberar, enchendo de luz o
campo de jogos e de esperança os jogadores que se batem com o ardor da sua
inocência culposa. O que escrevo é de tal modo exaltante que adormeci depois de
escrever a última frase, para acordar agora com uma dor no pescoço. Nem a mim o
meu verbo anima. Apesar das bolas continuarem a saltitar, a luz de há pouco
recolheu-se para que as paredes perdessem a reverberação que lhes dava alma e
embaciadas permanecessem na quietude que é a delas. Com um tema destes não
admira que adormeça de novo antes de dar por terminado este texto. Pessoas há
que têm muito para contar, as suas vidas são aventurosas e elas heroínas que
hão-de permanecer na memória dos vindouros, mas eu quanto mais vivo menos
tenho para dizer, apesar do palavrório que me ataca aqui ou ali. O mundo é
feito destas incongruências e se não é o mundo, sou eu. A palavra incongruência
brilhou dentro de mim e, por instantes, entrevejo a verdade do que sou. Tocaram
à campainha. Levanto-me e vou espreitar. Não era ninguém ou talvez fosse eu.
domingo, 3 de novembro de 2019
Um rio brando e sem água
A solidão cresce como uma sombra, mas não há coisa que
provoque mais deleite, quando pelo Verão o sol se abate sem piedade sobre o
corpo, do que uma sombra. Ao acabar esta frase o CD que estava ouvir calou-se e
eu pensei que o pathos que nela se
manifesta não é meu mas da música que me envolvia. Agora que o silêncio voltou
com o seu império de mundos possíveis, a frase perdeu o sentido e eu já sou
outro, sem ter deixado de ser quem era, sem chegar a ser alguma coisa. Os
pássaros que esvoaçam diante da minha janela ignoram a sua fragilidade.
Voam e poisam sobre os muros das varandas. Os homens pelo contrário sabem
alguma coisa e julgam-se frágeis por possuírem a ciência de que vão morrer. Puro engano, a
fragilidade está nesse constante mudar, nesse deixar de ser contínuo, nesse
nunca chegar a ser. A morte livra-nos de tudo isso, menos das anáforas que caiem
sobre o texto com a altivez de uma prótese. O domingo corre triste, um rio
brando e sem água. Ao longe, não se passa nada e, por isso, nada tenho para
contar. Volto ao CD e à música que desenha uma casa de solidão no campo raso da
alma. É domingo.
sábado, 2 de novembro de 2019
Memórias no Dia de Finados
Nos últimos anos não há Dia de Fiéis Defuntos que não me
recorde de um poema que se cantava na adolescência para fingir que se era
rebelde. Não me lembro do texto completo, mas apenas de alguns versos que ficaram
na memória como um refrão: Era dia de finados, / E os mortos muitos animados /
Lá andavam a dançar. / Tudo estava forrado a preto, / No centro havia um coreto
/ Feito dos ossos da testa. E o cântico continuava neste tom até que nos cansássemos
e, desconfio, nos reconciliássemos com a nossa natureza mortal. Estas
recordações não são um desrespeito aos que se foram, mas uma mensagem que
recebo de mim mesmo para que não me esqueça que mais do que rir da minha morte
devo rir-me de mim e das coisas que me atravancam a memória. Hoje já fui às
compras e, devido às inutilidades que me povoam o cérebro, esqueci-me de
algumas coisas que tinha de comprar. Valia mais ter feito uma lista do que andar
por aí a alvitrar sobre o que se passa num coreto forrado a preto.
sexta-feira, 1 de novembro de 2019
Os Santos e os mortos
É com desconsolo que olho para as broas dos Santos. Em tempos eram para mim motivo de perdição eterna. O pecado da gula atirava-me sem freio sobre elas, arrastando-me para o mar das múltiplas espécies que por aqui se cultivam. Depois a vesícula começou a queixar-se e a satisfação do desejo foi sendo diminuída até proporções frugais. Liberto do órgão malfazejo, não me livrei da frugalidade. Os Santos deixaram de ser o que eram. Hoje passei duas vezes perto do cemitério e não faltavam pessoas com pequenos ramos de flores na mão, nem sempre crisântemos, para homenagear os seus mortos. Também eu tenho os meus mortos, mas não vou ao cemitério, nem lhes compro flores. Trago-os nos meus genes e nos meus pensamentos. Com alguns, converso. Falo por eles e falo por mim. Eu sei o que eles me diriam e eles, estou certo, sabem o que lhes estou a dizer. Talvez devesse também ir amanhã ao cemitério, não por eles, mas para que as tradições não morram por falta de comparência. Sei que não vou, até porque espero o meu neto. Um dia, se me for possível, falar-lhe-ei dos meus mortos, que hão-de também ser os dele.
quinta-feira, 31 de outubro de 2019
Fine tuning
Apesar de tudo, os dias passam rapidamente. Amanhã já é dia
de Todos-os-Santos e daqui ao Natal o tempo correrá à desfilada e eu, como um
cavalo enlouquecido, há quem me ache um burro demente, correrei com ele ou
arrastado por ele num turbilhão de coisas insensatas. De o pensar, estou já
cansado. Correr não é a minha especialidade e cheguei àquela época em que
preferia avançar para trás, mas não muito, já que não teria paciência para mim
se tornasse ao que fui. Seria penoso. Escureceu há muito. Para surpresa minha,
ao final da tarde uns adolescentes quiseram falar comigo sobre os argumentos do
fine tuning e do mal, com derivações
sobre o determinismo da conduta humana. Poderia pensar que as coisas não
estão tão críticas quanto se anuncia. Provavelmente, não estarão. Recebo uma mensagem no telemóvel. É um convite
para uma masterclass de Tequila &
Mezcal e começo a pensar que o argumento do fine
tuning não será assim tão disparatado. Salva-me amanhã ser dia santo de
guarda, um dia onde a santidade se multiplica, como se o regulador destes festejos,
cansado, tivesse cedido à paixão da hipérbole. Vou roubar uma broa à cozinha.
quarta-feira, 30 de outubro de 2019
Retorno do mesmo
Na escola aqui ao lado, o seu grupo de baile persiste em
ensaiar canções que fizeram furor há mais de vinte, trinta ou quarenta anos.
Esta obstinação pelo passado não deixa de ser comovente e faz-me lembrar as
pessoas que, quando era adolescente, tinham a idade que eu agora tenho. Também
elas estavam presas a músicas incompreensíveis, sons que pareciam vir de um
planeta distante, e nas quais tinham um prazer que era para mim um enigma. A
ideia do eterno retorno do mesmo acabou de me tentar. Resisto à tentação,
enquanto, vindo de fora, oiço menina que estás à janela com o teu cabelo à lua.
Hoje já não há meninas à janela e os cabelos à lua, também andam ao sol e à
maresia do crepúsculo. Dói-me a garganta, recorro a um spray. Logo tenho uma
cerimónia à minha espera, embora eu não a esperasse, nem a ela nem a qualquer
outra coisa. O carro avariou-se de manhã e tenho de ir ver se já o posso ir
buscar. Uma chuva fina diante da janela faz-me lembrar o fumo que se evola dos carros
dos assadores de castanhas, mas é só água a descer dos céus. Uma bênção, oiço
dizer.
terça-feira, 29 de outubro de 2019
Desvios e mistérios
Hoje li um poema que começa assim Já o gargalo das pedras
adormece e fiquei mais tempo do que devia sem saber o que fazer com aquele
verso. O poeta, dir-me-ão, pratica o desvio porque esse será o seu ofício. O
meu, se é que se pode chamar ofício, fica-se pelo perscrutar da noite, olhá-la
no fundo dos olhos para que surpresa revele os seus segredos. Ela porém sorri e
olha-me com benevolência e segue o seu caminho, respeitando as estritas regras
da gramática que governam o dia e a noite, a passagem das semanas, o devir
compassado das estações. O mistério da noite é como o das palavras.
Compramo-las presas a um significado, mas se as olharmos longamente, começam a
emancipar-se e tornam-se mariposas descuidadas que o vento, à falta de peso,
arrasta para onde quer. Hoje escrevi centenas ou milhares de palavras, todas
elas pesadas de sentido, todas elas inúteis como uma bóia de salvação nas
areias do deserto.
segunda-feira, 28 de outubro de 2019
Serei maniqueísta?
Um comentário insinua que estou a
caminho do ultra-romantismo. Talvez esteja mais perto do solipsismo mas a
carapuça do ultra-romantismo também não me há-de ficar mal. A culpa,
assevero-o, não é minha, mas do autor destes textos que teima em fabricar-me
deste modo. Eu bem me inclino para os factos e acontecimentos, mas ele, com uma
rigidez inesperada, tende a cerrar-me dentro de mim mesmo, fazendo-me crer que
a realidade é uma coisa pesada e pouco benévola. Desconfio que pretende fazer
de mim um discípulo de Manes e ele mesmo será um cátaro, mas os seus desígnios
e pensamentos são-me insondáveis. Se ele quer que eu seja um solipsista ou um
romântico ou um maniqueísta, o que posso fazer contra a prepotência da sua
vontade? Um dia fosco o de hoje. Olho pela janela e vejo sombras a caminhar na
avenida e os ciprestes que abundam por estes lugares. Um silêncio nega a
realidade, que logo acorda na figura de uma mensagem a informar-me que alguém
partilhou documentos comigo. Um dia ainda acredito que sou maniqueísta e que
toda a realidade é fruto de um demiurgo pouco frequentável. Que me salvem da
heresia, é aquilo que peço, mesmo que essa seja a vontade daquele que me cria.
domingo, 27 de outubro de 2019
Distâncias
Ontem estava um belo dia de sol. Passeei no jardim da Parada
com o meu neto ao colo, depois de ele ter sido submetido à provação de comprar
a roupa com que vai ser baptizado. Como os baloiços do parque infantil estavam
ocupados e havia gente à espera, andámos a mexer nos troncos das árvores. Desde
cedo se deve compreender a rugosidade do mundo e que uma parte da beleza vem dela.
Depois, cansado de experimentar a realidade, trocou-me pela mãe. Hoje não tenho
neto, nem estou em Campo de Ourique, nem está sol. Oiço o ronco de uma moto,
cujo proprietário deve contribuir para que os portugueses tenham o QI mais
baixo da Europa Ocidental, e contemplo a luz flébil que se desprende do céu,
como se uma elegia descesse das nuvens. Aguardam-me algumas horas de
escrita de coisas inúteis, uma especialidade em que tenho o meu melhor
desempenho. Tornei-me um especialista em inutilidades e, fique claro, não é
pretensão minha possuir outra qualquer especialização. Podia ir ler a primeira elegia
de Duíno, à qual há dias alcunhei sub-repticiamente de ode, mas há coisas muito
mais inúteis que aguardam com dentes afiados o meu tempo. É a distância que vai
da ode à elegia.
sexta-feira, 25 de outubro de 2019
Da circularidade semanal
Está a chegar o fim-de-semana e já o vejo a escoar-se,
perdido nem se sabe como. As semanas são círculos viciosos, em que se parte de
uma sexta-feira para chegar a outra, sem que um sentido para tudo isto se
desenhe. Quando oiço falar no território encantado da infância, apesar da
expressão me provocar uma certa náusea, lembro-me sempre daqueles anos
longínquos em que não havia semanas, com os seus dias fastos e nefastos. Lá em
baixo, no parque infantil, um bando de crianças grita. Parecem felizes e, por
certo, ainda não descobriram que existem semanas, com a sua corveia e a ilusão
de algumas horas de liberdade, para que o jugo férreo pareça mais leve. Eu sei
que a civilização tem um preço, as comodidades outro e que nada cai do céu.
Isso, porém, não nos deve impedir de increpar a ordem das coisas ou de maldizer
aquele descuido de Eva e Adão que nos atirou para a deplorável situação de à
sexta-feira já sentir o odor mascavado da segunda. O sol ainda brilha, mais
intenso que nos últimos dias e o arvoredo perfila-se imóvel com os seus dedos
de azougue voltados para o céu. Bem podia ter evitado o pathos da última frase, mas fui obrigado a dizê-la.
quinta-feira, 24 de outubro de 2019
Penúria de realidade
Dentro de mim há uma enorme sombra. Faço dela a casa de onde raras vezes saio. Vejo o mundo por uma janela e aquilo que nele se passa cada vez me interessa menos. Demorei muitos anos a ligar a comédia humana ao que Aristóteles disse da comédia clássica, mas isso são contas de outro rosário, pelo qual já ninguém ora. O dia passou e é o que tenho a dizer dele. Não se trata de escassez de imaginação, mas penúria de realidade. Vivo cercado de pessoas cheias de realidade. Habituei-me à condição de ilhota nebulosa perdida num oceano vigoroso, a transparecer certezas e particular inclinação para a exuberância da felicidade. Mares destes, sempre navegados, cansam-me. A noite chegou, uma ambulância cavalga pela estrada em direcção ao hospital e tanta realidade é insuficiente para me sequestrar à ruminação que crepúsculo abriu em mim. Já é tarde, digo e volto os olhos para o lugar onde a escuridão nasce.
quarta-feira, 23 de outubro de 2019
Mudar de vida
Cheguei a casa quando o crepúsculo já se anunciava no
descolorido do sol. Sentei-me e os meus olhos embateram numa tradução inglesa
de um livro de um pensador alemão contemporâneo. Os alemães são particularmente
competentes para encontrar títulos dramáticos que soam ora como uma sombra
arremessada pelo infinito, ora como um imperativo a que se deve obedecer,
embora não se saiba porquê. Este pretende resumir a religião através do
imperativo You must change your life.
Peguei no livro, folheei-o lentamente e pensei que mais que mudar a minha vida,
o acertado era ter mudado de vida há muito. Há equívocos que se tornam numa
condenação perpétua. Os pássaros meus vizinhos sublinharam o meu pensamento com
um trilo equívoco e eu sorri agradecido. As vozes lá em baixo calaram-se de
súbito, como se um anjo tivesse poisado e a sua beleza fosse sentida como a
presença do terrível, tal como nos ensina certa ode. Destemido, o vento empurra
os ramos do arvoredo, desenhando murmúrios coloridos na praça vazia. Mudar a sua
vida, que penosa injunção para aquele que se prendeu na teia dos seus hábitos.
terça-feira, 22 de outubro de 2019
Sobre as oliveiras
Na escola aqui ao lado há umas quantas oliveiras. Vejo-as envoltas em folhas verde cinza, indiferentes ao vento, esquecidas dos anos. Lembraram-me do tempo em que por aqui ainda era fácil, ao caminhar sem destino, ser invadido pelo cheiro que se desprendia dos lagares. Estes foram morrendo uns atrás dos outros, como pessoas velhas e sem família a que já ninguém conhece. Levaram com eles os aromas quentes que anunciavam o azeite novo, abriam o caminho que ia dos santos ao natal, e deixaram órfãs as oliveiras que escaparam à voragem sem medida dos homens. Conheci oliveiras que tinham, supunha-se, mais de mil anos. Imagino-as indiferentes ao espectáculo da história, ao cortejo de esperanças e desgraças que tocaram esta terra. É possível que já tenham sido arrancadas, levadas pelo despeito daqueles que não têm mais que uma vida breve, risível, impotente para enfrentar o tempo e enganá-lo numa faena de arte consumada. Talvez o touro que os homens lidam nas arenas não seja outra coisa senão o tempo, mas hoje tornou-se perigoso falar de touros e de lides, pois todos têm medo do tempo, dos cornos que ele alça para nos varar, pobres peões de brega.
segunda-feira, 21 de outubro de 2019
Um desajustado
Não deixo de ser um enigma para mim mesmo. Gostei da frase mal surgiu não porque ela refira a minha natureza especial mas por ser um exercício inócuo de banalidade. Não há quem não se ache enigmático aos seus próprios olhos, embora os outros vejam com acintosa transparência, e não menor perfídia, aquilo que o próprio julga ser a obscuridade das obscuridades. A nossa verdade reside nos olhos dos outros. Em vez de enigmático pressinto que sou anacrónico. Lancei a mão a três CD para me acompanharem a tarde. Não escolhi, deixei que o acaso revelasse aquilo que eu quero ouvir. Um CD de música Sufi, outro de música tradicional japonesa e para completar um outro de canções de amor trovadorescas do norte de França. Só um desajustado poderia ser contemplado com tal combinação. Estou fora do tempo e do lugar. Poderia ter sido um trovador ou então um monge em busca da realização espiritual. Só não posso ser o que sou, que é a única coisa que posso ser. São difíceis certas segundas-feiras depois do almoço.
domingo, 20 de outubro de 2019
Ser personagem
Por vezes finjo que me interessam os graves problemas da humanidade, tomo posição como se acreditasse nas minhas opiniões, mas deixo antever que não tenho nenhuma solução para qualquer problema quanto mais para os graves, se é que os há. Isto não é propício à minha credibilidade como profeta. Um anunciador de futuros deve ter sempre uma inabalável certeza, uma voz tonitruante e um olhar furibundo. O criador esqueceu-se de mim na hora de distribuir esses talentos. Não se pense que o criador é Deus. Isso seria um engano deplorável, uma heresia das mais terríveis. O meu criador é aquele que escreve estas palavras e que me conforma em consonância com a sua volubilidade. Admito que não o suporto. Obriga-me ora à melancolia, ora à irrisão. É uma vida difícil nas catacumbas da humanidade. O que me vale é que ele desdenha em dar-me paixões temíveis e desejos inconfessáveis. Molda-me nas águas tépidas da existência, sem que me permita mergulhar nos insondáveis mistérios da alma humana. Estou mesmo desconfiado que nem uma alma ele me atribui. Ser personagem nunca foi fácil. Ser uma péssima é um desconsolo de que nunca hei-de recuperar.
Parecer um anhuca
Pareces um anhuca, foi o comentário que recebi ao vestir um velho par de calças esquecido no fundo de um roupeiro. Não faço a mínima ideia o que seja um anhuca nem qual a sua aparência, mas fiquei com a certeza de que parecia um e, como aquilo que parece é, atirei com o atavio para as profundas de onde viera. Um colóquio sobre a palavra não me esclareceu o sentido e uma consulta na internet não deu melhores resultados. Pelo contrário, há inclusive divergência sobre a sua acentuação, havendo os partidários da sua natureza proparoxítona e os que a grafam como paroxítona, onde me passei a incluir, pois caso eu seja na verdade um anhuca não o quero ser de forma esdrúxula. Um domingo que começa com estas preocupações não me parece fadado a grandes desígnios. Também eu não os tenho. Com o passar dos anos a minha ambição reduziu-se a não parecer um anhuca e estou longe de estar convencido de a conseguir realizar.
sábado, 19 de outubro de 2019
Roupa de Todos os Santos
Quando, depois de acordar, espreitei pela janela, o dia
estava vestido como se fora o feriado de Todos os Santos. Fiquei a olhar o céu
carregado de cinza escura, que logo desabou em chuva grossa e pensei na sábia
decisão de criar esse dia santo de guarda em honra de todos os santos e
mártires conhecidos e também daqueles que são desconhecidos. Passados instantes
já o pensamento se desinteressava do exército dos santos e mártires e
acompanhava o voo rápido de um corvo que se atreveu a passar de uma para outra
árvore. A tarde, resolvi-me então, dedico-a à leitura de Jean Bodin, não aos Seis Livros da República, tão pouco a O Teatro da Natureza Universal, mas ao
mais prosaico Da Demomania dos
Feiticeiros. Será que os demónios transportam os feiticeiros em corpo? Será
que estes conseguem transformar os homens em animais? São perguntas destas,
para minha perdição em vida, que me movem a curiosidade. Chegada a tarde,
faltou-me a vontade para perscrutar tais arcanos e deixei em paz os feiticeiros
e os demónios com que aqueles andam mancomunados. Aliás, um almoço pouco frugal
tirou-me qualquer interesse pelas opiniões do senhor Bodin, que foi levado
desta vida em 1596, não por um feiticeiro nem por um demónio, mas pela peste
negra. Neste momento não chove. O sol assoma aqui e ali, mas o dia não deixou
de lado a roupa de Todos os Santos. Vou sair para ver o que acontece.
sexta-feira, 18 de outubro de 2019
A virtude de ressonar
Depois de um almoço tardio, como se tornou hábito às
sextas-feiras, acabei por adormecer sentado num sofá em frente de um jogo de snooker oferecido por um canal
televisivo. Prova provada de que a arte de enfiar bolas num buraco me interessa
muito pouco, embora seja preferível às notícias que outros canais repetem
incansavelmente com a intenção de enlouquecer os espectadores. Adormeci e
ressonei. Pessoas que se prezam não ressonam, mas por muito que me preze não
consigo deixar de ressonar. Ao sentar-me para pagar a corveia, dei uma
espreitadela às notícias online. Uma
empresa oferece 115 mil euros pelos direitos ao rosto das pessoas. Ainda examinei
a possibilidade de vender os direitos do meu, mas reconsiderei. Não é que eu
seja particularmente humano, mas haver um robot com a minha cara com a
finalidade de ser um amigo virtual para idosos é como querer vender-me para ser
amigo de mim mesmo. Coisa que de bom grado dispenso. Pior que isso foi receber
o convite para gostar da página de uma academia jovem de uma agremiação
política daquelas que são novas mas dirigidas por gente que deveria estar
reformada há muito. Pensei, não sem terror, que se vendesse os direitos
do meu rosto, ainda me calhava ser amigo virtual de políticos velhos que em
desespero de causa incentivam a existência de academias jovens. Por menos, foi
Sócrates executado na Grécia. Antes ressonar em frente a um emocionante jogo de
snooker.
quinta-feira, 17 de outubro de 2019
A farda da ilusão
A manhã desce a encosta do dia, um declive escorregadio, terreno pedregoso molhado pela chuva. Quando, ainda cedo, me levantei e abri a janela deparei-me com uma neblina impenitente que sufocava os prédios e o arvoredo, deixando apenas transparecer algumas sombras a lembrar velhos fantasmas exaustos, cansados pelos anos, indecisos sobre se se devem manifestar ou voltar para o tugúrio onde abrigados da intempérie se escondem aos olhos dos mortais. Isto era a primeira manhã, depois como sempre acontece tudo mudou com o passar das horas. Nuvens mais escuras deslocam-se sob a vigilância de outras mais claras. Talvez seja o contrário, são as esbranquiçadas que se movem dando a ilusão do oposto. Quantas vezes, estando num comboio parado, pensei estar a deslocar-me iludido pelo movimento de um outro que se tinha posto em marcha. Demorava sempre alguns segundos até perceber a ilusão sensorial. A essas ainda as fui detectando, as outras, as ilusões decisivas e sob o efeito das quais nunca deveria viver, nunca tive o poder de as desfazer. Visto-as como se fossem a farda do exército em que milito. Têm a vantagem de nunca envelhecerem e de não passarem de moda. Um raio de luz fende o vidro da janela, anunciando a hora em que o meio-dia chegará. São parcos os poderes que me foram conferidos e escassa a virtude que cultivo.
quarta-feira, 16 de outubro de 2019
Amor à compensação
Podia ter sido um business
coach ou mesmo um finantial coach,
mas não passei de um mero coxo, cuja perna manca nunca teve poder para se alçar
ao business ou ao finantial. Admiro a infinita
criatividade de todas estas pessoas que, aproveitando a época de saldos,
compram palavras inglesas, vestem-se com elas e andam assim fardadas pela vida,
pois há sempre quem lhes compre os ersatzes. Adoro
esta palavra. Empreguei-a para compensar o meu complexo de não ser um coach de qualquer coisa. Sou frequentador
assíduo da compensação. Sem ela, como poderia olhar a vida e não ter vontade de
me esventrar com um sabre afiado. Das poucas coisas em que sou versado,
confesso não sem orgulho, é a poética da compensação. Não posso ser rei, ao
menos que proclame a não existência de coisa mais nobre do que ser súbdito. Assim
a vida em vez de um vale de lágrimas soprado pelo vento do ressentimento é uma
festa, onde todos os súbditos que não podendo ser trigo descobrem a alegria de nascerem
joio. E é isso o que eu sou, embora tivesse um indisfarçável talento para coach ou para rei, talvez mesmo para
grilo falante.
terça-feira, 15 de outubro de 2019
Frugalidade
Até a frugalidade parece-me um excesso. Foi o que pensei depois de almoço. Não vivo num tempo de coisas mínimas, mas numa circunstância em que devo minimizar-me. Diminuindo-me, mais fácil será desaparecer. Foi a isto que um antigo ateniense chamou aprender a morrer e a estar morto. Era uma escola rude, a que não faltavam inimigos. Não é de agora o desejo de maximização, apesar de nenhuma época que não a nossa ter insuflado tanto os pequenos egos. Oiço, lá em baixo, risadas alarves, saídas da boca impenitente da adolescência. Essa, compreende-se, é pouco dada ao minimalismo, entregando-se antes ao exercício da hipérbole. Deveria escrever, passou-me pela cabeça, como se escrevia nos antigos telegramas. Chego amanhã stop Espera porta sul stop. E em tudo isto havia a beleza da contenção, do exercício da economia, da redução do discurso à informação e ao mandamento. Pena que não exista um florilégio da escrita telegráfica. Que profissão mais nobre pode haver do que a do antigo boletineiro, que voava levando em mão palavras urgentes e decisivas? Quando se fala do crepúsculo dos deuses é do desaparecimento de gente como os boletineiros, esses hermes da modernidade, que falamos. Como se vê a frugalidade das palavras não é virtude que pratique.
segunda-feira, 14 de outubro de 2019
Um fingidor
Onde estou avisto duas acácias bastardas, mas não estou certo da denominação. Ainda não lhes vejo sinais a anunciar a caducidade das folhas. Os ramos agitam-se, balançam, enovelam-se, batidos por um vento invisível, empurrado pelo calcário da serra. Apetecia-me passar a tarde a ler, mas as minhas ocupações são incompatíveis com leituras. Há que domesticar os apetites. Se cultivar a estultícia, estarei de acordo com o que se me exige. Olho as árvores, tento focar a visão e distinguir as folhas, mas o que vejo são manchas de verde em metamorfoses contínuas, movidas por um jogo de claros e escuros tremeluzentes, como se a realidade saísse de dentro de um quadro impressionista para invadir a vida e torná-la mais fugidia. Muitas vezes faço a apologia do rigor e da precisão, mas sou um fingidor, o melhor é não me dar crédito. Do que gosto mesmo é do vacilar das fronteiras, do desgaste das estremas, para que tudo se contamine, seja continuamente outra coisa e eu possa ser coisa nenhuma. Desloco-me para dentro da tarde, fecho a porta atrás de mim e escondo-me da indiscrição do meu próprio olhar.
domingo, 13 de outubro de 2019
O Rei Recaredo
Contaminamo-nos facilmente. Mergulhei um rectângulo de chocolate no café. Quando dei por mim tinha as mãos manchadas de castanho. Se as manchas alastrarem, o que farei? Este pensamento risível foi afastado pelo ranger do baloiço no parque infantil, e numa associação ociosa de palavras passo de ranger para Recaredo, o filho de Leovigildo e rei dos Visigodos, perdendo-me em aliterações para compor a prosódia. Deveria ser um mundo esplêndido aquele que tais nomes descobria para distribuir por quem deles necessitava. Olho as mãos e as manchas de chocolate continuam à espere que me levante e as vá lavar, mas não posso abandonar o rei nesse momento difícil, em que o vejo converter-se da heresia ariana à fé de Roma. Convertido o rei, a fé contaminou o reino visigodo. Tenho de vigiar a história para que ela chegue até aos meus dias e eu possa escrever o que estou a escrever. Tremo só de pensar que Recaredo, abandonado a si mesmo, se arrepende e volta ao arianismo. Tudo seria diferente e eu não estaria aqui com as mãos sujas de chocolate nem a criança que lá em baixo se deixa ir embalada pelo estrugido mecânico que não se cala. O domingo progride dentro de mim. Alguém, suponho que o autor destas palavras, diz-me em tom imperativo: lê isto. Nem olho. Respondo: não leio. Hoje é o dia do Senhor, vou meditar na conversão de Recaredo e lançar um anátema ao arianismo. Servo, posso ser, mas não é voluntária a minha servidão. Agora vou lavar as mãos.
sábado, 12 de outubro de 2019
Tornar-me Domingo
Adicionei ao meu eReader
um livro do príncipe Piotr Kropotkin. Nunca tive uma alma dada à rebelião
contra a existência do Leviatã. Para seres que albergam dentro de si um
catálogo ilimitado de monstros, não me parece uma ideia sensata libertá-los do
temor pelo monstro bíblico. Sei que almas sensíveis e outras que nem tanto
gostam de se afirmar anarquistas, pelo menos ao sábado à tarde. Vou ler o livro
como se lesse um romance, mas antes disso terei de atravessar a cidade para uma
visita. Melhor que ser anarquista aos sábados à tarde é ir aonde nos esperam e
temos o dever de ir. O vento não pára e as persianas da janela chocalham,
enviando-me mensagens num código que não consigo decifrar. Também não será
mentira se se disser que muitos são os códigos para mim indecifráveis. O autor
destes textos poderia ter-me feito um pouco menos limitado, conceder alguma
graça e deixar-me ser, aqui e ali, um pouco mais inteligente. Não quer. Um dia
ainda me revolto e, contra ele, torno-me anarquista, daqueles que habitavam o
mundo de O Homem que Era Quinta-Feira.
A minha ambição será então tornar-me Domingo.
sexta-feira, 11 de outubro de 2019
O ranger do dia
Parecem gritos de aflição que um animal lança em desespero para partilhar a dor que lhe dilacera o ânimo. Uma ilusão, sei-o bem, pois não é mais que o ranger rouco e angustiado do baloiço que vai e vem, numa repetição intérmina, no parque infantil lá em baixo. Não começa bem a tarde de sexta-feira. Leio um poema e nele encontro araucárias e magnólias, mas se olhar pela janela apenas dou conta de cedros e pinheiros. Ao longe descortino um cipreste. Há tempos, um amigo vindo a esta terra pela primeira vez perguntou-me por que razão havia tantos ciprestes nos campos. Não soube o que lhe responder e a partir desse dia reparei que os havia por aqui mais do que noutros lados. Somos cegos para aquilo que vemos, foi o que me ocorreu, agora que o ranger doloroso se apaziguou. Se me habituar a ele, deixarei de o ouvir. Sinto o dia deslizar. Range como se gritasse dorido pelo punhal do entardecer que lhe abre o peito. Devia eliminar comparações e metáforas, conjecturo, mas o autor não mo permite. A nossa inimizade progride. Penso no punhal, mas ele leva-o para longe e guarda-o num cofre de que só ele conhece o segredo.
quinta-feira, 10 de outubro de 2019
Falta de apetite
Tenho de levar o carro à oficina, mas não me apetece. Tenho, aliás, uma série de coisas para fazer para as quais me falta o apetite. Ao escrever esta palavra lembrei-me da saga que eram as minhas refeições. Não tem apetite, dizia-se. Recusava-me a abrir a boca, vomitava, não mastigava a comida. Imagino o exaspero da minha mãe nessas horas épicas. Naqueles tempos acreditava-se em coisas inimagináveis. O Ceregumil e o óleo de fígado de bacalhau. Parece que vinham de Espanha, frutos do contrabando, trazidos por alguém conhecido. Ao primeiro, ainda anuía, apesar de reticente. Ao outro, a minha submissão era mais difícil. Um nojo. Não imagino se aquilo fazia bem a alguém. A verdade é que não morri. A certa altura, fui operado à garganta para extracção das amígdalas, coisa que então estava na moda, e, milagre, o apetite nasceu de um dia para o outro. É este o meu problema. Falta-me o apetite para muita coisa, não tenho fé no Ceregumil nem no óleo de fígado de bacalhau e já não tenho amígdalas para extrair.
quarta-feira, 9 de outubro de 2019
Uma quimera senil
Chegam a passar meses, mas de súbito o perfume ressurge perdido dentro do elevador. A primeira vez que me deparei com ele a minha alma rangeu, literalmente. Como era possível? Não era um perfume floral a sublinhar uma feminilidade reservada. A força e o calor que se evolava da fragância era de alguém que não teme o olhar indiscreto. Uma intensa curiosidade apoderou-se de mim. Com o tempo e a repetição, aquele odor foi modelando alguém que me assombra os sentidos. Não vale a pena descrevê-la. Alturas há que chego a sentir-lhe a pele a deslizar sob o império dos meus dedos. A construção do corpo foi um trabalho demorado. Começou, nesse primeiro encontro, com uma figura geral, desejável, embora indefinida. Conforme as experiências se repetiam, o perfume, como um vinho vigoroso, diferenciava-se dando-me a ver ombros, seios, o ventre. O desejo nascido no olfacto ia compondo aquela que era a fonte de um devaneio ridículo, de uma quimera senil nascida numa animalidade cansada. Sonhei-a acordado e a dormir, sonhei-a a cores e a preto e branco. Apenas os olhos se recusavam a nascer da fragância. Depois de um intervalo de várias semanas, anteontem, ao entrar no elevador, lá estava o cheiro que me atormenta. Ao fechar a porta, os olhos revelaram-se-me. Olharam-me onde ninguém me pode olhar. Estremeci. A partir de então subo e desço aterrorizado. Agora que o objecto do meu desejo se completou temo que a realidade, que durante tantos anos me evitou, invada os meus sentidos e faça naufragar o navio onde a fantasia viajou na esperança de um porto desconhecido.
terça-feira, 8 de outubro de 2019
A passo
Antigamente conhecia por aqui vários loucos. Tinham enlouquecido lentamente, uns, outros eram-no desde sempre ou foram vítimas fulminantes de um esgotamento, como se dizia na altura. Não sei se fui eu que me afastei do local por onde eles deambulavam ou se foi a morte que os livrou da sua loucura. Sei que eram estimados e enquadravam com recato na paisagem social. Talvez fossem um espelho para nos certificarmos que fazíamos parte do grupo que ainda não tinha endoidecido. Hoje, ao passar pela avenida, deparei-me com um que não conhecia. Caminhava depressa e imitava o trote de um cavalo, enquanto com um pingalim batia na própria perna dizendo nada de galopes, nada de galopes. Segui-o com os olhos, até que ele se perdeu no horizonte ensolarado, escondido entre a sombra dos transeuntes que o olhavam com desconfiança. Parei e uma estranha deliberação tomou conta do meu cérebro. Estava na dúvida se deveria seguir a trote ou a galope para o sítio que me esperava. A hesitação demorou uns instantes. A passo, disse-me, até por que me falta o pingalim para me fustigar na perna e apressar o andamento.
segunda-feira, 7 de outubro de 2019
Ensaio sobre a vida
Há quem perca a vida de um momento para o outro e há aqueles que levam uma vida inteira a perdê-la. Nem no exercício da perda há igualdade. E eu que fui tão igualitário. Aqueles que levam uma vida inteira a perdê-la sofrem de uma qualquer dissonância cognitiva que os impede de perceber o sentido de estarem neste mundo. Alguns deles chegam depois de múltiplas experiências e longas meditações à conclusão de que não tem sentido nenhum, outros nem isso. O importante é que se continue, a perda é sempre certa. Talvez tudo isto me tenha ocorrido pela minha actividade da manhã ou como antecipação da que virá a meio da tarde. Hoje atravessei a cidade e não reparei em coisa alguma, só a mecânica dos hábitos me permitiu fazê-lo sem sobressaltos. Todos os dias dou mais um passo para dentro de mim, vou cerrando porta a porta até que já não conheça nada nem ninguém. Isso é triste, dizem-me. Talvez, mas não tenho nada para vender e não há mercadoria que o meu desejo cobice.
domingo, 6 de outubro de 2019
Cenas de um domingo eleitoral
Pela primeira vez o meu neto ficou sozinho com os avós. Chegou eram oito da manhã. Vinha a dormir e quando acordou trocou-me pela avó. Como recompensa levei-o a votar. Não me pareceu particularmente entusiasmado e eu nem sequer lhe mostrei o boletim de voto. Na realidade, entre a descida pelo elevador, o atravessar a estrada, a entrada na escola e a ida à secção de voto, quase que adormeceu. Segurou-se, bocejou, aguentou firme na fila para recolher o boletim. Não protestou quando fui à cabine de voto. Nem sequer teve curiosidade em saber em que partidos os avós votaram. Uma olímpica indiferença. Só espero que, quando começar a exprimir por palavras a sua vontade, não diga aos pais que não quer ir para casa dos avós, que eles levam-no a votar. Agora está a dormir ao meu lado. Mais logo veremos uns desenhos animados no computador. Daqui a uns meses iremos ao parque infantil lá em baixo. A vida passa depressa.
sábado, 5 de outubro de 2019
Meditação transcendental
Hoje é um dia especial, uma hora solene votada à meditação
transcendental e à reflexão, para que amanhã possa preencher o papel a
depositar na urna em consciência plena. Vi por aqui um conselho interessante
para meditação, o de O Livro das Falácias,
de Jeremy Bentham. Não é uma ideia desprezível e a meditação seria agradável,
por certo, mas não transcendental, como a hora exige. Por mim, recolho-me e
medito sobre a cláusula filioque.
Será que o Espírito Santo procede apenas do Pai, no dizer dos cristãos
ortodoxos, ou, como pretendem os católicos romanos, precede do Pai e do Filho.
Não se pense que a pendência não teve consequências práticas dolorosas. Levou
ao Grande Cisma do Oriente e talvez sem este Constantinopla não tivesse caído
na mão dos infiéis. Como se vê, o assunto é momentoso e apropriado à situação
grave em que nos encontramos. Como decidir a precedência do Espírito Santo e
dissolver a querela teológica não faço ideia. Não estou só, embora os teólogos
de ambos os lados tenham certezas antagónicas. A minha convicção, porém,
segreda-me que o Espírito Santo me iluminará amanhã na cabine de voto e me contemplará,
ao sair dela, com um jackpot,
segredando-me no silêncio da minha razão a sua verdadeira origem. Até lá,
estarei em reclusão meditativa. Transcendental, claro.
sexta-feira, 4 de outubro de 2019
A campanha alegre
Na caixa do correio tive, de novo, a evidência de que se estará em campanha eleitoral. Não sei se será uma prova irrefutável. Durante estes dias ainda não encontrei nenhum daqueles carros que, nos dias que antecedem o depósito do voto nas urnas, nos anunciam o paraíso que há-de vir, bem como os santos que nos hão-de ajudar, com o seu exemplo casto e virtuoso, a encontrar o caminho da salvação. Ao atravessar a cidade, pensava nestas coisas e ocorreu-me que os santos – na verdade, santos apóstolos – estejam cansados ou, então, perceberam que ninguém quer comprar uma estadia nos paraísos à disposição. Não tarda e teremos eleições civilizadas, sem gente a arruar por aqui e por ali, sem bombos e zés pereiras, palavras inúteis e gestos dispensáveis. Não sei o que me deu hoje para falar de política, mas presumo que sexta-feira seja um dia que nos inclina para a demência. Ainda discuti com o autor destes textos, fiz-lhe ver que o assunto não se quadrava com a minha índole, mas ele foi inflexível e pôs-me, para infelicidade minha, estas palavras na boca. Cansa-me o déspota.
quinta-feira, 3 de outubro de 2019
Irrelevâncias
Demorei um tempo sem fim a encontrar uns documentos digitais sobre os quais tenho de trabalhar. Tinha-os deixado de lado há dias e, ao querer voltar a eles, não os encontrava. A hipótese de os ter apagado de forma inadvertida foi o que me ocorreu. Lá fiz as pesquisas que tinha de fazer e nada. Por fim, encontrei-os precisamente no lugar onde deveriam estar. Tinha-me esquecido desse lugar. Nada disto me exalta como herói de uma narrativa. Mesmo num tempo como o actual, um herói não trabalha sobre documentos irrelevantes, para produzir outros ainda mais irrelevantes que hão-de ser louvados na sua absoluta irrelevância. Por outro lado, um herói que se digne de o ser tem uma boa memória e, para além dela, uma inteligência verrumante que, em caso de falência memorial, perfura, no tempo de um relâmpago, o espesso véu do esquecimento. Os deuses decidiram não me dar nada disso. Resolveram, na sua douta sabedoria, que eu deveria ser o prolongamento da irrelevância dos documentos com que tenho de compor a realidade. Sem tristeza aceito o decreto e mergulho na composição de mais uma insignificância. O que me vale é que depois de almoço hei-de passar a tarde a dar de comer a quem não tem fome. Ao menos que me fosse dado o talento de confundir moinhos com gigantes. Nem isso.
quarta-feira, 2 de outubro de 2019
Profetas
Pouco frequento cafés. Apesar de múltiplas tentativas, sempre os achei desconfortáveis para ler e, no entanto, eles são uma fonte narrativa que não deveria desprezar. Hoje entrei num. Numa mesa, um homem fulminava os acompanhantes e na sua boca geminavam-se confusamente pragas dirigidas aos homens e injunções que a serem cumpridas os salvariam a todos. O mal do mundo, cogitei, é não darmos ouvidos aos profetas que nele abundam. Entramos num táxi e, se não nos cuidamos, apanhamos com a sabedoria infinita de um Jeremias ou de um Daniel. Passamos distraídos pela rua e a uma esquina lá está um Zacarias irado. Não haverá, porém, lugar mais próprio para a profecia do que um café. Na mesa ao lado do fulminador, duas mulheres ainda novas entreolhavam-se. Havia nelas vontade de escarnecer do profeta, mas continham-se não as fulminasse ele com um raio. Saí dali como quem sai de uma página do Antigo Testamento. A rua acolheu-me benevolente. Olhei o céu e nele não havia sinais da cólera divina. Respirei fundo, entrei no carro e pensei no anunciador de futuros. É pena que não saiba que ninguém é profeta na própria terra.
terça-feira, 1 de outubro de 2019
O fascínio da fé
Fascina-me sempre a fé que as pessoas têm na sua própria
opinião. Também eu terei tido fé nas minhas opiniões. Depois, tornei-me
agnóstico e, hoje em dia, sou francamente ateu perante muitas das ideias que me
atribuo. A primeira coisa de que desconfio é das opiniões que nascem dentro de
mim. Deito-lhes um olhar enviesado, rosno-lhes e, se calha partilhá-las, não é
porque creia nelas, mas para me livrar do seu cheiro negro, para evitar que
azedem e me empestem os pulmões. Dou comigo a pensar, não poucas vezes, que o
caminho da Cartuxa tornaria o mundo bem mais habitável. Isto, todavia, não
passa de uma opinião, para qual também me falta fé. Li já não sei onde que a
Cartuxa de Évora iria fechar e os monges partiriam para Espanha. Faz sentido,
num país onde todos têm opiniões para dar, que não haja quem decida calar-se de
vez e entrar na pátria do grande silêncio.
Terapia para o caos
Há um momento na tarde em que a luz parece fixar-se sobre o
dia e assim tornar-se eterna. Depois, a ilusão desaparece e o tempo acelera,
anunciando nos tons das árvores ou no matizado das paredes a noite que há-de
vir. Lá em baixo, um bando de adolescentes entrega-se a rituais ruidosos, numa
liturgia eterna, antes de entrar para um centro de línguas. Os dias outonais são-me
propícios e acolho-os com a benevolência de um sorriso. À minha frente tenho um
livro cuja capa reproduz uma gravura de Pieter Bruegel. Percorro-a com os
olhos, demoro-me em cada uma das figuras e interrogo-me sobre o que motiva o
autor para a teratologia. Também no meu inconsciente habitarão terríveis
monstros, mas faltar-me-á coragem para os trazer à luz e com eles compor uma
figuração do caos. Chega até mim a voz de uma mãe a perguntar a uma filha se
está aí. Depois, diz Maria, Maria. Não se ouve resposta, apenas o ranger rouco de
um baloiço. Ao longe, a crista dos cedros inclina-se, dobrada pelo vento.
Outubro entrou vitorioso pelo calendário. Enquanto continuo a espiar a gravura
de Bruegel, oiço um grito prolongado de golo. Por cada golo gritado, penso,
adormece um monstro no fundo do coração daquele que grita. Uma terapia para o
caos.
domingo, 29 de setembro de 2019
A alegria do guarda-redes
Não sei o que aconteceu, mas aquela melancolia dos domingos
à tarde parece ter-se desvanecido. Não é que tenha razões para tal. As
segundas-feiras continuam a seguir-se aos domingos e não me deixaram de trazer
com elas os imperativos com que a necessidade me carrega. Lembrei-me, ao pensar
nisto, do livro de Peter Handke, que deu origem a um filme de Wim Wenders, A Angústia do Guarda-Redes Antes do Penalty.
O que angustia o guardador das redes é não saber o que adversário vai fazer,
para onde vai atirar a bola. Isso não se pode comparar com a melancolia dos
domingos, pois esta nasce de se saber bem de mais o que o dia seguinte traz. Lá
fora, a noite progride, cavalga sobre o casario, ri-se das luzes com que os
homens fingem deter o seu império tecido na urze das trevas. O silêncio tomou
conta das ruas e o último guarda-redes, depois de se atirar para o lado errado,
vai a pé para casa, alegre por amanhã ser ainda segunda-feira.
sábado, 28 de setembro de 2019
Compêndios
Comprei um livro que se apresenta como compêndio. Não interessa para o caso aquilo que ele compendia, mas é um sintoma de que, finalmente, percebi que a vida não é eterna. Quando não o sabia e pensava ter a eternidade à minha frente recusava-me a comprar compêndios. Hoje inclino-me para os epítomes – que raio de palavra fui buscar para dizer resumos – e, não tarda, hei-de mesmo compreender a velha estratégia das Selecções do Reader’s Digest de condensar obras literárias. Sábado é um dia que se abre à futilidade. Fui às compras, enquanto decorria a hora de almoço. É uma hora onde não se encontra ninguém. Fiquei, contudo, preocupado comigo. Havia um conjunto de vinhos interessantes, mas nem me apeteceu olhar para eles. Segui em frente como se fosse cego ou nem um bom vinho me interessasse. Há dias que são difíceis de levar pela trela. O tal compêndio está à minha frente. Olho para a capa mas não me atrevo a abri-lo. Há coisas que é mais ajuizado não saber.
sexta-feira, 27 de setembro de 2019
Uma irritação
Hoje irritei-me com um acontecimento da vida particular. Uma irritação mesmo naquela hora em que a tarde se afirma no seu mais negro esplendor, com o sol a coriscar e a calçada a arder diante dos meus olhos. Depois, há sempre um depois, olhei para a irritação e não consegui deixar de me rir. A realidade permanece intocada quer me irrite ou não. Esta intocabilidade do real quase me reconciliou com o mundo e a irritação como um fantasma dissipou-se. O vento faz tremular a folhagem das árvores e o sol reverbera nas paredes da escola que avisto da janela. Em tudo há um ar de fim-de-estação, um cansaço desabrido, um chamamento por qualquer coisa que não aquilo que temos de momento. Depois, a propósito de uma controvérsia matinal, lembrei-me de quando tinha quinze ou dezasseis anos e de todas as ilusões que guardava no cofre-forte da minha ingenuidade. Com o tempo, abri o cofre e as ilusões foram saindo pelo seu pé. Estou-lhes grato pela fantasia, mas hoje já não tenho paciência para elas.
quinta-feira, 26 de setembro de 2019
Mudanças
De súbito, voltei a escutar os pássaros meus vizinhos. Julguei que se tinham mudado, mas não ou, então, foi uma nova família que aqui se instalou. Lá em baixo, uma camionete de mudanças recebe os móveis de alguém que vai procurar outras paragens. Também eu mudaria de lugar se pudesse mudar de mim mesmo. Como não posso, o melhor é ficar onde estou, até que o próprio lugar se farte de mim e aja em conformidade. A manhã declina e um silêncio apoderou-se do mundo que me envolve. Talvez se esteja numa daquelas horas em que um deus se revela ou em que os anjos, cansados de vigiarem os homens, se juntam para jogar dominó. Olho ao longe. No parque de estacionamento do hospital, os pára-brisas multiplicam os sóis, num desejo de incandescência que me parece funesto. Os pássaros emudeceram e o único barulho que oiço é o dos meus dedos a afundarem-se nas teclas. O melhor é também eu entrar na casa branca do silêncio.
quarta-feira, 25 de setembro de 2019
Amanuense
Podia falar sobre como uma virose me desacerta do mundo e faz crescer em mim um enjoo persistente, mas não falo. O desacerto é coisa antiga e não faltam por aí coisas que me enjoem. Estou irritadiço e cansado. No novo parque infantil, o baloiço ao mover-se para a frente e para trás grasna continuamente, espalhando pelo ar um aroma a crisântemos em dia de finados. Olho para as estantes e faço a contabilidade de todos os meus enganos. Deveria ser amanuense para passar o dia entre registos e certidões, deixando o tempo passar lentamente, sem que uma fantasia me tocasse, sem que um livro chamasse por mim, sem que um devaneio toldasse a marcha imperiosa do dever. Não há nada de melhor do que não ser nada. Acabada a função, entra-se pela porta do grande silêncio, sem que ninguém nos espere ou dê pela partida. Um dia pego numa esponja e começo a apagar o nome, a data de nascimento, o estado civil. Não há biografia mais autêntica do que a do soldado desconhecido.
terça-feira, 24 de setembro de 2019
Registos
Na minha secretária, feito de papel espesso sobre o qual apetece passar as pontas dos dedos, está um pequeno caderno salmão com uma
bela fotografia na capa. Na primeira página, impressos a castanho, flutuam dois versos
de um poeta cujo nome prefiro ocultar. Ofereceram-mo pelo menos há cinco
anos, talvez há mais, muito mais. Tenho lá algumas coisas escritas, mas não
passam de trivialidades soturnas, entre elas anotações sobre o romance Pasenow ou o Romantismo, do tríptico Os Sonâmbulos, de Hermann Broch. Noutra
página descubro umas observações pretensiosas sobre a ideia de Jesus Cristo
como Urmensch. Tudo o que lá encontro
dá-me, de imediato, um desgosto implacável. Só as páginas em branco fazem
crescer em mim a alegria, que recompenso com a promessa de nelas nada
escrever. Nunca fui dado ao registo das coisas inúteis que me ocorrem.
Da vida amputada
Depois de almoço fui atormentado por uma sonolência infame. Cabeceei, adormeci por instantes, para acabar por acordar sem ter dormido. Imaginei-me dentro de um sonho, cujos contornos logo se esvaíram. O peso das pálpebras é o pior. Nada mais difícil do que a ascese da vigília. Nem a frugalidade monástica da refeição obliterou a tentação. Deveria escrever sobre a vida amputada mas não me ocorre nada que mereça ser dito. Ontem fui ao cinema. Uma plateia ansiosa esperava acção decidida, mas a obra explora a lentidão com que os sentimentos se desenham debaixo da pele para depois brotarem na sua crueza. Ao sair da sala pensei que a tensão entre pai e filho no filme é uma brincadeira sem astúcia nem engenho se comparada com a de Johan e de Henrik no último trabalho de Bergman. Por outro lado, depois de Eça ninguém, num romance ou num filme, deveria ousar trazer o incesto para o enredo. Daqui a pouco terei de entrar para dentro do reino da necessidade e esgaravatar na terra húmida das coisas que não interessam. Nem a mim, nem a ninguém. Talvez seja isso o que há a dizer da vida amputada.
segunda-feira, 23 de setembro de 2019
Betabloqueantes
Na farmácia, venderam-me a colecção completa de medicamentos
que me prescreveram para baixar o ânimo da tensão arterial. Esta tem tendência
para exorbitar e passear pelo meu corpo a sua mania das grandezas. Como eu,
também ela é dada à hipérbole. Sofre de um excesso de retórica e de pouca
prática da virtude da humildade. Saí da botica pacificado e tranquilo, sabendo
que tenho à mão aquilo que há-de humilhar essa pretensiosa. Enquanto
calcorreava a avenida em direcção a casa lembrei-me dos primeiros tempos em que
tomei um betabloqueante. Tudo o que me aborrecia e irritava desapareceu, como
se o pequeno comprimido fosse um portal para o paraíso. Desejei que fosse
eterno o efeito, mas como em tudo na vida, também nos betabloqueantes o hábito
mata o prazer. As irritações e aborrecimentos voltaram a irritar-me e a
aborrecer-me, disse-o ao médico que me olhou com ar complacente e confirmou que
a vida é assim. Esta sólida sabedoria deixa-me sempre estupefacto,
perguntando-me como não me tinha ocorrido tal coisa. Na rua procuro as sombras
e calcorreio o passeio em passo lento. Um cão ladra, adolescentes retêm a sua
adolescência a caminho da escola e um casal entra para um carro ajoujado ao
peso da mútua presença. Não precisam de betabloqueantes, pensei.
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