segunda-feira, 3 de agosto de 2020

Destinos

A primeira notícia que li hoje deu-me a boa nova de que posso produzir cerveja em casa. É muito mais fácil do se pensa, asseguram uns mestres cervejeiros. Isso raptou-me a atenção. Sempre me fascinou a ideia de faça você mesmo e a entrada no mundo obscuro do artesanato. O meu único problema é que não encontro motivo para entrar nesse universo artesanal através da porta líquida da cerveja. Que me perdoem os amantes, mas passo bem sem ela, embora uma vez por outra a beba. Fosse um belo tinto, ainda pensaria duas vezes, mas esse não se deixa enganar com artesanatos caseiros e diletantes à procura de experiências para matar o tempo. O vinho é um exercício rigoroso, nascido da contemplação do passar dos dias, não se presta ao faça você mesmo, ao pronto a beber e todas essas coisas que um mundo superficial decidiu parir como filhos. Julgo que há uma conspiração do mundo contra mim. Sempre que vejo anunciado uma boa nova, ela não me é destinada. Não devemos menosprezar o destino. Prodigioso é o silêncio na pedra, escreveu um dia o poeta austríaco Georg Trakl. Mais tarde, foi mobilizado como oficial farmacêutico, ele que era dado ao consumo de substâncias psicotrópicas, para a primeira grande guerra. A 3 de Novembro de 1914, uma overdose de cocaína pôs-lhe fim ao desconcerto de ter de participar nesse grande evento da loucura europeia. Não tornará a escrever um verso, nem poderá murmurar Nos muros, apagar-se-ão as estrelas / e as brancas figuras da luz. Se prodigiosa é a palavra do poeta, mais prodigioso é o seu silêncio, esculpido na pedra fria da morte. Um melro, vestido de um luto fulgurante, saltita diante do canavial. Duas rolas passam e poisam num ramo seco duma árvore morta há muito. O tempo resvala para dentro de si, enquanto procuro um copo para beber o vinho deste dia.

domingo, 2 de agosto de 2020

Pessoas de papel

Os ociosos dias de Agosto espalham-se por dentro das folhas de calendário, trazem odores que o tempo fizera esquecer e recordações inúteis. As aventuras do salteador Dick Turpin, num livro aos quadradinhos, comprado pelo meu pai com os jornais antes de entrar no café, uma toalha perdida no meio do mar, a esteira deixada pela passagem de um veleiro. Em vez dos magnos problemas do mundo ou do intelecto, eram essas coisas que me ocupavam ainda agora o espírito. Desconfio, embora sem certezas, de que com o avançar da idade só as coisas realmente importantes têm o poder de nos captar a atenção. O mundo e a inteligência sempre fizeram a sua vida sem a nossa contribuição e, portanto, há que deixá-los sossegados. Ontem conheci o tenente Sturm. O nome não deixa de ser curioso. Traduzido significa tempestade. O tenente Tempestade não era um salteador de estrada como Turpin, mas um combatente na primeira guerra mundial, talvez um alter-ego do seu criador, o escritor alemão Ernst Jünger, também ele envolvido na guerra e, como Sturm, dado às letras. Uma homenagem também ao Sturm und Drang. As coisas mudam muito menos do que se pensa. Na infância, era Turpin ou Alvega que me ocupavam o espírito, hoje é Sturm e Bradomín, o marquês galego dado a D. Juan. Se temos pessoas de papel para que precisamos nós das outras? Devia evitar frases como esta. Não respeitam o senso comum e ainda hão-de servir para me acusarem de inimigo do humanismo, senão da humanidade. Como se sabe, se este narrador tem uma característica, embora não um carácter, é o de cultivar a hipérbole. Vou comprar um livro à minha neta e tomar café.

sábado, 1 de agosto de 2020

Eu e o Marquês

Para começar o mês, um provérbio do Oeste. Primeiro de Agosto, primeiro de Inverno. A imprensa de hoje está tenebrosa. Parece que o PIB caiu, só espero que não se tenha magoado. As quedas são sempre propícias a fracturas. Então se for do fémur, um cabo dos trabalhos. Como se vê, inicio este mês ferial mergulhado não nas águas atlânticas, mas na cultura popular. Essa é a minha glória, exprimir-me por lugares comuns e não ter sobre o mundo outros pensamentos senão aqueles que já não pensam nada. Confesso, porém, que nisto de expressões populares, como em todo o resto, sou um diletante. Nem tenho um dicionário de expressões populares portuguesas. Na agenda, anoto as referências de um que devo comprar. Tem 700 páginas e capa dura. Não lhe faltarão expressões para usar nestes textos, e um livro encapado com dureza dá outro sainete. Sempre detestei esta palavra e vejo-me agora obrigado a usá-la. As pessoas não acreditam, mas as sensibilidades de autores e de narradores estão muito longe de coincidirem. Hoje já pus a máscara para ir comprar limões à praça, mas a Rosinha não estava lá. Acabei por me esquecer do que lá ia fazer e comprei figos, uma das poucas frutas que detesto. Uma desgraça. O que me tem valido, para me dar boa disposição, é o marquês de Bradomín, esse D. Juan feio, sentimental e católico, burlador burlado, um fidalgo da velha cepa, daqueles que já não há. Também ele teve a sua Salammbô, menos dramática e mais carnal. Por mim, já não seria mau se tivesse comprado limões à Rosinha. Bradomín sempre é um marquês dos antigos e eu um narrador plebeu e de gosto duvidoso.

sexta-feira, 31 de julho de 2020

Julho fina-se

Como o mês acaba hoje, acho que vou dedicar-me a uma sessão de auto-análise, para descobrir os avanços e os obstáculos que me tolhem no glorioso caminho em direcção à excelência. Quanto mais excelente me torno, mais próximo fico da morte. Começar assim não é recomendável. Quem há-de querer ler coisa mórbidas, pois para mórbida basta a vida. Sentados numa esplanada, um homem e uma mulher formam um casal perfeito. Ela não fala, ele não olha para ela, prefere um jornal desportivo, muito mais palpitante do que vinte anos de cansaços e amarguras. Ela elege como destino do olhar o horizonte. Ali, esconde-se tudo o que a vida prometeu. Afinal eram falsas promessas. Quanto a mim, tomo café com a lentidão de um veleiro num mar sem vento e escrevo estas coisas destituídas de sentido no bloco notas do telemóvel. A vida é sempre muito mais exígua do que o nosso desejo, o problema é que além do desejo também nos foi dada a ilusão. O homem põe o jornal de lado e preenche com demora um boletim do Euromilhões. Talvez esteja a consultar no inconsciente as informações que o guiarão à fortuna. A mulher revira os olhos, cansada de tanto horizonte e eu deixo-os em paz, afinal o motivo da minha existência, no dia de hoje, sou eu, agora que me imagino no divã a fazer associação livre, enquanto escrevo os meus feitos e defeitos naquele sítio onde me é permitido enfrentar a necessidade. Não devias falar por enigmas, diz-me a consciência. Sempre achei a consciência uma grande rameira. Vende-se-me com demasiada facilidade. Se fosse casado com ela passaria o dia a ler jornais desportivos. Julho está a finar-se.

quinta-feira, 30 de julho de 2020

O dia da matrícula

Lembrei-me agora de que tenho um assunto a tratar numa dessas repartições públicas que, apesar de continuamente modernizadas, nunca deixam de parecer emanações neo-realistas vindas dos anos quarenta do século passado. A memória vive de súbitas eclosões, relâmpagos raramente antecedidos pelo trovão. Vive também de associações. Vejo-me há muitos anos a subir, levado pela minha mãe, uma rua inclinada que terminava lá no alto, numa praça, mesmo ao lado de uma igreja dedicada ao Salvador. Naquele dia, a ida ficou-se a meio caminho. Entrou-se pelo portão de ferro e o destino era uma dependência modesta de um palácio, então em decadência. Subimos os degraus. Lá dentro, dois sacerdotes da instrução pública registavam matrículas, distribuíam alunos por professores, tratavam do expediente. Era um dia quente de Julho, eles estavam de fato e gravata e usavam as negras mangas de alpaca como qualquer amanuense. Lembro-me, passados tantos anos, da poalha a girar nos ares iluminada pelos raios de sol que entravam pelo vidro encardido de uma janela. Tudo aquilo era tão soturno, que se fosse dado a sonhar, certamente aquelas imagens haveriam de vir misturadas em algum pesadelo. Os livros de registo eram, aos meus olhos, descomunais, pareciam ocupar todo o tampo das secretárias, e os missionários educativos preenchiam-nos vagarosamente, usando uma caneta de aparo que ia molhando num tinteiro de tinta azul aguada. Desenhavam a letra com a precisão que o hábito dá. O meu nome ficou lá inscrito, aguado de azul, na classe de um professor de fama tenebrosa, soube-o depois. Na parede, ladeando um crucifixo onde Cristo continuava pregado, duas fotografias assombravam aquela repartição já de si assombrada. Quando a minha mãe me tirou dali, pensei que me tinha libertado de qualquer coisa que, mais tarde, associei a um filme de terror, daqueles em que uma inquietante estranheza prenuncia uma desgraça. Não devemos dar trela à memória, pois ela não se cala e aquilo que esqueceu inventa-o para que a conversa não acabe. Parece ser hora de almoço. Ainda oiço o ranger do aparo sobre as folhas de papel almaço. Seriam?

quarta-feira, 29 de julho de 2020

Familiaridades irritantes.

Há familiaridades que me irritam. Quem terá dito aos programadores do novo Word que sempre que se abre um ficheiro temos de levar com uma mensagem de boas vindas? Ainda por cima vem acompanhada por uma injunção disfarçada de conselho: comece onde ficou ontem. A cortesia deve poder desactivar-se, mas estou suficientemente desactivado para o conseguir fazer. Talvez não tenha acordado com boa disposição e não saiba apreciar esta urbanidade informática. Num outro tempo, esta terra era um mar a fervilhar de oliveiras e figueiras. O azeite e o álcool alimentavam as lamparinas com que a vida por aqui se iluminava. Havia um calendário de cheiros que desapareceram, substituído por um mundo inodoro e insípido. A memória apazigua-me com as tontices do marketing. Aqui perto alguém canta. Não é um pássaro, nem um anjo. É uma voz de mulher perdida numa lide doméstica. Do prédio em frente, alguém chega à janela, apanha a roupa e refugia-se. O ritmo dos dias enrola-se no perfume que alguém deixou no elevador. Sentado, olho para a rua e procuro descobrir no silêncio a transparência com que o passado me assedia a memória. Numa outra casa, havia um poço com uma roldana de ferro. A corda descia e subia com um balde cheio de água pura. Não sei o que hei-de fazer com essa água, agora que a casa já não existe.

terça-feira, 28 de julho de 2020

Manobras militares

Começa-se a ouvir o bater das botas cardadas no alcatrão. Os exércitos de Julho batem já em retirada, derrotados pela implacável queda das folhas do calendário. Muito ainda haverá a penar para que um cessar fogo de alguns meses permita uma vida sem a ameaça contínua de se ser bombardeado pela aviação do calor. A milícia estival estende quase sempre as suas operações muito para aquém e para além daquilo que um tratado antigo, que dividia o território do ano em estações iguais, lhe outorgou. Bebo água para me hidratar e observo o vagar com que a minha mente orquestra a realidade. Oiço vozes lá fora, mas não consigo compreender o que dizem. São apenas ondas sonoras que vão e vêm, murmúrios, súbitas irrupções de notas agudas, e logo o som baixa e não é mais que um restolhar de folhas secas num Outono adiantado. Há muito que me recomendo o evitar de truques estilísticos, a pôr de lado metáforas e alegorias, alguma metonímia perdida. Falta-me o talento. Descrever a realidade com exactidão é a mais difícil das tarefas. Suspeito que a realidade não gosta que a descrevam e depois lança feitiços sobre quem escreve para que se perca no desvio retórico, imaginando que a metáfora nasce do brilho da escrita, quando não é mais do que a manifestação da sua pobreza. Eu sei que não estou no melhor dos dias, mas escusava de ter escolhido um assunto tão mórbido. Sempre podia falar do friso das orquídeas, do que me disse a Marília ontem, quando se cruzou comigo à porta de uma grande superfície e me reteve para confidências. Talvez ache que eu tenho cara de sacerdote ou alma de psicanalista. Não tenho, a minha virtude que tanto atrai a confissão é a indiferença. Quero eu lá saber da vida dos outros, se nem da minha sei. Não tarda e ouvem-se os primeiros pelotões de Agosto. Pobre Marília, também os calores a importunam.

segunda-feira, 27 de julho de 2020

O desejo infinito

Uma das coisas que se aprende com a observação do mundo é que a maioria das pessoas confunde o desejo com aquilo que é possível. A realidade surge então sempre de forma sombria e toda a gente parece mancomunada para evitar o que seria possível, não fora a aleivosia dos outros, porque nisto, os aleivosos são sempre os outros. Não lhes passa pela cabeça que aquilo que é possível pode nada ter a ver com aquilo que desejamos. As possibilidades são finitas e o nosso desejo é infinito. Este tipo de estultícia, muitas vezes mascarado de erudição, abunda por todo o lado. Falei sobre isto com o padre Lodo e o casal seu amigo, no jantar de há dias. O mecanismo é interessante, disse o padre e passou a uma longa explicação didáctica. O nosso desejo, referiu com uma entoação sempre italianizada, diz-nos que algo é muito desejável. Depois, a nossa razão contaminada pela sensualidade proclama bem alto que o nosso desejo é possível de realizar. A partir daí tentamos impor aos outros a realização daquilo que desejamos, mas como raramente o desejo se atém ao que é possível, saímos para a rua com o dedo em riste a acusar esses malandros que não realizam as nossas fantasias. A perspicácia de Lodovico nem sempre lhe granjeou amizades. Pelo contrário. Lembrei-me disto, depois de ler certas coisas há pouco, coisas que caem neste erro, mas que merecem longos aplausos e muitos likes nas redes sociais. Toda a gente sofre de infinidade do desejo, pensei. Por mim, desejo um café.

domingo, 26 de julho de 2020

Insónias e sonatas

Hoje saí de manhã para fazer os meus seis quilómetros contra a inércia e a preguiça. Consta que faz bem e evita que a balança se entregue ao destempero, ao ser pisada por mim, e me devolva algum impropério em forma de quilogramas. A passeata foi um pouco mais lenta do que a de ontem. Dormi mal, uma insónia bateu-me à porta e eu, incauto, abri-lha. Dei por mim apreciar a companhia. Permitiu-me acabar de ler um romance de Ramón del Valle-Inclán, a Sonata de Otoño. Alguém dirá que também Ingmar Bergman realizou uma Sonata de Outono, o que é verdade, mas não têm nada a ver uma com a outra. Cada uma tem o seu assunto e o seu ritmo. Quem me recomendou o Valle-Inclán foi a Emilia Bazan, a mulher do antigo aluno alemão do padre Lodovico Settembrini, no jantar do outro dia. Como não conhece nada dele, comece pelas Sonatas, sentenciou. A primeira é a de Outono, acrescentou, numa tentativa de trocar o seu magnífico castelhano pelo português. Nesse momento, o padre Lodovico franziu as sobrancelhas, mas não disse nada. Percebo-o, agora. O Marquês de Bradomín não é propriamente um exemplo de bom cristão, mas o padre também teve os seus dias avessos ao altar. Eu obedeci, muni-me de um exemplar e li. Isso fez-me andar mais devagar, o que foi logo notado pela aplicação do telemóvel que me segue os treinos. Na verdade, eu não ando a treinar, mas é assim que ela interpreta o facto de eu me pôr a caminhar rua fora sem destino, a não ser o da casa da partida. Caminhar é como jogar ao Monopólio. Vá para a casa de partida, mas não tem nada para receber. Nos domingos de Julho íamos, por vezes, almoçar à casa onde nasci. Era um almoço sob uma latada, o que criava uma sensação de frescura. Naquela altura, ainda ninguém tinha morrido e o mundo parecia uma clareira aberta. Há muito que não é possível juntar todos aqueles comensais, mas eles fazem parte de mim. Hoje talvez comece a ler a Sonata de Estío ou pergunte às minhas netas se querem jogar Monopólio. Presumo que me olharão de lado.

sábado, 25 de julho de 2020

Não-assuntos

Sábado, dia de ócio. As palavras da família do ócio têm todas péssima imprensa. És um ocioso. Soa como uma acusação fundada num juízo moral negativo. No entanto, a palavra ócio quer dizer repouso, descanso, coisas que me parecem benévolas. Depois, um mundo que ficou fascinado pela agitação, pela febre das realizações e pela velocidade associou o ócio à preguiça e à inacção. Os acusadores do ócio tecem loas ao trabalho, mas nunca dizem que a palavra vem do vocábulo latino tripalĭu. Um tripalĭu é um instrumento de tortura constituído por três estacas ou paus. O exercício não seria conhecido pelo prazer que provocava a quem a ele era submetido. Na verdade, o trabalho, talvez até à Revolução Industrial, nunca mereceu louvor. Trabalhava quem não tinha estatuto social para fazer outra coisa. No entanto, podemos encontrar inesperados aduladores do trabalho. No Diário Íntimo, Baudelaire afirma que o prazer gasta-nos. O trabalho fortifica-nos. Os nazis não eram destituídos de humor negro e, por certo, percebiam a natureza torturante do trabalho. Inscreviam na entrada de alguns campos de concentração, como Auschwitz, o trabalho liberta. Curiosamente, em Baudelaire o trabalho também é visto como uma libertação, mas da omnipresença na consciência da sensação do tempo. Tanto o prazer como o trabalho são vistos por ele como distractores da nossa condição de seres finitos. Tudo isto porque chegámos a sábado. Nos dias de ócio, pode-se ociar de diversas maneiras. Por vezes, pratico o ócio procurando autores que ninguém lê. Leio-lhes umas páginas e esqueço-os. Quem terá ouvido falar em Karl Krause, um filósofo kantiano que viveu no final do XVIII e no início do XIX? Não o confundir com o famoso dramaturgo austríaco Karl Kraus. E do pensador holandês François Hemsterhuis, que viveu no século XVIII? Ninguém. Eu também não. Encontrei-os porque levado pelo ócio me pus a procurar as obras, numa língua acessível, do romancista romântico alemão Jean Paul. Deste, eu tinha duas referências. A de Sebald que é elogiosa e a de Schopenhauer que o acusa de não ter nada para dizer e de só escrever por dinheiro, isto é, acusa-o de trabalhar. Olho para a minha agenda imaginária e vejo que tenho de dar parabéns a alguém. Depois, escrevo nela a seguinte nota: evitar assuntos idiotas ao sábado, aproveitar o ócio para uma coisa mais decente do que encher o monitor com palavras sobre não-assuntos. O pior, porém, é que com a passagem do tempo só os não-assuntos me interessam.

sexta-feira, 24 de julho de 2020

As rosas da Piéria

Safo, no poema As rosas da Piéria, lança, talvez sobre alguma amante que a rejeitara, o pior dos anátemas que os ouvidos gregos podiam, naquele tempo, escutar: Morta jazerás e de ti não haverá jamais memória / nem saudade no futuro: pois não participaste das rosas / da Piéria. Ser perdido pela memória dos outros. Não haver quem no futuro de si se lembre. Os séculos edulcoraram a maldição, até a transformar em pura aceitação, como se o esquecimento dos outros fosse o próprio da condição humana. Em muitos, todavia, persiste a revolta. Persegue-os aquilo a que popularmente se chama a mania das grandezas ou o desejo da fama, mas isso não é mais do que o temor de ser esquecido pelo futuro. O colírio para esse mal não era, segundo Safo, um qualquer, mas a participação na vida das musas, as rosas da Piéria. A arte seria assim o resultado de um combate pela memória e a saudade que o futuro teria do artista. A sua ausência e a sua falta seriam sentidas. Dignos de imortalidade, de persistirem na memória dos vindouros, não eram apenas os grandes feitos, mas também as grandes palavras. O melhor seria que aquele que realizasse um grande feito dissesse também grandes palavras, que participasse no convívio com as rosas da Piéria. Gostaria de saber a razão por que me pus com estas elucubrações, enquanto a vida lá fora fervilha e as pessoas caminham para o seu próprio esquecimento. Vão esquecidas de que serão esquecidas. Recordei-me agora de um poema de David Mourão-Ferreira, Ladainha dos Póstumos Natais. Relei-o e soletro baixo para que ninguém me escute: Há-de vir um Natal e será o primeiro / em que terei de novo o Nada a sós comigo. Nem as rosas da Piéria nos salvarão. O fim-de-semana abre-se diante de mim e isso é o mais que posso desejar.

quinta-feira, 23 de julho de 2020

Um fado, uma sina

A semana entrou na recta final. É uma frase estranha, mas não notamos a estranheza, de tanto a usar. Nem sempre o tempo foi visto como uma recta, melhor como uma flecha que segue sempre em frente, sem que nada a detenha ou desvie. Tempos houve em que o homem o compreendia como se fosse um círculo, em que tudo voltava, num verdadeiro eterno retorno do mesmo. Tudo isto para dizer que a semana se aproxima do fim. Ainda há dia e meio para as utilidades, mas logo chegará o ócio do fim-de-semana. A imprensa substituiu o retrato imaginário de um vírus COVID-19 pelo de Amália Rodrigues, no centenário do nascimento da fadista.  Ficámos todos a ganhar. O vírus é horrível, enquanto Amália era uma bela mulher. Fica muito bem nas capas dos jornais. Os olhos agradecem. Durante muitos anos, não liguei nada ao fado. Depois, Amália Rodrigues, Alfredo Marceneiro e Carlos do Carmo dobraram-me. Hoje em dia, quero dizer no tempo em que ainda não havia retratos de vírus na primeira página dos jornais, vou a concertos de fadistas. Nunca me arrependo. Talvez seja a isto que se chama envelhecer. Na rua, os cães ladram, um casal passa devagar, cada um ajoujado ao peso da própria sombra. Separa-os meia dúzia de metros, como se já não pudessem suportar a companhia um do outro. Foi por vontade de Deus. Também eles têm a sua sina. Um pássaro canta, enquanto um par de anjos poisa no prédio em frente.

quarta-feira, 22 de julho de 2020

A fortuna do saco

Os dias seguem enrolados em inexpugnável manto de calor. S. Pedro, descontente com a vida que se leva por aqui, lança anátemas e raios de sol para abrir consciências e rasgar peles. Talvez não devesse levantar estas suspeitas sobre aquele que detém as chaves do céu. Deve-se sempre ter as melhores relações com quem gere as portas e administra permissões e proibições de entradas. Segundo consta, nem vale apena argumentar contra decisões desfavoráveis, pois o porteiro celeste tem mais que fazer do que ouvir mentiras, ele que sabe toda a verdade. Deveria evitar estes esboços de mitologia, pois vivemos num tempo desencantado em que ninguém tem saco para este tipo de conversa. É uma pena. Quem diria que a palavra saco teria tão grande fortuna. Encher o saco, despejar o saco, meter a viola no saco, não cair em saco roto, meter tudo no mesmo saco. Ter ou não ter saco, eis a questão. É possível que toda a metafísica se resuma a ter ou não saco ou seja uma questão de ensacar e desensacar. Os dias de Verão são sempre difíceis, principalmente para um narrador que nada tem para narrar. Podia falar da Marília que tornei a ver com o Zé Tó, ambos com ademanes abrasileirados, um samba excessivo para a idade deles. Digo eu. Poupo-vos, porém, aos pormenores. Tenho de ir encher o pneu da bicicleta da neta mais nova. Andar de bicicleta dá muito trabalho.

terça-feira, 21 de julho de 2020

Dos sonhos e da distância

Foi Bioy Casares que, num conto intitulado de Nóumeno, fez dizer a Arturo os sonhos são convincentes, mas não vou permitir que a superstição prevaleça sobre a sensatez. Talvez tenha razão e a superstição nasça do sonho, daí o seu poder de convencer e gerar fundas convicções. Tenho uma vantagem sobre a maioria dos humanos. A mim os sonhos não me convencem e, por isso, talvez possa resistir melhor à superstição. Esta vantagem não nasce de uma qualidade que possua, mas de um defeito. Raramente, mas muito raramente, me recordo de um sonho. Se durante o sono se deram em mim aventuras oníricas, mesmo as mais extraordinárias, quando acordo é como se nada se tivesse passado. Há quem discuta se se sonha a cores ou a preto e branco, eu não faço ideia do que estão a falar. Se alguma vez fosse tentado pela psicanálise, não teria sonhos para interpretar. Restariam a associação livre e os actos falhados. Aqui haveria material em abundância para ser conduzido ao momento traumático que na infância me fez apagar o poder de recordar os sonhos. Não se pense, porém, que eu tenha fé na psicanálise. Como disse, resisto à superstição. Ontem encontrei um amigo que já não via há uns meses. À distância, atirou ele. É a nova ordem mundial. Eu percebo-o bem. Médico de profissão, não pode fazer outra coisa senão cultivar a distância. E ficámos a conversar com um espaço de segurança de uns três metros, a combinar um encontro de famílias, mas não faço ideia como vamos resolver a distância nesse encontro, onde haverá crianças e adolescentes. A proximidade entre as pessoas tornou-se uma superstição nascida de um sonho. Resta-nos a distância. Cristo se viesse agora ao mundo já não ordenaria amar o próximo como a si mesmo, mas o distante. Quanto mais distante mais digno de amor.

segunda-feira, 20 de julho de 2020

Fábrica de desejos

Hoje acordei com uma inexplicada inclinação para assuntos metafísicos. Fui salvo pelo dever terapêutico de ir caminhar. Seis quilómetros de périplo fizeram-me esquecer a tentação matinal. Não é que não se pense quando se caminha, mas os pensamentos são físicos, sobre coisas a que chamam realidade. Um carro que passa, um buraco num passeio que quase nos faz cair, uma pessoa conhecida que nos cumprimenta, três desconhecidos que correm como se fossem atletas de alta competição, outro que se arrasta pela calçada e que se tivesse um módico de consideração por si evitaria aquela figura. Caminhar é abrir uma janela por onde perpassam as mais inesperadas personagens de milhares de romances que nunca se hão-de escrever. Outras vezes enrolamo-nos em pensamentos que nos chegam do passado ou então em imaginações vindas daquela fábrica de desejos que todos transportamos connosco. Possuir uma fábrica de desejos dentro de nós é um perigo, talvez o maior dos perigos. Quem quiser uma vida descansada fecha a sua fábrica de desejos, despede o pessoal e mergulha na realidade, sem deixar que um desejo sequer lhe bata à porta. Chegado aqui, se me perguntarem a razão por que estou a escrever isto, só tenho uma resposta: não faço a menor ideia. No entanto, isso não tem qualquer gravidade. As pessoas não fazem a mínima ideia das razões que movem a maioria dos seus actos e fazem-nos, achando neles, por vezes, felicidade. Isto foi o que disse o padre Lodo no jantar de sexta-feira, quando a Emilia Bazán lhe perguntou a razão de ter vindo viver para Portugal. Oiço uma voz a chamar-me. Eu sei, eu sei, ainda não fui arranjar o furo da bicicleta. Deveria ter pensado nisso quando caminhava, mas talvez estivesse ocupado com a minha fábrica de desejos.

domingo, 19 de julho de 2020

As dádivas de Zeus

Troquei de versão do Word. A que tinha vai deixar de receber actualizações e comprei uma recente. Esta irrita-me. Muito, diga-se. Mancomunada com os defensores do Acordo Ortográfico de 1990, sublinha-me como erro todas as palavras portuguesas que foram banidas por arbitrária decisão política. Exceptuando os governos de Portugal, penso que mais ninguém liga ao patético Acordo. Este é uma conjuração contra as consoantes mudas, algumas das quais não são assim tão mudas. Se vivemos num mundo em combate contínuo contra discriminações e perseguições, como é que continuamos a pactuar com a perseguição às consoantes mudas? Os domingos são dias propícios à falta de assunto. Entretanto, uma das minhas netas entrou-me pelo escritório dentro, avô, avô, tenho um furo na bicicleta. Um furo? Um furo. Hoje é domingo, respondi. A oficina está fechada? Está. Noutros tempos, haveria de haver uns remendos tip-top e lá se desmontava a roda e, após uma complexa liturgia, o furo estaria remendado. Hoje a especialização leva a estas situações e a minha alma nunca teve qualquer inclinação para a mecânica. Ela encolheu os ombros. Vou andar de hoverboard. É uma boa ideia, ao menos não há risco de se furar uma roda, respondi. Olhou-me com complacência e foi-se embora. Para amanhã já tenho uma tarefa inadiável. Na nova edição de Poesia Grega, com traduções de Frederico Lourenço, há três fragmentos de poemas de Mimnermo. Em todos se encontra uma lamentação pela velhice e num deles há uma inesperada consideração sobre a igualdade dos homens: Não há ninguém a quem Zeus não dê muitas tristezas. Enquanto forem acordos ortográficos ou um furo na roda dianteira da bicicleta, as coisas não estão más, pensei num momento de optimismo. O Word, impiedoso, assinalou-me como erro optimismo. Talvez o optimismo seja um erro trágico, considerei.

sábado, 18 de julho de 2020

A morte de Rafael e a parusia de Jesus

Acabo de ler que Rafael, o pintor renascentista, morreu vítima de uma doença semelhante à provocada pelo coronavírus. Não contentes com isto, os informadores ainda foram desenterrar as coscuvilhices do Vasari. Este não precisou de redes sociais para registar e divulgar que o pintor de Urbino não apenas saía de casa à noite, quando estava um frio de acender lareiras, como o fazia para visitar as amantes. No plural, note-se. O amor à concorrência e a valorização do mercado não são coisas de agora. Ainda por cima omitia estes factos venturosos aos médicos e, quem sabe, aos confessores, o que seria mais grave. Resultado? Morreu aos 37 anos, apesar dos cuidados que lhe foram dispensados. Somos levados a imaginar que se ele não se tivesse dado a tanta consolação nas noites frias, não teria tido uma morte tão desconsolada. Continuando com a imprensa. O leitor talvez já não se recorde o que é a parusia. Os tempos não andam bons para se manter uma sólida cultura religiosa, mesmo que seja aquela em se foi educado. Apesar do termo ser um pouco esdrúxulo (na verdade, é uma palavra grave de origem grega), refere-se a uma antiquíssima crença dos cristãos. A segunda vinda – em glória – de Jesus. Expectativa iminente e sempre adiada. Vejo agora na imprensa que a segunda vinda de Jesus está consumada. Não há jornal ou site de informação que não proclame que Jesus voltou. Há quem espere que seja em glória, mas sobre isso não me pronuncio. Confesso que com o calor de hoje não me ocorreu mais nada. Podia ter contado o meu jantar de ontem em Lisboa com o padre Lodovico Settembrini, o seu antigo aluno Hans Castorp e a mulher deste, a espanhola Emilia Bazán, mas isso ficará para um dia destes. Vou enviar um email ao padre para lhe perguntar o que acha ele da parusia de Jesus.

sexta-feira, 17 de julho de 2020

Do exercício da estultícia

A humanidade divide-se em três categorias. Os sagazes, os estultos e os outros. Não me coube nem o estatuto dos outros nem o dos sagazes. Restou-me entrar no clube dos que cultivam a estultícia. Como todos os estultos, sou um praticante assíduo. Nunca falto a um treino e compito nos melhores campeonatos de estultícia para seniores. Hoje entrei numa livraria para ver os livros. Realizei plenamente o meu desígnio. Cumpri os objectivos, como agora se diz. Cheguei lá, olhei para as estantes e vi que tinham umas coisas vagamente parecidas com livros. Foi uma contemplação pura. Só um estulto entra numa livraria sem óculos. Os sagazes são precavidos e, caso necessitem, terão sempre uns à mão. Os outros nem precisam desses benévolos dispositivos pois não entram em livrarias, espaços que são apenas frequentados por sagazes e estultos que se pensam sagazes. Um funcionário perguntou-me se eu precisava de ajuda. Que não, respondi e agradeci o empenho solícito. Não lhe ia pedir uns óculos emprestados nem que me lesse as lombadas dos livros. Ainda não cheguei a essa fase. Como todos os estultos insisti em comprar livros. Quando cheguei a casa descobri que, caso tivesse óculos, não teria comprados dois dos que comprei. Sempre posso ir trocá-los, mas está tanto calor e nada me garante que leve óculos e não acabe por trazer os mesmos que teria devolvido. O que me valeu para disfarçar, aos meus olhos, a estupidez natural foi uma cliente que estava em muito pior estado de conservação do que eu. Ia conversando com os empregados e o dono da livraria e acabou, entre pagamentos, considerações literárias e pedidos para guardar a encomenda, a oferecer-lhes croquetes. Óptimos, asseverou, e como comprei seis e sou só uma. Eles agradeceram. Ela saiu e eu fiquei a pensar quando será o dia que entro numa livraria e, mesmo com óculos, acabo a oferecer croquetes ou pastéis de nata à menina da caixa. Nunca se sabe para o que estamos guardados.

quinta-feira, 16 de julho de 2020

Falta de concorrência

Tudo se paga nesta vida. As coisas irritantes que não fiz ontem fi-las hoje. Ao sair de casa, a atmosfera purgava grossas bagas de calor, inundando ruas e avenidas com um ar tão quente que logo se imagina o dia propício a um grande desvario. Pôr o carro a lavar, passar pela oficina e pagar a bateria que ontem vieram colocar quase ao anoitecer, passar pelo seguro para levantar a carta verde. Faltou-me apenas abastecer o depósito. Uma manhã dedicada ao automóvel, ainda assim sem completar todas as tarefas. Tirando a adolescência, que pela sua natureza não conta nestas considerações, a minha relação com carros sempre foi enviesada. São coisas que me cansam, embora me dêem algum jeito. Aquilo que eu gostaria mesmo era de teletransporte, mas ainda não está disponível na gama de mercado a que posso aceder. Uma pessoa fechava os olhos, concentrava-se no destino para onde queria ir e, passados segundos, encontrava-se lá de carne e osso. Era uma grande vantagem. Perdia-se menos tempo, a poluição baixava drasticamente e os milhões de empregos ligados aos transportes seriam alocados – meu Deus, como é possível deixares-me escrever esta palavra? – a coisas mais filantrópicas, cuja natureza agora não me ocorre. De facto, o mundo foi muito mal construído. O arquitecto deveria ter um espírito aberto e democrático e escutar a freguesia. Um amigo economista confidenciou-me que isso se deve à falta de concorrência. Se os clientes pudessem escolher entre vários mundos possíveis, os arquitectos em competição preocupar-se-iam com os interesses dos consumidores. Sendo assim, é o que se vê. Um mundo cheio de vírus e sem teletransporte. Uma pepineira.

quarta-feira, 15 de julho de 2020

Da perfeição

Tenho coisas irritantes a tratar na rua, mas o calor e toda a coreografia implicada no sair de casa, descer à garagem, abrir e fechar portas, carregar em botões e digitar códigos, tudo isso espalha em mim um véu de cansaço. Protelo e espero por melhor altura. Antes de almoço peguei nas obras completas de Mário Cesariny. O problema é que não tinha óculos. Na capa ainda distinguia as palavras, mas os poemas não passavam de manchas. Em vez de ir à procura dos óculos fiquei a ver a configuração espacial dos poemas, a espreitar como a cinza textual se destacava da superfície bege do papel. Não se deve desprezar na apreciação de um poema a forma como ele ocupa o espaço. Há muitos anos, talvez há mais de vinte, mas não sei precisar, uma galeria local organizou uma sessão com alguns membros do grupo surrealista português. Ia jurar que o Cesariny esteve presente. Tudo aquilo pareceu-me anacrónico e penoso, mas achei graça à apresentação que o organizador desta edição da poesia de Cesariny, também presente, fez de si. Perfecto E. Cuadrado, uma redundância, acrescentou, pois se se é quadrado já se é perfeito. Para além da sensação de anacronismo, foi o que retive do evento. Se alguém, porém, me afiançar que tudo isso é invenção, não serei eu que o hei-de contraditar. Bocejo, pego nos óculos e entrego-me ao expediente. Também eu procuro a salvação.

terça-feira, 14 de julho de 2020

La Dernière Valse

Há uma eternidade ofereceram-me, trazido de Paris, um pequeno caderno para anotações. Talvez tivesse sido uma agenda, já não consigo precisar. Não sei se alguma vez escrevi nele ou nela alguma coisa, mas não o esqueci por completo. Tinha na capa uma fotografia de 1949 da autoria de Robert Doisneau,  La Dernière Valse du 14 juillet. É uma fotografia extraordinária. Um par solitário dança na rua. A noite caíra sobre os prédios. Só sombras silenciosas, inumanas, vindas da caverna onde dorme a noite, assistiam ao espectáculo. Quem olha a fotografia não vê apenas o que está nela, um homem e mulher fixados eternamente numa posição imutável. Vê-os fluir, adivinha-lhes os passos de dança, ouve a valsa, envolve-se na performance, sente vontade de aplaudir. Há em tudo isto uma ironia. Como é que um acontecimento irado e terrível com o passar dos anos se transforma numa valsa? Talvez todos nós, enquanto vivos, valsemos sobre o cadáver de milhões de mortos e a valsa seja um exercício de purificação da memória. Ou talvez a vida seja outra coisa, como a bateria do carro que se apagou, a necessidade de ligar algum dispositivo que arrefeça a casa, aquilo que não se pode esquecer quando se vai às compras. O braço dele cinge-a pela cintura, a saia abre-se como uma flor e a noite não pára de cair sobre aquele par solitário que valsa há 71 anos.

segunda-feira, 13 de julho de 2020

Viver sitiado

Fecho-me em casa, escondo-me do calor como quem se esconde de um vírus. Cerro as persianas e preparo-me para os dias de cerco que tenho pela frente. Aqui, o sol é um inimigo implacável. Dardeja sem parar raios cheios de rancor, desejoso de incendiar as cidades por ele sitiadas. Há nele uma sanha incompreensível para pobres mortais como eu. É possível que a sua aversão tenha nascido de algum despropósito nosso, de lhe termos negado a divindade ou, terminadas as colheitas, de não lhe rendermos culto. Desconheço o que lhe move o ódio. A serra, com os seus muros de calcário, impede o vento marítimo de vir em socorro dos que são mártires da desmesurada ambição do astro. Não vale a pena acusar-me de tratar o Sol como se fosse um ser dotado de razão, agindo por motivos demasiado humanos. À falta de personagens reais, humanizo aquilo que me vem à mão. O Sol, a Lua, uma pedra, até a mim, que não passo de um pensamento no pensamento de outro que não sou eu. O telemóvel informa-me a hora e o dia. Vejo que num dia 13 de Julho, Charlotte Corday assassinou Marat. Vejo retratos de ambos e o dela parece-me de longe mais benevolente. Sempre achei o quadro de David, La Mort de Marat, um exercício de canonização do mal, mas sobre isso é melhor não me pronunciar e remeter-me ao meu papel de simples narrador tiranizado pelo despotismo do autor, talvez um discípulo de Marat. O calor não me faz bem. A 13 de Julho nasceu Júlio César, reparo agora. Decididamente, é um dia que tem demasiado sangue nas mãos. Talvez seja da temperatura. Nunca sabemos realmente a causa das coisas, admito.

domingo, 12 de julho de 2020

Do uso da máscara

As coisas que se encontram sem serem procuradas. Não falo de objectos perdidos, curiosidades da natureza, uma nota de cinco euros ou artefactos do engenho humano. Caminha-se, caminha-se, e súbitas revelações explodem na consciência. Está a tornar-se uma moda as pessoas usarem a máscara debaixo do queixo e no pescoço. Qual a razão? Não se compreende, mas ao andarilhar mundo fora a mente desprende-se de uma visão excessivamente racional e, subitamente, tem um insight que a faz perceber a verdade. As pessoas protegem-se do vírus da papeira ou tentam evitar, à outrance, um resfriado na garganta e, para isso, não há melhor defesa do que uma máscara. Descobri também, num caminhante inovador, que estes novos dispositivos de protecção contra aerossóis se podem usar no braço para evitar a dor de cotovelo. São muito eficazes, amortecem o impacto e poupam ao mundo a dor daqueles que nunca deixam de se queixar da imoralidade do universo ou da maldade humana. São estas pequenas iluminações que evitam o desespero com este domingo. Promete uns refrescantes 38 graus. Talvez nos queira fazer lembrar que por muito que os nossos antepassado tenham fugido de África, será a ela que todos teremos de retornar. Espero que o autor não me censure este devaneio meditativo. O calor justifica os maiores disparates e antes estes do que outros ofensivos do decoro da sociedade.

sábado, 11 de julho de 2020

Uma ida ao café

Havia alguns clientes na esplanada, mas no interior o café estava vazio. Sentei-me lá dentro rodeado pelo sossego da província, tirei a máscara e arrumei-a longe da vista. A rapariga atendeu-me, e eu desmascarado passei os olhos pela imprensa. Um estranho hábito. Julgo que o bebi na infância. Café, pedia o meu pai, e abria os jornais que comprara. Sempre um de informação geral e outro desportivo. Naqueles tempos havia matutinos e vespertinos. Eu comia um pastel de nata à colher, embora não recorde a razão para evitar a parte folhada. Uma das minhas idiossincrasias relativas a comida, a qual era para mim, até aos dez anos, um poderoso inimigo e motivo de grandes dissídios com a minha mãe. Odiava comer, coisa que me passou. Dispensava até que tivesse sofrido uma transformação tão radical. Quando comecei a ler tinha direito a um livro de aventuras, uma banda desenhada quase sempre centrada no longínquo oeste. Sempre vivi rodeado de jornais, mas há muito que deixei de comprar os desportivos. O assunto deixou de me interessar e aquilo tornou-se uma leitura tóxica. Não é que a imprensa de referência não esteja cheia de toxinas. Está, mas desenvolvi resistências e aquilo não me faz mal. Julgo, todavia, que o país não desenvolveu imunidade de grupo. Um dos cafés a que o meu pai me levava tinha umas cestinhas de figos secos em exposição e, se não estou enganado, penduradas nas paredes. Os figos eram cobertos por um folha de celofane amarelo, mas posso esta a inventar. Esse café desapareceu há décadas, também o meu pai foi para um lugar onde não existe imprensa e onde não se vendem livros de aventuras, e eu como pastéis de natas à mão e nem a parte folhada deixo de lado. O sábado progride vagaroso, o silêncio do café mistura-se com um artigo de opinião. Se gostasse, haveria de ir à praia. Deixei de gostar. Para não incorrer numa falácia, não infira que não irei, embora eu não vá.

sexta-feira, 10 de julho de 2020

O oblívio dos pontos cardio

Cobre-me o dia uma pouca vontade para que nele inscreva qualquer coisa. Respiro fundo e sou invadido pela sensação de que sempre é assim. Dias cobertos de vontades poucas. A manhã começou com uma caminhada. Depois, entreguei-me com zelo a trivialidades, mas a existência é feita de coisas triviais. Ninguém suportaria uma vida inteira preenchida, momento a momento, de grandes acontecimentos, mesmo que fossem apenas privados. As manhãs parecem-me sempre tecidas com o fio da inocência, que uma alma cândida terá fiado durante a noite. O estado virginal, porém, vai-se maculando com o passar das horas e o tecido do dia, de início tão branco e resplandecendo, encarde-se e perde o fulgor. Quando caminho, levo o telemóvel para que este supervisione o meu andamento e que me informe quantos pontos cardio acumulei. Aqui entre nós, confesso que não faço ideia do que sejam pontos cardio, mas gosto do nome, de uma certa musicalidade que há nele. Hoje nas deambulações matinais não encontrei ninguém conhecido. Por vezes, algum outro caminhante passava por mim, mas era uma sombra que se desvanecia, a caminho doutro santuário que não o meu. A palavra oblívio começou a retinir em mim. É mais bela que cardio e não há melhor remédio para muitos males do mundo que o oblívio. Pudera eu, até me obliviaria de mim.

quinta-feira, 9 de julho de 2020

Um buraco negro

Pela primeira vez, em meses, ouvi um bando de pós-adolescentes algazarrear junto ao centro de línguas, na praceta aqui em baixo. Não faço ideia se o centro reabriu ou se eles se juntaram ali para descontrair de algum exame feito ou a fazer na escola ao lado. Estavam de máscara, pareceu-me, mas as vozes elevavam-se com a força que só a inocência lhes dá, mesmo que seja uma inocência que se julga culposa, crente de que uns quantos desvios às regras lhes dá uma experiência mundana que porá todos os velhos de boca à banda. Para aquelas idades, alguém com pouco mais de trinta anos é um velho irremediável. Quando tiverem sessenta descobrirão que ainda não são velhos. Continuam a florir os arbustos da escola. Ando há meses a tentar recordar o nome daquelas plantas, mas ainda não o consegui. Talvez nunca o tivesse sabido. Na casa de uma das minhas avós havia uma paliçada coberta por umas trepadeiras que davam umas flores roxas que, abertas, tinham uma forma de campânula ou sino. Que nome teriam elas? A Botânica não é o meu forte. Ontem o meu neto veio visitar-me. Mal me vê puxa-me o dedo para vir para a secretária onde não se cansa de bater no teclado. Depois, quer que eu o empurre na cadeira do escritório. Estas viagens de cadeira de escritório já vão na terceira série. Os dias deslizam para o buraco negro de onde, devido à intensidade do campo gravitacional, nunca conseguem regressar. E com isto resolvi um dos grande enigmas da humanidade. Por que razão não conseguimos viajar para o passado? A resposta é simples. O passado não é um país estrangeiro onde as coisas se fazem de forma diferente, como pensava o senhor Hartley, mas um buraco negro onde tudo o que nele cai desaparece para sempre. Exausto por esta descoberta, calo-me para não a estragar.

quarta-feira, 8 de julho de 2020

Carnaval eterno

Acordei ainda não eram sete da manhã. A temperatura na rua tinha descido bastante, apressei-me a abrir janelas e a pôr a casa sob o efeito de correntes de ar. Estava uma manhã esplêndida. Cinzenta, fria. Um vento suave lavava o rosto da cidade encardido pelo calor. As ruas pareciam transitáveis e dos prédios começavam a sair as primeiras pessoas em direcção aos carros estacionados sob árvores, de onde se desprende um fluido viscoso que se pega aos vidros. Um atleta paroquial, equipado a rigor, passou na sua bicicleta de corredor, um homem de máscara trazia um cão pequeno à tela, a vida mascarava-se de normalidade. Quando saí, o feitiço tinha desaparecido. O Sol rompera as muralhas e tornara-se ameaçador. Na esplanada do café da praceta, havia clientes nas três mesas que agora flutuam distanciadas no estrado. Numa delas, a Marília conversava com o Zé Tó. Afinal quem estava no outro dia a sambar para ela não era o Esteves nem o Lopes, mas o Zé Tó, que, enquanto geólogo, andou por meio mundo à procura de petróleo. Esse deambular é toda a metafísica que lhe coube, mas ninguém quer saber de metafísica para coisa alguma. Os olhos já tiveram melhores dias, foi o que me ocorreu, quando percebi o troca que fizera da outra vez. Passei por eles, olá, olá, e continuei em direcção ao meu destino, pois hoje tinha um. Entrei nele mascarado, estive por lá mascarado e saí mascarado. Embora a criatividade nos disfarces ainda seja incipiente, o Carnaval está a tornar-se eterno. Não tarda e todos sentiremos falta da Quarta-Feira de Cinzas.

terça-feira, 7 de julho de 2020

Perdido na floresta de calor

Almocei, depois de uma manhã entregue ao que o dever me impõe. Agora, antes de continuar a dar atenção ao que me diz o imperativo categórico, dou uma vista de olhos pela imprensa. Isto não vai acabar bem, foi a ideia que se formou na minha mente. Não interessa o que é o isto. Seja o que for tem grandes possibilidades de acabar mal. A temperatura está nos 38o e vai continuar a subir. Lembrei-me da história do pastor e do lobo. Andamos desde finais do XIX a gritar lobo, lobo, sem que se avistasse, talvez por cegueira ou por não se gostar de abrir os olhos, lobo algum. O lobo guardou a sua visita para estes dias. Está no meio do rabanho e ninguém acredita. Com este calor não me ocorre nada mais edificante para partilhar ou, então, estou naquela fase da existência em que as minhas referências existenciais são Esopo e os irmãos Grimm. Há quem tenha opinião diferente. Um livro que tenho à minha frente, ao abri-lo, enviou-me a seguinte mensagem: Acolhe-te o paraíso dos loucos. Não devemos desdenhar os sinais. Se toda a gente desse atenção aos sinais, talvez o lobo não andasse por aí e o rebanho pudesse dormir mais descansado. As duas vezes que usei a palavra rebanho escrevi rebalho. Isto preocupa-me. O que me levará a trocar o n pelo l? Desconfio que há qualquer coisa a correr mal no convívio entre os meus neurónios. Talvez o lobo já por lá ande e eu não tenha dado por isso. Tomo consciência do que me espera nas próximas horas e enrolo-me no lençol da paciência e no cobertor da piedade. É nestas alturas que perco a vergonha de ter pena até de mim mesmo. Uma voz soletra age de tal maneira que possas querer que a máxima da tua acção se torne em lei universal. Será a autopiedade uma lei universal? Bocejo. Vou trabalhar.

segunda-feira, 6 de julho de 2020

Arrasto-me

Neste momento estão 38 graus, mas há a promessa de se chegar aos 40. Não faço ideia como alguém consegue fazer alguma coisa que tenha sentido, por pouco que seja. Se observo a minha mente, o que vejo é uma névoa turva onde os parcos neurónios que não desertaram bóiam, mantendo uma distância de segurança suficiente para cumprir as regras do combate à pandemia, sem tentações de fazerem sinapses, conexões, de se entregarem a amplexos dos quais haveria de nascer um sentido. O que me vale é não ser dado a fúrias mediterrânicas e as minhas relações com a tragédia grega serem apenas as de um leitor distante. O calor não fomenta em mim a inclinação para o crime, como acontece com outros, mas o mérito que tenho nisso é nulo. Aconteceu ser assim. Fico tolhido, olho o mundo com condescendência e arrasto-me na existência como o mais impotentes dos seres que a vida se lembrou de retirar do nada para que soubesse o que era uma tarde quente e seca. Toda esta conversa serve para dizer que não tenho nada para contar, ao contrário de alguém que conversa no café da praceta aqui ao lado. Não se cala e o som indistinto das palavras chega até a mim. Uma outra voz, a espaços, corta-lhe interrompe e fala. Talvez seja a isto que se chama conversar, mas não tenho a certeza. É em dias como o de hoje que me lembro das sábias palavras, já aqui citadas, de Afonso X Se eu houvesse podido aconselhar Deus na criação – atreveu-se ele a dizer – muitas coisas teriam sido mais bem ordenadas. Queixo-me do mesmo, de Deus ter criado as coisas sem me pedir opinião, ainda por cima com evidente propensão para o igualitarismo mais prosaico, para não dizer rasteiro. Amemos ou odiemos o calor tórrido, Ele envia-o em doses iguais para todos os que aportaram a esta cidade esquecida pelo Céu. Consta que não fez o mesmo com o frio, pois a voz do povo diz que Deus dá o frio conforme o cobertor. Deveria evitar este recurso à cultura popular. Não abona a meu favor. Só deveria ter grandes e nobres palavras, como pretendiam os gregos antigos, que me elevassem e comigo ao leitor. Chega-me um vídeo. O meu neto de braçadeiras amarelas dentro de água. Quase o invejo, mas tenho de acabar o texto aqui.

domingo, 5 de julho de 2020

Expelir opiniões que ninguém pediu

Este parece-me um domingo dos antigos, daqueles que só existiam no tempo imaginado da infância. O calor lança a tenaz sobre os seres humanos e, enquanto estes esbracejam espavoridos, aperta-os lentamente até sufocarem. Com a minha inclinação para a hipérbole, estou a dramatizar. As pessoas, talvez a maioria, folgam com a chegada do tempo abrasador e usam-no para poder partilhar um pouco dos seus corpos com os espectadores ocasionais. Afinal, não fui a Lisboa. O alemão amigo do padre Lodo acabou por não vir, retido por afazeres da mulher, uma espanhola. Não tardará, porém. Fiquei aliviado, pois ainda não me apetece a capital. Tenho uma série de afazeres que guardei para este domingo, contrariando o sábio conselho de não guardar para amanhã o que se pode fazer hoje, dada por um astuto advogado a um camponês, num dos textos do livro da segunda classe, talvez da terceira. Os livros dessa antiquíssima instrução primária eram curiosos e deixaram uma legião de saudosos, que vão comprando as  sucessivas reedições. Eram de tal maneira verrumantes da consciência que, aí pela terceira ou quarta classes, pensava que todos os nossos reis, rainhas e heróis nacionais eram não apenas seres dotados de uma coragem superior, como de uma sabedoria sem fim e, acima de tudo, juro-o, autênticos santos, todos com passaporte directo para o céu, sem terem de passar num controlo de fronteiras nem fazer teste à COVID-19. Portanto, não havia nenhuma ideologia nem condicionamento das consciência naqueles tempos, mas estou impedido, enquanto simples narrador, de me meter em assuntos políticos, e suspeitar que alguns daqueles heróis, se não a maioria, eram pouco dados à santidade é um assunto perigoso nos dias de hoje. Só o calor teria poder para destruir as minhas defesas e fazer com que eu me pusesse a expelir opiniões que, a bem da verdade, ninguém me pediu nem quer saber. Passa do meio-dia, sombras raquíticas escondem-se debaixo das árvores. Na Sá Carneiro, o trânsito é de um domingo de Verão anterior ao surto epidémico. Tremo só de pensar que um dia se dirá no ano vinte antes da pandemia ou o ano cinquenta e seis depois da pandemia. Hoje o almoço será mais tarde. Tenho tempo para meditar na santidade de todos aqueles heróis que foram morrer a Alcácer-Quibir, todos tão castos, mas talvez a castidade ajude pouco em certos assuntos terrenos.

sábado, 4 de julho de 2020

Faltar à verdade

Entrei no café e depois de me sentar tirei a máscara. De seguida, folheei a imprensa que tinha comprado. Uma columbina trouxe-me café e o mais que omito para evitar comentários desassisados. Duas mulheres entram, também elas convidadas de um baile de Carnaval, mas mal se sentam retiram o disfarce. Fizeram bem, não precisam dele e o estarem a bater à porta dos trinta apenas sublinha a sorte que a lotaria genética lhes decidiu conceder. Embrenho-me na leitura das crónicas de uma plumitiva e depois de um plumitivo. Ambos muito opiniosos, mas será para isso que lhes pagam as avenças. Cumprem o contrato com palavras perfurantes e ademanes voluntariosos. Se o mundo a eles tivesse sido entregue viveríamos todos no paraíso, concluo da leitura. De súbito, percebi o erro que cometo quando evito frequentar espaços públicos. Uma das minhas vizinhas bafejadas pela hereditariedade diz, numa ira contida, quase sussurrada, ainda audível, que se ele mentisse ainda era perdoável, agora faltar à verdade é inadmissível. Não sei quem é o ele, mas fico-lhe grato e a dever-lhe a revelação mais importante da minha existência. A verdade é um acontecimento. Uma pessoa pode faltar à verdade como falta ao trabalho, a uma aula, à missa, a um jogo, ao jantar para que foi convidado, à festa de aniversário a que não deve faltar. Elas continuam a conversa conspirativa, mas eu penso sobre o que é mentir, esse mero desacordo entre o que se diz e o que acontece, e faltar à verdade, uma falta de comparência, não estar no sítio em que ela marca encontro. Olho a minha vizinha com atenção e achei-a ainda mais bela e desejável, na roupa leve que a veste e na ira branda que lhe toca o rosto. Ela levantou uma mão e com os dedos esguios compôs o cabelo, disfarcei o olhar, fechei o jornal, coloquei a máscara, paguei e saí. Havia gratidão no meu andar e até ao sol violento que me acolheu saudei como se fora um velho amigo, a quem se perdoa uma travessura. Tenho de me apressar, a verdade espera-me em casa.

sexta-feira, 3 de julho de 2020

Caminhadas e caminhantes

Tenho de beber água. Foi o primeiro pensamento que me ocorreu quando me sentei para escrever. Já fiz 6 quilómetros e não bebi qualquer líquido. Sinto a boca seca e a energia esvai-se, envolvendo-me numa nuvem sonolenta que, como uma ave de rapina, cai sobre o meu depauperado corpo. Levantei-me cedo e aprontei-me rapidamente para ir caminhar. Os caminhantes, uma espécie de penitentes que se flagelam por pecados triviais, diferenciam-se pelas horas que escolhem para a penitência. Os da manhã querem lavar a alma das aventuras oníricas que o sono lhes proporcionou. Os do entardecer são trabalhadores esforçados que, ao mexer as pernas, se aliviam do peso das responsabilidades. Os da noite são mais secretos e não são evidentes as razões que os põem a caminho. Evito especular sobre aquilo que os move. Na caminhada matinal encontrei a Lu. Sempre foi assim que foi conhecida a Lúcia, a irmã mais velha da Marília do Dirceu. Olá, disse-me ela. Olá, respondi. Temos que lutar contra o tempo, acrescentou e eu digo que sim, embora sem saber como se luta contra tempo. Isto foi no instante de nos cruzarmos, depois ainda oiço uma voz feminina a dizer bom-dia doutora e a voz da Lu a responder bom-dia, mas não olho para trás e se a conversa continuou não dei por isso. A Lu, quando a família foi para Brasil, decidiu ficar por cá, estava a acabar os estudos, como se dizia, e participava com esmero na nova ordem, da qual o resto da família fugia. Quando li a primeira vez a Antígona, foi sobre ela que construí a imagem da desventurada heroína grega, só que o Creonte tinha sido deposto e ela não tinha irmãos para pelejarem por bandos inimigos. A realidade nem sempre acompanha a perfeição da arte, o que mostra o erro de certo filósofo que derramava certezas sobre este ser o melhor dos mundos possíveis. Acima escrevi pecados triviais. Como pude fazer uma coisa dessas? Não há pecados triviais. Podem ser veniais, aqueles que merecem perdão, mas todos os pecados são extraordinários, rompem com a ordem, embora uns desordenem mais que outros. Os mais amigos do caos são pecados capitais aos quais se aplica pena também ela capital, embora a relação entre uma coisa e outra não seja linear. Continuo com sede e a teologia não é o meu forte, apesar de a minha rua – uma estranha rua em semicírculo com nome de jornal local – ser habitada por não poucos anjos, mas também a eles não lhes interessa a teologia e, por isso, se falam comigo não é sobre esse tipo de assuntos, embora não deixem de ter uma certa curiosidade por palavras como lascívia, luxúria, concupiscência, voluptuosidade. Eu tento desviar o assunto, falo-lhes em pecados capitais como a ira, a avareza, a preguiça, mas elas dizem que não querem saber disso para nada. Que lhes descreva uma mulher voluptuosa, uma cena lasciva. Um dia, se a voltar a encontrar, hei-de perguntar à Lu como se luta contra o tempo. Enquanto isso vou pensar como posso satisfazer o pedido dos anjos meus vizinhos.

quinta-feira, 2 de julho de 2020

Desaguisados e protozoários

Não sei o que me deu hoje de manhã para pisar a balança. Irritou-se e devolveu-me o peso em tom de ameaça. Saí de cima dela e ouvi-a rosnar. Se tornas a pisar-me em dia útil, faço pior. Vai fazer alguma coisa pela vida. Tentei serená-la com desculpas e promessas de que nada farei para estragar a bela amizade que nos dias de confinamento – e restaurantes fechados – tinha nascido entre nós. Não é a melhor coisa do mundo começar o dia com um desaguisado. Quando me sentei à secretária, entreguei-me a escrever umas patetices, mas agora estou livre delas e sinto-me aliviado do fígado. Oiço o som insistente de uma sirene, mas não faço ideia se é fogo, desastre ou crime. Talvez seja apenas alguém doente que urge levar para o hospital. Talvez seja outra coisa qualquer, pois desconheço todas as razões que permitem ligar uma sirene e encher a atmosfera com a angústia implorativa daqueles gritos mecânicos. No outro dia fiquei a observar um carreiro de formigas, não das pequenas, mas das outras que se encontram nos campos, mais encorpadas e apessoadas. Marchavam com disciplina, como se tivessem uma alma militar. Nunca sabemos, na verdade, que tipo de alma têm seres como os insectos, os pássaros e os protozoários. Não tenho a certeza, mas julgo que a palavra protozoário foi a única coisa que retive das lições de ciências naturais. Mesmo a palavra célula tenho dúvidas se foi lá que a aprendi. Tenho de ir beber café e comer qualquer coisa, de preferência sem calorias, sem sabor, sem odor, sem prazer.

quarta-feira, 1 de julho de 2020

Bocejo

Bocejo, não porque a realidade seja um tédio, mas porque tenho sono. Às seis da manhã acordei com sede, o que me tirou da cama. Bebida água, fiquei a ler, mas já não me lembro o quê. Quando voltei a adormecer fui acordado pelo despertador. A manhã estava esplêndida, no céu não se prometia uma invasão de calor e um vento suave refrescava a paisagem, fazendo tremer as folhas que, mal ele se recolhia, ficavam em sossego, à espera da reverberação matinal. Ainda não saí de casa, mas também ninguém espera por mim. O telemóvel está sempre a dar-me informação. Chega ao cúmulo de partilhar comigo quais são as aplicações que lhe estão a gastar bateria. Se eu quero que ele as feche, pergunta-me. Ora, ora, se eu fosse fechar as aplicações que me gastam a bateria, o que seria de mim? Tornei a bocejar, no exacto momento em que se ouviu uma buzina agastada. O que quererá dizer esta coincidência? Abro a boca na mesma hora que alguém carrega na buzina. Um acaso, diz-me o anjo benfazejo, não quer dizer nada. Falso, grita irritado o amigo do capeta. Não há acasos, tudo está milimetricamente determinado. Encolho os ombros e deixo os anjos a digladiarem-se sobre questões metafísicas. Estão no território deles e o mais avisado é não me meter. Vou dormir a sesta.

terça-feira, 30 de junho de 2020

Nada de sedições

Ir às compras é um filme, como agora oiço dizer, talvez porque se suspeita no acto todo um enredo do qual se espera um desenlace feliz. Noutros tempos talvez se dissesse é um romance, mas as pessoas só lêem livros de auto-ajuda, como se quisessem descobrir em si o poder de uma graça que as salvasse. Os compradores deambulam pela superfície comercial mascarados, mantêm distâncias, tentam descobrir quem se esconde por detrás de uma máscara, se é alguém conhecido, um Pierrot ou uma Columbina, se àqueles olhos corresponderá um rosto adequado, se saberá usá-la, aumentando em muito as possibilidades especulativas de quem por ali é obrigado a andar. A chegada a casa também é um filme, mas tão cansativo que ninguém o quererá ver. Hoje passarei a tarde em videoconferências. A necessidade é uma deusa cruel, à qual nunca podemos furtar-nos a pagar o tributo. Recebi um email do padre Lodo, aquele jesuíta de que falei ontem. Padre Lodo é assim que ele é conhecido na Companhia e entre amigos, mesmo os que são pouco dados ao catolicismo, amigos esses que ele cultiva com esmero, não sei se com a esperança de os converter. Sempre é um jesuíta. Quer jantar comigo em Lisboa, para que eu conheça um antigo aluno dele, um alemão de nome Hans Castorp. Não o esperava tão cedo em Portugal, ainda ontem não sabia que ele vinha, escreve como se se desculpasse. Que não me preocupe, ele fala muito bem espanhol e entre português e espanhol haveremos de nos entender. Eu não me preocupo, mas não me apetece ir a Lisboa, não me apetece todos estes rituais concebidos por um génio maligno. Pensarei no assunto. Não vejo as netas há semanas e talvez deva aproveitar a ocasião. Logo hei-de responder. Os termómetros começam a subir por estes lados. O calor penetra na pele e sinto-a rasgar, abrir pequenas fendas que se vão dilatando, para que o corpo se torne uma chaga viva. Se as pessoas não fogem daqui, não tarda haverá procissões de ulcerados. Recuso-me a fazer de calendário, quero lá saber que dia da semana ou do mês é hoje. O tempo é um contínuo sem fim e todas as divisões que lhe inventamos são uma sedição contra a ordem natural do mundo, a qual, pelo menos hoje, prezo muito. Amanhã, se verá.

segunda-feira, 29 de junho de 2020

Evitar a mentira

Ontem menti quando disse que me sentara à varanda e via pássaros e anjos a voarem entre telhados. Não que seja infundada a ideia de haver serafins e querubins pousados no topo dos edifícios da rua onde habito. Qualquer um dos meus vizinhos, e não são poucos, corroborará o que digo. Anjos, há-os e não poucas vezes vejo-os a conferenciar ou a deslocarem-se pelos ares de um edifício para outro. A minha falta à verdade refere-se a estar sentado à varanda, pois nem sequer estive em casa. Deambulava junto ao mar e foi aí, quando passeava pela ilha do Baleal, como tantas vezes tenho feito, que encontrei perto da casa dos jesuítas, um edifício sobre a falésia, excessivo para o lugar, mas de onde se pode contemplar em sossego o Atlântico, que encontrei, dizia, alguém que não via há muito, o velho Lodovico Settembrini, que tantas vezes veio a minha casa. Como o conheci, graças a um padre jesuíta que foi meu professor na Faculdade de Letras, e de como ele, na juventude um inflamado iluminista e maçon, se converteu e entrou para a Companhia de Jesus, talvez fale noutro dia. O mundo está cheio de metamorfoses e aquelas que se passam no espírito dos homens não são as mais pequenas. Basta enumerar as transfigurações do meu pensamento, se é que se pode chamar pensamento ao arrebanhar de meia dúzia de ideias obscuras e mal cosidas, sem lastro conceptual e esqueleto lógico. Há porém quem prefira dizer que não se trata de mudanças no pensar, mas a prova de que possuo um carácter volúvel e a volubilidade não dá boa fama a ninguém. Hoje não falarei do meu amigo jesuíta. Tenho não poucas coisas práticas para resolver e foi-me dado, apesar da volubilidade, uma inclinação para levar o dever a sério, como se tivesse sido educado por pais pietistas, daqueles de extremo rigor como só os havia em Conisberga, o que não foi o caso. Uma mensagem no telemóvel recorda-me que esperam um texto que ainda hei-de inventar. Escrever um diário cansa, mais valia que me dedicasse a apanhar borboletas. Hoje é segunda-feira, dia 29 de Junho. A Terra continua a ser um planeta do sistema solar. Não faço ideia das consequências desse facto, mas sinto-me mais tranquilo e conformado com a realidade tal como é, fazendo a mim próprio a promessa de evitar mentir nestes textos, mesmo que eles não passem de ficções de um narrador sem nada para narrar.

domingo, 28 de junho de 2020

Nem uma epopeia para narrar

Cheguei a meio da tarde sem nada para narrar. Sou um narrador digno de compaixão. Se tivesse competência, mesmo a um domingo encontraria uma gesta para descrever, uma situação épica para partilhar, uma tragédia para contar. Bem me esforcei. Saí de casa, caminhei, fui a um café, depois fui trocar um candeeiro que tinha comprado, mas que não funcionava. Este episódio não seria destituído de mérito, pois acabei por não o trocar, já que funcionava na perfeição, só que, motivado por não ter os óculos ou pela estupidez natural que me saiu em sorte, não li a inscrição ON/OFF. O vendedor e eu rimo-nos, ele com vontade de me chamar idiota, eu com vontade de corroborar o pensamento dele, mas o comércio é uma coisa civilizada. Ele não perderá nada em evitar dizer o que pensa e eu lá hei-de voltar para comprar outro candeeiro, só para mostrar que, apesar de idiota, sou um aprendiz esforçado e que à segunda tentativa consigo pô-lo a acender e a apagar, mesmo sem óculos, mesmo que lá esteja escrito ON/OFF. Isto, porém, não dá uma epopeia, nem uma tragédia e para comédia o enredo é curto. Também é verdade que cheguei muito tarde ao mundo. Tudo o que era digno de ser narrado já o foi. Resta sentar-me na varanda, acender um cigarro, apesar de não fumar, deixar o fumo enovelar-se e subir aos céus como se fosse incenso, enquanto pássaros e anjos voam de um telhado para o outro. Na praceta passa alguém que conheço bem, mas fico grato por estar onde estou e de não ser visto. Hoje é domingo, dia 28 de Junho. Celebram-se 182 anos que Vitória foi coroada rainha de Inglaterra, ela que se chamava Alexandrina Vitória. Há 106 o arquiduque Francisco Fernando, príncipe herdeiro do império Austo-Húngaro, foi assassinado, o que contribuiu para o início de uma ampla carnificina a que, posteriormente, se deu o nome de primeira guerra mundial. Ainda no dia de hoje se celebram os 101 anos da assinatura do Tratado de Versalhes, que pôs fim à carnificina e lançou os alicerces de onde emergiu a segunda. Não me tornei um divulgador de efemérides, mas estas informações servem para mostrar que se não escrevo uma epopeia, o problema não estará no assunto, mas no talento do autor, que se recusa a pôr-me a escrever sobre tão elevados temas.

sábado, 27 de junho de 2020

Complemento oblíquo

Acordei cedo e acabei por ir caminhar pelas ruas. Fiz seis quilómetros para ir de casa e chegar a casa. Sou dado a coisas inúteis como deslocar-me para chegar ao mesmo sítio. Fora eu bafejado pela lotaria genética e evitaria humilhações destas. Quem se desloca quer ir de um sítio para o outro. Como nunca soube a onde queria chegar acabo sempre, por mais que me esforce a andar, por ir dar ao sítio preciso em que me encontrava. Nisto sinto-me próximo dos pilotos e fórmula 1. Andam ali às voltas no circuito, a velocidades estonteantes, a vida em risco, para chegarem à meta de onde partiram. Eu sou como eles, mas não uso carro e ando devagar, pois se é para chegar ao mesmo sítio, ao menos que demore mais tempo possível. O jornal que costumo ler substituiu o ranking do coronavírus pelo ranking das escolas. Em ambos se faz notar o desejo de uma vacina que trate as viroses que por aí proliferam. Estou ensonado. Por desfastio abro uma gramática de língua portuguesa e deparo com a belíssima denominação complemento oblíquo. De todos os complementos, o que mais amo é este. O que são, ao pé do oblíquo, os complementos directos, indirectos e agente da passiva? Nada. Só o oblíquo me faz pensar na chuva oblíqua e leva a minha mente, como se entrasse em transe místico, a recitar arrebatada Atravessa esta paisagem o meu sonho dum porto infinito / E a cor das flores é transparente de as velas de grandes navios / Que largam do cais arrastando nas águas por sombra / Os vultos ao sol daquelas árvores antigas... E aqui está o problema que é o meu. Se em vez de andar a pé viajasse num navio, num veleiro, num grande transatlântico, haveria de sair de um porto e ir dar a outro e tudo faria sentido, mas a água não é o meu elemento e assim sou coagido a viajar por terra para chegar ao lugar onde estava. Dias como os de hoje parecem-me funestos para a sanidade mental. A semana foi terrível e, na verdade, fartei-me de trabalhar para fazer aquilo que tinha feito. O que me salva os dias é o complemento oblíquo, mas perde-me o olhar oblíquo que me deitam por não ter vergonha de escrever inanidades e publicá-las. São o retrato da minha vida, a minha verdade, o que mais posso fazer? Hoje é sábado, dia 27 de Junho. Os dias estão a encolher e ninguém protesta. Oiço um galo a anunciar a aproximação da derradeira etapa do dia. É inverosímil, mas mesmo numa cidade se podem ouvir galos. A gramática mostra-me uma frase monstruosa e começo a temer se não encontrarei nela um exemplo extraído destes textos. Tenho de ir comprar um candeeiro para ligar à ficha USB do computador e uma extensão para me ligar à realidade.

sexta-feira, 26 de junho de 2020

O que se avista de uma varanda

Fui à varanda que dá para a Sá Carneiro. De passagem espreitei o friso das orquídeas. Ao contrário do que acontece comigo, estão luxuriantes. Deveria ser proibido usar palavras como esta. Recuperaram dos três dias a que foram votadas ao abandono. São muito sensíveis. Um fim-de-semana fora e há logo amuos, chiliques, fanicos e outras cenas avulsas. Chegado à varanda olhei o castelo. O maldito pinheiro continua a crescer, a alcaidaria é agora uma nesga branca e uma das duas torres que avisto está quase a desaparecer por detrás da ramagem verde. Do bar saiu alguém. Parece o Esteves, aquele que não tem metafísica. Vejo-o a abrir um maço de cigarros e penso que faz sentido. Outrora, havia tabacarias, agora compram-se cigarros num bar, num café, onde calha. O Esteves deixa a esplanada do bar, o cigarro aceso, o fumo a subir aos céus, e aproxima-se do meu prédio. Afinal não é o Esteves, mas o Lopes, um rapaz do meu tempo. Também sem metafísica, mas ainda vai bem, todo pimpão. Passou mesmo diante da varanda. Talvez nem seja o Lopes. Pode ser que já tenha morrido. É muito parecido com ele, talvez um irmão. Era uma família grande. Encontrou uma rapariga também do nosso tempo, a Marília, debaixo duma sombra, mesmo diante daquilo que foi um banco. Era a ela que o Gonzaga queria, mas ficou sempre presa ao Dirceu. Não devia falar destas coisas conhecidas de todos aqui na terra. Eles hesitam, não sabem bem o que fazer, mas lá se decidiram a trocar uns beijos. Quase o oiço dizer isto a nós não nos ataca, somos da velha guarda. A Marília foi para o Brasil, umas coisas políticas do pai e, ela que antes hesitava entre um estilo neoclássico e um romântico, voltou de lá cheia de samba. O Gonzaga, coitado, é que nunca casou. O pior aconteceu ao Dirceu, foi desta para melhor há uns anos. Agora é o Lopes, ou será o Correia?, que está com ademanes sambados e a Marília viúva, esquecida do Gonzaga e do Dirceu, os carros a passar e o céu cheio de nuvens, uma luz toldada, e eu sem saber se ainda há um frémito no coração da brasileira, que afinal é bem portuguesa, aqui da terra, andámos todos na escola. Quem diria, o pimpão do Lopes, ou será o Correia? É difícil ver os traços de um rosto quando se está num quinto andar. Hoje é sexta-feira, dia 26 de Junho. Tenho de ir dar uma vista de olhos aos jornais, para ver se o mundo ainda existe, se uma epidemia não anda por aí à solta que impeça o Lopes, ou será o Correia?, de cortejar o samba da Marília. Preferia-a quando ela era uma musa arcádica, mas há gostos para tudo.

quinta-feira, 25 de junho de 2020

O zimbório zumbe

Depois de almoço, quase frugal e quase abstémio, fui assaltado por uma palavra. Entrou-me na consciência e não me tem largado. A quem devo apresentar queixa por esta violação da liberdade de pensamento? Não faço ideia por que razão zimbório canta dentro de mim. Não avisto nenhum e não me deu um súbito interesse pela arquitectura, por cúpulas e dispositivos afins. Há na palavra uma sonoridade exuberante e talvez seja isso que me tem prendido a ela. Não deveria escrever tudo o que me passa pela cabeça, não contribui nem para a minha sanidade mental nem para a reputação, ambas já muito desgastadas. Observo ao longe uma rapariga absorta, não há como o eufemismo para suavizar a marcha do tempo. Conheci-a numa outra encarnação ou talvez apenas imagino que a tenha conhecido. Abre os olhos, mas a realidade escapa-lhe, como a beleza se lhe escapou, como os sonhos se finaram na blusa de seda em que nenhum olhar, excepto o meu, pousa. Um cão pára junto a uma árvore e, alçando a perna, marca o território, num assomo de proprietário. O zimbório, porém, não deixa de zumbir em mim. Descubro que uma nova tradução de A Montanha Mágica foi colocada no mercado. Li o romance de Mann na tradução de Herberto Caro, para os Livros do Brasil. Depois, comprei a da D. Quixote e ofereci a que lera. Perante o encómio da nova tradução, já decidi que a vou comprar, depois alinho-as lado a lado na estante. Quando me der a vontade de reler a obra, pego nelas e vou pesá-las. Lerei a mais leve. O critério é mau? Eventualmente, mas mais vale ter um critério mau do que nenhum. Ou será ao contrário? Hoje é quinta-feira, dia 25 de Junho. As palavras associam-se dentro de mim. O zimbório zumbe na cúpula ou na cópula, ou apenas na consciência vazia que para evitar o naufrágio se entrega às leviandades que a assaltam. O dever chama-me.

quarta-feira, 24 de junho de 2020

O pior é a Kryptonite

Chega-se a uma janela ou a uma varanda, aspira-se o ar, em lentos haustos, e percebe-se uma contaminação geral da atmosfera. Perplexidade, ignorância sobre o que fazer, apreensão pelo que está para chegar. Nada disto é novo, era apenas um problema individual ou de grupos restritos. Uma doença aqui, um acidente acolá, uma morte noutro lado. Também havia catástrofes de médias ou grandes dimensões, mas eram catalogadas na etiqueta – acho que deveria dizer hashtag, o que acrescentaria modernidade a este escrito – de acidentes, dos quais se haveria de procurar responsáveis para nos tranquilizar e assegurar que estamos não apenas no melhor dos mundos possíveis, mas também no dos impossíveis. Vale-nos o canto dos pássaros e o ramalhar do arvoredo empurrado por um zéfiro benevolente. Na avenida, passam carros. Nalguns, o solitário condutor vai de máscara, talvez com medo de se contaminar a si próprio. Pode ser apenas uma reminiscência genética de algum avô que, emigrado para o longínquo Far-West, se tenha entregado ao comando de uma bando de ladrões de gado, ou então de uma longínqua avó educada no rigor do Islão. Nunca sabemos o que se esconde no enxame genético que fez de nós colmeia para viver uns tempos. Desde que se descobriu a existência do código genético, convencemo-nos que possuímos um, mas a realidade é outra. O código genético é que nos possui e nos dobra às suas deambulações combinatórias e fantasias químicas. Espero que não venha ninguém acusar-me de não crer no livre-arbítrio. Eu acredito piamente e todos os dias lhe acendo uma vela, para ver se ele olha por mim, tornando-me um sujeito autónomo, cheio de iniciativa e pronto a dobrar à sua vontade qualquer obstáculo. O pior é a Kryptonite. Hoje é quarta-feira, dia 24 de Junho. Na Sá Carneiro, um casal caminha desgarrado, ele à frente e ela atrás, segundo uma ordem ancestral combinada com o cansaço de um prolongado convívio. Saltitam de sombra em sombra, ela afogueada, ele decidido, como se tivesse pressa de chegar a algum lado ou de fugir dela.

terça-feira, 23 de junho de 2020

Um narrador sem assunto

A barafunda veio para ficar, foi o que ouvi quando, hoje de manhã, caminhei pelas ruas. Não foi um grande passeio, mas um pequeno giro de desentorpecimento mental. Chegado a casa fui informado de que a orquídea branca está completamente desaustinada. Uma qualquer euforia tomou-lhe a vida e ela continua a desfazer-se em flores. Está nisto há bem mais de um ano e não tem aspecto de querer parar. As folhas, todavia, estão a trocar o verde pelo amarelo. A vida corre-me num torvelinho, os neurónios estão em turbilhão e o tempo está cada vez mais quente. Dedilho as tarefas que tenho pela frente e não me parece que os próximos dias sejam promissores. A tarde avança com os seus pelotões sombrios. Marcham em cadência militar, batem as botas cardadas no chão, olham impantes sem nada ver. Nas janelas, os mortais observam-nos com temor, não vão eles apontar-lhes o lança-chamas e deitar fogo à casa, à vida, a sabe-se lá o quê. O que achas disto tudo, perguntaram-me no outro dia. Encolhi os ombros e disse que não achava nada. Já são poucas as coisas sobre as quais tenho opinião e a minha esperança é a de deixar de ter opinião seja sobre o que for. Na passadeira, afogueada e vestida de Verão, uma mulher jovem deixa que os olhos repousem sobre ela, fingindo que não sabe, mas a passadeira é curta e no passeio a luz e as sombras mesclam-se num tecido que turva os olhares. Hoje é terça-feira, dia 23 de Junho. Há 192 anos Miguel de Bragança foi aclamado rei de Portugal. Eis uma informação que não serve para nada, a não ser para dar um matiz histórico ao fim desta narrativa de um narrador sem assunto nem personagens.

segunda-feira, 22 de junho de 2020

A loucura normal

É o senhor? Sim, sou eu. Está em casa? Estou, estou. É que eu tenho uma encomenda para lhe entregar. O andar é… Não posso subir por causa desta coisa, tem o senhor de descer… Está bem, se é por causa dessa coisa, eu desço. Espere, vou ver se cabe na caixa do correio. É uma ideia. Olhe, cabe mesmo. Óptimo, muito obrigado. Está então a encomenda lá em baixo, ainda por cima vinda da China para me deixar ler noite dentro, e eu aqui em cima. Bem tenho de me despir e vestir para ir à rua. Não posso esquecer de levar máscara para viajar no elevador. Abro a porta, chamo com a ponta da chave o elevador. Ele vem e eu digo ao diabo, abro-o com as mãos e desço. Também escancaro a porta da entrada com as mãos. Vou ao correio, resgato a encomenda e correspondência avulsa e, sem nunca tirar a máscara, entro no elevador, saio, reentro em casa já descalço, fecho a porta, desinfecto as mãos e tiro a máscara, depois de pousar em lugar seguro o que tirei da caixa do correio, dispo-me, penduro a roupa de ir à rua, visto-me, desinfecto as mãos, abro a encomenda, deito o plástico envolvente para reciclagem, em lugar seguro. Abro a caixa, deito-a no sítio para reciclagem e penso que o dispositivo, que já deve andar em viagem há umas três semanas, ainda por cima protegido por plástico hermeticamente fechado, não precisa de ser desinfectado, mas desinfecto-o, não vá o diabo tecê-las e ele é muito dado a tecelagens. Ainda por cima uma coisa vinda da China, sabe-se lá por onde andou. Depois, desinfecto-me a mim. A seguir deveria marcar consulta num psi qualquer. Não o faço, mas lembro-me do título de um filme de Marco Ferreri, baseada num livro de Charles Bukowsi, Contos da Loucura Normal, a Ornella Muti ia muito bem no filme, mas já não me lembro de nada. Isto é um filme, anoto, feito de contos de gente enlouquecida, e a loucura está a tornar-se normal, embora a Ornella Muti já não tenha 25 anos, nem eu. Sim, estamos todos a enlouquecer, tanto os que se cuidam, como os que se descuidam e os que acham que umas festas dionisíacas vêm mesmo a calhar, pois Apolo anda distraído, também de máscara e venda nos olhos. Hoje é segunda-feira, dia 22 de Junho. A temperatura está a subir e a vida tornou-se uma trapalhada sem fim. Se não tivesse a tarde ocupada iria rever o filme do Ferreri. Sendo assim, enlouqueço mesmo sem filme.