A primeira notícia que li hoje deu-me a boa nova de que
posso produzir cerveja em casa. É muito mais fácil do se pensa, asseguram uns
mestres cervejeiros. Isso raptou-me a atenção. Sempre me fascinou a ideia de
faça você mesmo e a entrada no mundo obscuro do artesanato. O meu único
problema é que não encontro motivo para entrar nesse universo artesanal através
da porta líquida da cerveja. Que me perdoem os amantes, mas passo bem sem ela, embora
uma vez por outra a beba. Fosse um belo tinto, ainda pensaria duas vezes, mas
esse não se deixa enganar com artesanatos caseiros e diletantes à procura de experiências
para matar o tempo. O vinho é um exercício rigoroso, nascido da contemplação do
passar dos dias, não se presta ao faça você mesmo, ao pronto a beber e todas
essas coisas que um mundo superficial decidiu parir como filhos. Julgo que há
uma conspiração do mundo contra mim. Sempre que vejo anunciado uma boa nova,
ela não me é destinada. Não devemos menosprezar o destino. Prodigioso é o
silêncio na pedra, escreveu um dia o poeta austríaco Georg Trakl. Mais
tarde, foi mobilizado como oficial farmacêutico, ele que era dado ao consumo de
substâncias psicotrópicas, para a primeira grande guerra. A 3 de Novembro de
1914, uma overdose de cocaína pôs-lhe fim ao desconcerto de ter de
participar nesse grande evento da loucura europeia. Não tornará a escrever um
verso, nem poderá murmurar Nos muros, apagar-se-ão as estrelas / e as
brancas figuras da luz. Se prodigiosa é a palavra do poeta, mais prodigioso
é o seu silêncio, esculpido na pedra fria da morte. Um melro, vestido de um
luto fulgurante, saltita diante do canavial. Duas rolas passam e poisam num
ramo seco duma árvore morta há muito. O tempo resvala para dentro de si,
enquanto procuro um copo para beber o vinho deste dia.
segunda-feira, 3 de agosto de 2020
domingo, 2 de agosto de 2020
Pessoas de papel
Os ociosos dias de Agosto espalham-se por dentro das folhas
de calendário, trazem odores que o tempo fizera esquecer e recordações inúteis.
As aventuras do salteador Dick Turpin, num livro aos quadradinhos, comprado
pelo meu pai com os jornais antes de entrar no café, uma toalha perdida no meio
do mar, a esteira deixada pela passagem de um veleiro. Em vez dos magnos
problemas do mundo ou do intelecto, eram essas coisas que me ocupavam ainda
agora o espírito. Desconfio, embora sem certezas, de que com o avançar da idade
só as coisas realmente importantes têm o poder de nos captar a atenção. O mundo
e a inteligência sempre fizeram a sua vida sem a nossa contribuição e,
portanto, há que deixá-los sossegados. Ontem conheci o tenente Sturm. O nome
não deixa de ser curioso. Traduzido significa tempestade. O tenente Tempestade
não era um salteador de estrada como Turpin, mas um combatente na primeira
guerra mundial, talvez um alter-ego do seu criador, o escritor alemão
Ernst Jünger, também ele envolvido na guerra e, como Sturm, dado às letras. Uma
homenagem também ao Sturm und Drang. As coisas mudam muito menos do que
se pensa. Na infância, era Turpin ou Alvega que me ocupavam o espírito, hoje é
Sturm e Bradomín, o marquês galego dado a D. Juan. Se temos pessoas de papel
para que precisamos nós das outras? Devia evitar frases como esta. Não respeitam
o senso comum e ainda hão-de servir para me acusarem de inimigo do humanismo,
senão da humanidade. Como se sabe, se este narrador tem uma característica,
embora não um carácter, é o de cultivar a hipérbole. Vou comprar um livro à
minha neta e tomar café.
sábado, 1 de agosto de 2020
Eu e o Marquês
Para começar o mês, um provérbio do Oeste. Primeiro de Agosto,
primeiro de Inverno. A imprensa de hoje está tenebrosa. Parece que o PIB caiu,
só espero que não se tenha magoado. As quedas são sempre propícias a fracturas.
Então se for do fémur, um cabo dos trabalhos. Como se vê, inicio este mês
ferial mergulhado não nas águas atlânticas, mas na cultura popular. Essa é a
minha glória, exprimir-me por lugares comuns e não ter sobre o mundo outros
pensamentos senão aqueles que já não pensam nada. Confesso, porém, que nisto de
expressões populares, como em todo o resto, sou um diletante. Nem tenho um
dicionário de expressões populares portuguesas. Na agenda, anoto as referências
de um que devo comprar. Tem 700 páginas e capa dura. Não lhe faltarão
expressões para usar nestes textos, e um livro encapado com dureza dá outro
sainete. Sempre detestei esta palavra e vejo-me agora obrigado a usá-la. As
pessoas não acreditam, mas as sensibilidades de autores e de narradores estão
muito longe de coincidirem. Hoje já pus a máscara para ir comprar limões à
praça, mas a Rosinha não estava lá. Acabei por me esquecer do que lá ia fazer e
comprei figos, uma das poucas frutas que detesto. Uma desgraça. O que me tem
valido, para me dar boa disposição, é o marquês de Bradomín, esse D. Juan feio,
sentimental e católico, burlador burlado, um fidalgo da velha cepa, daqueles
que já não há. Também ele teve a sua Salammbô, menos dramática e mais carnal.
Por mim, já não seria mau se tivesse comprado limões à Rosinha. Bradomín sempre
é um marquês dos antigos e eu um narrador plebeu e de gosto duvidoso.
sexta-feira, 31 de julho de 2020
Julho fina-se
Como o mês acaba hoje, acho que vou dedicar-me a uma sessão
de auto-análise, para descobrir os avanços e os obstáculos que me tolhem no glorioso
caminho em direcção à excelência. Quanto mais excelente me torno, mais próximo
fico da morte. Começar assim não é recomendável. Quem há-de querer ler coisa mórbidas,
pois para mórbida basta a vida. Sentados numa esplanada, um homem e uma mulher
formam um casal perfeito. Ela não fala, ele não olha para ela, prefere um
jornal desportivo, muito mais palpitante do que vinte anos de cansaços e amarguras.
Ela elege como destino do olhar o horizonte. Ali, esconde-se tudo o que a vida
prometeu. Afinal eram falsas promessas. Quanto a mim, tomo café com a lentidão
de um veleiro num mar sem vento e escrevo estas coisas destituídas de sentido
no bloco notas do telemóvel. A vida é sempre muito mais exígua do que o nosso
desejo, o problema é que além do desejo também nos foi dada a ilusão. O homem
põe o jornal de lado e preenche com demora um boletim do Euromilhões. Talvez
esteja a consultar no inconsciente as informações que o guiarão à fortuna. A
mulher revira os olhos, cansada de tanto horizonte e eu deixo-os em paz, afinal
o motivo da minha existência, no dia de hoje, sou eu, agora que me imagino no
divã a fazer associação livre, enquanto escrevo os meus feitos e defeitos
naquele sítio onde me é permitido enfrentar a necessidade. Não devias falar por
enigmas, diz-me a consciência. Sempre achei a consciência uma grande rameira.
Vende-se-me com demasiada facilidade. Se fosse casado com ela passaria o dia a
ler jornais desportivos. Julho está a finar-se.
quinta-feira, 30 de julho de 2020
O dia da matrícula
Lembrei-me agora de que tenho um assunto a tratar numa dessas
repartições públicas que, apesar de continuamente modernizadas, nunca deixam de
parecer emanações neo-realistas vindas dos anos quarenta do século passado. A
memória vive de súbitas eclosões, relâmpagos raramente antecedidos pelo trovão.
Vive também de associações. Vejo-me há muitos anos a subir, levado pela minha
mãe, uma rua inclinada que terminava lá no alto, numa praça, mesmo ao lado de
uma igreja dedicada ao Salvador. Naquele dia, a ida ficou-se a meio caminho.
Entrou-se pelo portão de ferro e o destino era uma dependência modesta de um
palácio, então em decadência. Subimos os degraus. Lá dentro, dois
sacerdotes da instrução pública registavam matrículas, distribuíam alunos por
professores, tratavam do expediente. Era um dia quente de Julho, eles estavam
de fato e gravata e usavam as negras mangas de alpaca como qualquer amanuense. Lembro-me,
passados tantos anos, da poalha a girar nos ares iluminada pelos raios de sol
que entravam pelo vidro encardido de uma janela. Tudo aquilo era tão soturno,
que se fosse dado a sonhar, certamente aquelas imagens haveriam de vir misturadas
em algum pesadelo. Os livros de registo eram, aos meus olhos, descomunais,
pareciam ocupar todo o tampo das secretárias, e os missionários educativos
preenchiam-nos vagarosamente, usando uma caneta de aparo que ia molhando num
tinteiro de tinta azul aguada. Desenhavam a letra com a precisão que o hábito
dá. O meu nome ficou lá inscrito, aguado de azul, na classe de um professor de
fama tenebrosa, soube-o depois. Na parede, ladeando um crucifixo onde Cristo
continuava pregado, duas fotografias assombravam aquela repartição já de si
assombrada. Quando a minha mãe me tirou dali, pensei que me tinha libertado de qualquer
coisa que, mais tarde, associei a um filme de terror, daqueles em que uma
inquietante estranheza prenuncia uma desgraça. Não devemos dar trela à memória,
pois ela não se cala e aquilo que esqueceu inventa-o para que a conversa não
acabe. Parece ser hora de almoço. Ainda oiço o ranger do aparo sobre as folhas
de papel almaço. Seriam?
quarta-feira, 29 de julho de 2020
Familiaridades irritantes.
Há familiaridades que me irritam. Quem terá dito aos
programadores do novo Word que sempre que se abre um ficheiro temos
de levar com uma mensagem de boas vindas? Ainda por cima vem acompanhada por
uma injunção disfarçada de conselho: comece onde ficou ontem. A cortesia deve
poder desactivar-se, mas estou suficientemente desactivado para o conseguir
fazer. Talvez não tenha acordado com boa disposição e não saiba apreciar esta urbanidade
informática. Num outro tempo, esta terra era um mar a fervilhar de oliveiras e
figueiras. O azeite e o álcool alimentavam as lamparinas com que a vida por
aqui se iluminava. Havia um calendário de cheiros que desapareceram,
substituído por um mundo inodoro e insípido. A memória apazigua-me com as
tontices do marketing. Aqui perto alguém canta. Não é um pássaro, nem um
anjo. É uma voz de mulher perdida numa lide doméstica. Do prédio em frente,
alguém chega à janela, apanha a roupa e refugia-se. O ritmo dos dias enrola-se
no perfume que alguém deixou no elevador. Sentado, olho para a rua e procuro
descobrir no silêncio a transparência com que o passado me assedia a memória.
Numa outra casa, havia um poço com uma roldana de ferro. A corda descia e subia
com um balde cheio de água pura. Não sei o que hei-de fazer com essa água,
agora que a casa já não existe.
terça-feira, 28 de julho de 2020
Manobras militares
Começa-se a ouvir o bater das botas cardadas no alcatrão. Os
exércitos de Julho batem já em retirada, derrotados pela implacável queda das folhas
do calendário. Muito ainda haverá a penar para que um cessar fogo de alguns
meses permita uma vida sem a ameaça contínua de se ser bombardeado pela aviação
do calor. A milícia estival estende quase sempre as suas operações muito para
aquém e para além daquilo que um tratado antigo, que dividia o território do
ano em estações iguais, lhe outorgou. Bebo água para me hidratar e observo o
vagar com que a minha mente orquestra a realidade. Oiço vozes lá fora, mas não
consigo compreender o que dizem. São apenas ondas sonoras que vão e vêm, murmúrios,
súbitas irrupções de notas agudas, e logo o som baixa e não é mais que um
restolhar de folhas secas num Outono adiantado. Há muito que me recomendo o
evitar de truques estilísticos, a pôr de lado metáforas e alegorias, alguma
metonímia perdida. Falta-me o talento. Descrever a realidade com exactidão é a
mais difícil das tarefas. Suspeito que a realidade não gosta que a descrevam e
depois lança feitiços sobre quem escreve para que se perca no desvio retórico,
imaginando que a metáfora nasce do brilho da escrita, quando não é mais do que
a manifestação da sua pobreza. Eu sei que não estou no melhor dos dias, mas
escusava de ter escolhido um assunto tão mórbido. Sempre podia falar do friso
das orquídeas, do que me disse a Marília ontem, quando se cruzou comigo à porta
de uma grande superfície e me reteve para confidências. Talvez ache que eu tenho
cara de sacerdote ou alma de psicanalista. Não tenho, a minha virtude que tanto
atrai a confissão é a indiferença. Quero eu lá saber da vida dos outros, se nem
da minha sei. Não tarda e ouvem-se os primeiros pelotões de Agosto. Pobre
Marília, também os calores a importunam.
segunda-feira, 27 de julho de 2020
O desejo infinito
Uma das coisas que se aprende com a observação do mundo é
que a maioria das pessoas confunde o desejo com aquilo que é possível. A
realidade surge então sempre de forma sombria e toda a gente parece mancomunada
para evitar o que seria possível, não fora a aleivosia dos outros, porque
nisto, os aleivosos são sempre os outros. Não lhes passa pela cabeça que aquilo
que é possível pode nada ter a ver com aquilo que desejamos. As possibilidades
são finitas e o nosso desejo é infinito. Este tipo de estultícia, muitas vezes
mascarado de erudição, abunda por todo o lado. Falei sobre isto com o padre
Lodo e o casal seu amigo, no jantar de há dias. O mecanismo é interessante, disse
o padre e passou a uma longa explicação didáctica. O nosso desejo, referiu com
uma entoação sempre italianizada, diz-nos que algo é muito desejável. Depois, a
nossa razão contaminada pela sensualidade proclama bem alto que o nosso desejo
é possível de realizar. A partir daí tentamos impor aos outros a realização
daquilo que desejamos, mas como raramente o desejo se atém ao que é possível,
saímos para a rua com o dedo em riste a acusar esses malandros que não realizam
as nossas fantasias. A perspicácia de Lodovico nem sempre lhe granjeou
amizades. Pelo contrário. Lembrei-me disto, depois de ler certas coisas há pouco,
coisas que caem neste erro, mas que merecem longos aplausos e muitos likes
nas redes sociais. Toda a gente sofre de infinidade do desejo, pensei. Por mim,
desejo um café.
domingo, 26 de julho de 2020
Insónias e sonatas
Hoje saí de manhã para fazer os meus seis quilómetros contra
a inércia e a preguiça. Consta que faz bem e evita que a balança se entregue ao
destempero, ao ser pisada por mim, e me devolva algum impropério em forma de
quilogramas. A passeata foi um pouco mais lenta do que a de ontem. Dormi mal,
uma insónia bateu-me à porta e eu, incauto, abri-lha. Dei por mim apreciar a
companhia. Permitiu-me acabar de ler um romance de Ramón del Valle-Inclán, a Sonata
de Otoño. Alguém dirá que também Ingmar Bergman realizou uma Sonata de
Outono, o que é verdade, mas não têm nada a ver uma com a outra. Cada uma
tem o seu assunto e o seu ritmo. Quem me recomendou o Valle-Inclán foi a Emilia
Bazan, a mulher do antigo aluno alemão do padre Lodovico Settembrini, no jantar
do outro dia. Como não conhece nada dele, comece pelas Sonatas,
sentenciou. A primeira é a de Outono, acrescentou, numa tentativa de
trocar o seu magnífico castelhano pelo português. Nesse momento, o padre
Lodovico franziu as sobrancelhas, mas não disse nada. Percebo-o, agora. O
Marquês de Bradomín não é propriamente um exemplo de bom cristão, mas o padre
também teve os seus dias avessos ao altar. Eu obedeci, muni-me de um exemplar e
li. Isso fez-me andar mais devagar, o que foi logo notado pela aplicação do
telemóvel que me segue os treinos. Na verdade, eu não ando a treinar, mas é
assim que ela interpreta o facto de eu me pôr a caminhar rua fora sem destino,
a não ser o da casa da partida. Caminhar é como jogar ao Monopólio. Vá para a
casa de partida, mas não tem nada para receber. Nos domingos de Julho íamos,
por vezes, almoçar à casa onde nasci. Era um almoço sob uma latada, o que
criava uma sensação de frescura. Naquela altura, ainda ninguém tinha morrido e o
mundo parecia uma clareira aberta. Há muito que não é possível juntar todos
aqueles comensais, mas eles fazem parte de mim. Hoje talvez comece a ler a Sonata
de Estío ou pergunte às minhas netas se querem jogar Monopólio. Presumo que
me olharão de lado.
sábado, 25 de julho de 2020
Não-assuntos
Sábado, dia de ócio. As palavras da família do ócio têm
todas péssima imprensa. És um ocioso. Soa como uma acusação fundada num juízo
moral negativo. No entanto, a palavra ócio quer dizer repouso, descanso, coisas
que me parecem benévolas. Depois, um mundo que ficou fascinado pela agitação,
pela febre das realizações e pela velocidade associou o ócio à preguiça e à
inacção. Os acusadores do ócio tecem loas ao trabalho, mas nunca dizem que a palavra
vem do vocábulo latino tripalĭu. Um tripalĭu
é um instrumento de tortura constituído por três estacas ou paus. O exercício
não seria conhecido pelo prazer que provocava a quem a ele era submetido. Na
verdade, o trabalho, talvez até à Revolução Industrial, nunca mereceu louvor.
Trabalhava quem não tinha estatuto social para fazer outra coisa. No entanto,
podemos encontrar inesperados aduladores do trabalho. No Diário Íntimo,
Baudelaire afirma que o prazer gasta-nos. O trabalho fortifica-nos. Os
nazis não eram destituídos de humor negro e, por certo, percebiam a natureza
torturante do trabalho. Inscreviam na entrada de alguns campos de concentração,
como Auschwitz, o trabalho liberta. Curiosamente, em Baudelaire o
trabalho também é visto como uma libertação, mas da omnipresença na consciência
da sensação do tempo. Tanto o prazer como o trabalho são vistos por ele como
distractores da nossa condição de seres finitos. Tudo isto porque chegámos a
sábado. Nos dias de ócio, pode-se ociar de diversas maneiras. Por vezes,
pratico o ócio procurando autores que ninguém lê. Leio-lhes umas páginas e
esqueço-os. Quem terá ouvido falar em Karl Krause, um filósofo kantiano que
viveu no final do XVIII e no início do XIX? Não o confundir com o famoso dramaturgo
austríaco Karl Kraus. E do pensador holandês François Hemsterhuis, que viveu no
século XVIII? Ninguém. Eu também não. Encontrei-os porque levado pelo ócio me
pus a procurar as obras, numa língua acessível, do romancista romântico alemão
Jean Paul. Deste, eu tinha duas referências. A de Sebald que é elogiosa e a de
Schopenhauer que o acusa de não ter nada para dizer e de só escrever por
dinheiro, isto é, acusa-o de trabalhar. Olho para a minha agenda imaginária e
vejo que tenho de dar parabéns a alguém. Depois, escrevo nela a seguinte nota:
evitar assuntos idiotas ao sábado, aproveitar o ócio para uma coisa mais
decente do que encher o monitor com palavras sobre não-assuntos. O pior, porém,
é que com a passagem do tempo só os não-assuntos me interessam.
sexta-feira, 24 de julho de 2020
As rosas da Piéria
Safo, no poema As rosas da Piéria, lança, talvez sobre
alguma amante que a rejeitara, o pior dos anátemas que os ouvidos gregos
podiam, naquele tempo, escutar: Morta jazerás e de ti não haverá jamais
memória / nem saudade no futuro: pois não participaste das rosas / da Piéria.
Ser perdido pela memória dos outros. Não haver quem no futuro de si se lembre.
Os séculos edulcoraram a maldição, até a transformar em pura aceitação, como se
o esquecimento dos outros fosse o próprio da condição humana. Em muitos, todavia,
persiste a revolta. Persegue-os aquilo a que popularmente se chama a mania das
grandezas ou o desejo da fama, mas isso não é mais do que o temor de ser
esquecido pelo futuro. O colírio para esse mal não era, segundo Safo, um
qualquer, mas a participação na vida das musas, as rosas da Piéria. A arte seria
assim o resultado de um combate pela memória e a saudade que o futuro teria do
artista. A sua ausência e a sua falta seriam sentidas. Dignos de imortalidade,
de persistirem na memória dos vindouros, não eram apenas os grandes feitos, mas
também as grandes palavras. O melhor seria que aquele que realizasse um grande
feito dissesse também grandes palavras, que participasse no convívio com as
rosas da Piéria. Gostaria de saber a razão por que me pus com estas
elucubrações, enquanto a vida lá fora fervilha e as pessoas caminham para o seu
próprio esquecimento. Vão esquecidas de que serão esquecidas. Recordei-me agora
de um poema de David Mourão-Ferreira, Ladainha dos Póstumos Natais. Relei-o
e soletro baixo para que ninguém me escute: Há-de vir um Natal e será o
primeiro / em que terei de novo o Nada a sós comigo. Nem as rosas da Piéria
nos salvarão. O fim-de-semana abre-se diante de mim e isso é o mais que posso
desejar.
quinta-feira, 23 de julho de 2020
Um fado, uma sina
A semana entrou na recta final. É uma frase estranha, mas não
notamos a estranheza, de tanto a usar. Nem sempre o tempo foi visto como uma
recta, melhor como uma flecha que segue sempre em frente, sem que nada a
detenha ou desvie. Tempos houve em que o homem o compreendia como se fosse um
círculo, em que tudo voltava, num verdadeiro eterno retorno do mesmo. Tudo isto
para dizer que a semana se aproxima do fim. Ainda há dia e meio para as
utilidades, mas logo chegará o ócio do fim-de-semana. A imprensa substituiu o
retrato imaginário de um vírus COVID-19 pelo de Amália Rodrigues, no centenário
do nascimento da fadista. Ficámos todos
a ganhar. O vírus é horrível, enquanto Amália era uma bela mulher. Fica muito
bem nas capas dos jornais. Os olhos agradecem. Durante muitos anos, não liguei
nada ao fado. Depois, Amália Rodrigues, Alfredo Marceneiro e Carlos do Carmo
dobraram-me. Hoje em dia, quero dizer no tempo em que ainda não havia retratos de
vírus na primeira página dos jornais, vou a concertos de fadistas. Nunca me
arrependo. Talvez seja a isto que se chama envelhecer. Na rua, os cães ladram,
um casal passa devagar, cada um ajoujado ao peso da própria sombra. Separa-os
meia dúzia de metros, como se já não pudessem suportar a companhia um do outro.
Foi por vontade de Deus. Também eles têm a sua sina. Um pássaro canta, enquanto
um par de anjos poisa no prédio em frente.
quarta-feira, 22 de julho de 2020
A fortuna do saco
Os dias seguem enrolados em inexpugnável manto de calor. S.
Pedro, descontente com a vida que se leva por aqui, lança anátemas e raios de
sol para abrir consciências e rasgar peles. Talvez não devesse levantar estas
suspeitas sobre aquele que detém as chaves do céu. Deve-se sempre ter as
melhores relações com quem gere as portas e administra permissões e proibições
de entradas. Segundo consta, nem vale apena argumentar contra decisões
desfavoráveis, pois o porteiro celeste tem mais que fazer do que ouvir
mentiras, ele que sabe toda a verdade. Deveria evitar estes esboços de
mitologia, pois vivemos num tempo desencantado em que ninguém tem saco para
este tipo de conversa. É uma pena. Quem diria que a palavra saco teria tão
grande fortuna. Encher o saco, despejar o saco, meter a viola no saco, não cair
em saco roto, meter tudo no mesmo saco. Ter ou não ter saco, eis a questão. É
possível que toda a metafísica se resuma a ter ou não saco ou seja uma questão
de ensacar e desensacar. Os dias de Verão são sempre difíceis, principalmente
para um narrador que nada tem para narrar. Podia falar da Marília que tornei a
ver com o Zé Tó, ambos com ademanes abrasileirados, um samba excessivo para a
idade deles. Digo eu. Poupo-vos, porém, aos pormenores. Tenho de ir encher o
pneu da bicicleta da neta mais nova. Andar de bicicleta dá muito trabalho.
terça-feira, 21 de julho de 2020
Dos sonhos e da distância
Foi Bioy Casares que, num conto intitulado de Nóumeno,
fez dizer a Arturo os sonhos são convincentes, mas não vou permitir que a
superstição prevaleça sobre a sensatez. Talvez tenha razão e a superstição
nasça do sonho, daí o seu poder de convencer e gerar fundas convicções. Tenho
uma vantagem sobre a maioria dos humanos. A mim os sonhos não me convencem e,
por isso, talvez possa resistir melhor à superstição. Esta vantagem não nasce
de uma qualidade que possua, mas de um defeito. Raramente, mas muito raramente,
me recordo de um sonho. Se durante o sono se deram em mim aventuras oníricas,
mesmo as mais extraordinárias, quando acordo é como se nada se tivesse passado.
Há quem discuta se se sonha a cores ou a preto e branco, eu não faço ideia do
que estão a falar. Se alguma vez fosse tentado pela psicanálise, não teria
sonhos para interpretar. Restariam a associação livre e os actos falhados. Aqui
haveria material em abundância para ser conduzido ao momento traumático que na
infância me fez apagar o poder de recordar os sonhos. Não se pense, porém, que
eu tenha fé na psicanálise. Como disse, resisto à superstição. Ontem encontrei
um amigo que já não via há uns meses. À distância, atirou ele. É a nova ordem
mundial. Eu percebo-o bem. Médico de profissão, não pode fazer outra coisa
senão cultivar a distância. E ficámos a conversar com um espaço de segurança de
uns três metros, a combinar um encontro de famílias, mas não faço ideia como vamos
resolver a distância nesse encontro, onde haverá crianças e adolescentes. A
proximidade entre as pessoas tornou-se uma superstição nascida de um sonho.
Resta-nos a distância. Cristo se viesse agora ao mundo já não ordenaria amar o
próximo como a si mesmo, mas o distante. Quanto mais distante mais digno de
amor.
segunda-feira, 20 de julho de 2020
Fábrica de desejos
Hoje acordei com uma inexplicada inclinação para assuntos
metafísicos. Fui salvo pelo dever terapêutico de ir caminhar. Seis quilómetros
de périplo fizeram-me esquecer a tentação matinal. Não é que não se pense
quando se caminha, mas os pensamentos são físicos, sobre coisas a que chamam realidade.
Um carro que passa, um buraco num passeio que quase nos faz cair, uma pessoa
conhecida que nos cumprimenta, três desconhecidos que correm como se fossem
atletas de alta competição, outro que se arrasta pela calçada e que se tivesse
um módico de consideração por si evitaria aquela figura. Caminhar é abrir uma
janela por onde perpassam as mais inesperadas personagens de milhares de
romances que nunca se hão-de escrever. Outras vezes enrolamo-nos em pensamentos
que nos chegam do passado ou então em imaginações vindas daquela fábrica de
desejos que todos transportamos connosco. Possuir uma fábrica de desejos dentro
de nós é um perigo, talvez o maior dos perigos. Quem quiser uma vida descansada
fecha a sua fábrica de desejos, despede o pessoal e mergulha na realidade, sem
deixar que um desejo sequer lhe bata à porta. Chegado aqui, se me perguntarem a
razão por que estou a escrever isto, só tenho uma resposta: não faço a menor
ideia. No entanto, isso não tem qualquer gravidade. As pessoas não fazem a
mínima ideia das razões que movem a maioria dos seus actos e fazem-nos, achando
neles, por vezes, felicidade. Isto foi o que disse o padre Lodo no jantar de
sexta-feira, quando a Emilia Bazán lhe perguntou a razão de ter vindo viver
para Portugal. Oiço uma voz a chamar-me. Eu sei, eu sei, ainda não fui arranjar
o furo da bicicleta. Deveria ter pensado nisso quando caminhava, mas talvez
estivesse ocupado com a minha fábrica de desejos.
domingo, 19 de julho de 2020
As dádivas de Zeus
Troquei de versão do Word. A que tinha vai deixar de
receber actualizações e comprei uma recente. Esta irrita-me. Muito, diga-se.
Mancomunada com os defensores do Acordo Ortográfico de 1990, sublinha-me como
erro todas as palavras portuguesas que foram banidas por arbitrária decisão
política. Exceptuando os governos de Portugal, penso que mais ninguém liga ao
patético Acordo. Este é uma conjuração contra as consoantes mudas, algumas das
quais não são assim tão mudas. Se vivemos num mundo em combate contínuo contra
discriminações e perseguições, como é que continuamos a pactuar com a perseguição
às consoantes mudas? Os domingos são dias propícios à falta de assunto.
Entretanto, uma das minhas netas entrou-me pelo escritório dentro, avô, avô,
tenho um furo na bicicleta. Um furo? Um furo. Hoje é domingo, respondi. A
oficina está fechada? Está. Noutros tempos, haveria de haver uns remendos
tip-top e lá se desmontava a roda e, após uma complexa liturgia, o furo estaria
remendado. Hoje a especialização leva a estas situações e a minha alma nunca
teve qualquer inclinação para a mecânica. Ela encolheu os ombros. Vou andar de hoverboard.
É uma boa ideia, ao menos não há risco de se furar uma roda, respondi. Olhou-me
com complacência e foi-se embora. Para amanhã já tenho uma tarefa inadiável. Na
nova edição de Poesia Grega, com traduções de Frederico Lourenço, há
três fragmentos de poemas de Mimnermo. Em todos se encontra uma lamentação pela
velhice e num deles há uma inesperada consideração sobre a igualdade dos
homens: Não há ninguém a quem Zeus não dê muitas tristezas. Enquanto
forem acordos ortográficos ou um furo na roda dianteira da bicicleta, as coisas
não estão más, pensei num momento de optimismo. O Word, impiedoso,
assinalou-me como erro optimismo. Talvez o optimismo seja um erro
trágico, considerei.
sábado, 18 de julho de 2020
A morte de Rafael e a parusia de Jesus
Acabo de ler que Rafael, o pintor renascentista, morreu
vítima de uma doença semelhante à provocada pelo coronavírus. Não contentes com
isto, os informadores ainda foram desenterrar as coscuvilhices do Vasari. Este
não precisou de redes sociais para registar e divulgar que o pintor de Urbino
não apenas saía de casa à noite, quando estava um frio de acender lareiras,
como o fazia para visitar as amantes. No plural, note-se. O amor à concorrência
e a valorização do mercado não são coisas de agora. Ainda por cima omitia
estes factos venturosos aos médicos e, quem sabe, aos confessores, o que seria mais
grave. Resultado? Morreu aos 37 anos, apesar dos cuidados que lhe foram
dispensados. Somos levados a imaginar que se ele não se tivesse dado a tanta
consolação nas noites frias, não teria tido uma morte tão desconsolada. Continuando
com a imprensa. O leitor talvez já não se recorde o que é a parusia. Os tempos
não andam bons para se manter uma sólida cultura religiosa, mesmo que seja
aquela em se foi educado. Apesar do termo ser um pouco esdrúxulo (na verdade, é
uma palavra grave de origem grega), refere-se a uma antiquíssima crença dos
cristãos. A segunda vinda – em glória – de Jesus. Expectativa iminente e sempre
adiada. Vejo agora na imprensa que a segunda vinda de Jesus está consumada. Não
há jornal ou site de informação que não proclame que Jesus voltou. Há
quem espere que seja em glória, mas sobre isso não me pronuncio. Confesso que
com o calor de hoje não me ocorreu mais nada. Podia ter contado o meu jantar de
ontem em Lisboa com o padre Lodovico Settembrini, o seu antigo aluno Hans
Castorp e a mulher deste, a espanhola Emilia Bazán, mas isso ficará para um dia
destes. Vou enviar um email ao padre para lhe perguntar o que acha ele da parusia
de Jesus.
sexta-feira, 17 de julho de 2020
Do exercício da estultícia
A humanidade divide-se em três categorias. Os sagazes, os
estultos e os outros. Não me coube nem o estatuto dos outros nem o dos sagazes.
Restou-me entrar no clube dos que cultivam a estultícia. Como todos os
estultos, sou um praticante assíduo. Nunca falto a um treino e compito nos melhores
campeonatos de estultícia para seniores. Hoje entrei numa livraria para ver os
livros. Realizei plenamente o meu desígnio. Cumpri os objectivos, como agora se
diz. Cheguei lá, olhei para as estantes e vi que tinham umas coisas vagamente
parecidas com livros. Foi uma contemplação pura. Só um estulto entra numa
livraria sem óculos. Os sagazes são precavidos e, caso necessitem, terão sempre
uns à mão. Os outros nem precisam desses benévolos dispositivos pois não entram
em livrarias, espaços que são apenas frequentados por sagazes e estultos que se
pensam sagazes. Um funcionário perguntou-me se eu precisava de ajuda. Que não,
respondi e agradeci o empenho solícito. Não lhe ia pedir uns óculos emprestados
nem que me lesse as lombadas dos livros. Ainda não cheguei a essa fase. Como
todos os estultos insisti em comprar livros. Quando cheguei a casa descobri que,
caso tivesse óculos, não teria comprados dois dos que comprei. Sempre posso ir
trocá-los, mas está tanto calor e nada me garante que leve óculos e não acabe
por trazer os mesmos que teria devolvido. O que me valeu para disfarçar, aos
meus olhos, a estupidez natural foi uma cliente que estava em muito pior estado
de conservação do que eu. Ia conversando com os empregados e o dono da livraria
e acabou, entre pagamentos, considerações literárias e pedidos para guardar a
encomenda, a oferecer-lhes croquetes. Óptimos, asseverou, e como comprei seis e
sou só uma. Eles agradeceram. Ela saiu e eu fiquei a pensar quando será o dia
que entro numa livraria e, mesmo com óculos, acabo a oferecer croquetes ou
pastéis de nata à menina da caixa. Nunca se sabe para o que estamos guardados.
quinta-feira, 16 de julho de 2020
Falta de concorrência
Tudo se paga nesta vida. As coisas irritantes que não fiz
ontem fi-las hoje. Ao sair de casa, a atmosfera purgava grossas bagas de calor,
inundando ruas e avenidas com um ar tão quente que logo se imagina o dia
propício a um grande desvario. Pôr o carro a lavar, passar pela oficina e pagar
a bateria que ontem vieram colocar quase ao anoitecer, passar pelo seguro para
levantar a carta verde. Faltou-me apenas abastecer o depósito. Uma manhã
dedicada ao automóvel, ainda assim sem completar todas as tarefas. Tirando a
adolescência, que pela sua natureza não conta nestas considerações, a minha
relação com carros sempre foi enviesada. São coisas que me cansam, embora me
dêem algum jeito. Aquilo que eu gostaria mesmo era de teletransporte, mas ainda
não está disponível na gama de mercado a que posso aceder. Uma pessoa
fechava os olhos, concentrava-se no destino para onde queria ir e, passados
segundos, encontrava-se lá de carne e osso. Era uma grande vantagem. Perdia-se
menos tempo, a poluição baixava drasticamente e os milhões de empregos ligados
aos transportes seriam alocados – meu Deus, como é possível deixares-me escrever
esta palavra? – a coisas mais filantrópicas, cuja natureza agora não me ocorre.
De facto, o mundo foi muito mal construído. O arquitecto deveria ter um
espírito aberto e democrático e escutar a freguesia. Um amigo economista
confidenciou-me que isso se deve à falta de concorrência. Se os clientes
pudessem escolher entre vários mundos possíveis, os arquitectos em competição
preocupar-se-iam com os interesses dos consumidores. Sendo assim, é o que se vê. Um
mundo cheio de vírus e sem teletransporte. Uma pepineira.
quarta-feira, 15 de julho de 2020
Da perfeição
Tenho coisas irritantes a tratar na rua, mas o calor e toda
a coreografia implicada no sair de casa, descer à garagem, abrir e fechar
portas, carregar em botões e digitar códigos, tudo isso espalha em mim um véu
de cansaço. Protelo e espero por melhor altura. Antes de almoço peguei nas
obras completas de Mário Cesariny. O problema é que não tinha óculos. Na capa
ainda distinguia as palavras, mas os poemas não passavam de manchas. Em vez de
ir à procura dos óculos fiquei a ver a configuração espacial dos poemas, a
espreitar como a cinza textual se destacava da superfície bege do papel. Não se
deve desprezar na apreciação de um poema a forma como ele ocupa o espaço. Há
muitos anos, talvez há mais de vinte, mas não sei precisar, uma galeria local
organizou uma sessão com alguns membros do grupo surrealista português. Ia
jurar que o Cesariny esteve presente. Tudo aquilo pareceu-me anacrónico e
penoso, mas achei graça à apresentação que o organizador desta edição da poesia
de Cesariny, também presente, fez de si. Perfecto E. Cuadrado, uma redundância,
acrescentou, pois se se é quadrado já se é perfeito. Para além da sensação de
anacronismo, foi o que retive do evento. Se alguém, porém, me afiançar que tudo
isso é invenção, não serei eu que o hei-de contraditar. Bocejo, pego nos óculos
e entrego-me ao expediente. Também eu procuro a salvação.
terça-feira, 14 de julho de 2020
La Dernière Valse
Há uma eternidade ofereceram-me, trazido de Paris, um pequeno
caderno para anotações. Talvez tivesse sido uma agenda, já não consigo precisar.
Não sei se alguma vez escrevi nele ou nela alguma coisa, mas não o esqueci por
completo. Tinha na capa uma fotografia de 1949 da autoria de Robert Doisneau, La Dernière
Valse du 14 juillet. É uma fotografia extraordinária. Um par solitário
dança na rua. A noite caíra sobre os prédios. Só sombras silenciosas, inumanas,
vindas da caverna onde dorme a noite, assistiam ao espectáculo. Quem olha a
fotografia não vê apenas o que está nela, um homem e mulher fixados eternamente
numa posição imutável. Vê-os fluir, adivinha-lhes os passos de dança, ouve a valsa,
envolve-se na performance, sente
vontade de aplaudir. Há em tudo isto uma ironia. Como é que um acontecimento
irado e terrível com o passar dos anos se transforma numa valsa? Talvez todos
nós, enquanto vivos, valsemos sobre o cadáver de milhões de mortos e a valsa
seja um exercício de purificação da memória. Ou talvez a vida seja outra coisa,
como a bateria do carro que se apagou, a necessidade de ligar algum dispositivo que
arrefeça a casa, aquilo que não se pode esquecer quando se vai às compras. O
braço dele cinge-a pela cintura, a saia abre-se como uma flor e a noite não pára de cair sobre aquele par solitário que valsa há 71 anos.
segunda-feira, 13 de julho de 2020
Viver sitiado
Fecho-me em casa, escondo-me do calor como quem se esconde de
um vírus. Cerro as persianas e preparo-me para os dias de cerco que tenho pela
frente. Aqui, o sol é um inimigo implacável. Dardeja sem parar raios cheios de
rancor, desejoso de incendiar as cidades por ele sitiadas. Há nele uma sanha
incompreensível para pobres mortais como eu. É possível que a sua aversão tenha
nascido de algum despropósito nosso, de lhe termos negado a divindade ou,
terminadas as colheitas, de não lhe rendermos culto. Desconheço o que lhe move
o ódio. A serra, com os seus muros de calcário, impede o vento marítimo de vir
em socorro dos que são mártires da desmesurada ambição do astro. Não vale a
pena acusar-me de tratar o Sol como se fosse um ser dotado de razão, agindo por
motivos demasiado humanos. À falta de personagens reais, humanizo aquilo que me
vem à mão. O Sol, a Lua, uma pedra, até a mim, que não passo de um pensamento
no pensamento de outro que não sou eu. O telemóvel informa-me a hora e o dia.
Vejo que num dia 13 de Julho, Charlotte Corday assassinou Marat. Vejo retratos
de ambos e o dela parece-me de longe mais benevolente. Sempre achei o quadro de
David, La Mort de Marat, um exercício
de canonização do mal, mas sobre isso é melhor não me pronunciar e remeter-me
ao meu papel de simples narrador tiranizado pelo despotismo do autor, talvez um
discípulo de Marat. O calor não me faz bem. A 13 de Julho nasceu Júlio César,
reparo agora. Decididamente, é um dia que tem demasiado sangue nas mãos. Talvez
seja da temperatura. Nunca sabemos realmente a causa das coisas, admito.
domingo, 12 de julho de 2020
Do uso da máscara
As
coisas que se encontram sem serem procuradas. Não falo de objectos perdidos,
curiosidades da natureza, uma nota de cinco euros ou artefactos do engenho
humano. Caminha-se, caminha-se, e súbitas revelações explodem na consciência. Está
a tornar-se uma moda as pessoas usarem a máscara debaixo do queixo e no
pescoço. Qual a razão? Não se compreende, mas ao andarilhar mundo fora a mente
desprende-se de uma visão excessivamente racional e, subitamente, tem um insight que a faz perceber a verdade. As
pessoas protegem-se do vírus da papeira ou tentam evitar, à outrance, um resfriado na garganta e, para isso, não há melhor
defesa do que uma máscara. Descobri também, num caminhante inovador, que estes novos
dispositivos de protecção contra aerossóis se podem usar no braço para evitar a
dor de cotovelo. São muito eficazes, amortecem o impacto e poupam ao mundo a
dor daqueles que nunca deixam de se queixar da imoralidade do universo ou da
maldade humana. São estas pequenas iluminações que evitam o desespero com este
domingo. Promete uns refrescantes 38 graus. Talvez nos queira fazer lembrar que
por muito que os nossos antepassado tenham fugido de África, será a ela que
todos teremos de retornar. Espero que o autor não me censure este devaneio
meditativo. O calor justifica os maiores disparates e antes estes do que outros
ofensivos do decoro da sociedade.
sábado, 11 de julho de 2020
Uma ida ao café
Havia alguns clientes na esplanada, mas no interior o café
estava vazio. Sentei-me lá dentro rodeado pelo sossego da província, tirei a
máscara e arrumei-a longe da vista. A rapariga atendeu-me, e eu desmascarado
passei os olhos pela imprensa. Um estranho hábito. Julgo que o bebi na
infância. Café, pedia o meu pai, e abria os jornais que comprara. Sempre um de
informação geral e outro desportivo. Naqueles tempos havia matutinos e
vespertinos. Eu comia um pastel de nata à colher, embora não recorde a razão para
evitar a parte folhada. Uma das minhas idiossincrasias relativas a comida, a
qual era para mim, até aos dez anos, um poderoso inimigo e motivo de grandes
dissídios com a minha mãe. Odiava comer, coisa que me passou. Dispensava até
que tivesse sofrido uma transformação tão radical. Quando comecei a ler tinha
direito a um livro de aventuras, uma banda desenhada quase sempre centrada no
longínquo oeste. Sempre vivi rodeado de jornais, mas há muito que deixei de
comprar os desportivos. O assunto deixou de me interessar e aquilo tornou-se
uma leitura tóxica. Não é que a imprensa de referência não esteja cheia de
toxinas. Está, mas desenvolvi resistências e aquilo não me faz mal. Julgo,
todavia, que o país não desenvolveu imunidade de grupo. Um dos cafés a que o
meu pai me levava tinha umas cestinhas de figos secos em exposição e, se não
estou enganado, penduradas nas paredes. Os figos eram cobertos por um folha de
celofane amarelo, mas posso esta a inventar. Esse café desapareceu há décadas,
também o meu pai foi para um lugar onde não existe imprensa e onde não se
vendem livros de aventuras, e eu como pastéis de natas à mão e nem a parte
folhada deixo de lado. O sábado progride vagaroso, o silêncio do café
mistura-se com um artigo de opinião. Se gostasse, haveria de ir à praia. Deixei
de gostar. Para não incorrer numa falácia, não infira que não irei, embora eu
não vá.
sexta-feira, 10 de julho de 2020
O oblívio dos pontos cardio
Cobre-me o dia uma pouca vontade para que nele inscreva
qualquer coisa. Respiro fundo e sou invadido pela sensação de que sempre é
assim. Dias cobertos de vontades poucas. A manhã começou com uma caminhada.
Depois, entreguei-me com zelo a trivialidades, mas a existência é feita de
coisas triviais. Ninguém suportaria uma vida inteira preenchida, momento a
momento, de grandes acontecimentos, mesmo que fossem apenas privados. As manhãs
parecem-me sempre tecidas com o fio da inocência, que uma alma cândida terá
fiado durante a noite. O estado virginal, porém, vai-se maculando com o passar
das horas e o tecido do dia, de início tão branco e resplandecendo, encarde-se
e perde o fulgor. Quando caminho, levo o telemóvel para que este supervisione o
meu andamento e que me informe quantos pontos cardio acumulei. Aqui entre nós, confesso que não faço ideia do que
sejam pontos cardio, mas gosto do
nome, de uma certa musicalidade que há nele. Hoje nas deambulações matinais não
encontrei ninguém conhecido. Por vezes, algum outro caminhante passava por mim,
mas era uma sombra que se desvanecia, a caminho doutro santuário que não o meu.
A palavra oblívio começou a retinir em mim. É mais bela que cardio e não há melhor remédio para
muitos males do mundo que o oblívio. Pudera eu, até me obliviaria de mim.
quinta-feira, 9 de julho de 2020
Um buraco negro
Pela primeira vez, em meses, ouvi um bando de
pós-adolescentes algazarrear junto ao centro de línguas, na praceta aqui em
baixo. Não faço ideia se o centro reabriu ou se eles se juntaram ali para
descontrair de algum exame feito ou a fazer na escola ao lado. Estavam de
máscara, pareceu-me, mas as vozes elevavam-se com a força que só a inocência
lhes dá, mesmo que seja uma inocência que se julga culposa, crente de que uns
quantos desvios às regras lhes dá uma experiência mundana que porá todos os
velhos de boca à banda. Para aquelas idades, alguém com pouco mais de trinta
anos é um velho irremediável. Quando tiverem sessenta descobrirão que ainda não
são velhos. Continuam a florir os arbustos da escola. Ando há meses a tentar
recordar o nome daquelas plantas, mas ainda não o consegui. Talvez nunca o
tivesse sabido. Na casa de uma das minhas avós havia uma paliçada coberta por
umas trepadeiras que davam umas flores roxas que, abertas, tinham uma forma de
campânula ou sino. Que nome teriam elas? A Botânica não é o meu forte. Ontem o
meu neto veio visitar-me. Mal me vê puxa-me o dedo para vir para a secretária
onde não se cansa de bater no teclado. Depois, quer que eu o empurre na cadeira
do escritório. Estas viagens de cadeira de escritório já vão na terceira série.
Os dias deslizam para o buraco negro de onde, devido à intensidade do campo
gravitacional, nunca conseguem regressar. E com isto resolvi um dos grande
enigmas da humanidade. Por que razão não conseguimos viajar para o passado? A
resposta é simples. O passado não é um país estrangeiro onde as coisas se
fazem de forma diferente, como pensava o senhor Hartley, mas um buraco negro
onde tudo o que nele cai desaparece para sempre. Exausto por esta descoberta,
calo-me para não a estragar.
quarta-feira, 8 de julho de 2020
Carnaval eterno
Acordei ainda não eram sete da manhã. A temperatura na rua
tinha descido bastante, apressei-me a
abrir janelas e a pôr a casa sob o efeito de correntes de ar. Estava uma manhã
esplêndida. Cinzenta, fria. Um vento suave lavava o rosto da cidade encardido
pelo calor. As ruas pareciam transitáveis e dos prédios começavam a sair as
primeiras pessoas em direcção aos carros estacionados sob árvores, de onde se
desprende um fluido viscoso que se pega aos vidros. Um atleta paroquial,
equipado a rigor, passou na sua bicicleta de corredor, um homem de máscara
trazia um cão pequeno à tela, a vida mascarava-se de normalidade. Quando saí, o
feitiço tinha desaparecido. O Sol rompera as muralhas e tornara-se ameaçador.
Na esplanada do café da praceta, havia clientes nas três mesas que agora flutuam
distanciadas no estrado. Numa delas, a Marília conversava com o Zé Tó. Afinal
quem estava no outro dia a sambar para ela não era o Esteves nem o Lopes, mas o
Zé Tó, que, enquanto geólogo, andou por meio mundo à procura de petróleo. Esse
deambular é toda a metafísica que lhe coube, mas ninguém quer saber de
metafísica para coisa alguma. Os olhos já tiveram melhores dias, foi o que me
ocorreu, quando percebi o troca que fizera da outra vez. Passei por eles, olá,
olá, e continuei em direcção ao meu destino, pois hoje tinha um. Entrei nele
mascarado, estive por lá mascarado e saí mascarado. Embora a criatividade nos
disfarces ainda seja incipiente, o Carnaval está a tornar-se eterno. Não tarda
e todos sentiremos falta da Quarta-Feira de Cinzas.
terça-feira, 7 de julho de 2020
Perdido na floresta de calor
Almocei, depois de uma manhã entregue ao que o dever me
impõe. Agora, antes de continuar a dar atenção ao que me diz o imperativo
categórico, dou uma vista de olhos pela imprensa. Isto não vai acabar bem, foi
a ideia que se formou na minha mente. Não interessa o que é o isto. Seja o que for tem grandes
possibilidades de acabar mal. A temperatura está nos 38o e vai
continuar a subir. Lembrei-me da história do pastor e do lobo. Andamos desde
finais do XIX a gritar lobo, lobo, sem que se avistasse, talvez por cegueira ou
por não se gostar de abrir os olhos, lobo algum. O lobo guardou a sua visita
para estes dias. Está no meio do rabanho e ninguém acredita. Com este calor não
me ocorre nada mais edificante para partilhar ou, então, estou naquela fase da
existência em que as minhas referências existenciais são Esopo e os irmãos
Grimm. Há quem tenha opinião diferente. Um livro que tenho à minha frente, ao
abri-lo, enviou-me a seguinte mensagem: Acolhe-te
o paraíso dos loucos. Não devemos desdenhar os sinais. Se toda a gente
desse atenção aos sinais, talvez o lobo não andasse por aí e o rebanho pudesse
dormir mais descansado. As duas vezes que usei a palavra rebanho escrevi
rebalho. Isto preocupa-me. O que me levará a trocar o n pelo l? Desconfio que
há qualquer coisa a correr mal no convívio entre os meus neurónios. Talvez o
lobo já por lá ande e eu não tenha dado por isso. Tomo consciência do que me
espera nas próximas horas e enrolo-me no lençol da paciência e no cobertor da
piedade. É nestas alturas que perco a vergonha de ter pena até de mim mesmo.
Uma voz soletra age de tal maneira que
possas querer que a máxima da tua acção se torne em lei universal. Será a
autopiedade uma lei universal? Bocejo. Vou trabalhar.
segunda-feira, 6 de julho de 2020
Arrasto-me
Neste momento estão 38 graus, mas há a promessa de se chegar
aos 40. Não faço ideia como alguém consegue fazer alguma coisa que tenha
sentido, por pouco que seja. Se observo a minha mente, o que vejo é uma névoa
turva onde os parcos neurónios que não desertaram bóiam, mantendo uma distância
de segurança suficiente para cumprir as regras do combate à pandemia, sem
tentações de fazerem sinapses, conexões, de se entregarem a amplexos dos quais
haveria de nascer um sentido. O que me vale é não ser dado a fúrias
mediterrânicas e as minhas relações com a tragédia grega serem apenas as de um
leitor distante. O calor não fomenta em mim a inclinação para o crime, como
acontece com outros, mas o mérito que tenho nisso é nulo. Aconteceu ser assim.
Fico tolhido, olho o mundo com condescendência e arrasto-me na existência como
o mais impotentes dos seres que a vida se lembrou de retirar do nada para que
soubesse o que era uma tarde quente e seca. Toda esta conversa serve para dizer
que não tenho nada para contar, ao contrário de alguém que conversa no café da
praceta aqui ao lado. Não se cala e o som indistinto das palavras chega até a
mim. Uma outra voz, a espaços, corta-lhe interrompe e fala. Talvez seja a isto
que se chama conversar, mas não tenho a certeza. É em dias como o de hoje que
me lembro das sábias palavras, já aqui citadas, de Afonso X Se eu houvesse podido aconselhar Deus na
criação – atreveu-se ele a dizer – muitas
coisas teriam sido mais bem ordenadas. Queixo-me do mesmo, de Deus ter
criado as coisas sem me pedir opinião, ainda por cima com evidente propensão
para o igualitarismo mais prosaico, para não dizer rasteiro. Amemos ou odiemos o
calor tórrido, Ele envia-o em doses iguais para todos os que aportaram a esta cidade
esquecida pelo Céu. Consta que não fez o mesmo com o frio, pois a voz do povo
diz que Deus dá o frio conforme o
cobertor. Deveria evitar este recurso à cultura popular. Não abona a meu
favor. Só deveria ter grandes e nobres palavras, como pretendiam os gregos
antigos, que me elevassem e comigo ao leitor. Chega-me um vídeo. O meu neto de
braçadeiras amarelas dentro de água. Quase o invejo, mas tenho de acabar o
texto aqui.
domingo, 5 de julho de 2020
Expelir opiniões que ninguém pediu
Este parece-me um domingo dos antigos, daqueles que só
existiam no tempo imaginado da infância. O calor lança a tenaz sobre os seres
humanos e, enquanto estes esbracejam espavoridos, aperta-os lentamente até
sufocarem. Com a minha inclinação para a hipérbole, estou a dramatizar. As
pessoas, talvez a maioria, folgam com a chegada do tempo abrasador e usam-no
para poder partilhar um pouco dos seus corpos com os espectadores ocasionais. Afinal,
não fui a Lisboa. O alemão amigo do padre Lodo acabou por não vir, retido por
afazeres da mulher, uma espanhola. Não tardará, porém. Fiquei aliviado, pois
ainda não me apetece a capital. Tenho uma série de afazeres que guardei para este
domingo, contrariando o sábio conselho de não guardar para amanhã o que se pode
fazer hoje, dada por um astuto advogado a um camponês, num dos textos do livro
da segunda classe, talvez da terceira. Os livros dessa antiquíssima instrução
primária eram curiosos e deixaram uma legião de saudosos, que vão comprando as sucessivas reedições. Eram de tal maneira
verrumantes da consciência que, aí pela terceira ou quarta classes, pensava que
todos os nossos reis, rainhas e heróis nacionais eram não apenas seres dotados
de uma coragem superior, como de uma sabedoria sem fim e, acima de tudo,
juro-o, autênticos santos, todos com passaporte directo para o céu, sem terem
de passar num controlo de fronteiras nem fazer teste à COVID-19. Portanto, não
havia nenhuma ideologia nem condicionamento das consciência naqueles tempos,
mas estou impedido, enquanto simples narrador, de me meter em assuntos políticos,
e suspeitar que alguns daqueles heróis, se não a maioria, eram pouco dados à
santidade é um assunto perigoso nos dias de hoje. Só o calor teria poder para
destruir as minhas defesas e fazer com que eu me pusesse a expelir opiniões
que, a bem da verdade, ninguém me pediu nem quer saber. Passa do meio-dia, sombras
raquíticas escondem-se debaixo das árvores. Na Sá Carneiro, o trânsito é de um
domingo de Verão anterior ao surto epidémico. Tremo só de pensar que um dia se
dirá no ano vinte antes da pandemia ou o ano cinquenta e seis depois da
pandemia. Hoje o almoço será mais tarde. Tenho tempo para meditar na santidade
de todos aqueles heróis que foram morrer a Alcácer-Quibir, todos tão castos,
mas talvez a castidade ajude pouco em certos assuntos terrenos.
sábado, 4 de julho de 2020
Faltar à verdade
Entrei no café e depois de me sentar tirei a máscara. De
seguida, folheei a imprensa que tinha comprado. Uma columbina trouxe-me café e
o mais que omito para evitar comentários desassisados. Duas mulheres entram,
também elas convidadas de um baile de Carnaval, mas mal se sentam retiram o
disfarce. Fizeram bem, não precisam dele e o estarem a bater à porta dos trinta
apenas sublinha a sorte que a lotaria genética lhes decidiu conceder.
Embrenho-me na leitura das crónicas de uma plumitiva e depois de um plumitivo.
Ambos muito opiniosos, mas será para isso que lhes pagam as avenças. Cumprem o
contrato com palavras perfurantes e ademanes voluntariosos. Se o mundo a eles
tivesse sido entregue viveríamos todos no paraíso, concluo da leitura. De
súbito, percebi o erro que cometo quando evito frequentar espaços públicos. Uma
das minhas vizinhas bafejadas pela hereditariedade diz, numa ira contida, quase
sussurrada, ainda audível, que se ele mentisse ainda era perdoável, agora
faltar à verdade é inadmissível. Não sei quem é o ele, mas fico-lhe grato e a
dever-lhe a revelação mais importante da minha existência. A verdade é um
acontecimento. Uma pessoa pode faltar à verdade como falta ao trabalho, a uma
aula, à missa, a um jogo, ao jantar para que foi convidado, à festa de
aniversário a que não deve faltar. Elas continuam a conversa conspirativa, mas
eu penso sobre o que é mentir, esse mero desacordo entre o que se diz e o que
acontece, e faltar à verdade, uma falta de comparência, não estar no sítio em que
ela marca encontro. Olho a minha vizinha com atenção e achei-a ainda mais bela
e desejável, na roupa leve que a veste e na ira branda que lhe toca o rosto. Ela
levantou uma mão e com os dedos esguios compôs o cabelo, disfarcei o olhar,
fechei o jornal, coloquei a máscara, paguei e saí. Havia gratidão no meu andar
e até ao sol violento que me acolheu saudei como se fora um velho amigo, a quem
se perdoa uma travessura. Tenho de me apressar, a verdade espera-me em casa.
sexta-feira, 3 de julho de 2020
Caminhadas e caminhantes
Tenho de beber água. Foi o primeiro pensamento que me
ocorreu quando me sentei para escrever. Já fiz 6 quilómetros e não bebi
qualquer líquido. Sinto a boca seca e a energia esvai-se, envolvendo-me numa
nuvem sonolenta que, como uma ave de rapina, cai sobre o meu depauperado corpo.
Levantei-me cedo e aprontei-me rapidamente para ir caminhar. Os caminhantes,
uma espécie de penitentes que se flagelam por pecados triviais, diferenciam-se
pelas horas que escolhem para a penitência. Os da manhã querem lavar a alma das
aventuras oníricas que o sono lhes proporcionou. Os do entardecer são
trabalhadores esforçados que, ao mexer as pernas, se aliviam do peso das
responsabilidades. Os da noite são mais secretos e não são evidentes as razões
que os põem a caminho. Evito especular sobre aquilo que os move. Na caminhada
matinal encontrei a Lu. Sempre foi assim que foi conhecida a Lúcia, a irmã mais
velha da Marília do Dirceu. Olá, disse-me ela. Olá, respondi. Temos que lutar
contra o tempo, acrescentou e eu digo que sim, embora sem saber como se luta
contra tempo. Isto foi no instante de nos cruzarmos, depois ainda oiço uma voz
feminina a dizer bom-dia doutora e a voz da Lu a responder bom-dia, mas não
olho para trás e se a conversa continuou não dei por isso. A Lu, quando a
família foi para Brasil, decidiu ficar por cá, estava a acabar os estudos, como
se dizia, e participava com esmero na nova ordem, da qual o resto da família
fugia. Quando li a primeira vez a Antígona, foi sobre ela que construí a imagem
da desventurada heroína grega, só que o Creonte tinha sido deposto e ela não
tinha irmãos para pelejarem por bandos inimigos. A realidade nem sempre acompanha
a perfeição da arte, o que mostra o erro de certo filósofo que derramava
certezas sobre este ser o melhor dos mundos possíveis. Acima escrevi pecados
triviais. Como pude fazer uma coisa dessas? Não há pecados triviais. Podem ser
veniais, aqueles que merecem perdão, mas todos os pecados são extraordinários,
rompem com a ordem, embora uns desordenem mais que outros. Os mais amigos do
caos são pecados capitais aos quais se aplica pena também ela capital, embora a
relação entre uma coisa e outra não seja linear. Continuo com sede e a teologia
não é o meu forte, apesar de a minha rua – uma estranha rua em semicírculo com
nome de jornal local – ser habitada por não poucos anjos, mas também a eles não
lhes interessa a teologia e, por isso, se falam comigo não é sobre esse tipo de
assuntos, embora não deixem de ter uma certa curiosidade por palavras como
lascívia, luxúria, concupiscência, voluptuosidade. Eu tento desviar o assunto,
falo-lhes em pecados capitais como a ira, a avareza, a preguiça, mas elas dizem
que não querem saber disso para nada. Que lhes descreva uma mulher voluptuosa,
uma cena lasciva. Um dia, se a voltar a encontrar, hei-de perguntar à Lu como
se luta contra o tempo. Enquanto isso vou pensar como posso satisfazer o pedido
dos anjos meus vizinhos.
quinta-feira, 2 de julho de 2020
Desaguisados e protozoários
Não sei o que me deu hoje de manhã para pisar a balança. Irritou-se
e devolveu-me o peso em tom de ameaça. Saí de cima dela e ouvi-a rosnar. Se
tornas a pisar-me em dia útil, faço pior. Vai fazer alguma coisa pela vida.
Tentei serená-la com desculpas e promessas de que nada farei para estragar a
bela amizade que nos dias de confinamento – e restaurantes fechados – tinha
nascido entre nós. Não é a melhor coisa do mundo começar o dia com um
desaguisado. Quando me sentei à secretária, entreguei-me a escrever umas
patetices, mas agora estou livre delas e sinto-me aliviado do fígado. Oiço o
som insistente de uma sirene, mas não faço ideia se é fogo, desastre ou crime.
Talvez seja apenas alguém doente que urge levar para o hospital. Talvez seja
outra coisa qualquer, pois desconheço todas as razões que permitem ligar uma
sirene e encher a atmosfera com a angústia implorativa daqueles gritos mecânicos.
No outro dia fiquei a observar um carreiro de formigas, não das pequenas, mas
das outras que se encontram nos campos, mais encorpadas e apessoadas. Marchavam
com disciplina, como se tivessem uma alma militar. Nunca sabemos, na verdade,
que tipo de alma têm seres como os insectos, os pássaros e os protozoários. Não
tenho a certeza, mas julgo que a palavra protozoário foi a única coisa que
retive das lições de ciências naturais. Mesmo a palavra célula tenho dúvidas se
foi lá que a aprendi. Tenho de ir beber café e comer qualquer coisa, de
preferência sem calorias, sem sabor, sem odor, sem prazer.
quarta-feira, 1 de julho de 2020
Bocejo
Bocejo, não porque a realidade seja um tédio, mas porque
tenho sono. Às seis da manhã acordei com sede, o que me tirou da cama. Bebida
água, fiquei a ler, mas já não me lembro o quê. Quando voltei a adormecer fui
acordado pelo despertador. A manhã estava esplêndida, no céu não se prometia
uma invasão de calor e um vento suave refrescava a paisagem, fazendo tremer as
folhas que, mal ele se recolhia, ficavam em sossego, à espera da reverberação
matinal. Ainda não saí de casa, mas também ninguém espera por mim. O telemóvel
está sempre a dar-me informação. Chega ao cúmulo de partilhar comigo quais são
as aplicações que lhe estão a gastar bateria. Se eu quero que ele as feche,
pergunta-me. Ora, ora, se eu fosse fechar as aplicações que me gastam a bateria,
o que seria de mim? Tornei a bocejar, no exacto momento em que se ouviu uma
buzina agastada. O que quererá dizer esta coincidência? Abro a boca na mesma
hora que alguém carrega na buzina. Um acaso, diz-me o anjo benfazejo, não quer
dizer nada. Falso, grita irritado o amigo do capeta. Não há acasos, tudo está
milimetricamente determinado. Encolho os ombros e deixo os anjos a
digladiarem-se sobre questões metafísicas. Estão no território deles e o mais
avisado é não me meter. Vou dormir a sesta.
terça-feira, 30 de junho de 2020
Nada de sedições
Ir às compras é um filme, como agora oiço dizer, talvez
porque se suspeita no acto todo um enredo do qual se espera um desenlace feliz.
Noutros tempos talvez se dissesse é um romance, mas as pessoas só lêem livros
de auto-ajuda, como se quisessem descobrir em si o poder de uma graça que as
salvasse. Os compradores deambulam pela superfície comercial mascarados, mantêm
distâncias, tentam descobrir quem se esconde por detrás de uma máscara, se é
alguém conhecido, um Pierrot ou uma Columbina, se àqueles olhos
corresponderá um rosto adequado, se saberá usá-la, aumentando em muito as
possibilidades especulativas de quem por ali é obrigado a andar. A chegada a
casa também é um filme, mas tão cansativo que ninguém o quererá ver. Hoje
passarei a tarde em videoconferências. A necessidade é uma deusa cruel, à qual
nunca podemos furtar-nos a pagar o tributo. Recebi um email do padre Lodo,
aquele jesuíta de que falei ontem. Padre Lodo é assim que ele é conhecido na
Companhia e entre amigos, mesmo os que são pouco dados ao catolicismo, amigos esses
que ele cultiva com esmero, não sei se com a esperança de os converter. Sempre
é um jesuíta. Quer jantar comigo em Lisboa, para que eu conheça um antigo aluno
dele, um alemão de nome Hans Castorp. Não o esperava tão cedo em Portugal,
ainda ontem não sabia que ele vinha, escreve como se se desculpasse. Que não me
preocupe, ele fala muito bem espanhol e entre português e espanhol haveremos de
nos entender. Eu não me preocupo, mas não me apetece ir a Lisboa, não me
apetece todos estes rituais concebidos por um génio maligno. Pensarei no
assunto. Não vejo as netas há semanas e talvez deva aproveitar a ocasião. Logo
hei-de responder. Os termómetros começam a subir por estes lados. O calor
penetra na pele e sinto-a rasgar, abrir pequenas fendas que se vão dilatando,
para que o corpo se torne uma chaga viva. Se as pessoas não fogem daqui, não
tarda haverá procissões de ulcerados. Recuso-me a fazer de calendário, quero lá
saber que dia da semana ou do mês é hoje. O tempo é um contínuo sem fim e todas
as divisões que lhe inventamos são uma sedição contra a ordem natural do mundo,
a qual, pelo menos hoje, prezo muito. Amanhã, se verá.
segunda-feira, 29 de junho de 2020
Evitar a mentira
Ontem menti quando disse que me sentara à varanda e via
pássaros e anjos a voarem entre telhados. Não que seja infundada a ideia de
haver serafins e querubins pousados no topo dos edifícios da rua onde habito.
Qualquer um dos meus vizinhos, e não são poucos, corroborará o que digo. Anjos,
há-os e não poucas vezes vejo-os a conferenciar ou a deslocarem-se pelos ares
de um edifício para outro. A minha falta à verdade refere-se a estar sentado à
varanda, pois nem sequer estive em casa. Deambulava junto ao mar e foi aí,
quando passeava pela ilha do Baleal, como tantas vezes tenho feito, que
encontrei perto da casa dos jesuítas, um edifício sobre a falésia, excessivo
para o lugar, mas de onde se pode contemplar em sossego o Atlântico, que
encontrei, dizia, alguém que não via há muito, o velho Lodovico Settembrini,
que tantas vezes veio a minha casa. Como o conheci, graças a um padre jesuíta
que foi meu professor na Faculdade de Letras, e de como ele, na juventude um
inflamado iluminista e maçon, se converteu e entrou para a Companhia de Jesus,
talvez fale noutro dia. O mundo está cheio de metamorfoses e aquelas que se
passam no espírito dos homens não são as mais pequenas. Basta enumerar as
transfigurações do meu pensamento, se é que se pode chamar pensamento ao
arrebanhar de meia dúzia de ideias obscuras e mal cosidas, sem lastro
conceptual e esqueleto lógico. Há porém quem prefira dizer que não se trata de
mudanças no pensar, mas a prova de que possuo um carácter volúvel e a
volubilidade não dá boa fama a ninguém. Hoje não falarei do meu amigo jesuíta.
Tenho não poucas coisas práticas para resolver e foi-me dado, apesar da
volubilidade, uma inclinação para levar o dever a sério, como se tivesse sido
educado por pais pietistas, daqueles de extremo rigor como só os havia em
Conisberga, o que não foi o caso. Uma mensagem no telemóvel recorda-me que
esperam um texto que ainda hei-de inventar. Escrever um diário cansa, mais
valia que me dedicasse a apanhar borboletas. Hoje é segunda-feira, dia 29 de
Junho. A Terra continua a ser um planeta do sistema solar. Não faço ideia das
consequências desse facto, mas sinto-me mais tranquilo e conformado com a
realidade tal como é, fazendo a mim próprio a promessa de evitar mentir nestes
textos, mesmo que eles não passem de ficções de um narrador sem nada para
narrar.
domingo, 28 de junho de 2020
Nem uma epopeia para narrar
Cheguei a meio da tarde sem nada para narrar. Sou um
narrador digno de compaixão. Se tivesse competência, mesmo a um domingo
encontraria uma gesta para descrever, uma situação épica para partilhar, uma
tragédia para contar. Bem me esforcei. Saí de casa, caminhei, fui a um café,
depois fui trocar um candeeiro que tinha comprado, mas que não funcionava. Este
episódio não seria destituído de mérito, pois acabei por não o trocar, já que
funcionava na perfeição, só que, motivado por não ter os óculos ou pela
estupidez natural que me saiu em sorte, não li a inscrição ON/OFF. O vendedor e
eu rimo-nos, ele com vontade de me chamar idiota, eu com vontade de corroborar
o pensamento dele, mas o comércio é uma coisa civilizada. Ele não perderá nada
em evitar dizer o que pensa e eu lá hei-de voltar para comprar outro candeeiro,
só para mostrar que, apesar de idiota, sou um aprendiz esforçado e que à
segunda tentativa consigo pô-lo a acender e a apagar, mesmo sem óculos, mesmo que
lá esteja escrito ON/OFF. Isto, porém, não dá uma epopeia, nem uma tragédia e
para comédia o enredo é curto. Também é verdade que cheguei muito tarde ao
mundo. Tudo o que era digno de ser narrado já o foi. Resta sentar-me na
varanda, acender um cigarro, apesar de não fumar, deixar o fumo enovelar-se e
subir aos céus como se fosse incenso, enquanto pássaros e anjos voam de um
telhado para o outro. Na praceta passa alguém que conheço bem, mas fico grato
por estar onde estou e de não ser visto. Hoje é domingo, dia 28 de Junho.
Celebram-se 182 anos que Vitória foi coroada rainha de Inglaterra, ela que se
chamava Alexandrina Vitória. Há 106 o arquiduque Francisco Fernando, príncipe herdeiro
do império Austo-Húngaro, foi assassinado, o que contribuiu para o início de
uma ampla carnificina a que, posteriormente, se deu o nome de primeira guerra
mundial. Ainda no dia de hoje se celebram os 101 anos da assinatura do Tratado
de Versalhes, que pôs fim à carnificina e lançou os alicerces de onde emergiu a
segunda. Não me tornei um divulgador de efemérides, mas estas informações
servem para mostrar que se não escrevo uma epopeia, o problema não estará no
assunto, mas no talento do autor, que se recusa a pôr-me a escrever sobre tão
elevados temas.
sábado, 27 de junho de 2020
Complemento oblíquo
Acordei cedo e acabei por ir caminhar pelas ruas. Fiz seis
quilómetros para ir de casa e chegar a casa. Sou dado a coisas inúteis como
deslocar-me para chegar ao mesmo sítio. Fora eu bafejado pela lotaria genética
e evitaria humilhações destas. Quem se desloca quer ir de um sítio para o
outro. Como nunca soube a onde queria chegar acabo sempre, por mais que me
esforce a andar, por ir dar ao sítio preciso em que me encontrava. Nisto
sinto-me próximo dos pilotos e fórmula 1. Andam ali às voltas no circuito, a
velocidades estonteantes, a vida em risco, para chegarem à meta de onde
partiram. Eu sou como eles, mas não uso carro e ando devagar, pois se é para
chegar ao mesmo sítio, ao menos que demore mais tempo possível. O jornal que
costumo ler substituiu o ranking do
coronavírus pelo ranking das escolas.
Em ambos se faz notar o desejo de uma vacina que trate as viroses que por aí
proliferam. Estou ensonado. Por desfastio abro uma gramática de língua
portuguesa e deparo com a belíssima denominação complemento oblíquo. De todos os complementos, o que mais amo é
este. O que são, ao pé do oblíquo, os complementos directos, indirectos e
agente da passiva? Nada. Só o oblíquo me faz pensar na chuva oblíqua e leva a
minha mente, como se entrasse em transe místico, a recitar arrebatada Atravessa esta paisagem o meu sonho dum
porto infinito / E a cor das flores é transparente de as velas de grandes
navios / Que largam do cais arrastando nas águas por sombra / Os vultos ao sol
daquelas árvores antigas... E aqui está o problema que é o meu. Se em vez
de andar a pé viajasse num navio, num veleiro, num grande transatlântico,
haveria de sair de um porto e ir dar a outro e tudo faria sentido, mas a água
não é o meu elemento e assim sou coagido a viajar por terra para chegar ao
lugar onde estava. Dias como os de hoje parecem-me funestos para a sanidade
mental. A semana foi terrível e, na verdade, fartei-me de trabalhar para fazer
aquilo que tinha feito. O que me salva os dias é o complemento oblíquo, mas
perde-me o olhar oblíquo que me deitam por não ter vergonha de escrever inanidades
e publicá-las. São o retrato da minha vida, a minha verdade, o que mais posso
fazer? Hoje é sábado, dia 27 de Junho. Os dias estão a encolher e ninguém
protesta. Oiço um galo a anunciar a aproximação da derradeira etapa do dia. É
inverosímil, mas mesmo numa cidade se podem ouvir galos. A gramática mostra-me
uma frase monstruosa e começo a temer se não encontrarei nela um exemplo
extraído destes textos. Tenho de ir comprar um candeeiro para ligar à ficha USB
do computador e uma extensão para me ligar à realidade.
sexta-feira, 26 de junho de 2020
O que se avista de uma varanda
Fui à varanda que dá para a Sá Carneiro. De passagem
espreitei o friso das orquídeas. Ao contrário do que acontece comigo, estão
luxuriantes. Deveria ser proibido usar palavras como esta. Recuperaram dos três
dias a que foram votadas ao abandono. São muito sensíveis. Um fim-de-semana
fora e há logo amuos, chiliques, fanicos e outras cenas avulsas. Chegado à
varanda olhei o castelo. O maldito pinheiro continua a crescer, a alcaidaria é
agora uma nesga branca e uma das duas torres que avisto está quase a
desaparecer por detrás da ramagem verde. Do bar saiu alguém. Parece o Esteves,
aquele que não tem metafísica. Vejo-o a abrir um maço de cigarros e penso que
faz sentido. Outrora, havia tabacarias, agora compram-se cigarros num bar, num
café, onde calha. O Esteves deixa a esplanada do bar, o cigarro aceso, o fumo a
subir aos céus, e aproxima-se do meu prédio. Afinal não é o Esteves, mas o
Lopes, um rapaz do meu tempo. Também sem metafísica, mas ainda vai bem, todo pimpão.
Passou mesmo diante da varanda. Talvez nem seja o Lopes. Pode ser que já tenha
morrido. É muito parecido com ele, talvez um irmão. Era uma família grande.
Encontrou uma rapariga também do nosso tempo, a Marília, debaixo duma sombra,
mesmo diante daquilo que foi um banco. Era a ela que o Gonzaga queria, mas
ficou sempre presa ao Dirceu. Não devia falar destas coisas conhecidas de todos
aqui na terra. Eles hesitam, não sabem bem o que fazer, mas lá se decidiram a
trocar uns beijos. Quase o oiço dizer isto a nós não nos ataca, somos da velha
guarda. A Marília foi para o Brasil, umas coisas políticas do pai e, ela que
antes hesitava entre um estilo neoclássico e um romântico, voltou de lá cheia
de samba. O Gonzaga, coitado, é que nunca casou. O pior aconteceu ao Dirceu,
foi desta para melhor há uns anos. Agora é o Lopes, ou será o Correia?, que
está com ademanes sambados e a Marília viúva, esquecida do Gonzaga e do Dirceu,
os carros a passar e o céu cheio de nuvens, uma luz toldada, e eu sem saber se
ainda há um frémito no coração da brasileira, que afinal é bem portuguesa, aqui
da terra, andámos todos na escola. Quem diria, o pimpão do Lopes, ou será o Correia?
É difícil ver os traços de um rosto quando se está num quinto andar. Hoje é
sexta-feira, dia 26 de Junho. Tenho de ir dar uma vista de olhos aos jornais,
para ver se o mundo ainda existe, se uma epidemia não anda por aí à solta que
impeça o Lopes, ou será o Correia?, de cortejar o samba da Marília. Preferia-a
quando ela era uma musa arcádica, mas há gostos para tudo.
quinta-feira, 25 de junho de 2020
O zimbório zumbe
Depois de almoço, quase frugal e quase abstémio, fui
assaltado por uma palavra. Entrou-me na consciência e não me tem largado. A
quem devo apresentar queixa por esta violação da liberdade de pensamento? Não
faço ideia por que razão zimbório canta dentro de mim. Não avisto nenhum e não
me deu um súbito interesse pela arquitectura, por cúpulas e dispositivos afins.
Há na palavra uma sonoridade exuberante e talvez seja isso que me tem prendido
a ela. Não deveria escrever tudo o que me passa pela cabeça, não contribui nem
para a minha sanidade mental nem para a reputação, ambas já muito desgastadas.
Observo ao longe uma rapariga absorta, não há como o eufemismo para suavizar a
marcha do tempo. Conheci-a numa outra encarnação ou talvez apenas imagino que a
tenha conhecido. Abre os olhos, mas a realidade escapa-lhe, como a beleza se
lhe escapou, como os sonhos se finaram na blusa de seda em que nenhum olhar,
excepto o meu, pousa. Um cão pára junto a uma árvore e, alçando a perna, marca
o território, num assomo de proprietário. O zimbório, porém, não deixa de
zumbir em mim. Descubro que uma nova tradução de A Montanha Mágica foi colocada no mercado. Li o romance de Mann na
tradução de Herberto Caro, para os Livros do Brasil. Depois, comprei a da D.
Quixote e ofereci a que lera. Perante o encómio da nova tradução, já decidi que
a vou comprar, depois alinho-as lado a lado na estante. Quando me der a vontade
de reler a obra, pego nelas e vou pesá-las. Lerei a mais leve. O critério é
mau? Eventualmente, mas mais vale ter um critério mau do que nenhum. Ou será ao
contrário? Hoje é quinta-feira, dia 25 de Junho. As palavras associam-se dentro
de mim. O zimbório zumbe na cúpula ou na cópula, ou apenas na consciência vazia
que para evitar o naufrágio se entrega às leviandades que a assaltam. O dever
chama-me.
quarta-feira, 24 de junho de 2020
O pior é a Kryptonite
Chega-se a uma janela ou a uma varanda, aspira-se o ar, em
lentos haustos, e percebe-se uma contaminação geral da atmosfera. Perplexidade,
ignorância sobre o que fazer, apreensão pelo que está para chegar. Nada disto é
novo, era apenas um problema individual ou de grupos restritos. Uma doença
aqui, um acidente acolá, uma morte noutro lado. Também havia catástrofes de médias
ou grandes dimensões, mas eram catalogadas na etiqueta – acho que deveria dizer
hashtag, o que acrescentaria
modernidade a este escrito – de acidentes, dos quais se haveria de procurar
responsáveis para nos tranquilizar e assegurar que estamos não apenas no melhor
dos mundos possíveis, mas também no dos impossíveis. Vale-nos o canto dos
pássaros e o ramalhar do arvoredo empurrado por um zéfiro benevolente. Na
avenida, passam carros. Nalguns, o solitário condutor vai de máscara, talvez
com medo de se contaminar a si próprio. Pode ser apenas uma reminiscência
genética de algum avô que, emigrado para o longínquo Far-West, se tenha entregado ao comando de uma bando de ladrões de
gado, ou então de uma longínqua avó educada no rigor do Islão. Nunca sabemos o
que se esconde no enxame genético que fez de nós colmeia para viver uns tempos.
Desde que se descobriu a existência do código genético, convencemo-nos que possuímos
um, mas a realidade é outra. O código genético é que nos possui e nos dobra às suas
deambulações combinatórias e fantasias químicas. Espero que não venha ninguém
acusar-me de não crer no livre-arbítrio. Eu acredito piamente e todos os dias lhe
acendo uma vela, para ver se ele olha por mim, tornando-me um sujeito autónomo,
cheio de iniciativa e pronto a dobrar à sua vontade qualquer obstáculo. O pior
é a Kryptonite. Hoje é quarta-feira, dia 24 de Junho. Na Sá Carneiro, um casal
caminha desgarrado, ele à frente e ela atrás, segundo uma ordem ancestral
combinada com o cansaço de um prolongado convívio. Saltitam de sombra em
sombra, ela afogueada, ele decidido, como se tivesse pressa de chegar a algum
lado ou de fugir dela.
terça-feira, 23 de junho de 2020
Um narrador sem assunto
A barafunda veio para ficar, foi o que ouvi quando, hoje de
manhã, caminhei pelas ruas. Não foi um grande passeio, mas um pequeno giro de
desentorpecimento mental. Chegado a casa fui informado de que a orquídea branca
está completamente desaustinada. Uma qualquer euforia tomou-lhe a vida e ela continua
a desfazer-se em flores. Está nisto há bem mais de um ano e não tem aspecto de
querer parar. As folhas, todavia, estão a trocar o verde pelo amarelo. A vida
corre-me num torvelinho, os neurónios estão em turbilhão e o tempo está cada
vez mais quente. Dedilho as tarefas que tenho pela frente e não me parece que
os próximos dias sejam promissores. A tarde avança com os seus pelotões
sombrios. Marcham em cadência militar, batem as botas cardadas no chão, olham
impantes sem nada ver. Nas janelas, os mortais observam-nos com temor, não vão
eles apontar-lhes o lança-chamas e deitar fogo à casa, à vida, a sabe-se lá o
quê. O que achas disto tudo, perguntaram-me no outro dia. Encolhi os ombros e
disse que não achava nada. Já são poucas as coisas sobre as quais tenho opinião
e a minha esperança é a de deixar de ter opinião seja sobre o que for. Na
passadeira, afogueada e vestida de Verão, uma mulher jovem deixa que os olhos
repousem sobre ela, fingindo que não sabe, mas a passadeira é curta e no
passeio a luz e as sombras mesclam-se num tecido que turva os olhares. Hoje é
terça-feira, dia 23 de Junho. Há 192 anos Miguel de Bragança foi
aclamado rei de Portugal. Eis uma informação que não serve para nada, a não ser
para dar um matiz histórico ao fim desta narrativa de um narrador sem assunto
nem personagens.
segunda-feira, 22 de junho de 2020
A loucura normal
É o senhor? Sim, sou eu. Está em casa? Estou, estou. É que
eu tenho uma encomenda para lhe entregar. O andar é… Não posso subir por causa
desta coisa, tem o senhor de descer… Está bem, se é por causa dessa coisa, eu
desço. Espere, vou ver se cabe na caixa do correio. É uma ideia. Olhe, cabe
mesmo. Óptimo, muito obrigado. Está então a encomenda lá em baixo, ainda por
cima vinda da China para me deixar ler noite dentro, e eu aqui em cima. Bem
tenho de me despir e vestir para ir à rua. Não posso esquecer de levar máscara
para viajar no elevador. Abro a porta, chamo com a ponta da chave o elevador.
Ele vem e eu digo ao diabo, abro-o com as mãos e desço. Também escancaro a
porta da entrada com as mãos. Vou ao correio, resgato a encomenda e
correspondência avulsa e, sem nunca tirar a máscara, entro no elevador, saio,
reentro em casa já descalço, fecho a porta, desinfecto as mãos e tiro a máscara,
depois de pousar em lugar seguro o que tirei da caixa do correio, dispo-me,
penduro a roupa de ir à rua, visto-me, desinfecto as mãos, abro a encomenda,
deito o plástico envolvente para reciclagem, em lugar seguro. Abro a caixa,
deito-a no sítio para reciclagem e penso que o dispositivo, que já deve andar
em viagem há umas três semanas, ainda por cima protegido por plástico
hermeticamente fechado, não precisa de ser desinfectado, mas desinfecto-o, não
vá o diabo tecê-las e ele é muito dado a tecelagens. Ainda por cima uma coisa
vinda da China, sabe-se lá por onde andou. Depois, desinfecto-me a mim. A
seguir deveria marcar consulta num psi qualquer. Não o faço, mas lembro-me do
título de um filme de Marco Ferreri, baseada num livro de Charles Bukowsi, Contos da Loucura Normal, a Ornella Muti
ia muito bem no filme, mas já não me lembro de nada. Isto é um filme, anoto,
feito de contos de gente enlouquecida, e a loucura está a tornar-se normal, embora
a Ornella Muti já não tenha 25 anos, nem eu. Sim, estamos todos a enlouquecer,
tanto os que se cuidam, como os que se descuidam e os que acham que umas festas
dionisíacas vêm mesmo a calhar, pois Apolo anda distraído, também de máscara e venda
nos olhos. Hoje é segunda-feira, dia 22 de Junho. A temperatura está a subir e
a vida tornou-se uma trapalhada sem fim. Se não tivesse a tarde ocupada iria
rever o filme do Ferreri. Sendo assim, enlouqueço mesmo sem filme.
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