sábado, 25 de maio de 2024

O verdadeiro niilismo

Comecei o dia com um encontro auspicioso com a balança. Fiz-lhe uma reverência, inclinei a cabeça, disse-lhe bom-dia. Ela encheu-se de salamaleques e devolveu-me um peso aceitável. Não, mais do que aceitável, promissor. Isso deu-me ânimo e tenho estado, neste dia de descanso, entretido com coisas úteis, embora, nesta vida, haja poucas coisas que são verdadeiramente úteis, e sobre elas nunca conseguiremos chegar a um consenso. O que é útil e decisivo para uns, será risível para outros. Isto é uma prova de que há qualquer coisa na sociedade que está errada. Diz-se que todas as sociedades têm as suas tábuas de valores. O drama é que nunca vi essas tábuas e aquilo que eu valorizo, outros nem reconhecerão a existência. Uma possibilidade é que todas as sociedades tenham uma tábua de valores menos uma. Precisamente, aquela a que pertenço. Imagino que seja um azar ter nascido na única sociedade que não tem uma tábua de valores, embora não se chegue a acordo se não tem nenhuma ou se tem tantas que parece não ter nenhuma. Podemos formar, a partir do que se escreveu, uma taxionomia societária – que palavra mais desgraçada – relativa à existência de tábuas de valores. Uma taxionomia possível, mas não real, note-se. Temos sociedades monistas, aquelas que só têm uma tábua de valores. Sociedades dualistas, as que têm duas tábuas de valores. Sociedades pluralistas, as que usam pelo menos três tábuas de valores. Por fim, sociedades niilistas, as que não dispõem de tábuas de valores. Nestas, cabe a sociedade a que pertenço. É uma sociedade que trocou a tábua de valores pelas tábuas de enchidos e pelas tábuas de queijos. Caí na pior das sociedades possíveis, pois as suas tábuas são inimigas da minha relação com a balança. Ora, como quero estar de boas relações com a balança, não posso orientar a minha vida pelas tábuas que orientam e dão sentido à sociedade a que pertenço. Isto explica muito do que escrevo, coisas sem sentido, coisas vindas de uma mente que perdeu a orientação, pois sente-se compelida a rejeitar as tábuas que guiam a sua sociedade. Se se perguntar o que é o niilismo, pode-se, com segurança, responder que é uma forma de vida que trocou as tábuas de valores por tábuas de enchidos e queijos. Esse é o verdadeiro niilismo, que nem Nietzsche conheceu.

sexta-feira, 24 de maio de 2024

Nunca falhamos

O dia já esteve quente, permitindo aquela experiência de alívio e pacificação que se dá quando se vem do calor e se chega a casa. As orquídeas estão belíssimas, mas há ainda algumas por florescer, serôdias. Talvez uma ou outra não o faça. De uma das janelas avisto dois jacarandás. Um está coberto por um manto lilás azulado, mas o outro falhou o grande espectáculo. Aliás, todos os anos é assim. Terá sido plantado em lugar inapropriado. Isso também acontece a muita gente. Plantada em lugar que não é próprio, falha o grande momento. O que será para um ser humano o grande momento? É a vida. Por longa que seja, não passa de um momento e não haverá momento maior para alguém do que esse. Daqui a uma semana, Maio estará no seu último dia. Mais umas horas e evaporar-se-á, não para atmosfera, mas para o nada, que é o sítio de onde vem e para o vai o tempo. O tempo é a estrada que liga os vários – os infinitos – nadas. É por ela que vamos e, por estranho que pareça, nunca nos enganamos no caminho. Nunca falhamos o nada.

quinta-feira, 23 de maio de 2024

Acumulações

Os dias continuam a crescer. A temperatura, agora, também aumenta. Nesta corrida, os dias vão perder. Vão cessar de aumentar mais rapidamente do que a temperatura. Eis uma meditação que não serve a ninguém. É assim que concebo a minha sabedoria. Um conjunto de informações inócuas, cuja finalidade não se descortina. Fui acumulando informação atrás de informação. Elas, as informações, em vez de se integrarem num todo harmonioso, acumularam-se num armazém sem ordem. Preciso de uma, então lanço a mão ao armazém e uso a primeira que me aparece. Basta olhar para estes textos. São fruto de lançar a mão e apanhar aquilo que aparece em primeiro lugar. O que acontece comigo, imagino que acontecerá com muitas outras pessoas, mas não tenho a certeza. Nunca fui outra pessoa. Já ser esta é uma tarefa hercúlea, quanto fará ser esta e outra. Talvez Fernando Pessoa, ao ser tantos, fosse, na realidade, um Hércules. Apesar disso, morreu cedo. Ser tantos pesou-lhe na alma e deu-lhe cabo do corpo. Se Pessoa vivesse hoje, iria ao ginásio. O exercício permitir-lhe-ia suportar-se a si e aos outos sis que ele era e prolongar a vida, para acumular mais sis. Ele acumulou sis, eu acumulo informações. São mais leves e, com o passar do tempo, elas vão desaparecendo do armazém. Não sei se elas são roubadas ou se saem pelo próprio pé. Conformo-me, pois devemos evitar a acumulação.

quarta-feira, 22 de maio de 2024

Profecias e exorcismos

Diante de mim, está pousado um romance que tem a guerra por pano de fundo. Trata-se de Abelhas Cinzentas, de Andrei Kurkov. O facto de, nos últimos tempos, estar a deparar-me com romances que têm esse horizonte na sua narrativa, quererá o dizer o quê? Premonição ou esconjuro? Será aviso de profeta ou acto de exorcista? Sou um mero narrador, um ser virtual, submetido ao arbítrio do autor, um espírito racional e educado nos valores do Iluminismo. Foi assim que o autor me concebeu. Como tal, não tenho inclinação nem para profeta nem para exorcista. Contudo, não era de mim que falava, mas dessa disposição das coisas que teima em colocar perante os meus olhos esse tipo de literatura. Se há uma disposição, então terá de haver alguém que tenha essa disposição, terá de existir aquele que dispõe. Será ele, ou ela, que é profeta ou esconjurador e utiliza a literatura como instrumento para cumprir a sua missão. Não é indiferente se se está perante a acção de um profeta ou de um exorcista. Se for um profeta, ainda nos encontramos na fase da anunciação de um mal que poderá ocorrer no futuro. Se for um exorcista, então estamos já em plena vigência do mal e esta comunicação através de obras romanescas é um ritual usado para afugentar a malignidade que ainda por aí à solta. É o que me ocorre por hoje, dia em que não me ocorreu nada.

terça-feira, 21 de maio de 2024

Inflamações

Desde sempre, é um sempre humano, que sou acometido por dores nas pernas, cuja localização vai variando de modo aleatório. Na infância e adolescência, os médicos atribuíam-nas ao crescimento. Quando deixei de crescer, elas persistiram, uma prova de resiliência, delas e não minha, que desprezo a palavra. Reparei, quando estava na casa dos vinte anos, que as dores surgiam em alturas de variação do tempo, de indecisão entre estações. Depois, passavam. Isto coloca-me um problema epistemológico. Há uma correlação entre a mudança do tempo e as dores ou haverá uma relação causal? Prefiro a relação causal, mesmo que seja indirecta. Por exemplo, a instabilidade do clima inibe qualquer coisa no meu cérebro, e este fica incapaz de evitar a manifestação de certas dores. Ou, então, será ele próprio, o cérebro, em protesto consta a instabilidade, que ordena as dores. Vale-me as dores serem benévolas. Tratam-se, ou mascaram-se, com pouca coisa e desaparecem mal o tempo se estabiliza, não havendo nelas nenhuma inclinação para tempo frio ou quente. O que elas querem, para não me atormentar, é de estabilidade. Ora, a vida é instabilidade, mudança, alteração. Daí se pode concluir que a dor faz parte da vida, sendo dela uma condição necessária, embora não suficiente. Lembrei-me de tudo isto porque o tempo está instável. Talvez logo à noite tenha de tomar um analgésico ou um anti-inflamatório. Presumo que essas dores provêm de pequenas inflamações. Alguma coisa se inflama ainda em mim.

segunda-feira, 20 de maio de 2024

Um acto de resistência

Uma experiência anacrónica. A anacronia, no caso, não é muito grande. Passou-se ontem. Um acaso levou-me ao lugar onde nasci, uma aldeia aqui perto. Parei o carro e fiquei à conversa com uma prima. A certa altura, vejo pessoas a espalharem verdura na estrada. Ia haver procissão. Faz sentido, deve ser domingo de Pentecostes e como a terra festeja o Espírito Santo, há procissão, pensei, enquanto ia conversando sobre coisas com décadas. Aproveitei mesmo para lhe desfazer uma ilusão. Estava, a minha prima, convencida de que eu tinha nascido em Lisboa. Uma falsidade, pois, apesar dos meus pais viverem na capital, eu nasci ali. Ora, o que me perturbou não foi a falsa crença de uma prima que não via há décadas, mas a procissão. Entre aquela que vi ontem e as que desenterrei da memória, de uma memória muito recuada, havia uma diferença abissal. Por certo, na coreografia, mas, acima de tudo, no número de fiéis. Ontem, eram tão poucos os que seguiam atrás dos andores, do pároco e da banda filarmónica da aldeia, que olhei estupefacto e, eu que nunca fui numa procissão, quase tive vontade de ir naquela. Para fazer número ou talvez para me solidarizar com as memórias que tenho de grandes procissões, com as raparigas com tabuleiros à cabeça, ajudadas pelos namorados ou afiançados, ou lá o que eles eram, seguidos pelos homens com opa vermelha da confraria do Espírito Santo. Ontem não havia raparigas com tabuleiros à cabeça, nem namorados, nem confrades do Espírito Santo, para além de quase não haver pessoas. Depois, pensei que aquilo que eu estava a ver era um acto de resistência. Aquelas pessoas, conhecia uma ou outra, estavam em luta contra a rasura do tempo. Já não têm poder para erguer uma festa ao divino Espírito Santo, como as havia ali desde o século XVII, mas ainda saem à rua, levam os andores e põem a banda a tocar. Pode ser a luta mais inútil, mas lutar contra o tempo é o combate que merece a maior das admirações.

domingo, 19 de maio de 2024

Finais felizes e alucinações

Decidi, após a leitura de um certo romance, pedir a um chatbot para fazer um resumo da obra. Ele começou muito bem, mas a partir de certa altura passou a alucinar e reconstruiu a história em modo cor-de-rosa, que não é, propriamente, a cor com que acaba o romance. Há duas explicações, pelo menos, para esta situação. A primeira é que há certas versões não romanescas da história em que esta tem um final feliz e o chat decidiu compor o resumo. A outra é que o chat não gostou do fim da história dado pelo autor e decidiu reescrevê-lo, compô-lo, como se fosse o proprietário de uma editora que quisesse vender livros ao público e tivesse como mercado as pessoas que consomem finais felizes. A literatura – e não confundir literatura com ficção em livro – não tem especial inclinação para finais felizes, mas é plausível pensar que são muitos os editores que precisam de vender livros a corações em busca de consolação. Depois, fiz uma nova tentativa com outra obra. Tentei em dois chatbots diferentes. A resposta foi muito mais adequada. Como a obra é muito mais recente e não deu origem a mil interpretações, ambos os chatbots evitaram alucinações e limitaram-se a fazer um resumo genérico da obra. Já reparei que um deles alucina muito mais do que o outro. Há nele qualquer coisa que me perturba. Tenta compor a realidade, tornando-a mais de acordo com certo gosto que ele presume ser do público. As versões pagas, segundo me dizem, são mais fiáveis, mas ainda não me predispus a solicitar serviços pagos. Se quero resumos, faço-os eu, embora não saiba por que razão hei-de querer resumos das obras que leio.

sábado, 18 de maio de 2024

A melancolia da distância

Por curiosidade, foi ver os eventos históricos referentes ao dia 18 de Maio. Entre 1096 e 2018, catorze dos eventos elencados estão relacionados com a guerra. Este é o principal desporto do homo sapiens sapiens. Somos uma espécie duplamente sábia, mas aquilo em que somos, efectivamente sábios, é matarmo-nos uns aos outros. Por horrível que isso seja, não podemos dizer que tenha sido um problema para a espécie, pois esta colonizou todo o planeta e colocou-o sob a sua alçada. Imagino, agora que penso nisso, que a questão da guerra não seja uma questão moral, mas biológica. Assim como no processo evolutivo desenvolvemos a linguagem articulada e, posteriormente, a escrita, também desenvolvemos o poder de nos matarmos. Dois desenvolvimentos inerentes ao processo de adaptação ao meio. Eis um pensamento sombrio, mas que está de acordo com o dia. Tem estado, felizmente, um Maio pouco dado a exuberâncias estivais, fazendo mais lembrar um tempo de Semana Santa, embora esta ideia de que há um tempo, um clima, próprio da Semana Santa não passe de um estereótipo, o qual, penso, não ofenderá a Semana Santa, mas nunca se sabe. Quando se considera a nossa espécie, a partir da cadeira de um escritório, não é possível reprimir a melancolia. Entre aquilo que imaginamos que podíamos ser e aquilo que somos, há uma distância sem fim, talvez infinita. A melancolia vem da constatação dessa distância que vai do ideal ao real, como se diria outrora.

sexta-feira, 17 de maio de 2024

Os caminhos para Roma

Ainda não decidi se vou caminhar junto ao rio ou se fico por casa. Haverá, claro, outras alternativas, mas deixo-as de lado, pois seria fastidioso fazer a sua enumeração. Há quem creia, todavia, que nunca temos alternativas. Estas seriam ilusórias, pois só podíamos fazer aquilo que fizemos, embora tenhamos a capacidade de pensar que poderíamos ter feito outra coisa. Os defensores do não há possibilidades alternativas, desde Baruch Espinosa até a certos cientistas dos dias de hoje, crêem que tudo está determinado. Ora, o que não se consegue perceber é a necessidade de termos desenvolvido uma capacidade de pensar que nos diz que para ir a Roma se podem escolher múltiplos caminhos – aliás, todos, pois todos os caminhos vão dar a Roma – e, na verdade, só haver para nós um caminho para ir a Roma. O facto de termos desenvolvido a capacidade de encontrar vários caminhos e a de deliberarmos sobre qual devemos tomar choca com esse determinismo insuperável. Tenho uma tese que me parece promissora. A vida é um longo caminho de afastamento do condicionamento determinístico da matéria. Quanto mais complexa for uma forma de vida, mais ela tem capacidade de descobrir várias vias para chegar a Roma, isto é, a onde quer. A única coisa que, verdadeiramente, dá fôlego aos defensores do tudo está determinado é a impossibilidade de se retroceder no tempo e voltar a uma certa situação e, não mudando nada da situação original, tomar uma decisão diferente daquela que se tomou, isto é, ir a Roma por outro caminho. Escolhi um péssimo tema para hoje, mas ainda estou a tempo de escolher outro, o de falar sobre o estado do tempo e da exuberância que se desprende do friso das orquídeas. Talvez vá caminhar junto ao rio, se tiver companhia.

quinta-feira, 16 de maio de 2024

Da alucinação

Comecei a escrever uma deambulação sobre alucinações e visões, um texto ainda mais obtuso do que aqueles que costumo escrever. Ao fim de uma dúzia de linhas, apaguei-o e lá se foram as visões e os estados alucinados sobre os quais ia discorrer para dizer nada. A maior parte das palavras que dizemos ou escrevemos são inúteis, penso-o muitas vezes, e se as não disséssemos ou não as escrevêssemos o mundo não perderia nada, antes pelo contrário. Como narrador, tento um equilíbrio entre a verborreia, que me habita a alma, e a ascese linguística que me aproximaria do silêncio. Aqui, todavia, reside, disfarçado, um problema. O silêncio ainda é uma forma de discurso. O facto de evitar as emissões sonoras ou o traçar gráfico de letras não significa que nada se diga. A pessoa que não fala pode incomodar não porque esteja calada, mas devido à sua loquacidade. Essa é uma experiência arcaica, da infância. O silêncio dos pais pode ser excessivamente ruidoso para os filhos. Comecei com as alucinações e as visões de que não falei e podia agora acrescentar audições. Cada um dos nossos cinco sentidos pode alucinar a seu modo. Sentir coisas, cheirar coisas, saborear coisas, para além de ver e ouvir coisas. E aqui parece existir mais uma gaffe da nossa evolução. Se desenvolvemos os sentidos, na longa caminhada até à humanidade que hoje somos, para entrar em contacto com o mundo, por que razão eles nos enganam, chegando ao ponto de produção de alucinações? Há uma possibilidade interessante. Não há nada de errado com os sentidos. Cada alucinação não é a produção de uma fantasia sensorial, mas uma entrada em contacto fugaz com uma realidade que, por norma, está oculta. O melhor é terminar a prosa, para não ser acusado de estar a alucinar. Pertenço a uma geração que não se coibiu de procurar alucinações por métodos ínvios, mas, digo-o para memória futura, nunca fui atraído por paraísos artificiais. Não tinha alma de Baudelaire.

quarta-feira, 15 de maio de 2024

Da anorexia dos caracteres e da felicidade dos canalhas

Estou a tentar ler um certo livro cujo título não vem ao caso, embora a sua matéria exija atenção ao texto. E é aqui que está o problema. O texto utiliza um tipo de caracteres, uma fonte, tão elegante, tão elegante, que os meus olhos têm dificuldade de lidar com tanta elegância. Pensando bem, não deveria falar de elegância da fonte, mas de anorexia. O estado anoréctico dos caracteres choca com os meus olhos. Estes, apesar da prótese a que damos o nome de óculos, já tiveram melhores dias e não lidam bem com todas as fontes que por aí pululam. A certa altura, leio o seguinte: É preciso reconhecer, entretanto, que há certas desordens nesta vida, que se mostram particularmente na prosperidade de muitas pessoas más e na infelicidade de muitas pessoas de bem. Há um provérbio alemão que chega a atribuir a vantagem aos maus, como se normalmente eles fossem mais felizes. Era isto que estava a ler e que estava a ser obliterado da minha consciência pelo estorvo provocado pela anorexia da fonte usada. E o que dirá, perguntará algum leitor, o provérbio alemão? Ora, o que haverá de dizer? Fica a tradução apresentada: Quanto mais curvada a madeira, tanto melhor são as muletas; quanto mais perfeito o canalha, tanto maior é a sua felicidade. Não querendo pôr em causa o espírito do povo alemão, tão bom a fabricar provérbios como qualquer outra coisa, acho o provérbio excessivo na dimensão e, na verdade, falhado. Bastaria que dissesse: Quanto mais perfeito o canalha, tanto maior é a sua felicidade. Seria um belo e exacto provérbio. Não se compreende a introdução de um raciocínio analógico. Que relação se poderá estabelecer entre a curvatura da madeira e a perfeição do canalha? E entre a qualidade das muletas e a grandeza da felicidade. Talvez o espírito alemão seja mais obscuro do que aquilo que um latino consegue enxergar, mas também é verdade que os meus olhos não estão nas melhores condições para enxergar seja o que for, apesar de eu viver no melhor dos mundos possíveis. Talvez me tenha perdido na tradução. Por falar em canalhas, segundo o dr. Johnson, Samuel Johnson, o patriotismo é o último refúgio do canalha. O dr. Johnson não escreveu a frase, apenas a proferiu na tarde de 7 de Abril de 1775, tendo sido registada pelo seu amigo, pupilo e biógrafo James Boswell. Terá sido o dr. Johnson um antipatriota? É duvidoso. O canalha é aquele que se serve do patriotismo para disfarçar os seus interesses egoístas, mas este é um assunto perigoso, pois entre por um campo, a política, que me é vedado pelo autor. Como narrador, aceito a limitação da minha liberdade. Fiquemos apenas pela felicidade dos canalhas, até porque o texto vai longo e não há quem tenha paciência para o ler. E estou certo de que os canalhas, chegados a velhos, ainda têm olhos para caracteres anorécticos. Daí a sua felicidade caso sejam dados à leitura, talvez a última.

terça-feira, 14 de maio de 2024

Idade metabólica

Hoje tive aquela sessão, que não será de todo inútil, com a nutricionista. Pesagens, medições, conversa, patati, patatá. Progressos nuns lados, retrocessos noutros. A idade metabólica, apesar de ter subido e não devia, está bastante lisonjeira, menos dez anos que a idade real. Aliás, estava a recuar demasiado no tempo metabólico e isso poderia ter efeitos deletérios que me recuso a congeminar. Seja como for, acho que devo comemorar os progressos existentes. Descobri um restaurante de comida brasileira e pareceu-me adequado para festejar a perda de peso e de perímetro abdominal. Também evitará recuos na idade metabólica. Não por acaso, deitei a mão a uma estante e tirei de lá o livro You must change your life, do filósofo alemão, Peter Sloterdijk. É isso que a frequência da nutricionista deveria querer dizer. Mudar de vida, abjurar a vida passada, os mil pecados da gula e, sob o comando da enviada do reino das pessoas saudáveis, entregar-me à ascese que me conduzirá não ao paraíso, mas à elegância e à saúde. O meu problema, porém, é que me falta fé, e cada vez que tenho dúvidas, o que é a propensão de uma razão crítica, abro o caminho para aumentar a idade metabólica. Uma chatice. Não serei o primeiro, nem o segundo, nem o terceiro que não compreende por que razão aquilo que é agradável aos sentidos faz mal à idade metabólica. Há um erro no processo evolutivo da humanidade. Desenvolveu os sentidos também como fonte inesgotável de prazer e, afinal, o organismo só é saudável se evitar os prazeres. A minha esperança é a engenharia genética, que, no futuro, poderá intervir nos nossos genes e desligar os sentidos do prazer, focando-os na sobrevivência. Até lá temos de suportar esta luta infinita entre o prazer e a idade metabólica, ouvir as sorridentes homilias da enviada do reino da saudabilidade e não levar nada disto a sério.

segunda-feira, 13 de maio de 2024

Por uma natureza benevolente

Os dias úteis começaram carrancudos. Céu cinzento, tempo abafado. Alguém diz estamos no tempo das trovoadas de Maio, oiço responder pois estamos, pois estamos. E a conversa continuou, saltando de assunto para assunto, um modo de ocupar o tempo e de o deixar deslizar. Por certo que, por aqui, Maio tem as suas trovoadas, mas na minha memória são as de Junho que surgem mais rapidamente. Súbitas enxurradas, trovões e relâmpagos. A rua, onde vivi parte da infância, toda adolescência e mais alguns anos, enchia-se de água, que corria para outra rua mais abaixo, talvez com esperança de chegar ao rio. E chegava. Depois, vinha o sol e a Primavera começava a despedir-se do calendário. Hoje podia trovejar e chover, pois a atmosfera está acintosa, era bom que a natureza descarregasse a sua fúria, para depois, mais calma, deixar os mortais entregues aos seus afazeres. Não é bom que a natureza acumula fúrias, raivas, ressentimentos. Não lhe faz bem e quem paga são os homens. Não é que estes não mereçam castigo, mas deixemos isso a quem de direito. Não queremos uma natureza justiceira, mas benevolente e dotada de uma infinita paciência para nos aturar. Bem precisa. Hoje não me ocorre nenhuma ideia. O melhor é parar por aqui, antes que venha o crepúsculo e as sombras se adensem até cobrirem a terra com a folhagem extravagante da noite.

domingo, 12 de maio de 2024

Ser sábio

Em Algumas Lições sobre o Perfil do Erudito, de 1794, Fichte terá afirmado que o erudito deve ser, do ponto de vista moral, o melhor ser humano do seu tempo. Esta tradução do título Einige Vorlesungen über die Bestimmung des Gelehrten é equívoca. Fui buscá-la à tradução portuguesa de uma obra de Alexander Kluge, que faz a citação referida. Ora, a tradução francesa é Conférences sur la Destination du Savant, texto que trabalhei arduamente há décadas, mas do qual já não tenho memória. O tradutor automático da DeepL não propõe nem erudito nem sábio (savant), mas académico. A questão não é de somenos. Não se percebe por que um acumulador de informações (um erudito) terá de ser o melhor ser humano do seu tempo. Saber muitas coisas não faz de nós melhores. O mesmo se aplica ao académico. Por que razão o triunfo no mundo académico tornará melhor moralmente o triunfador? A tradução francesa por savant (sábio) é a mais pertinente. Ser sábio é muito mais do que acumular informações ou triunfar na academia, mas uma forma de saber conduzir a sua vida e a relação com os outros. O sábio é o que sabe, efectivamente, traduzir o conhecimento na acção, não porque age segundo um enquadramento teórico, mas porque a sua sabedoria se tornou carne da sua carne e espírito do seu espírito. O sábio é o que está aberto ao acontecer e sabe dançar a música dos acontecimentos. Por certo, esta concepção de sábio está longe daquela proposta por Fichte, que um dia me terá interessado, mas que o tempo, com a sua sabedoria, rasurou da minha memória. Olho para o livro anotado, reconheço a minha letra, mas, na verdade, já não me reconheço como autor dos comentários feitos com a letra que é a minha. Se não me desse trabalho, punha-me a apagar sublinhados e anotações, para retornar a ler aquilo que há muito li diversas vezes, sem me tornar mais sábio.

sábado, 11 de maio de 2024

O caminho da reiteração

Suspendi a marcha pela floresta das sinfonias de Mahler. O que me falta ouvir fica para a próxima semana. O fim-de-semana musical fica dividido entre o silêncio e a música contemporânea. Nesta comecei, com duas composições de Alfred Schnittke, Concert for Choir e Requiem. Agora, viajo por Maurice Kagel, Rrrrrrr… Anagrama e Mitternachsstuk. A parte final da viagem será com Frédéric Durieux, So schnell, zu früh, Devenir e Là, au-delà. Tudo isto proveniente de CD que já não ouvia há bastante tempo. Na música, talvez como em tudo, o importante é a reiteração. Ouvir uma e outra e outra vez. Esta repetição, porém, tem, desde há tempos, má imprensa, digamos assim. Fomenta-se a quantidade das experiências. Ver muitas coisas, ouvir muitas coisas, viajar por muitos sítios, ter muito amores, etc., etc.  Isto, porém, não passa de um exercício superficial e este amor à multiplicidade experiencial é, na verdade, a confissão de uma impotência estrutural perante a verdadeira experiência, que não procura a multiplicidade infinita, mas procura o infinito que há na unidade. A repetição é uma aproximação a essa unidade infinita. Unidade sem fim, seria mais apropriado dizer. A repetição não é a queda na rotina, como um tempo apressado como o nosso pensa. Pelo contrário, é um processo de descoberta, pois a realidade, qualquer realidade, só se deixa conhecer pelo árduo esforço, e mesmo este não garante a apropriação que constitui todo o conhecimento. Voltando à música, a de Alfred Schnittke pertence a universo sonoro bem diferente dos de Kagel e de Durieux, que estão mais próximos, filhos de uma mesma cultura. Enquanto trabalho, deixo a música escorrer por mim. Por vezes, paro e fico apenas a ouvir. Outras vezes, deixo o silêncio reinar. As paredes da escola aqui ao lado reverberam, fustigadas pela inclemência do Sol. O fim-de-semana progride e isso não é uma boa notícia.

sexta-feira, 10 de maio de 2024

Esquinas

A disposição das coisas impede-nos de compreender o que se oculta sob essa disposição. Foi esta a primeira lição que tirei ao ler Se não fosse a vida estender-se numa linha contínua, talvez ela tivesse reparado a certa altura que tinha dobrado uma esquina. O excerto é o começo de um breve texto denominado “Borboleta branca”, de O Livro Branco, de Han Kang. A linha contínua do tempo oculta-nos tanto as mudanças de rumo no espaço como as que acontecem na existência. Acumulamos tempo até que o tempo se nos acabe, mas essa acumulação hipnótica esconde outra acumulação, a das esquinas dobradas, as etapas existenciais que só sabemos que o são quando estão acabadas e se tivermos muita sorte e possamos, por instante, quebrar a hipnose que o tempo faz cair sobre nós. Imaginemos que, mortos, somos levados a um tribunal para prestar contas. Não nos perguntarão, por certo, quantos segundos acumulaste ao longo da vida. O promotor público perguntará: quantas esquinas dobraste? Escutada a resposta, dirá vamos agora examinar se as que dobraste são as certas ou se te transviaste no caminho. Talvez o defensor nomeado proteste, argumentando que a existência de esquinas certas ou erradas é uma presunção do promotor, uma mera conjectura que não tem em consideração que o visado, ao abordar uma esquina para a dobrar, está sempre convicto de que é a certa. A discussão entre o promotor e o defensor pode durar várias eternidades, sem que se chegue a alguma conclusão, deixando o visado sem julgamento, isto é, sem punição nem absolvição. Seja como for, o melhor é dar atenção às esquinas que se escondem sob a linha do tempo e também às do espaço, não vá toparmos com quem não queríamos ver.

quinta-feira, 9 de maio de 2024

Dia da espiga

Não fui colher a espiga, hoje que é dia dela. Aliás, nunca participei nessas romarias ao campo, para colher a espiga e fazer um ramo que incluía ainda papoilas, malmequeres, pequenos ramos de oliveira, alecrim e videira. Uma festa claramente pagã e que acabou por coincidir com a festa cristã da Ascensão. Em tempos, a Quinta-Feira de Ascensão foi feriado nacional, mas agora só é feriado em alguns – são bastantes – municípios, como este em que me recolho. Não terá sido muito inteligente acabar com o feriado nacional. Os católicos festejariam a Ascensão, os pagãos iriam à espiga e os outros entregavam-se ao descanso, pois, contrariamente ao que se propaga desde a tenebrosa (por certo, por causa do carvão) Revolução Industrial, o homem não foi feito para o trabalho. Este é um mal, um castigo metafísico. Ora, se o trabalho tem essa natureza, o mais sensato será aliviar os homens, o mais possível, dessa punição. Punição como aliás decorre da própria palavra trabalho, que foi derivada de tripalĭu, um aparelho de tortura composto por três paus. Como a história das palavras nos conta coisas interessantes. Num tempo de grandes preocupações ambientais, seria sensato que um governo decretasse a Quinta-Feira de Ascensão, com a adenda de se considerar também Dia da Espiga, como feriado nacional, e todos fossem passear ao campo, fazer ramos e testar a sua resistência às alergias provocados por pólenes, pós e poeiras. Por ser feriado, tenho passado o dia a trabalhar e a ouvir as sinfonias de Gustav Mahler, dirigidas por Eliahu Inbal e executadas pela Radio-Sinfonie-Orchester Frankfurt, em gravações que datam do século passado. Este é o meu programa musical para hoje e os próximos dias. Daqui a pouco, mais à tardinha, irei caminhar junto ao rio, num lugar onde há papoilas e malmequeres. Não os apanharei, mas olharei para eles e ficarei grato pela sua existência, como pela existência do rio e dos chorões e salgueiros que por lá existem.

quarta-feira, 8 de maio de 2024

Ruminar o futuro

Hoje, decidi comprar um livro de Ursula K. Le Guin. É conhecida como autora de romances de ficção científica. Li dela apenas três romances do denominado ciclo de Terramar, o qual foi completado, mais tarde, por outros três, que nunca li. Estes romances fazem parte de uma literatura de fantasia, cuja personagem principal é um feiticeiro denominado Ged, o gavião, se bem me recordo. Não eram romances típicos de ficção científica ou de antecipação. A ficção científica foi um género que nunca me atraiu. Talvez seja o contraponto do romance histórico. Enquanto este ficciona o passado, a ficção científica fá-lo-á com o futuro. Talvez este género literário seja mais importante do que aquilo que eu tenho pensado. Não pela literatura em si mesma, mas pelo modo como a imaginação opera para trazer à linguagem as expectativas humanas, o modo como dentro de nós o futuro é ruminado. A compra de Do Outro Lado do Sonho, o romance de Ursula K. Le Guin, é uma tentativa de entrar nesse mundo narrativo, do qual, na verdade, só conheço o Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley. A minha percepção é que esse tipo literário tem uma natureza distópica. Seria interessante perceber a razão por que o futuro é, por norma, antecipado como um lugar de trevas. Isto recorda-me a velha teoria das Idades do Mundo, em que a primeira Idade era a mais ditosa, a de Ouro e a quarta, a última, a Idade de Ferro, aquela que era tenebrosa por essência. Esta inversão da ideia de progresso talvez seja a fonte que alimenta a imaginação dos escritores de ficção científica, ou, porventura, de todos os escritores. O melhor dos mundos possíveis não está no presente, nem no futuro, mas pertence a um passado de que perdemos a memória, restando apenas vestígios inconscientes, cuja luz não é suficiente para iluminar o futuro.

terça-feira, 7 de maio de 2024

Ondina

Esta noite acabei de ler um conto – talvez fosse mais correcto classificar a obra como uma novela – onde uma das personagens centrais é uma ninfa ou um génio feminino das águas. O autor é Friedrich de La Motte-Fouqué, autor que desconhecia por completo e que um acaso depositou diante de mim a sua obra, Ondina, na tradução portuguesa. É um conto fantástico e mais um episódio daquilo a que se poderia chamar a legenda do amor no Ocidente. Não sou dado à literatura fantástica, mas talvez esteja numa fase de alteração do gosto. Nunca se sabe o que a idade traz aos seres humanos. Sobre aquilo a que chamei a legenda do amor no Ocidente, apenas posso remeter para a obra de um dos pais da Europa, Denis de Rougemont, no seu O Amor e o Ocidente. Presumo que ainda seja obra que mereça ser lida, embora a alteração do gosto tenha sido acentuada nas últimas décadas, e a influência anglo-saxónica tenha obliterado a atenção aos autores da Europa continental. Voltando à bela Ondina, ela abandona o seu mundo em busca de uma alma humana. É o máximo que posso adiantar, mas poderei acrescentar que a pretensão de Ondina será a de todos os seres humanos, quando abandonam o mundo do nada onde existiam, antes de serem concebidos, e são postos sobre a Terra. A partir daí buscam por mil caminhos encontrar e conquistar uma alma humana, a sua alma. A questão que se pode colocar é se eles a encontram ou a perdem, não por a terem, mas por não encontrarem a alma que seria a sua. O que me vale – acabo de o pensar – é não viver num tempo em que o Tribunal do Santo Ofício exercia os seus poderes nesta terra, pois estas formulações acerca da alma são heréticas. Heréticas ou não, são muito mais interessantes. Uma coisa é receber de mão-beijada uma alma na hora da concepção. Outra, bem diferente, é enfrentar o mundo, como D. Quixote, o cavaleiro da triste figura, para encontrar a sua alma. Que aventuras não há que empreender? Que ilusões não há que desfazer? Sim encontrar e conquistar a sua alma é uma prova difícil, mas todas as coisas belas são difíceis, como o escreveu um dia Platão.

segunda-feira, 6 de maio de 2024

Da fealdade das palavras e da origem das sombras

Uma sombra projecta-se no muro da escola aqui ao lado. Depois, desaparece. Este é o destino de todas as sombras, oiço dizer dentro de mim. Por uma vez, aquiesço, no sentido de condescendo com a opinião que foi soprada nem sei bem de onde e por quem, talvez um homúnculo que vive escondido nas terras escuras do meu subconsciente. Aquiescer é um verbo horrível. Não pelo seu significado, mas pela sua sonoridade. Há palavras assim, nascem feias e, por mais tratamentos de beleza que façam, nunca se tornam umas belas palavras. Há pelo menos três categorias de palavras feias. Uma categoria fonológica, em que a fealdade deriva do som, como o verbo aquiescer. Uma categoria semântica, em que a palavra é feia pelo seu significado; por pudor, omito um exemplo. Uma categoria do uso, em que a fealdade deriva da palavra ser usada para tudo e para nada, como a horrível palavra empreendedorismo. Imagine-se, agora, que uma palavra é feia pelo som, pelo sentido e pelo uso. Não haverá palavra que queira casar com ela. No muro, continuam a projectar-se sombras. Umas desaparecem rapidamente, outras permanecem, como a das árvores ou dos carros parados. Todos nós, dotados de bom senso – a coisa mais bem distribuída no mundo, pois, como ensinava o bom Descartes, não há quem queira mais do que aquele que tem – todos nós, dizia, afirmamos que as sombras naquele muro se devem a uma interposição de corpos opacos entre o muro e uma fonte luminosa. É sensato acreditar nisto. Seria, porém, insensato crer que aquelas sombras são emanações de um mundo interior ao muro e que chega até nós não sua vividez real, mas num estado penumbroso, pois perdeu a energia para se manifestar vivo e cintilante na superfície externa do mundo? Se esta hipótese parece inverosímil, há que sublinhar que ela tem um papel relevante na nossa sociedade. Oferece uma solução alternativa à explicação da sombra, o que assegura a concorrência no mercado das ideias e promove a liberdade de escolha dos cidadãos.

domingo, 5 de maio de 2024

Do necessário e do contingente

Peguei num romance que li décadas atrás. Deixou-me, então, um sentimento de prazer. Ao pegar nele, ainda sem saber se vou voltar a lê-lo, dei por mim a pensar se na literatura não se passa o mesmo que no vestuário, onde a moda reina despótica, mas por um reinado curto, o e uma estação. Este romance, do romeno Mircea Eliade, publicado em Portugal com o título Rua Mântuleasa, terá passado de moda? Sempre imaginei a literatura, a arte em geral, sub species aeternitas, o que, seguindo a lição do velho Baruch Espinosa, implica não apenas a eternidade das obras de arte, mas também a sua necessidade. Contrariamente a nós, seres humanos marcados pela contingência, as obras de arte teriam em si uma necessidade intrínseca que as fez vir ao mundo para permanecerem eternamente. O que significa que elas teriam necessariamente de ser criadas, mesmo que os seus autores sejam seres contingentes que poderiam não ter existido. Parece haver uma contradição insanável entre a natureza necessária da criatura, a obra de arte, e a contingência do criador, o artista. Aparentemente, para manter o carácter necessário da obra de arte e a sua eternidade, haverá duas soluções. A primeira diz-nos que o criador, tal como a criatura é um ser necessário, o que significa que um Leonardo, um Joyce, um Pessoa ou um Picasso, por exemplo, não poderiam não ter nascido e não se terem tornado artistas. Uma hipótese que nunca poderemos verificar. A segunda solução, talvez mais interessante, diz-nos que os criadores são contingentes e que são as obras de arte, antes de serem realizadas, que escolhem entre os seres humanos disponíveis aqueles que as irão criar, a elas que já existiam, num mundo potencial, antes de virem à existência. Eu sei que estas soluções são estranhas, mas haverá alguma coisa no mundo que o não seja? Ora, e era aqui que queria chegar, se as obras de arte são necessárias, então não estão sujeitas ao império da moda, o que me permitirá voltar a ler o livro de Mircea Eliade. Admito a culpa que me atribuírem de escrever coisas sem nexo. É verdade, mas isso faz parte da estranheza de tudo o que existe, inclusive a de um narrador sem nome e sem narrativa, como eu.

sábado, 4 de maio de 2024

Honrar o Floreal

A 24 de Novembro de 1793 entra em vigor, em França, um novo calendário, cujos meses tinham um pendor ecológico, tendo as denominações por fundamento aspectos do clima e da agricultura. Havia o mês das brumas, o do vento, o da neve, o das geadas, o do calor, mas também o das vindimas, o das colheitas, o das pradarias. Estes nomes foram fabricados por um poeta, segundo consta, Fabre d'Églantine. Se o calendário tivesse vingado e as invasões napoleónicas o tivessem exportado, hoje estaríamos no Floreal, o mês das flores. Este amor ao mundo da natureza e à vida nos campos, visto a partir dos nossos dias, parece uma premonição, uma tentativa de evitar aquilo que germinava em Inglaterra e que tomou o nome de Revolução Industrial. Esta, ao contrário da Revolução Francesa, não se predispôs a reformar o calendário. Onde iria ela buscar o nome dos meses? O mês do carvão, o mês das minas, o mês do vapor, o mês das máquinas, o mês da ferrovia? Fizeram bem os ingleses em não contratarem nenhum poeta para renomear os meses do ano, nem nenhum cientista para reformular o calendário. Os franceses são mais dados a este tipo de rasura. Estamos cansados do passado. Vamos começar tudo de novo. Que se reforme o calendário. Doze meses, parece boa ideia, mas há que ser racional e consequente com os ideais da Revolução. Para respeitar a Igualdade, têm todos 30 dias e são divididos em décadas, isto é, uma espécie de semana de dez dias. Os outros 5 dias – ou seis, no caso dos anos bissextos – ficam fora dos meses e são feriados nacionais, talvez para compensar a exclusão. Chamavam-lhe os dias sans-cullottes. Cada dia era dividido em 10 partes e cada uma destas em cem outras. Isto foi para acabar com aquela conta das 24 horas, dos sessenta minutos e dos sessenta segundos. Se nos pomos a pensar, talvez esse fosse o calendário mais razoável alguma vez inventado. Tudo contas certas, com um sistema decimal a funcionar. E posso provar que, mesmo hoje, seria o mais correcto dos calendários. As orquídeas cá de casa estão quase todas em flor, ou não honrassem elas o Floreal.

sexta-feira, 3 de maio de 2024

Palavras

O dia deslizou rapidamente. Ainda vai durar um pouco, antes de se entregar no crepúsculo, mas a luz já perdeu o viço e ninguém que passa nas ruas precisa de se acoitar nas sombras das árvores ou dos prédios. Ao escrever acoitar, pensei que estranhos e extraordinários instrumentos são as línguas que os povos vão criando na sua peregrinação sobre este pobre planeta. Basta uma simples cedilha e tudo muda. De acoitar passa-se para açoitar. De encontrar refúgio transita-se para o exercício da violência. Como pode uma coisa tão insignificante como a cedilha mudar o universo em que se vive. Em tempos contaram-me uma história que não tinha que ver com açoitar, nem acoitar, mas de algum modo se ligava com esta última palavra. Um professor, já não me recordo de quê, pessoa excessivamente religiosa, tinha um aluno de apelido Coito. Ora, coito é também a designação do acto sexual e, por isso, nunca tratou o aluno pelo apelido, imaginando, possivelmente, que cada vez que dissesse Coito cometia um pecado. E como se peca por pensamentos, temera cair num pecado mortal, ao chamar o Coito e pensar no coito. Asseveraram-me ser a história verdadeira, mas a imaginação das pessoas é coisa que, não poucas vezes, transborda para lá dos muros da verdade. Coito é, ainda, uma forma de dizer couto, e assim como há Coutos, também há Coitos. Já sou tão arcaico que me lembro de haver um comentador político da RTP denominado João Coito e nunca constou, apesar daquele tempo ser dado ao pudor e à censura, que o seu nome fosse censurado. Por aqui, coito também é um lugar que, nos jogos infantis, serve de abrigo. Se aquele professor em conflito com o coito tivesse de ensinar lógica, não sei como substituiria a palavra cópula que, numa proposição categórica, une o sujeito ao predicado. Quem bane o coito, por certo não admite a cópula. Chegou o fim-de-semana e com ele os dias inúteis onde nos acoitamos do açoite da realidade.

quinta-feira, 2 de maio de 2024

Destino

Entrámos em Maio no meio da incerteza climática. Os dois primeiros dias do mês parecem pagamento de juros ao Inverno. Uns juros moderados – talvez o Inverno não seja dado à agiotagem – pois o frio não é excessivo, a chuva é moderada e o vento não é tão exuberante que lembre um vendaval. O mais grave é que, neste momento, ainda não sei se lá pelas seis da tarde poderei ir caminhar junto ao rio. Dependerá dos humores de quem gere a grande empresa que fabrica o tempo. Acabei de ler o romance O Caminho do Sacrifício, do escritor alemão Fritz von Unruh. O destino das pessoas é mais estranho do que aquilo que se espera. Este aristocrata prussiano pertencia a uma família de militares. O pai era General e ele próprio foi militar. Deixou de o ser, para se dedicar à escrita, em 1911 e voltou a sê-lo com o início da primeira grande guerra. O Caminho do Sacrifício é uma obra baseada na sua experiência na mais longa das batalhas desse conflito. Contudo, não é uma obra para glorificar a guerra e promover heróis, mas um libelo pacifista. Foi este o destino de Unruh. Pertencer a uma tradição guerreira e a uma casta feita para o combate e tornar-se em pacifista. Quando os nazis chegaram ao poder, os livros de Unruh foram proibidos e ele emigrou para França e, de seguida, para os Estados Unidos. A primeira guerra mundial foi fértil do ponto de vista literário. Do lado alemão, por exemplo, há, para lá de Unruh, Erich Maria Remarque ou Ernst Jünger. É provável que a Europa nunca se tenha recomposto dessa guerra, que assinala o fim de um mundo que começara a acabar em França, no ano de 1789, e dá origem a um outro onde essa Europa deixou de ser o centro e começou a sua inexorável caminhada para a periferia onde se encontra nos dias de hoje. O destino das nações é tão estranho quanto o das pessoas. Aliás, não há coisa mais estranha do que o próprio destino.

quarta-feira, 1 de maio de 2024

Sem retorno

Sem se dar por isso, Abril de 2024 escapuliu-se para um lugar de onde não há retorno possível. Se tem de prestar contas – e que mês não terá as suas a prestar? –, não será aqui, mas naquele lugar para onde vão os meses que acabam. Talvez lá, mas isto é uma especulação sem dados empíricos, exista um tribunal, onde, após um processo rigoroso, o mês é julgado por aquilo que deixou acontecer no seu reinado e aquilo que deveria ter acontecido, mas não aconteceu. Será, parece-me, um tribunal de júri, mas também isto é incerto. Como qualquer outro mês, também Abril terá uma equipa de advogados que o defenderão. São especialistas no direito dos meses, gente treinada na barra dos tribunais e que a cada mês tem um cliente novo para defender. Os honorários serão altos – também as acusações são graves – e não se sabe como cada mês encontra dinheiro para saciar a voracidade dos seus defensores. Nesse reino para onde vão os meses acabados ou mortos, houve em tempos uma célebre disputa constitucional. Girou em torno de uma das penas propostas para o caso de um mês ser condenado, o que não é caso raro. Alguém defendeu, mas é incerto quem foi, que em determinadas ocasiões um mês, especialmente culposo, seria condenado a retornar ao calendário e ter uma segunda vida. Argumentou-se que isso possibilitaria a sua redenção, ao tornar-se mais propício a uma existência sensata dos homens. Os defensores da proposta viam na pena um instrumento de recuperação do condenado. Formou-se, de imediato, um partido oposto. Este argumentou que a pena de retorno ao calendário de um mês condenado feria dois direitos fundamentais. Em primeiro lugar, punha em causa o direito de um mês que, assim, não vinha à existência, pois o calendário teria sido ocupado por outro que já fizera o seu papel e agora regressava. Em segundo lugar, o retorno de um mês condenado seria a antecâmara de uma segunda condenação, quando acabasse e voltasse ao reino dos meses mortos para ser de novo julgado, o que contradizia uma norma constitucional que afirma que cada mês só pode ser julgado uma vez. O tribunal constitucional acolheu esta última interpretação e, a partir dessa decisão, já muito antiga, sabemos que nenhum mês que acaba torna a voltar às suas funções no calendário humano. Portanto, não voltaremos a ter um Abril de 2024.

terça-feira, 30 de abril de 2024

Curiosidades

O mundo, apesar de tudo, não deixa de ser um lugar curioso. Comprei no site denominado Trade Stories um romance, O Vestido Vermelho, do escritor sueco Stig Dagerman. O livro custou-me oito euros, incluindo os portes, enquanto novo custa dezasseis. A curiosidade reside não apenas no livro estar praticamente novo, tem apenas uma folha ligeiramente dobrada, mas no caso de a vendedora ter incluído na remessa um post-it (não daqueles amarelos, mas um com alguma animação) com agradecimento pela compra, um marcador de livros com uma reprodução de um excerto de um quadro de Monet, um autocolante que figura uma pilha de livros e, pasme-se, uma saqueta, devidamente embalada, de um chá, Earl Grey, da Lipton. Confesso que não sou um cultor de chá, nem do chá das cinco nem o de qualquer outra hora. Isso, todavia, é irrelevante. Nunca imaginei receber chá ao comprar um livro. A obra é publicada pela Antígona que se apresenta como Antígona Editores Refractários. Não tem um catálogo muito grande, mas tem muitas coisas que merecem ser lidas, como os livros de Stig Dagerman, Silvina Ocampo ou o romance O Caminho do Sacrifício, de Fritz von Unruh. Seja como for, ainda não será desta que me converto ao chá, agora que estou a limitar o café.

segunda-feira, 29 de abril de 2024

O dia de hoje

Só cheguei aqui depois de jantar. Isto significa que o dia foi excessivo em ocupações e actividades. Valeu-me a caminhada junto ao rio, seis quilómetros para ajudar na pacificação com a balança. Em pouco tempo, o volume da água diminuiu assustadoramente, deixando já entrever o leito, anunciando o fio de água que será no Verão. Em contrapartida, a erva cresceu na proporção inversa à descida das águas. Espantosas estavam as papoilas nas margens, mas não havia quem colhesse um ramalhete rubro de papoulas, nem burguesas que descessem de burros e fizessem piqueniques, onde houvesse pão de ló molhado em malvasia. Tudo isso acabou há muito. Sobraram as posturas tolas, mas essas são eternas ou tão eternas quanto a espécie humana. Estarão inscritas no seu, isto é, no nosso ADN. Os dias estão enormes, a luz prolonga-se e é um prazer o fim da tarde na rua, como se fosse a promessa de um dia sem fim e de uma luz que não acaba. Uma ilusão, mas a vida seria impossível sem ilusões, há que cultivá-las com cuidado, na exacta medida em que estabelecem um laço com a existência, mas não mais do que isso. Vou ver a noite da janela do escritório, observar como é conspurcada pelas luzes artificiais, que apagam as estrelas do céu e matam o mistério do mundo.

domingo, 28 de abril de 2024

Palavra

A sabedoria que dirige a humanidade – falo de sabedoria e não de ciência – é uma coisa muito antiga. Veja-se o que está escrito no capítulo 15 do livro dos Provérbios, do Antigo Testamento. Ira destrói até sensatos; / Mas uma resposta submissa desvia fúria; Porém, uma palavra melindrosa desperta cóleras. / Uma língua de sábios sabe coisas belas; / Mas uma boca de tolos anunciará maldades. A tradução é de Frederico Lourenço. O excerto começa com a descrição dos efeitos de um estado psicológico, mas, de imediato, passa para o domínio da linguagem. O que o texto bíblico nos mostra é o imenso poder da linguagem no concerto e no desconcerto das comunidades humanas. Isto significa que o homem não tem apenas voz, não é um mero animal comunicacional, mas, ao ser dotado de linguagem, a sua palavra é uma forma de agir sobre o mundo e a comunidade em que vive. A regulação do discurso é essencial nas comunidades humanas, embora sejam aquelas em que ele foi menos regulado que se tornaram mais prósperas e onde a vida é menos desagradável. A linguagem articulada é um poder extraordinário, uma arma de grande calibre, mas, como todos os poderes e todas as armas, pode ser usada para o bem e para o mal, para enunciar a verdade e proclamar a mentira, para apaziguar ou para desencadear a guerra. Não é impunemente que se usa a palavra. Ela nunca deixa de ter consequências.

sábado, 27 de abril de 2024

Disrupção

Há qualquer coisa de errado na minha relação com o calendário. Ontem sentia que estava numa segunda-feira. Hoje, dou por mim a pensar que é domingo. O melhor será ir à oficina, talvez possam consertar o que parece avariado. Tive de ir a um aniversário. Centro e trinta quilómetros para lá, mais centro trinta quilómetros para cá. A aniversariante ficou um ano mais velha, mas eu, apesar dos quilómetros andados, trago a mesma idade e apenas mais umas escassas horas. Como se vê, o tempo é uma coisa muito estranha. O que para outra pessoa representou um ano, para mim não me acrescentou mais do que uma dezena de horas. Como estava perto do mar, estou com a sensação na pele de que passei o dia na praia. Não passei, nem sequer vi o oceano. Tudo o que escrevi até aqui refere situações disruptivas. Quando nascemos, penso, existe já a disrupção no ser que somos. Saídos do ventre materno, somos trabalhados e trabalhamos para curar essa disrupção, sentida como uma patologia. Com o passar dos anos, conseguimos ocultá-la e, a certa altura da vida, nasce em nós a convicção de que estamos curados. Pura ilusão. A pouco e pouco, ela começa a forçar o cerco que lhe montámos e as muralhas, sem se dar por isso, vão cedendo, abrem brechas, é o que se passa comigo, até que cairão, com um grande estrondo. As coisas são o que são e toda a sabedoria se resume a aceitar a verdade desta tautologia. O que não é fácil, diga-se.

sexta-feira, 26 de abril de 2024

Pessoa

Há pouco o céu estava negro, mas, depois de uns chuviscos, foi ficando cinzento. Cinzento, foi a cor desta sexta-feira. Ia para dizer segunda-feira, pois andei todo o dia a pensar que estava no início da semana, tendo de fazer algum esforço para não dizer coisas insensatas. Poder-se-á argumentar que escrevo por aqui muitas coisas insensatas. Logo, dizê-las não traz qualquer novidade. Seria um mau argumento, pois o facto de escrever coisas sem sentido aqui não implica que as diga publicamente. Aliás, poderei sempre dizer que utilizo este espaço narrativo para me purificar das coisas levianas que me ocorrem, e não são poucas. Este espaço está para mim como a tragédia, segundo Aristóteles, está para os gregos. É uma catarse da minha estarolice, a qual, catarse, me permite, na vida quotidiana no mundo real, disfarçar a irrazoabilidade que há dentro da minha pessoa. É verdade, eu também tenho uma pessoa. As pessoas pensam que são pessoas. Eu não sou uma pessoa. Eu tenho uma pessoa, como outros têm automóveis, acções em empresas, amores fatais. A minha fatalidade é ter de possuir a pessoa que sou. Tivesse eu comprado outra e tudo poderia correr melhor, ou pior, quem sabe? John Locke afirmava que uma pessoa é um ser consciente e reflexivo, dotado de memória e capaz de pensar por si mesmo. Já Kant define a pessoa como um ser autónomo e racional, capaz de agir segundo a lei moral. Apesar de terem perspectivas diferentes, tanto o inglês como o prussiano incorrem no mesmo erro. Ambos não percebem que pessoas é uma coisa que se compra – e se se compra, alguém a vende – e se usa ao longo da vida. Pode-se deixar em herança, mas até hoje não se conhece nenhum filho ou filha que reivindicasse essa herança. Como nenhum herdeiro quer a pessoa do pai ou da mãe, é o Estado que fica com ela em depósito. Passados anos – normalmente, várias décadas – o Estado privatiza as pessoas e elas entram de novo no mercado. A pessoa que eu tenho já pertenceu a outro ser humanos ou, melhor, a outros. E haverá de pertencer a mais, muitos mais, espero. Tudo isto porque a minha pessoa está convencida de que hoje é segunda-feira.

quinta-feira, 25 de abril de 2024

Um desvario

Imagino muitas vezes que a realidade é muito mais bela na escrita do que despejada dos artifícios da escrita. Por um desvario que ainda não entendi, ontem comprei um romance de Hermann Hesse. Tem por título Hans – Sob o Peso das Rodas. Na contracapa tem um excerto que diz O Outono estava a revelar-se mais belo do que nunca, pleno de tons suaves, amanheceres argênteos, meios-dias banhados de sol e cor e noites igualmente claras. Os montes ao longe adquiriam um profundo tom de veludo azul, os castanheiros refulgiam em tons amarelo-dourados e do cimo dos muros e cercas pendiam videiras de tons purpúreos. Este Outono escrito é, por certo, mais belo que um Outono real, talvez porque a escrita torna presente um todo que, na experiência dos sentidos, se dá de modo fragmentário. Não é que os fragmentos não possam ter beleza, claro que a têm, mas falta-lhes a completude. Não são epigramas, mas restos amputados de um texto que nunca se escreve. Falei em desvario por ter adquirido um romance de Hermann Hesse. E é verdade. Há décadas, li, com prazer, alguns romances desse autor alemão. Quando por volta dos trinta anos tentei voltar a eles, não o consegui, tinham alguma coisa de infantil. Ainda tentei mais uma vez ou outra, mas os resultados foram sempre os mesmos. Este de que falo nunca o tinha lido e trata-se do segundo romance do autor e, imaginei ao comprá-lo, ainda não estivesse contaminado pelo estilo e temáticas das suas obras de maior fama, que lhe terão valido o Nobel da literatura, além do Prémio Goethe. Veremos se a obra resiste ou se eu já estou numa fase regressiva da existência e volte a gostar daquilo que um dia gostei e depois deixei de gostar.

quarta-feira, 24 de abril de 2024

O grotesco

Recebi uma das minhas revistas preferidas, a Electra. O assunto da edição da Primavera de 2024 é o excesso. Há um artigo de Christian Salmon com o título O excesso e o grotesco: as novas formas de soberania política. Como estou proibido pelo autor deste blogue de falar acerca de política, fico por três citações. A primeira diz O grotesco parece ter tomado conta de tudo. A segunda acrescenta Onde quer que se tenha conseguido impor, a tirania dos bufões combina os poderes extravagantes do grotesco com o domínio metódico das redes sociais. A terceira sublinha Nunca os bufões, os palhaços e os bobos tiveram tanta influência na vida política. Deixo de lado a análise de Salmon e pergunto-me de onde terá vindo este grotesco. Não caiu do céu, não foi trazido por uma invasão de alienígenas, não surgiu do nada, pois do nada, não se sendo Deus, nada se tira. O grotesco estava aí, estava dentro de cada um de nós à espera de se poder manifestar. Somos habitados por pulsões dadas à hipérbole e à incongruência e quando os quadros da racionalidade se rompem, essas pulsões, à falta de um Apolo vigilante, vêm à luz do dia. As redes sociais permitiram a manifestação dessas pulsões, as quais se foram acumulando até se tornarem um rio caudaloso. Antes de os bufões, os palhaços e os bobos terem chegado à política, já o grotesco e o ridículo que nos habita chamava por eles, os quais, ao descobrirem o mercado, se lançaram na concorrência, certos de terem uma mercadoria para oferecer aos que foram abandonados pela tocha de Apolo e se acolhem sob o tirso de Diónisos.

terça-feira, 23 de abril de 2024

Simplicidade

Tive um dia cheio de complicações, pois elegemos a complexidade e esquecemos as coisas simples como um poema de Ryōkan: será que me fartaria dele / cem anos / passados / a contemplá-lo? / o orvalho sobre a eulália do meu jardim. Talvez o tradutor devesse ter escrito eulalia e não eulália. Cheguei a conhecer mulheres com o nome de Eulália, mas há muito que não encontro nenhuma assim chamada. Talvez volte ao uso, pois os nomes também têm épocas altas e baixas. A poesia de Ryōkan é feita de uma extrema simplicidade, talvez porque as nossas autênticas razões, e não aquelas que usamos para complicar a vida e o mundo, sejam simples: não é por não gostar do mundo / que vivo aqui / recolhido – / simplesmente / habituei-me a esta vida. Poderia dizer uma coisa semelhante: não é por não gostar do mundo / que não viajo / de terra em terra / apenas / habituei-me a estar onde estou. O hábito é o que torna as coisas simples e é por isso que se instigava – nos dias de hoje, não sei – a criar bons hábitos e a combater os maus. Ao dar uma vista de olhos pela imprensa descobri um grande tumulto em torno de uma exigência de uma escola lisboeta em relação à indumentária dos alunos. Parece que há alguns que a simplificam em demasia, pois confundem as salas de aulas com as praias da Costa ou da Linha. O erro é da escola, pois não encontrou a simplicidade suficiente que permitisse a esses alunos, e aos respectivos pais, perceberem que estarem sentados numa carteira numa sala de aula é diferente de estarem sentados na areia a olhar as águas do oceano. Esta diferença é complexa e há que, cartesianamente, a simplificar para que todos a possam compreender.

segunda-feira, 22 de abril de 2024

Da mudança

Presto sempre alguma atenção ao começo de um romance, às primeiras palavras. Diante de mim está um que começa assim: A minha família estava sempre a mudar de casa. Pelo menos, desde que me lembro. Esta família, por certo, é um símbolo dos tempos modernos, da incapacidade dos homens se enraizarem e permanecerem fiéis a um lugar, da sua necessidade contínua de mudança. Não se trata de uma revivescência do nomadismo, pois os nómadas – pelo menos certos nómadas – acabam por estar fixados a um certo percurso. É antes uma inclinação para a vagabundagem. Ir para aqui e para ali, não ter poiso certo. Esta paixão pelo movimento é a confissão de uma incapacidade, a incapacidade de se manter no seu lugar, de habitar o sítio a que se pertence, talvez porque tenhamos todos deixado de pertencer a um lugar ou porque temamos o horizonte que esse espaço nos oferece. Não sei, porém, como o romance se desenvolve, como é que Mario Benedetti, em A Borra de Café, tece a história daquele cuja família estava sempre a mudar de casa. Talvez daqui a dias o saiba, caso tenha tempo e o ânimo me incline para a leitura. Olho para a rua e vejo o calor. Aqui o calor não é coisa que apenas se sinta. Vê-se, ouve-se, saboreia-se, não sem uma careta, cheira-se. Com um horizonte destes, o meu sítio é-me adverso. Terei de mudar de casa?

domingo, 21 de abril de 2024

Falar com orquídeas

A minha neta mais nova tem estado por aqui o fim-de-semana, a contas com a Matemática e os humores algébricos da avó. Ela leva a ascese com alguma paciência, embora se confesse cansada de funções. Alegrou-a, porém, o estranho episódio de surpreender a avó a falar para uma orquídea que se tem mostrado renitente em abrir o caminho para a floração. O que terá pensado quando perguntou: mas a avó fala com as plantas? Eis um assunto delicado. Será que a minha avó, terá pensado, está a enlouquecer. A avó esclareceu que é um velho hábito e que as plantas não se dão mal com ele. E eu acrescentei que é muito mais interessante falar com orquídeas do que com muitas pessoas, pois as orquídeas nunca nos dão respostas idiotas, ao contrário das pessoas. Eu, acrescentei, também já tenho tentado falar com as orquídeas, mas devo estar surdo, pois nunca oiço o que dizem. Ela olhou-nos com ironia e comiseração e deve ter pensado que os avós deveriam estar à porta do hospício. Esclareci-a que há pessoas que falam com anjos que nunca viram ou santos que morreram há muito. Outros há que falam com cães e gatos, que apenas ladram ou miam. Há mesmo quem fale com pessoas que não merecem qualquer palavra. Que problema haverá em falar com orquídeas? E seja o que for que se lhe diga, assegurei, elas nunca contam a ninguém. São óptimas a guardar segredos. Talvez seja melhor passarmos às funções, disse ela, estupefacta.

sábado, 20 de abril de 2024

O que procuramos

Num ápice li as cem páginas de A Promessa, um romance da escritora argentina Silvina Ocampo. Quase a terminar, a narradora diz: Morrerei depressa! Se morrer antes de terminar o que estou a escrever ninguém se lembrará de mim, nem sequer a pessoa que mais amei no mundo. Existe, esta pessoa? Creio que existe. Nunca me abandonará e seguir-me-á como uma sombra divina que eu procurarei ao meu lado, porque tudo o que procuramos aparece de repente da forma mais inesperada. O que me prendeu de imediato não foi a situação existencial da narradora, nem o questionamento sobre a existência da pessoa que mais amei no mundo, um estranho questionamento, pois as alternativas são não ter amado ninguém no mundo ou ter amado todos os que amou com a mesma quantidade de amor. O que me feriu a atenção foi a certeza expressa de que aquilo que procuramos acabará por aparecer, ainda que da forma mais inesperada. Esta frase é a abertura da narrativa para uma dimensão metafísica que parecerá estranha ao leitor. Aquilo que aparece de forma esperada fá-lo no âmbito de um cálculo da razão. Ora, aquilo que chega da forma mais inesperada surpreende a razão e a sua capacidade de calcular. Está para lá da compreensão da razão a fonte de onde brota aquilo que procuramos e que surge inesperadamente. A essa fonte têm-lhe sido dados diversos nomes, mas deixemos a denominação de lado, e contemplemos o enigma de onde surge inesperadamente aquilo que procuramos.

sexta-feira, 19 de abril de 2024

Da inutilidade

A semana útil terminou. Começou a sacrossanta inutilidade. Comemoro este início espreguiçando-me na cadeira, enquanto penso na ordem moral do mundo, um problema que nos últimos tempos me tem vindo ao pensamento mais vezes do que seria suposto, caso eu me tivesse dedicado a fazer suposições. Um episódio ouvido permitiu-me acentuar o cepticismo sobre a espécie humana. A recompensa não cabe ao que se esforça e realiza, mas aos que fingem e movem influências. É verdade que estamos num mundo de influencers, o que é sintoma de que o projecto iluminista de abolição de tutores e afirmação da autonomia dos indivíduos anda pelas ruas da amargura. Pobre Kant, pensei. Os influencers são os tutores dos tempos pós-modernos que nos cabem viver, os seguidores são aqueles que insistem em ser menores, dessa menoridade culposa que insistem em manter, pois dispensa-os de usar o seu entendimento, como escreveu o dito Kant. Eu nem comecei mal o texto, com um elogio à preguiça sob o manto de uma loa à inutilidade, mas logo caí em elucubrações fantasiosas sobre coisas que não interessam a ninguém. Deveria contentar-me com a certeza leibniziana de que vivemos no melhor dos mundos possíveis e aproveitar o tempo das coisas inúteis dedicando-me à inutilidade. Mas não foi isso o que fiz ao escrever este texto?

quinta-feira, 18 de abril de 2024

Quinto email

Meu caro amigo,

Reconforta-me que não tenha excluído a possibilidade de me visitar. Temia-o e ainda o temo. Não sabe se há-de ler de princípio ao fim os cadernos que Eduína lhe deixou como herança acidental. Não tenho a certeza, porém, que tenha sido um acaso, mas que deliberadamente ela quis deixar-lhe alguma coisa. Disse-me que há muito não os abre, que só em certos momentos, inspirado por alguma coisa que não identifica, pega num e o abre ao acaso e lê uma página. Eu agiria de um modo bem diferente, mas há razões para isso. Sou mulher, sou mãe de Eduína, nunca se deixa de ser mãe, e sou mais velha. A escassez do tempo que me resta e a minha condição precipitar-me-iam para devorar essas folhas que lhe foram confiadas. Estive estas semanas sem lhe escrever, para evitar criar um hábito, que me levaria a ficar à espera de uma resposta sua para lhe tornar a escrever. Enquanto namorei o meu marido, trocar correspondência fazia parte do jogo amoroso, mesmo quando não era necessário, e raramente era necessário, pois vivíamos ambos na mesma cidade, havia o telefone e encontrávamo-nos sempre que queríamos. Enviar e receber cartas era uma certificação de um amor único, singular, como todos. Era o que pensávamos na altura. Hoje não tenho essa certeza. Havia uma inclinação literária, a necessidade de ficcionar os sentimentos, os desejos, os projectos. Sentia uma volúpia quando me sentava para escrever ou rasgava o sobrescrito e me dispunha a ler a carta recebida. Os da sua geração, encharcados em psicanálise, diriam não volúpia, mas um prazer erótico. Talvez fosse. Perdi-me. Isto não o interessará e tem mais coisas para escrever do que cartas, emails, devia dizer, a uma velha louca. Diga-me alguma coisa da minha filha, como a conheceu, ou qualquer outra coisa.

 

Lívia

quarta-feira, 17 de abril de 2024

Um conflito

Como se constata neste blogue, e não poucas vezes, a realidade é uma coisa tendencialmente insuportável. Tem um pendor inexorável para destruir todas as excelentes ideias que a mente humana produz. Veja-se a vexata quaestio da máquina de movimento perpétuo. Uma óptima ideia. Por exemplo, um carro que ao andar gerasse a sua própria energia, sem necessitar de recorrer a combustível externo. Um carro desses poria fim à dependência do petróleo ou das baterias de lítio. Seria amigo do ambiente e padrinho do proprietário. Tudo vantagens inultrapassáveis. O pior é o tribunal constitucional, isto é, a realidade. Esta, enquanto tribunal superior de protecção da legislação constituinte da natureza, não permite que se fabriquem carros de movimento perpétuo. Argumenta que essa máquina infringe a primeira e a segunda leis da termodinâmica e por isso não é permitido produzi-los. Quem é que quer saber dos humores da termodinâmica? Quem se interessa por uma energia que não pode ser criada nem destruída ou pela estucha da entropia? Ninguém de bom senso, mas a realidade, fincada nos poderes de vigilante da constituição da natureza, não quer saber daquilo que nós, seres humanos, queremos saber. Eis o drama em que mergulha a existência humana, o conflito entre os seus desejos e a realidade. É aqui que um racionalista se inquieta e interroga a teoria de Darwin. Qual foi a vantagem competitiva do homem ter desenvolvido faculdades que imaginam coisas extraordinárias que a realidade proíbe? Note-se que esta objecção ao darwinismo não é um argumento a favor do criacionismo, pois a pergunta que se colocaria a Deus seria idêntica. Por que razão foi criado um ser capaz de imaginar coisas extraordinárias que a realidade criada pela divindade se recusa a aceitar? Chega-se, assim, ao ponto central: foi o homem mal concebido ou a realidade mal arquitectada? Vou beber água, para me hidratar, já que não me é permitido criar uma máquina de movimento perpétuo.

terça-feira, 16 de abril de 2024

A injustiça

Fui consultar-me com a nutricionista. Um sucesso. Perdi setecentos gramas, transformei massa gorda em massa muscular, diminuí o perímetro da barriga, perdi gordura no fígado e atingi uma idade metabólica dez anos abaixo da idade real. Não fora o caso de ter uma costela racionalista, diria que aquela balança que mede o peso e mais não sei quantos parâmetros está enfeitiçada, pois o justo seria eu pesar mais, ter piorado nos outros parâmetros aferidos e a minha idade metabólica estar acima da real. Nestes últimos tempos, tenho-me portado mal, com excepção das caminhadas, às quais dedico algum desvelo. Com este exemplo, não pretendo falar da minha condição física, nem da minha idade metabólica, mas do problema da justiça. A balança que a nutricionista usa não é justa. Recompensa quem se porta mal e, apostaria, castiga quem se porta bem e segue as indicações ao milímetro, neste caso, ao grama. Um exemplo de que a ordem moral do mundo está fora dos eixos e um feroz contra-exemplo às teorias meritocráticas que enxameiam as cabeças daqueles que têm sucesso e estão convencidos de que isso se deve a si, ao seu esforço, às suas superiores qualidades e não a uma ordem metafísica que decidiu galardoar, neste mundo, os que não o merecem, e punir quem deveria ser apontado como exemplo de virtude. Não admira que um cavaleiro andante tenha de andar por aí a endireitar tortos, pois tudo o que parece direito neste mundo está torto.

segunda-feira, 15 de abril de 2024

Um ulisses em forma de livro

Podia contar aqui a odisseia de um certo livro que comprei em Agosto, mas que demorou tanto tempo a chegar que o vendedor – uma das maiores multinacionais que vende livros e mais mil coisas – decidiu, sem eu lhe pedir, devolver-me o dinheiro, muitos meses antes do livro chegar. Pois ele acabou por chegar, lá por volta do Natal e vinha de perto, de França. Contudo, às minhas mãos só chegou ontem. O que me interessa não é a aventura deste Ulisses em forma de livro, até porque não sou nenhuma Penélope e comprei outro, noutro lado, mas a profissão do seu autor. Traduzindo para português, ele é engenheiro de pesquisas em ciências políticas. Talvez exista uma explicação básica para este título, mas a minha ignorância não a consegue descortinar. Podia ser engenheiro de minas, concebendo pesquisa de metais nobres para enriquecer o mundo, mas não. O nosso engenheiro engenheira em ciência política. Será que pesquisa aí metais nobres? Não me pronuncio sobre isso, pois essas considerações estão-me vedadas. Em Portugal, por certo, não passaria de um cientista político, com um pouco de sorte seria um politólogo, mas nunca um engenheiro. Isto mostra a desgraçado mundo em que vivemos. Vê-se como a política está submetida à técnica e deixou de ser uma arte. Não era disto que queria falar, mas quando ia começar esqueci-me do tema que tinha escolhido e até agora ainda não emergiu do abismo do meu inconsciente, onde se encontra recalcado, talvez por um trauma infantil.

domingo, 14 de abril de 2024

Uma queda

A nossa cultura, aquela que se denomina, com certa imprecisão, ocidental, é muito sensível ao tema da queda. A queda do império romano e a queda da monarquia absoluta em França são dois exemplos recorrentes do tema da queda. Todas as quedas do Ocidente se fundam em duas outras quedas mais originárias. A queda de Tróia, na vertente helénica, e a queda de Adão e Eva, na dimensão judaica. Qual destas quedas será o protótipo da queda que dei hoje ao caminhar? Ia muito meditativo na caminhada diária, com vista a acumulação de pontos cardio, até que me sinto a perder o equilíbrio, o corpo a desarmonizar-se, numa fuga para a frente, a descompassar-se, eu a ter, por instantes, a ilusão de que me iria reequilibrar, e logo a triste realidade a manifestar-se nas mãos e joelhos pregados na terra. Uma sensação de humilhação, a certeza de que o corpo nem sempre é um animal obediente. Como estava num sítio sem ninguém, deixei-me ficar sentado à espera que de recuperar do estupor que me tinha atingido. O que me preocupa, agora, não é o efeito do evento num dos joelhos, mas o enquadramento conceptual da minha queda. Ela fundar-se-á em que queda originária, na de Tróia ou na de Adão e Eva? Como foi uma queda física, parece sensato dizer que esta é uma queda herdeira da queda de Tróia. Contudo, há argumentos poderosos para recusar essa tese. A queda de Tróia foi, para nós, um acontecimento positivo. Foi o nosso lado que fez cair uma força ameaçadora. Ora, nada me fez cair a não ser eu próprio e não consigo descortinar nada de positivo no acontecimento. Isto inscreve a minha queda na linhagem da queda de Adão e Eva. Caíram pelas suas próprias mãos. No meu caso, caí pelos meus próprios pés. Com isto consigo provar que existem quedas físicas que são emanação de quedas espirituais, o que para um domingo de Verão, apesar de estarmos na Primavera, não é nada mau.

sábado, 13 de abril de 2024

Sugestões climáticas

Por aqui, o Verão já chegou. Veio impiedoso a coruscar como um relâmpago na noite. Pobre S. Pedro, perdeu a capacidade de gerir o clima. O que me admira é não existir uma assembleia de accionistas do clima para deliberar sobre a mudança de CEO da empresa. Talvez estivesse na altura de se introduzirem algumas alterações no topo e deixar o santo gozar de umas merecidas e eternas férias. Por certo, não faltarão santos com competência e aptidão para gerir o clima nestes tempos de incerteza. Caso não existam, o que me parece improvável, sempre se pode canonizar alguém que conheço bem o assunto. O mais indicado seria santificar um meteorologista. Isto sou eu, um narrador infeliz com os calores, que digo, mas não quero intrometer-me num assunto que só me diz respeito enquanto consumidor e não enquanto accionista. É verdade que tentei comprar acções na empresa que gere o clima, mas já elas tinham sido todas vendidas, o que mostra que é um bom negócio. Sempre podia organizar uma associação de consumidores, mas falece-me a disposição para a militância e mesmo para a milícia. Também me tem ocorrido a possibilidade de o governo acabar com o monopólio actual da gestão climática. Poder-se-ia abrir o mercado a meia-dúzia de empresas, cada uma com um santo por CEO, e as pessoas optavam por aquela que melhor proposta lhes fizesses. Seria uma efectiva liberalização do clima, a não ser que elas, as empresas climáticas, se mancomunassem e combinassem os preços, formando um cartel. Logo, se haveria de nomear uma comissão reguladora para repor a concorrência e multar as empresas. Esta é uma ideia que pode resolver o assunto ou então fazer com que S. Pedro volte a pôr uma mão de ferro sobre o que pertence a cada estação e regular as coisas como deve ser.

sexta-feira, 12 de abril de 2024

Poeticidade do mundo

Em tempos mais recuados, havia uma física – talvez o mais certo seja falar de uma química – mais interessante do que a actual. Tinha na base quatro elementos, a partir dos quais se compunha a realidade. A terra, a água, o ar e o fogo. Em algumas versões, acrescentava-se um quinto elemento, o éter, elemento do mundo supralunar. Havia, também, uma versão mais interessante, a de Anaximandro de Mileto. No fundamento de tudo, há uma matéria-prima a que dá o nome de ἄπειρον (ápeiron) que se traduz por ilimitado, aquilo que não tem limites. De lá são segregados os contrários que compõem o mundo, o qual retornará para essa matéria indiferenciada. Estas físicas – ou químicas – tinham uma natureza poética e se não são verdadeiras, não deixam de ter o seu encanto. Faziam parte de um mundo encantado que, muitas vezes, parece perdido devido à racionalidade que atingiu os campos da ciência, da filosofia, da moral, da economia e da política. Isto se nos deixarmos cegar pelas as aparências. A poeticidade do mundo emerge continuamente, mesmo nas áreas onde a razão exerce o seu império. Os modelos nas ciências têm uma natureza análoga às metáforas, na política, mal se raspa um pouco na crosta, logo emergem mitos, o mesmo se passa nas outras áreas. Muitas vezes, essa poeticidade é uma luminosa forma de encantamento. Contudo, também assume formas tenebrosas, como acontece na História, a qual tem por motor um conflito de mitologias (e não de ideologias, como se supõe) que se opõem e digladiam. O mundo encantado não é um mundo apenas luminoso. Ele é composto por luz e trevas. Trevas essas que estes últimos séculos, apesar do esforço encarniçado, nunca conseguiram iluminar e eliminar, como se pode ver pelo estado actual do mundo. Hoje é sexta-feira e devia ter pensado noutra coisa, como uma estadia junto ao mar, mas não me ocorreu que aí haveria a água do mar, a areia da terra, o ar soprado pelo vento oceânico e o fogo do sol. É o que faz andar distraído.

quinta-feira, 11 de abril de 2024

Boudin : black pudding

É muito triste uma pessoa receber uma mensagem e não conseguir decifrá-la. Foi o que aconteceu comigo. Num livro comprado online num alfarrabista inglês, vinha um pedaço de papel branco, com forma quadrangular. Nele estavam escritas cinco palavras numa certa língua. Cada uma delas era seguida por dois pontos e depois uma eventual tradução numa outra língua. O pior é que quase tudo está escrito com uma letra indecifrável. Apenas consegui perceber que as palavras da esquerda eram em francês, pois a única legível é boudin à qual corresponde, em ingês, black pudding. A mensagem secreta por que esperava, se ela lá está, é indecifrável. Não tenho nada contra, pelo contrário, as morcelas, mas não consigo, nem metaforicamente, ligá-las a uma mensagem secreta ou mesmo manifesta. Pensei em enviar o papelinho para a criptografia do exército, mas imaginei que isso poderia gerar uma crise internacional, não se vá dar o caso de o livro, onde vinha o papel, ter sido propriedade de um espião. Se nunca sabemos por onde andaram os livros novos, quanto fará os usados, embora este, o portador da mensagem, não tenha sinais de uso, dando a ideia de que o papel foi lá metido para que eu o encontrasse. O que justifica esta última afirmação? Várias coisas. Em primeiro lugar, o facto de eu ter comprado online o livro. Depois, o livreiro ter-me enviado precisamente este exemplar e não outro, no qual poderia não existir qualquer mensagem. Haverá quem argumente que tudo isso não passa de um acaso, que ninguém anda por aí a enviar mensagens cifradas para o desconhecido e que um vocabulário traduzido de francês para inglês não é mensagem criptografada, mas a tentativa de um inglês aprender francês. Uma opinião respeitável, como todas as outras. O facto de ser digna de respeito, porém, não a torna verdadeira. Basta colocarmo-nos numa perspectiva teleológica para perceber que a verdade está do meu lado. A causa final de todo este imbróglio sou eu, melhor a minha leitura. Tudo foi organizado para que eu lesse aquela lista e para me humilhar, pois não consigo decifrá-la. Há dias que ainda temos menos coisas para dizer do que habitualmente. Hoje é um deles, por certo.

quarta-feira, 10 de abril de 2024

Família tradicional

Há por aí um charivari por causa de um livro que tem por título Identidade e Família. Como narrador, ainda não consegui perceber se a algazarra se deve ao livro ou ao que alguns dos seus autores não se cansam de proclamar. Talvez se deva às duas coisas e a outras que não descortino. Parece que o problema principal é o papel das mulheres. É um problema pertinente, fundamentalmente, para os homens. Estão cada vez mais sem saber o que fazer perante mulheres que não se sentem inclinadas para que sejam eles a determinar o que deve ser a sua, delas, vida. Ainda não consegui perceber o que atormenta a parte masculina deste nobre povo. A emancipação das mulheres é, também, a emancipação dos homens. Liberta-os de terem de pensar como controlar a vida delas, o que lhes dará tempo para concentrarem-se na gestão da sua, o que não é tarefa fácil. São dignos de dó os homens da Arábia Saudita. Têm de controlar a sua vida e a das mulheres, e alguns, não muitos, podem ter até quatro mulheres. Percebo que sejam poucos, pois controlar a vida de uma mulher já é o que é, quanto mais de quatro, o limite permitido por lei. Não estamos na Arábia Saudita, dir-se-á, e eu estou de acordo. Contudo, quando falamos de herança islâmica estamos a falar de quê? Uma parte dos homens portugueses, mesmo daqueles que andam de cruz ao peito e pelam-se por ceias com cardeais, têm um gene mouro, que nem a cruz nem os cardeais conseguem tornar recessivo. Por vezes, juntam-se, põem-se a pensar no bom que era a família tradicional. Por mim, acho que fazem muito bem e até lhes faço uma sugestão. No fim de cada sessão, podem cantar em coro e como hino o seguinte: Que família tão unida /tão discreta e ordenada. / Eram oito fora o gato, / eram oito fora o gato / para não falar da criada. / Da criada e do patrão / e da vizinha do lado. / É a crise da habitação, /é a crise da habitação. / É preciso ter cuidado. Nem sei por que razão aceitei narrar este episódio social, eu que não tenho interesses sociais e sofro de acentuada misantropia, a qual não cai do nada, como ontem salientei.

terça-feira, 9 de abril de 2024

Misantropo por amor à razão

A Primavera parece estar a consolidar-se, depois de uns tempos de hesitação. As estações são como as pessoas. Precisam de tempo para chegar ao que são, embora existam muitas pessoas que nunca chegam ao que são e nem sequer alcançam o que não são. Não há ente mais estranho sobre este planeta, bola rochosa habitada por múltiplos entes estranho, do que o homem. Por vezes, se o olho com demora e suficientemente de longe, parece-me apenas um esboço, um protótipo mal concebido, a tentativa sem sucesso de criar um ser inteligente e digno de consideração. A inteligência é intermitente e em vez de ser digno de consideração é apenas digno de comiseração ou, em linguagem popular, digno de dó. Talvez a nossa dignidade resida no dó que suscitamos uns aos outros ou num qualquer espectador imparcial que nos observe como nós observamos formigas, borboletas ou moscas-do-vinagre. Comecei a tecer loas à Primavera e logo caí na mais insonsa – como detesto a palavra insossa – misantropia, num arremedo ou simulacro de ódio à humanidade. De súbito, assaltou-me uma saudade dos tempos em que me dedicava a considerar não a misantropia, mas a misologia, o ódio à razão. Talvez a minha misantropia tenha nascido de os homens, espécie da qual faço parte na categoria de narrador, cultivarem com afinco e de modo contumaz a misologia, de serem uns acabados misólogos.

segunda-feira, 8 de abril de 2024

Calorias

Imagino que Carl Schmitt não será personagem cuja companhia se recomende, pois ele, em vida, não hesitou em escolher as piores. Não foi o único. Contudo, teria o seu humor. Negro, dirão alguns. Numa das suas anotações, a de 2 de Julho de 1949, escreve: Que quereis vós? A massa: viver bem e ter as nossas distracções; to live and have a fun. Ser-vos-á servido isso mesmo; alimentos e ócio, com calorias e filmes.  Não sabia ele que as calorias iriam ganhar péssima fama e que, depois de entesourar essas mesmas calorias, os homens da massa – e aqui que ninguém nos ouve, ou lê, para ser mais preciso, quem são os homens que não pertencem à massa? – começaram a querer libertar-se delas. Por espirituosa que seja, uma visão é sempre parcial. Aqui, parcial nem significa inclinada a tomar partido, mas apenas que só pode ver uma parte da realidade. Schmitt não compreendeu que a acumulação feérica de calorias conduziria a um movimento de emancipação delas. A anotação de Schmitt é, na verdade, um lamento sobre o destino do mundo. A vida em vez de se dirigir para as coisas elevadas, dirigia-se para o gosto ancestral dessa massa. Contudo, é uma lamentação sem sentido. O facto de muitos se contentarem com calorias e filmes não impede que outros persigam outros desideratos. Schmitt lamenta, no fundo, não poder impedir esses muito de terem as suas calorias e as suas distracções. O mundo é um lugar suficientemente amplo para que o contentamento de uns não impeça o contentamento de outros. Estas anotações, escritas entre 1947 e 1958, foram publicadas com o título Glossarium.

domingo, 7 de abril de 2024

Pegada ecológica

Pergunto-me, por vezes, qual será a pegada ecológica de cada texto que publico aqui. Não faço a mínima ideia, embora devesse fazer. Imaginemos que era enorme essa pegada. O melhor seria pôr fim a estes escritos. Que razão haverá para poluir o planeta, só porque se se acha no direito de publicitar as coisas sem nexo que chegam à alma de um narrador desprovido dela? Nenhuma. Ocorreu-me uma coisa. Suspensão do texto. Peço desculpa por esta interrupção. O programa segue dentro de momento. Interlúdio musical. Em fundo, as Quatro Estações, de Vivaldi. Já volto. Retorno ao serviço. Ocorreu-me que este problema já terá ocorrido a muitos outros e que deve haver alguma forma disponível para medir essa pegada. Procurei e descobri uma. Graça à simpatia da Inteligência Artificial. Submeti o blogue a um exame num site sugerido. Obteve um A, a segunda nota mais elevada, logo a seguir ao A+, e ainda teve direito ao seguinte comentário: Tomado globalmente, é mais limpo do que 86% das páginas web. Com tanta limpeza, não será razão para pôr fim à publicação destes tristes textos. Talvez tenha de encontrar outra razão, caso me apeteça eutanasiar o blogue. Seja como for, agora não me apetece. Voltaram as poeiras africanas, está uma luz túrbida, mas não túrgida. Repare-se nestas duas palavras, túrbida e túrgida. Basta trocar um b por um g para que se vá do turvo ao inchado. Está uma luz turva, sombria, inquietante, mas será que estará inchada? Não me parece, pelo contrário. A luz do dia está túrbida, mas não túrgida. E isso faz toda a diferença. Um pássaro meu vizinho repete ao infinito uma sequência de sons sempre igual. Música minimal repetitiva. Esforço-me para a compreender, mas falta-me uma pedra roseta para conseguir decifrar o mistério da fala dos pássaros.

sábado, 6 de abril de 2024

Sábado sem sol

Está uma chuva de cães, mas o alcatrão parece seco. Cobre-o a poeira vinda das Áfricas, pois são muitas e plurais as Áfricas. Também as poeiras são de diversa índole e deixam-se dedilhar por mãos de todas as texturas. Uma investigação botânica mostrou-me que são seis as orquídeas floridas. O friso compõe-se. Ainda vejo um pouco de uma das ameias do castelo, mas mais uma ou duas Primaveras e ela ficará escondida dos meus olhos. E quando estes a procurarem só encontrarão as agulhas verdes do pinheiro, ali posto para crescer e conspirar contra a minha visão. Dormi muito pouco e, nos dias que se seguem às noites em que durmo muito pouco, sinto a tentação de adormecer sentado, mesmo se faço alguma coisa, como neste momento, em que escrevo, quase sonâmbulo, esta narrativa de uma gesta destituída do calor da aventura. Sábado sem sol. A luz esbranquiçada paira sobre a copa das árvores, toca ao de leve a parede das casas, repousa como se fosse um grande lago de águas paradas. Deveria fazer um inventário dos sons que oiço, talvez uma descrição fenomenológica com esperança de encontrar, por exemplo, a essência do canto dos pássaros meus vizinhos. Nos prédios da frente, há anjos sentados nos telhados. Fumam e bebem cerveja, mas não consigo ouvir o que dizem. Sem pulmões e sem fígado, é indiferente o que fumam e o que bebem, e isso expressa-se nos seus gestos, no desdém com deixam o fumo evolar-se das narinas ou na displicência com levam as garrafas à boca e deixam deslizar a cerveja pela a ausência dos seus corpos. Um retirou-se. Voou para longe, alguma alma o chamou, como nós chamamos um táxi. Com pressa de chegar ao destino.

sexta-feira, 5 de abril de 2024

Meditações

Chegou sexta-feira e nem dei por ela, ocupado com a trama do dia, a fluência das horas, o deslizar do cardume insensato dos minutos, esses peixes devoradores de carne, aliados eternos do tempo, inimigos jurados da eternidade. De súbito, oiço dentro de mim uma voz. Chega de disparates. O que se quer é uma prosa enxuta, clara e distinta, pronta a servir evidências aos esfomeados de certezas. Então, dedico-me a enxugar as palavras, torço-as e retorço-as, até que percam a humidade e secas constituam a tal prosa incomparável, sem ceder à tentação dos tropos, ao vestígio retórico que anima qualquer narrador. Retomando a sexta-feira, constato que a dilapidei sem vantagem, mas não o pude evitar, pois a realidade tem peso sobre qualquer um e ainda mais sobre mim. Deveria ir caminhar, entregar o corpo à azáfama de andarilho, mas finou-se-me o apetite atlético. Fico por casa a cogitar sobre os dias perdidos, sabendo que não há dia nenhum que não seja perdido. Alguém, alguma vez, recuperou do passado um dia que passou? Que eu saiba, ninguém. Agora poderia escrever uma longa meditação sobre a irrecuperabilidade dos dias, pensar sobre o seu mecanismo, pois cada dia é uma máquina que se deteriora irreparavelmente no decurso da sua existência. Como todas as outras. Prefiro, antes, investigar se há ainda amêndoas de chocolate e canela cá por casa.

quinta-feira, 4 de abril de 2024

Sabedoria suprema

Talvez tudo se tenha estragado quando Milton se lembrou de afirmar que Conhecer o que está diante de nós na vida quotidiana é a sabedoria suprema. Não é claro aquilo que o poeta quer dizer com o que está diante de nós. A interpretação feita é que o que está diante de nós na vida quotidiana é essa vida quotidiana, com os seus afazeres, os nossos desejos e os nossos interesses, os nossos temores, em resumo a nossa quotidianidade. Nada de metafísica, mas a física de cada dia é o objecto da sabedoria suprema. Essa quotidianidade cresceu monstruosamente e tomou conta da vida de toda a gente. Podemos imaginar, porém, que Milton queria dizer uma outra coisa. Por exemplo, a vida quotidiana é um símbolo diante de nós daquilo que está para além dessa quotidianidade, saber interpretar o símbolo é a sabedoria suprema. O problema é que a interpretação do símbolo não será transmissível, é sempre uma interpretação existencial e privada, o que tornaria a sabedoria suprema coisa privada, não socializável e não partilhável. Por certo, não será esta a interpretação dos puritanos aos quais Milton pertencia. Querem devolver o homem à sua realidade, transformá-lo num consertador das coisas que saíram fora dos eixos e nisso estaria a sabedoria suprema. Estamos longe da douta ignorância de um Nicolau de Cusa ou do só sei que nada sei, de Sócrates. A visão de Milton vai desembocar no activismo e na mobilização geral e contínua do homem e dos materiais do mundo. Vivemos num mundo configurado pela quotidianidade miltoniana, dirigidos pela virtude puritana do calvinismo. A isto não será estranho, porém, a percepção de se viver numa crise irreparável e de se desconfiar que a sabedoria suprema se encontra em qualquer outro lugar, para o qual desconhecemos o caminho, pois não sabemos de mapa ou de bússola que nos oriente.

quarta-feira, 3 de abril de 2024

Novos párias

Estou a prolongar a Quaresma, dedicando-me não ao jejum, mas à abstinência. Resumo a coisa em poucas palavras. Passei pela FNAC. Antes disso deixei-me tentar por um pastel de nata, em vez de me dedicar ao jejum. Na FNAC, porém, fui abstinente e não comprei qualquer livro. É preciso, por vezes, dizer não, como prova de que não se sofre de nenhum adicção. Resisti às tentações, várias que encontrei. Perante cada uma delas, fiz a seguinte oração em forma interrogativa: Será que vou ler este livro? E recebi a inspiração de que não o iria ler de imediato, o mais provável era empilhá-lo e esquecer-me de que o tinha adquirido. Perante tamanha iluminação, abstive-me da aquisição, das múltiplas aquisições. É difícil. Alguém – um certo embaixador com intervenção discreta nas redes sociais – dizia que tem prazer comprar livros e que há mesmo livros que tem mais prazer em comprá-los do que em lê-los. Compreendo-o perfeitamente. Há livros que são comprados apenas para se terem, não vá o diabo tecê-las e uma pessoa precise mesmo de os consultar, ler uma ou outra passagem. Diante de mim, tenho vários que, de um modo ou de outro, focam o mesmo assunto. Num deles, da filósofa Martha C. Nussbaum – em três dias é a segunda vez que a cito – diz-se o seguinte: Os pais indianos orgulham-se de um filho que é admitido no Instituto de Tecnologia e Gestão; ficam envergonhados se um filho estuda Literatura, ou Filosofia, ou ambiciona pintar, dançar ou cantar. Também os pais americanos avançam rapidamente nessa direcção, apesar de uma longa tradição nas artes liberais. A vergonha parental pelas escolhas dos filhos é um aferidor competente do estado do mundo, daquilo que é considerado importante e o que é desprezível. Tudo que tenha a ver com o espírito é desprezível e caminhamos para uma situação em que interessar-se por coisas como Filosofia, Literatura ou Artes é o passaporte para a condição de pária. Sempre se pode dizer que quando os párias tomam conta do mundo, os valores do mundo são os valores dos párias, mas imagino que isso não se possa dizer. O melhor é uma pessoa calar-se, caso pertença à categoria dos novos párias.

terça-feira, 2 de abril de 2024

Flores de Abril

Abril, nestes primeiros passos, continua chuvoso. Talvez este seja o mais cruel dos meses, e Eliot tenha a razão do seu lado, embora não seja possível ver crueldade na criação de lilases na terra morte, na mistura de memória e desejo. Num primeiro momento, pensamos o desejo na sua ligação com o futuro, à hora que trará a satisfação, mas talvez não seja impossível encontrar na memória a raiz do desejo, a memória de um tempo em que a falta não era sentida e o desejo não era desencadeado. A esse tempo dever-se-á dar o nome de tempo da inocência, o de uma inocência frágil e que se desconhece enquanto inocência, pois o espinho tormentoso do desejo ainda não abriu, no corpo e no espírito, a ferida que nunca sarará. Sim, o desejo é uma patologia crónica, para a qual só existem cuidados paliativos. Estão a podar as acácias. Cortam-lhes os ramos e elas haverão de se revigorar. Retomando Eliot, leio parte da noite, mas não vou para Sul no Inverno. Fico onde estou e enfrento dias frios com a coragem que me falta para os dias quentes. Chove, os ramos das acácias estão a ser decepados e leio Eliot, antes de sair de casa e enfrentar a crueldade deste Abril, agora começado. Da terra morta não nascem lilases, mas talvez encontre jacintos para oferecer quando a noite cair e a chuva serenar.