Uma estranha conjugação de luz, vento e arvoredo levou-me para um mundo que desapareceu há muito. Olho-o estupefacto, é apenas um universo fantasmático, povoado de sombras e murmúrios. Não são as árvores, nem a água, nem o vento, nem as casas, nem as pessoas, nem sequer eu, mas os espectros de tudo o que ficou lá atrás, sepultado como ficam todas as coisas que recebem da mão do tempo a pérfida estocada. Quase não me reconheci, mas ao ver uma figura mergulhar num grande tanque de rega, sob a copa das ameixoeiras, recordei-me que seria eu. Em tardes infindáveis de Verão, matei o calor naquela água e sentei-me no largo muro do tanque enquanto ouvia o ramalhar das árvores, o canto dos pássaros e olhava com atenção o jogo de luz e sombra que o ondular dos ramos projectava na superfície do mundo. Quem vivia nessa casa morreu há muito. O telemóvel insiste em cortar-me a rememoração e enviar-me para o território da realidade. Resisto, porém, e penso, para me iludir, que ainda estão longe os pavorosos dias de Verão. Leio que não nos devemos deixar enganar pela retórica dos maus argumentos e concluo que só devemos deixar-nos lograr pela retórica dos bons argumentos. Depois penso que cada um se deixa burlar por aquilo que tem à mão. Iludir-se com bons argumentos pode ter um preço demasiado alto a pagar para alcançar uma coisa que não necessita de qualquer esforço. Imagens do passado batem à porta, atiram pedras à janela, insistem em assombrar-me. Conversas entre adultos, um cão ou um gato com que brinquei, as figuras que desfilam agora na minha memória e que foram apagadas deste mundo. Alguém que tinha um dente de ouro, o maço de notas tirado da algibeira pelo homem do peixe, as tulhas de grão e feijão de alguma mercearia, cuja dona vestia uma bata negra acetinada, as bombas de extracção de azeite e petróleo. Depois chega a procissão com os andores, as raparigas vestidas de branco com tabuleiros à cabeça e a pomba do Espírito Santo. No largo em frente à igreja, do outro lado da estrada, ainda vejo o placard que anunciava um jogo de futebol jogado há quase sessenta anos. Hoje é quarta-feira, dia 20 de Maio. Um pássaro, talvez um deus disfarçado, diz-me que não devo rememorar os mundos que ficaram submersos. Digo-lhe que tem razão, mas que não sou dono da minha memória, nem da minha vontade, nem de mim. Mais uma razão para não fazeres o que não deves fazer, responde-me ele.
quarta-feira, 20 de maio de 2020
terça-feira, 19 de maio de 2020
Perdido no mundo
Sorrateiro, o Verão instala-se. Chega de garras afiadas, estiletes e punhais de luz sobre a pele, até que o ânimo sangre e uma preguiça se instale, convidando os corpos ao relaxe e as almas ao pecado. Nesta trama romanesca, em que as personagens se dividem em corpo e alma, o corpo é inocente, mas a alma é culposa, duma culpabilidade insinuante, plena de manhas, truques e armadilhas. É ela que obriga o corpo a arrastar-se no lamaçal do erro, ele que por si mesmo não seria mais do que uma abóbora à espera que o tempo passasse. Esta deriva pela teologia talvez se deva a ter estado todo o dia ocupado com dados, gráficos, leituras e relatórios. Ou então será da música que estou a ouvir e que de súbito me raptou da rasura habitual e me pôs em contacto com os excruciantes problemas da relação entre corpos e almas. Raramente sabemos o que causa os nossos pensamentos. Esta frase demonstra que sou uma pessoa cautelosa. Fosse eu intrépido e diria que nunca sabemos o que causa os nossos pensamentos. Hoje todavia não quero ofender aquelas pessoas que sabem sempre quais as causas das coisas, a começar pelos seus pensamentos. Eu nasci para a ignorância, para o erro e para a perda. Ainda ontem decidi andar mundo fora, pés na terra, a respirar os ares do campo e perdi-me. O mundo campestre é sempre igual e trocou-me as voltas. Já estava a ver que não encontrava a estrada que me haveria de levar à casa da partida. O que vale é o telemóvel, que recebeu a indicação do sítio que me esperava e lá fui eu guiado por uma voz que entoava daqui a 200 metros cortar à esquerda. E eu, fiel como um cão, cortava à esquerda e à direita, se recebesse ordem para tal. Aquilo que poderia ter sido uma aventura digna de D. Quixote foi decepcionante. Estava perdido mesmo junto ao sítio onde devia chegar. Nem moinhos havia para desafiar. Hoje é terça-feira, dia 19 de Maio. Oiço uma sirene, talvez também ela ande perdida. Esperam-me longa horas de trabalho, mas o corpo, levada pela obscura potência da alma, apenas lhe apetece dormir. Não há corveia maior do que ter um corpo que se deixa enrodilhar pelas tramóias da alma. Ou será o contrário?
segunda-feira, 18 de maio de 2020
Por que não te calas?
Oiço o
ladrar de um cão. Haveria de ser o ladrar de um gato ou de uma galinha, pergunta-me
a minha consciência. Olho-a com desdém e não respondo. O animal insiste em
fender o silêncio, em abrir-lhe um buraco por onde a sua inquietação se escoe e
ele possa com alívio deitar-se ao sol em prolongado descanso. Um dia haveremos
de compreender a língua dos animais, o dialecto de cada espécie, o significado
preciso de cada modulação sonora, o sentido que nasce do ritmo com que entoam o
que querem comunicar. Mais tarde, talvez muito mais tarde, aprenderemos a
interpretar o silêncio das árvores, dos arbustos, de todas as espécies que
fazem parte do reino vegetal. Uns comunicam connosco pelo som, outros pelo
silêncio, mas ainda somos demasiado infantis para afinar os nossos sentidos
pelos das outras espécies. Não sei o que me deu para entoar um louvor à
harmonia universal. Também eu tenho necessidade de belas ilusões. Se não me dão
a verdade, pelo menos ajudam à boa disposição. Sigo um conselho de Winston Churchill:
Seja optimista. Não serve de muito ser
outra coisa qualquer. Hoje por hoje entrego-me ao optimismo, não porque
haja razões a seu favor, mas porque se é pessimista relativamente às
alternativas. Em resumo, o verdadeiro optimista é aquele que é pessimista
perante o pessimismo. Continua a ser notória a minha falta de assunto. Poderia
seguir a injunção que há uns anos um certo rei dirigiu a um protótipo de
tiranete. Por que não te calas? Esta é uma belíssima pergunta, para a qual não
encontro resposta. Talvez siga o ensinamento do antigo primeiro-ministro inglês
e diga: Falo. Não serve de muito estar
calado. Comecei a semana útil com estas inutilidades, mas é com elas que
preencho a vida. Hoje é segunda-feira, dia 18 de Maio. Ao longe avisto um
bosque de pinheiros mansos. Sobre ele esvoaçam anjos magníficos, de asas
luminosas e espadas de diamante. A minha consciência salta de imediato para
diante de mim e diz-me que eu não me chamo João, nem estou na ilha de Patmos,
nem me alimento de gafanhotos. Fiquei sem palavras.
domingo, 17 de maio de 2020
Querido diário
Quando me dispus a escrever este texto fui assaltado pela
ideia de que todos eles constituem um diário. Daí a imaginação cabriolou e após
um salto mortal disse-me, com aquele sorriso cândido que todas as imaginações
possuem, que lhe poderia chamar querido diário, como no filme do Moretti. Para
dizer a verdade e assim demonstrar a autenticidade com que narro, nestes textos,
as mais excruciantes aventuras de um narrador desavindo com o autor, confesso
que grafei Nannetti, numa feliz fusão de Nanni e de Moretti. Isto não é um bom
sintoma, mas há que ter paciência e aceitar a realidade como ela é. Uma coisa
que me encanita – meu Deus, não poderia evitar estas derivas de gosto popular e
escrever simplesmente irrita? – nos italianos é a duplicação de certas
consoantes. Ainda não descobri o segredo porque umas vezes elas aparecem em
pares e outras singulares. Terei de dar mais atenção aos nomes italianos, anoto
na agenda onde escrevo todas aquelas coisas que quero fazer mas que, por certo,
nunca farei. O vento agita os ramos da acácia, os pássaros cantam e oiço vozes
ao longe, um murmúrio, como se escandissem orações, numa devoção em que as
imagino de terço na mão. Percebo depois que veneram outra coisa e que se a têm,
a piedade está disfarçada e oculta por afeições que me recuso a partilhar.
Quando era adolescente, ainda não muito entrado nesse momento tenebroso da vida
humana, a esta hora já teria saído da Missa e estaria a caminho de casa. O
almoço naqueles dias era um pouco mais tarde, mas não tão tarde como vai ser o
deste dia, em que uma mosca entrou pela janela aberta e se prepara para me
encanitar. Hoje é domingo, dia 17 de Maio. A Direcção Geral de Saúde continua a
emitir o boletim epidemiológico, a política volta lentamente, enquanto abro a
boca e bocejo, não por causa da epidemia nem da política, mas porque a preguiça
me tenta, ao estender-me as suas garras de algodão para que embalado na maciez lhe
entregue corpo e alma. Vade retro.
sábado, 16 de maio de 2020
Da poligamia semântica
A buganvília púrpura exubera, mas a amarela parece
moribunda, encostada a um pilar, incapaz de afastar o abraço sesgo com que a
morte a está a enrolar, fazendo-lhe cair as flores, colorindo de castanho a folhagem,
retirando o ânimo que lhe deu vida. Hoje caminhei pelos campos. Havia piteiras,
algumas com figos arroxeados, alcachofras selvagens e pinheiros mansos a
bordejar as estradas de terra batida, ainda com poças de água, pequenos lagos
onde não há navegante que se aventure. As vinhas e os pomares de citrinos,
animados por um espírito geométrico, prestavam culto ao velho Euclides,
enquanto eu respirava um ar que já quase não sabia existir. Oiço a voz das minhas
netas, combinam uma daquelas coisas que só as raparigas sabem o que é, enquanto
o dia declina, com o Sol a esconder-se atrás de nuvens escuras. Há bocado
trovejou, mas não choveu e os trovões envergonhados retiraram-se para longe. Na
acácia que avisto, pousou um pássaro que não consigo identificar. Leio num
livro sobre a arte de argumentar a injunção de que se use para cada termo um único
sentido. O autor é adepto da monogamia semântica. Fico encantado com tamanha
sabedoria, mas as línguas têm uma terrível inclinação para a poligamia e, por
má fé e desobediência aos sábios conselhos dos filósofos, entregam-se à esquiva
falácia da equivocidade e dotam os termos com mil sentidos, arquitectam
armadilhas chamadas metáforas, metonímias, oximoros, paradoxos, hipálages e
todo um poderoso arsenal com que bombardeiam os quartéis onde se acolitam os
defensores da boa moral semântica. Desavergonhadas as línguas ainda têm a
pretensão de que só assim se pode falar da realidade. O que tem tudo isto a ver
com as buganvílias ou a combinações secretas das minhas netas? Nada, mas é o
que acontece sempre que os homens abrem a boca e se põem a falar ou mexem os
dedos para digitar o que lhes passa pela cabeça, se a têm. Hoje é sábado, dia
16 de Maio. Os dias continuam a crescer. Ao longe vejo uma palmeira que escapou
à hecatombe que dizimou a espécie. Uma nuvem negra atravessa o meu campo de
visão. Anuncia a noite empurrada por um vento melancólico. Pudera eu ser adepto
da monogamia semântica e tudo seria mais fácil. Um banco seria um banco e nada
mais que um banco, mas não falemos de coisas equívocas.
sexta-feira, 15 de maio de 2020
Aventuras no novo reino dos bonifácios
Um pastel de feijão. Estou
falar a sério, até um bolo trivial se tornou acontecimento digno de
registo, pelo menos do meu. A necessidade de fazer uma escritura levou-me a
Santarém, mesmo ao lado da Bijou, uma
das célebres pastelarias da cidade. Acabado o acto burocrático, não resisti e,
ao fim de mais de dois meses, comi um bolo de pastelaria, não dentro dela mas
sentado no velho largo do seminário, como se fora um hippie fora de tempo e de lugar. Fazer uma escritura também não
deixa de ser um assunto interessante. Parece uma reunião de um bando já com as
máscaras postas pronto para o assalto. Aquilo que é um encontro entre pessoas
de bem, mediado pelo representante da autoridade civil, que exercem a sua
vontade em comprar e vender tornou-se uma estranha mancomunação para onde se
vai disfarçado, temeroso, e de olhar desconfiado. O que um vírus faz às
relações sociais. Prevejo já uma avalanche de doutoramentos em Sociologia do
COVID-19, a que se hão-de juntar outros na Economia, na Psicologia e até na
Antropologia. Outro ritual novo e inusitado, também um óptimo campo de trabalho
para sociólogos e antropólogos, é a paragem numa estação de serviço de uma
auto-estrada para ir a uma casa de banho. Há agora todo um conjunto de licenças
a obter para se alcançar uma chave extraída de um sítio onde estava em
desinfecção, que logo se tem de devolver para ser de novo desinfectada. Não só
o mundo se tornou um lugar perigoso como um sítio onde haveremos todos de
enlouquecer, para gáudio dos psiquiatras e psicanalistas, que também não
estarão melhores do que os pacientes, mas têm mais experiência na arte do
disfarce. O que valeu fui o pastel de feijão, mesmo comido na rua, mesmo
transportando-me para o hippie que
nunca fui. Hoje é sexta-feira, dia 15 de Maio. Onde me encontro neste momento
há sol e ouvem-se pássaros, mas como tudo na vida também isso é passageiro. A
próxima vez hei-de comer uma bola de Berlim, mesmo que isso desencadeie uma
guerra com a balança ou me obrigue a uma declaração em favor do flower power. Até trautearei If you're going
to San Francisco / Be sure to wear some flowers in your hair.
quinta-feira, 14 de maio de 2020
Bátegas de água e dicionários
Olho pela janela como se estivesse confinado. Um forte
aguaceiro rompe o sossego com que o dia desliza para o fim. Uma bátega de água.
Assaltou-me a curiosidade e fui tentar saber de onde vinha a palavra. Ela tem
dois sentidos. Quando significa bacia, terá vindo do árabe bâtiya, mas se significa chuvada a origem obscurece-se. O
dicionário da Porto Editora alvitra que pode ter vindo de bater. O Houaiss,
apesar de sublinhar a origem controversa do vocábulo, adianta que é uma
derivação por analogia. Imagino que seja a confissão de um acordo com o que diz
o da Porto Editora, mas não afianço. Quando apareceu em Portugal, comprei o
dicionário Houaiss. Seis volumes em papel com uma letra tão pequena que só de
olhar para ela uma pessoa começa a fantasiar dores de cabeça. Há muito que não
lhe toco. Comprei uma versão digital e é essa que utilizo. Evita-me dores de
cabeça e o trabalho incerto de encontrar a palavra no seu lugar alfabético.
Basta digitá-la e, como num filme de fantasia, ela aparece, com a informação, a
idade e até a origem, mesmo se obscura. É um dicionário perfeito para quem se
interesse por coisas inúteis. Qual o primeiro registo escrito conhecido de uma
palavra? Ele informa. Bátega, 1525. Já bateria terá sido em 1546 e batente em
1456. Como se vê, este conjunto de inutilidades é de uma enorme importância num
tempo em que as pessoas estão obrigadas ao jogo do confina e do desconfina,
rodeadas de bátegas de água. O pior, e isso ocorre muita vezes, o dicionário
recusa dar informação. Guarda-a para ele. É inútil discutir. Parou de chover.
Em Portugal, segundo o Houaiss, chove por escrito desde 1262. No meu telemóvel
pipocam mensagens. Sim, eu posso dar a informação. Pipoca, primeiro registo em
1781. Hoje é quinta-feira, dia 14 de Maio. O mês aproxima-se do meio, mas não
entendo sequer o que quero dizer com isso. Desconfio que existe na sociedade
uma ofensiva contra o calendário. Algum grupo radical está apostado em
devolver-nos à pura duração, a esse momento paradisíaco em que ainda não tínhamos
esquartejado o tempo para o contar. Talvez amanhã consiga escrever um texto
menos idiota. Há que não desesperar.
quarta-feira, 13 de maio de 2020
O mundo das árvores
Há uma passagem do romance do italiano Giorgio Bassani, O Jardim dos Finzi-Contini, em que Micol
se diverte à custa da suposta ignorância do narrador perante o mundo das
árvores. Ela parece raptada pela nobreza desses seres mudos, ele diverte-se
ostentando um não saber contumaz. Também eu sofro dessa ignorância e isso não é
uma suposição. Não é que não goste de árvores. Gosto muito, mas falha-me a
denominação, melhor falta-me saber adequar os nomes às espécies, pois a botânica
é das coisas mais rasteiras que há em mim, que não sou desprovido de
incontáveis saberes rasos. Há nomes magníficos nesse reino misterioso. Cedros,
faias, olmos, lódãos, ulmeiros, bétulas, plátanos, salgueiros, todas estas
árvores têm nomes que pedem que os escrevamos, tão magníficos eles são. Fantasio
a possibilidade de criar toda uma literatura com esses nomes, explorar as
características de cada árvore, dando-lhe uma alma racional e desejos
humanos, criando-lhe genealogias, dotando-a de tradições e de traições. Isso
porém seria fazê-la cair, expulsá-la do Éden onde habita e misturá-la ao
mundo sombrio dos homens. Abstenho-me de pensar em tal coisa e dirijo-me à
janela. Imagino-me que sou eu que passo na avenida, atravesso a passadeira e empurro
a porta do bar. Debalde, ele continua fechado. Então volto para trás, perco-me
na curva. Daí a pouco oiço a porta da rua a abrir e alguém a entrar. Sou eu. Reúno-me
comigo mesmo, sento-me na secretária e olho o pequeno bosque da escola aqui ao
lado. Os pinheiros estão mais copados e os cedros desenham cones secretos por
amor à geometria. Hoje é quarta-feira, dia 13 de Maio. O mundo contínua envolto
em estatística e até eu me entrego, por desfastio, a exercícios estatísticos.
Vi na televisão umas imagens do santuário da Cova de Iria. Estava vazio, mas
não oferecia a desolação que outros lugares de encontro das multidões oferecem
quando ninguém os habita.
terça-feira, 12 de maio de 2020
Em estado catatónico
Tenho uma relação difícil com a burocracia. Possuirei alguns
genes avariados, ou mais avariados do que a norma, que me colocam em estado
catatónico mal tenha que tratar de guias, certificados, certidões e o mais que
uma imaginação delirante passa a vida a conceber. Dou de barato o pagar e o
repagar, mas a fina trama onde se tece toda a relação com o leviatã
ultrapassa-me, excede a pobre inteligência que me foi concedida e activa em mim
alguma hormona que me põe à beira de um colapso. É verdade que mesmo aqui se
manifesta a minha propensão para hipérbole, e isso é ainda mais idiossincrático
do que a desavença com a tirania da administração. Suspeito, mas é apenas uma
suspeita, a existência na minha alma de uma herança anarquista. Algum avô
longínquo, no segredo da sua juventude, terá sonhado terras sem poderes ordenadores.
Por causa de tudo isto fui à rua, uma viagem sem sentido e quando cheguei ao
destino o destino só se abriria para mim caso tivesse feito marcação. Sempre achei
que não somos nós que marcamos a hora, mas talvez tenha existido alguma
metamorfose ontológica e o destino se tenha tornado complacente dando a
oportunidade de negociar a hora em que se dispõe a atender-nos. Ainda não me
habituei à nova realidade e talvez viva num tempo que já acabou. Bem me esforço
por bater à porta da nova era, mas as minhas pancadas são demasiado leves para
que sejam escutados no reino nascente, onde as festas são de tal maneira luxuriantes
que não há porteiro que escute quem quer entrar. Como se vê, a pendência
burocrática não me dá ensejo a dizer seja o que for com nexo. O sol que encontrei
na rua era desagradável, quente e doentio, havia nele catarro e um ar amarelado
que não me dispôs melhor do que estava. A cidade cheia de carros, os
castanheiros da marginal exuberavam na floração e não vi ninguém conhecido.
Espero em desespero um email que me há-de salvar, indicar-me-á o caminho onde
me esperarão umas guias que me hão-de conduzir à caixa multibanco ou, se tiver
juízo, ao conforto do homebanking. E
eu que queria falar da palavra cavanhaque e de um certo general francês, enrodilhei-me
em mais uma triste história. Hoje é terça-feira, dia 12 de Maio. Ganhei o
hábito de fazer de calendário e não há quem me faça perder o vício. Num
apartamento vizinho alguém se apaixonou pelo aspirador e arrasta-o dengoso casa
fora. Infinitas são as parafilias, mas recuso-me a fundamentar tal afirmação.
segunda-feira, 11 de maio de 2020
Contra o sono, marchar, marchar
Depois de almoço sofri um ataque indescritível de sono. A
cabeça pendia, as pálpebras fechavam-se e em todo o corpo um torpor exigia que me
acastelhanasse e, sem escrúpulos nem remorsos, dormisse uma boa sesta. Tartamudeei
aquele velho slogan que fez a nossa
independência, de Espanha nem bom vento nem bom casamento, e acrescentei nem
bom vento nem bom aconselhamento. Resisti como se resistisse a um inimigo tenebroso,
convoquei as forças benévolas, lembrei o primeiro de Dezembro e os quarenta
conjurados e não me deixei arrastar para o mundo sombrio do sono, onde sempre
se pode ser surpreendido por sonhos que a sensatez nos deveria interditar. Meu
Deus, agora deu-me para a aliteração, ainda por cima em s. Se fosse em r poderia
escrever o rato roeu a rolha da garrafa do rei de Roma. Duas vezes somos
meninos, sussurra-me uma voz que me habita sem pagar renda. Aberta a janela, o
ar reanimou-me, as aliterações passaram. Um vento irrequieto brinca com a
folhagem das árvores, o sol joga às escondidas entre as nuvens e os carros,
como animais vindos de um universo paralelo, correm ofegantes, circundam
rotundas e aceleram entre baforadas de fumo e buzinas enrouquecidas pelo pólen
das árvores. Os dias úteis da semana começam levados pela incerteza, constato,
enquanto, mais uma vez, o alarme de um carro estacionado ali em baixo dispara, enche
o ar com os seus urros ateados pelo medo de ser levado por sabe-se lá quem. Também
estes animais metálicos desenvolveram um amor canino pelos seus donos. Hoje é
segunda-feira, dia 11 de Maio. Nesta data nasceram o imperador Justiniano I e
Salvador Dali. Para contrabalançar morreu Afonso Costa. As acácias estão compostas,
embora lhes falte o aprumo dos ciprestes e a altivez dos cedros.
domingo, 10 de maio de 2020
Falta de vitamina D
Os almoços tardios de domingo são ainda o sinal de uma
sabedoria vinda de um tempo que parece ter-se acabado e que, como qualquer
outro tempo, não voltará mais. Talvez no futuro que está mesmo ao pé da porta todos
descubramos uma vocação para a arqueologia e comecemos a escavar o solo em
busca de vestígios de uma vida que vivemos há muito. Armados de pá e picareta,
como se vê pelos instrumentos não faço a mínima ideia de como os arqueólogos
trabalham, escavaremos a rocha dura da memória para descobrir como era a vida nesse
passado longínquo em que habitámos outro mundo. Digo isto não porque tenha
vocação de Júlio Verne ou me entregue ao vaticínio e artes correlativas, mas
porque não me ocorre nada melhor para dizer. Por falar em Júlio Verne, a
literatura de antecipação científica, ao contrário da policial, nunca exerceu
sobre mim qualquer fascínio. Nunca devo ter achado o futuro um território digno
de louvor, ao contrário de todos os que entoam loas ao que há-de vir, não
sabendo eles o que está para vir. Prefiro os policiais pois tratam de coisas
arcaicas, de todos aqueles Cains que, dissimulados, matam os Abéis. Paro a
verborreia, e se Abel não se pluraliza ou não o faz como papel? Encerro a
questão dizendo-me que não sou o Ciberdúvidas nem tão pouco conheci algum Abel
nesta vida quanto mais dois, para ter necessidade de pluralizar o nome com
certeza e segurança. Com ou sem Abéis no plural, prefiro livros policiais. Devia
ir apanhar sol. Consta que fornece vitamina D e, embora eu não saiba qual a
função desta, estou certo que se ela estivesse dentro dos parâmetros normais eu
não escreveria coisas como estas. Hoje é domingo, dia 10 de Maio. O dia hesita
entre a tristeza e a alegria, como eu hesito em se faço aquilo que tenho de
fazer ou faço outra coisa para a qual não tenho obrigação. De imediato penso
naquela oração aprendida na infância e digo não me deixeis cair em tentação, ao
que acrescento logo uma tentação é uma tentação. Opto por fazer o que me
apetece.
sábado, 9 de maio de 2020
Ah mais um sábado
Como se fosse um fim-de-semana normal, levantei-me mais tarde que o habitual. O tempo pareceu-me incerto quando o espreitei da varanda. Na rua havia gente, pouca, que andava devagar, máscara afivelada ao rosto, certa de ter um destino que a espera no deambular pelas ruas. A balança mostrou-se amistosa, o que prenuncia que o tratado de não beligerância acabará por ser assinado. Tenho pela frente, a primeira vez desde que tudo isto começou, uma ida em força às compras. Até aqui, havia alguém que valendo-se da idade o fazia, mas o mundo é incerto e tudo tem um fim. Quem tinha idade para ir às compras teve de voltar para a realidade. A realidade é um país distante onde as coisas acontecem segundo leis que ninguém conhece. Não é porto de abrigo, nem seguro, nem sequer é um porto, mas um oceano proceloso onde os mortais, por vezes, mergulham. Recordo-me que há que procurar a máscara, pôr a jeito luvas e gel, caso seja necessário. O dia entristece-se e já começou a descer a colina que o levará a outro. Não sendo mais, também não é menos estúpida a vida dos dias do que a dos homens. Mal nascem começam a subir a escarpa inclinada que os levará ao meio-dia, então não lhes resta alternativa senão descer até se afogarem no mar, enquanto outro nasce com o mesmo destino. E é a isto que se resume todo o seu ser. Pressinto que tal sorte daria motivo a grandes meditações metafísicas, mas por agora prefiro chocolates. Para dizer a verdade, continuo sem assunto. Hoje é sábado, dia 9 de Maio. O vento bate contra a vidraça, as persianas tamborilam e penso que deveria cortar o cabelo e ver um filme. É pena que não existam filmes em que se saia de cabelo cortado. Poupava tempo. Tenho de ir mudar de roupa.
sexta-feira, 8 de maio de 2020
Nada de nostalgias
Hoje não tenho nada para dizer, mas isso não é diferente do
que acontece nos outros dias. Posso falar do tempo cinzento, das premonições
que indicam chuva, mas um post de uma
amiga no Facebook trouxe-me uma
longínqua recordação. A postagem tinha um vídeo. Luís Miguel Cintra a dizer um
poema de Ruy Belo. E lembrei-me do ano em que o poeta morreu e como esse ano além
dele levou também Jorge de Sena e ainda, no quadro do meu mundo de preferências,
Jacques Brel, que era também um poeta. Isso aconteceu há mais de quarenta anos,
mas julgo que nunca me habituei à ausência deles, à impossibilidade de
escreverem novos poemas ou de cantar novas canções. Uma voz em mim, talvez a
minha consciência, diz-me que devemos evitar a melancolia, fundamentalmente se
somos velhos. Acato com bons modos o conselho, procuro o último LP de Brel, Les Marquises, olho demoradamente a capa
onde um céu azul e nublado deixa escapar BREL. Ponho-o a girar e deixo-me levar
para o tempo em que tinha pouco mais de vinte anos e tudo parecia possível,
embora não o fosse. Nada de melancolias, digo-me em forma imperativa e depois
rio-me, não da melancolia mas de mim. Brel canta Mourir cela n'est rien
/ Mourir la belle affaire / Mais vieillir... ô vieillir. Hoje já
ninguém aprende francês. Cuidado com a nostalgia, rosna a voz em mim. Eu
cuido-me, prometo. A culpa de tudo é do dia ou de não ter nada para dizer, ou
do vírus ou de ser tão patético que chego a sentir dó de mim, senão desprezo.
Hoje é sexta-feira, dia 8 de Maio. Um punhal perpassa pelo ares e crava-se na
parede. Ela sangra, a brancura da cal toma colorações de carne e um fio escorre
pelo chão, faz um pequeno lago, hão-de chamar-lhe Mar Vermelho. Tenho saudades
de ir a um restaurante, o que é mais sensato do que pensar que já tive vinte
anos, o que provavelmente é mentira. Os narradores são intemporais.
quinta-feira, 7 de maio de 2020
Sobre as zaragatoas
O actual estado do mundo, causado pela inopinada chegada de
um vírus inamistoso, uma daquelas visitas não convidadas nem anunciadas, tem
trazido para a ribalta, para além de uma legião de especialistas em epidemias,
pandemias, estatísticas, curvas, picos e planaltos, saúde pública e sabe-se lá
mais o quê, palavras que estavam escondidas em casa e que, ao contrário dos
seres humanos, foram obrigadas a desconfinar-se. Por mim, elejo zaragatoa, não
pela utilidade, mas pela feiura. Há palavras que nascem feias e por mais que se
componham nada há a fazer. Esta pobre que começa a andar pelas bocas do mundo,
coisa pouco recomendável, terá nascido no árabe vulgar como zarqatúnā,
os espanhóis, com o gosto estético que se lhes reconhece, baptizaram-na como zaragatona e nós portugueses, ao
importá-la, tentámos limar sonoridades que nos fazem lembram os sabonetes e
desodorizantes rexona, passe a publicidade. Um leitor menos disposto a
consultar um dicionário perguntará se as zarqatúnās árabes teriam a mesma função que as
nossas infelizes zaragatoas. Não. A palavra árabe designa apenas o caroço de
algodão, o qual pode ser utilizado na alimentação de animais ruminantes. As
coisas inúteis que eu sei não me deixam nunca de maravilhar. Como se vê, na viagem que vai da zarqatúnā árabe à
zaragatoa nacional, muita coisa mudou, embora alguma tenha ficado. Espantoso,
mesmo para mim, o número de palavras e frases que consegui escrever sobre um
assunto que não interessa a ninguém, nem a mim narrador destas aventuras, nem,
tão pouco, ao autor. Hoje é quinta-feira, dia 7 de Maio. A rua está calorenta, mas
a casa primaveril. Passo os olhos pela imprensa e certifico-me que o mundo
continua a ser mundo, os homens não deixaram de ser o que eram e quimeras, fantasias,
devaneios e ilusões não perderam o lar que as acolhia, o desejo sem limites que
arde no coração humano, ou noutro sítio que me recuso a nomear.
quarta-feira, 6 de maio de 2020
A preguiça do vento
É preciso andar de olho no tempo. Não me refiro à duração,
pois essa ninguém sabe quem ela é, mas ao clima, à sua natureza volúvel, às
suas idiossincrasias disparatadas. Ontem refrigerou, hoje aqueceu. A minha app meteorológica informa-me que a
temperatura é de 23 graus mas chegará aos 26. O vento está de norte, mas sem
pressa, desloca-se a 1 Km/h. Não há chuva. Consta que estão com falta de água lá
em cima. Fiquei também a saber que a humidade é de 47%. O problema, e a vida
não é outra coisa senão um amontoado de problemas, irresolúveis as mais das
vezes, é que os meus olhos mostram-me um céu pouco nublado, com um sol radioso
a escapar-se do azul e a aplicação jura-me que há um manto de nuvens, sem
abertas para o astro espreitar. Eu acredito nela piamente e vou já marcar
consultas para o oftalmologista e para o psiquiatra. Terei de investigar a
razão por que, estando um céu nublado, eu vejo um céu azul, ensolarado. Estarei
a ver mal? Cheguei à fase da alucinação? Alucinação ou deficiência visual, o
arvoredo resplandece sob a inclemência dos raios solares, as paredes e os
vidros dos carros reverberam, e tudo parece estar em plena Primavera, com
pássaros a voar, gente a cantar, plantas a florirem ao sol e, se eu vivesse no
campo, haveria de ver rebanhos e pastores e pastoras. O maior enigma, porém, é
a preguiça do vento. Um quilómetro por hora? Se ele trabalhasse para mim, se
fosse o portador das mensagens que envio ao mundo, despedia-o e contratava um
serviço alternativo. Não sei bem a razão, mas na minha secretária poisou um
livro de Orígenes, o Tratado sobre os
Princípios. O autor levava certas coisas demasiado a sério e, talvez guiado
por um impulso cego, castrou-se. É plausível que a partir dessa altura tenha
tido menos insónias, não sei. É uma conjectura que está à procura da sua
refutação. Hoje é quarta-feira, dia 6 de Maio. Muitas são as coisas que
gostaria de fazer, mas continuam interditas. Sempre posso ir dormir uma sesta
ou ver um filme, mas o dever chama-me e como um soldado em estado de prontidão
entrego-me ao que a fortuna, essa deusa avara, me destinou.
terça-feira, 5 de maio de 2020
Um dia difícil
Um dia anémico foi o que o sorteio meteorológico nos deu.
Vítima de uma voraz sangria, arrasta-se amarelento, cansado, como se fora filho
de um mês que, ainda imberbe, tivesse já dificuldade de respirar e de suportar
o peso do corpo, a trama que une as horas em dias e estes em semanas. Uma
funcionária da escola aqui ao lado empurra um corta-relvas, para a frente e
para trás, tenta domá-lo como se fosse um cavalo selvagem, segura-lhe as rédeas
para que não espinoteie. Falta-me vocabulário para prosseguir a analogia,
talvez devesse ler o livro da ensinança de
bem cavalgar toda a cela, embora o hipismo nunca me tenha interessado e é tarde
para me dedicar a torneios e justas equestres. O mais assisado seria dedicar
umas horas ao leal conselheiro, nunca se sabe o valor que pode ter uma
exortação à sensatez. O trânsito parece aumentar a cada dia que passa. Depois
de semanas a engordar ao sol e à chuva ou numa cave húmida, os automóveis
reclamam exercício que lhes adelgace as ancas e disfarce a barriga. Esta noite
uma insónia cravou em mim um punhal traiçoeiro para me roubar o sono e deixar-me
irritado com o passar das horas, perdido entre leituras para adormecer e
tentativas frustradas de dormir que desaguavam em novas leituras para adormecer.
Salvou-me a aurora que me ofereceu grátis duas horas de sono. Hoje
videoconferenciei por duas vezes, falei de coisas extraordinárias como jus ad bellum e jus in bello, para o que havia de me dar num dia como este. Ontem
fui vítima, ainda que indirecta, de uma das versões paroquiais da falácia ad hitlerum. Alguma vez tinha de me
calhar, pois a idiotice não é coisa que escasseie e, queiramos ou não, por
vezes somos abalroados por ela. Hoje é terça-feira, dia 5 de Maio. Deixo-me
hipnotizar pela passagem dos ponteiros do relógio e fico, como sempre, indeciso
se um segundo é pouco ou muito tempo, dilema que me arrasta para as mais
obscuras meditações, às quais pouparei o leitor.
segunda-feira, 4 de maio de 2020
Ocasião perdida
As folhas das oliveiras vão mudando de tonalidade de acordo com o estado de espírito do vento. Como se sabe, se há coisa que possui estados de espírito é o vento. Sopra onde quer. Sopra como quer. Sopra se quer. As folham vão e vêm, rodopiam, ora se tornam sombrias, ora são arrastadas para a luz e logo o verde-cinza se ilumina e toma a cor da prata ou da platina ou do tungsténio. O mundo é feito destas pequenas coisas e mesmo as nossa grandes tragédias não são mais que irrisão no concerto universal. Nestes dias em que me remeti ao resguardo da casa, perdi a oportunidade de escrever uma grande aventura, na qual, como um herói de antanho – que bem que esta palavra rima com estanho –, enfrentava dragões, górgonas e harpias, se calhasse o próprio minotauro, saltava obstáculos e saía vitorioso de mil armadilhas e de outros tantos combates, enquanto me arrastava de recanto em recanto pela casa fora. É sempre dramático constatar que não se nasceu nem para Ulisses nem para Homero e que os dias me tornaram doméstico, sem vontade de convocar uma poderosa armada e ir pôr cerco à primeira Tróia que apanhasse à disposição, para depois ficar prisioneiro da ninfa Calipso e, quem sabe, deixar-me cair na tentação da imortalidade. Sem Tróia para conquistar nem Calipso para me salvar, escrevo sobre a luz nas folhas das oliveiras, o ondular das ramadas sob o capricho do vento e outras aventuras, como a dos pássaros que falam à minha janela, a de um carro que buzina ou a da mulher da máscara verde água que atravessa a passadeira e chega exausta ao outro lado da rua, como se tivesse chegado ao outro lado do mundo. Hoje é segunda-feira, dia 4 de Maio. O país desconfina-se, desenrola-se mascarado, as pessoas entoam loas à normalidade, como se a anormalidade não fizesse parte da norma. Eu não sei o que fazer com tudo isto, sem uma Tróia para saquear, uma Roma para fundar ou um caminho marítimo para Índia a descobrir. Apenas conheço os caminhos dentro de casa e não me esqueci da porta da rua. E isso talvez fosse motivo para toda uma literatura, para a qual me falece o talento e a vontade.
domingo, 3 de maio de 2020
Desejos e factos
O café da praceta aqui em baixo ostenta, num dos vidros, a palavra
aberto e, num biombo exterior que serve de anteparo ao vento norte, a palavra open. Tentei descobrir se utiliza outras
línguas, mas do meu posto de observação foi impossível fazê-lo. O certo é que
não montou esplanada como teria feito se este fosse um dia quente de Maio de um
outro ano. Não descortino pessoas a rondá-lo e, na verdade, não posso jurar que
esteja aberto, pois não consigo ver-lhe a porta. Talvez seja a expressão de um
desejo e não um facto. Entre ontem e hoje vi três filmes de Werner Shroeter. Em
dois deles a trama narrativa é tão ténue que nos obriga a ver os elementos que
compõem a mistificação que é o cinema. Imagens, cores, vozes, a babel das línguas,
música, luz, sombra. No entanto, o fascínio é enorme, tal como o é o provocado
por certa pintura que deixou de lado a figuração e com ela a trama narrativa
que aquieta os espíritos. Com este sol não devia entregar-me a considerações
estéticas, antes descrever a reverberação do mundo, a incidência dos raios
solares em paredes e telhados, o brilho da folhagem das árvores sob a luz, os
fungos das paredes ainda não iluminadas. Nos filmes de Shroeter, nos que vi, o sofrimento
humano tem por contraponto o sofrimento de Cristo, como se o autor quisesse
encontrar uma acomodação para a dor humana ou estivesse a apontar um dedo para
a impotência do sacrifício do filho de Deus para pôr fim aos sacrifícios
humanos. Nenhuma destas interpretações é explícita, mas são ambas possíveis e
talvez nem se excluam, mas o que sabemos nós daquilo que vemos se os nossos
olhos nos enganam e os nossos desejos toldam a razão? Hoje é domingo, dia 3 de
Maio. O estado de emergência acabou, mas isso será mais um desejo colectivo do
que um facto. Se for à rua, entretanto, hei-de confirmar se o café está aberto ou
mesmo open. Isto também é um desejo,
mas tão pouco intenso que o mais provável é esquecê-lo. Estamos já bem dentro
da casa de Maio. Quem diria?
sábado, 2 de maio de 2020
Flores e temperaturas altas
Ontem ao passar de carro pela avenida marginal deparei-me com os castanheiros em flor, uns florescem em branco e outros, em rosa velho, embora não esteja certo da designação da cor dos últimos. Os jacarandás do adro do que foi a Igreja de Santa Maria só florirão para o fim do mês ou no início de Junho. Há muitos anos que cultivo estes dois eventos. Também me dá bastante prazer ver as buganvílias a florirem paredes acima. Juntamente com o friso das orquídeas são toda cultura que tenho acerca do mundo em flor. Por vezes, lembro-me de haver nas casas em que vivi plantas com nomes como aspidistras, árvores da borracha e costelas-de-adão. Haveria outras, mas já não consigo encontrar-lhes a denominação. Pertenciam a um mundo maternal e nunca achei que me dissessem respeito. Leio que no Ribatejo a temperatura pode chegar aos 37 graus. Fico em transe. Entre mim e as temperaturas elevadas há um conflito insanável. Nem o corpo nem o espírito as suportam. Não sei de onde vieram parte dos meus genes para que isto seja assim. Há gente que canta aleluias quando chega o calor, eu uso a blasfémia e linguagem visceralmente baixa. Logo irei ver o meu neto, à distância, pois agora tudo o que era próximo se deve dar no distanciamento. Não tarda e é hora de almoço. Não fiz nada do que tinha programado para a manhã de hoje. Guardei para amanhã, ao contrário do que me ensinaram na escola primária, num célebre conselho dado por um astuto advogado a um pobre camponês, se não me falha memória. Hoje é sábado, dia 2 de Maio. As pessoas continuam a beber, pois acabei de escutar o barulho de garrafas a cair num vidrão. Para passar o tempo, vou descobrindo quem era Micol, uma bela rapariga que habitava numa casa que possuía um jardim. E vejo cinema.
sexta-feira, 1 de maio de 2020
De perdigoto a gotícula
Se fora apenas um problema onomástico, estávamos mais
descansados. Não é. Aquilo que era designado com condescendência por perdigoto
tornou-se nestes dias em gotícula. Perdigotos eram coisas desagradáveis, claro.
Não conheço quem queira receber perdigotos ou mesmo quem os queira lançar.
Podemos dizer que eram seres acidentais, resultantes de um impulso, de uma
emoção incontida, de um excesso de entusiasmo do orador na sua eloquência. Um
acaso fruto da distracção ou do esquecimento das regras da etiqueta. Ou de
qualquer outro motivo fútil. Nisto não se distinguem os perdigotos dos seres
humanos. Agora que o pobre e inofensivo perdigoto passou a gotícula, deu-se
nele uma terrível metamorfose, uma alteração ontológica. Mudou de natureza e a
natureza de uma gotícula pode ser letal. O perdigoto, ao renomear-se,
transformou-se num homicida em potência, senão mesmo em acto. Começar Maio com
pensamentos destes não é um bom augúrio sobre a sanidade mental de ninguém. Se
eu fosse dado à filosofia, poderia dedicar longas meditações à ontologia do
perdigoto, agora gotícula, se ele é um ser em si ou mesmo um ser para si, mas
evito estas ruas esconsas, cheias de becos, alguns sem saída, onde se pode ser
apunhalado pelas costas ou levar com uma chusma de perdigotos. Entrego-me às
grandes avenidas, cheias de claridade e distinção, por onde se passeia sem que
se pense seja no que for. Uma contrariedade, não das menores, é viver, como me
acontece, num sítio onde não existem avenidas grandes e amplas, apenas avenidas
pequenas, quase acanhadas, tão tímidas que ruborescem sempre que se lhes chama
avenida. Nelas, o pensamento é obrigado a trabalhar e depois cai na vexata quaestio do perdigoto, da
gotícula, da nuvem de gotículas que faz lembrar a nuvem electrónica, o que é
uma deriva que conduz ao alçapão da mecânica quântica, que, apesar da incerteza
de tudo, não é chamada para aqui. Hoje é sexta-feira, dia 1 de Maio. É feriado
como acontece sempre que é 1 de Maio. Desde 18 de Março que registo aqui a
data, temo que se tenha tornado um hábito e, como se sabe, o hábito é uma
segunda natureza. Também esta última frase é plágio, mas continuo a omitir os
autores que plagio.
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