quinta-feira, 14 de maio de 2020

Bátegas de água e dicionários

Olho pela janela como se estivesse confinado. Um forte aguaceiro rompe o sossego com que o dia desliza para o fim. Uma bátega de água. Assaltou-me a curiosidade e fui tentar saber de onde vinha a palavra. Ela tem dois sentidos. Quando significa bacia, terá vindo do árabe bâtiya, mas se significa chuvada a origem obscurece-se. O dicionário da Porto Editora alvitra que pode ter vindo de bater. O Houaiss, apesar de sublinhar a origem controversa do vocábulo, adianta que é uma derivação por analogia. Imagino que seja a confissão de um acordo com o que diz o da Porto Editora, mas não afianço. Quando apareceu em Portugal, comprei o dicionário Houaiss. Seis volumes em papel com uma letra tão pequena que só de olhar para ela uma pessoa começa a fantasiar dores de cabeça. Há muito que não lhe toco. Comprei uma versão digital e é essa que utilizo. Evita-me dores de cabeça e o trabalho incerto de encontrar a palavra no seu lugar alfabético. Basta digitá-la e, como num filme de fantasia, ela aparece, com a informação, a idade e até a origem, mesmo se obscura. É um dicionário perfeito para quem se interesse por coisas inúteis. Qual o primeiro registo escrito conhecido de uma palavra? Ele informa. Bátega, 1525. Já bateria terá sido em 1546 e batente em 1456. Como se vê, este conjunto de inutilidades é de uma enorme importância num tempo em que as pessoas estão obrigadas ao jogo do confina e do desconfina, rodeadas de bátegas de água. O pior, e isso ocorre muita vezes, o dicionário recusa dar informação. Guarda-a para ele. É inútil discutir. Parou de chover. Em Portugal, segundo o Houaiss, chove por escrito desde 1262. No meu telemóvel pipocam mensagens. Sim, eu posso dar a informação. Pipoca, primeiro registo em 1781. Hoje é quinta-feira, dia 14 de Maio. O mês aproxima-se do meio, mas não entendo sequer o que quero dizer com isso. Desconfio que existe na sociedade uma ofensiva contra o calendário. Algum grupo radical está apostado em devolver-nos à pura duração, a esse momento paradisíaco em que ainda não tínhamos esquartejado o tempo para o contar. Talvez amanhã consiga escrever um texto menos idiota. Há que não desesperar.

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