terça-feira, 12 de maio de 2020

Em estado catatónico

Tenho uma relação difícil com a burocracia. Possuirei alguns genes avariados, ou mais avariados do que a norma, que me colocam em estado catatónico mal tenha que tratar de guias, certificados, certidões e o mais que uma imaginação delirante passa a vida a conceber. Dou de barato o pagar e o repagar, mas a fina trama onde se tece toda a relação com o leviatã ultrapassa-me, excede a pobre inteligência que me foi concedida e activa em mim alguma hormona que me põe à beira de um colapso. É verdade que mesmo aqui se manifesta a minha propensão para hipérbole, e isso é ainda mais idiossincrático do que a desavença com a tirania da administração. Suspeito, mas é apenas uma suspeita, a existência na minha alma de uma herança anarquista. Algum avô longínquo, no segredo da sua juventude, terá sonhado terras sem poderes ordenadores. Por causa de tudo isto fui à rua, uma viagem sem sentido e quando cheguei ao destino o destino só se abriria para mim caso tivesse feito marcação. Sempre achei que não somos nós que marcamos a hora, mas talvez tenha existido alguma metamorfose ontológica e o destino se tenha tornado complacente dando a oportunidade de negociar a hora em que se dispõe a atender-nos. Ainda não me habituei à nova realidade e talvez viva num tempo que já acabou. Bem me esforço por bater à porta da nova era, mas as minhas pancadas são demasiado leves para que sejam escutados no reino nascente, onde as festas são de tal maneira luxuriantes que não há porteiro que escute quem quer entrar. Como se vê, a pendência burocrática não me dá ensejo a dizer seja o que for com nexo. O sol que encontrei na rua era desagradável, quente e doentio, havia nele catarro e um ar amarelado que não me dispôs melhor do que estava. A cidade cheia de carros, os castanheiros da marginal exuberavam na floração e não vi ninguém conhecido. Espero em desespero um email que me há-de salvar, indicar-me-á o caminho onde me esperarão umas guias que me hão-de conduzir à caixa multibanco ou, se tiver juízo, ao conforto do homebanking. E eu que queria falar da palavra cavanhaque e de um certo general francês, enrodilhei-me em mais uma triste história. Hoje é terça-feira, dia 12 de Maio. Ganhei o hábito de fazer de calendário e não há quem me faça perder o vício. Num apartamento vizinho alguém se apaixonou pelo aspirador e arrasta-o dengoso casa fora. Infinitas são as parafilias, mas recuso-me a fundamentar tal afirmação.

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