sexta-feira, 1 de maio de 2020

De perdigoto a gotícula

Se fora apenas um problema onomástico, estávamos mais descansados. Não é. Aquilo que era designado com condescendência por perdigoto tornou-se nestes dias em gotícula. Perdigotos eram coisas desagradáveis, claro. Não conheço quem queira receber perdigotos ou mesmo quem os queira lançar. Podemos dizer que eram seres acidentais, resultantes de um impulso, de uma emoção incontida, de um excesso de entusiasmo do orador na sua eloquência. Um acaso fruto da distracção ou do esquecimento das regras da etiqueta. Ou de qualquer outro motivo fútil. Nisto não se distinguem os perdigotos dos seres humanos. Agora que o pobre e inofensivo perdigoto passou a gotícula, deu-se nele uma terrível metamorfose, uma alteração ontológica. Mudou de natureza e a natureza de uma gotícula pode ser letal. O perdigoto, ao renomear-se, transformou-se num homicida em potência, senão mesmo em acto. Começar Maio com pensamentos destes não é um bom augúrio sobre a sanidade mental de ninguém. Se eu fosse dado à filosofia, poderia dedicar longas meditações à ontologia do perdigoto, agora gotícula, se ele é um ser em si ou mesmo um ser para si, mas evito estas ruas esconsas, cheias de becos, alguns sem saída, onde se pode ser apunhalado pelas costas ou levar com uma chusma de perdigotos. Entrego-me às grandes avenidas, cheias de claridade e distinção, por onde se passeia sem que se pense seja no que for. Uma contrariedade, não das menores, é viver, como me acontece, num sítio onde não existem avenidas grandes e amplas, apenas avenidas pequenas, quase acanhadas, tão tímidas que ruborescem sempre que se lhes chama avenida. Nelas, o pensamento é obrigado a trabalhar e depois cai na vexata quaestio do perdigoto, da gotícula, da nuvem de gotículas que faz lembrar a nuvem electrónica, o que é uma deriva que conduz ao alçapão da mecânica quântica, que, apesar da incerteza de tudo, não é chamada para aqui. Hoje é sexta-feira, dia 1 de Maio. É feriado como acontece sempre que é 1 de Maio. Desde 18 de Março que registo aqui a data, temo que se tenha tornado um hábito e, como se sabe, o hábito é uma segunda natureza. Também esta última frase é plágio, mas continuo a omitir os autores que plagio.

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