Entardece. Escrevo esta palavra como se ela contivesse um
destino, como se o pôr-do-sol, ainda por chegar, anunciasse um crepúsculo
final, ao qual se seguiria a noite eterna. Este pathos que enterneceu gerações tomadas pela angústia existencial é
uma falsificação. As tardes são seguidas pelas noites e estas pelas auroras que
trarão manhãs que declinarão e ao meio-dia hão-de morrer nos braços da tarde,
numa monotonia sem fim. Não estava previsto que o narrador se entregasse a
estas divagações, que tentasse raptar os leitores do contacto com a vida, para
os enrodilhar em assuntos que não movem o mundo e, por isso, não interessam a
ninguém. Muitas foram as vezes que escutei isso não interessa ao Menino Jesus,
numa tentativa blasfema de limitar os interesses do filho do Homem.
Afastemo-nos do território escorregadio da teologia. Uma conversa chega aos
meus ouvidos. Vem cheia de realidade. Um drama qualquer, vidas desestruturadas,
gente perdida, abandonada pelos deuses. Gente desnorteada, oiço. Há exclamações
de espanto, comiseração, enquanto uma sombra se prolonga pela rua, pisada por um
transeunte de calções e boné que vai apressado para um encontro secreto,
imagino-o pelo andar comprometido, o olhar furtivo a espiar horizontes. Caio em
mim e digo-me que ninguém vai para um encontro secreto de calções e boné. Um
gato equilibra-se no muro, dá uns passos, procura uma mancha de sol e deita-se.
Dedilho o calendário e descubro que há dois feriados seguidos, um cívico e
outro religioso. A cada um a sua liturgia. As vozes não se calam, a desgraça é
infinita e o vozear limitado. Hoje é terça-feira, dia 9 de Junho. Enrolo-me na
tarde, esqueço o infortúnio, ponho de lado as tragédias e sento-me. Hei-de
abrir um livro e começar a ler ou pego em mim e obrigo as pernas a porem-se em
movimento.
terça-feira, 9 de junho de 2020
segunda-feira, 8 de junho de 2020
Um grito escalofriante
A sala é desmesurada para o meu tamanho, para a experiência que
tinha do mundo. Ao fundo, um friso de professores com ar inóspito, mapas nas
paredes. Depois de mostrar sabedoria sobre as produções das províncias
ultramarinas, um eufemismo em voga, vou para o quadro negro. Vestido com bata
branca, um dos oficiantes inquire-me sobre questões esotéricas, tais como
aritmética, geometria. Escrevo na ardósia, resolvo problemas, faço contas,
desenho figuras, apago. O cabelo do interrogador era branco, talvez tivesse
sido louro, e a face rubicunda, com ar severo que lhe sublinhava a dignidade,
apesar do tom rosáceo da pele. Havia espectadores numa bancada improvisada. Não
podiam, suponho, aplaudir ou patear, mas guardar reverente silêncio. Estou ali solitário
perante um tribunal que me julgará sem piedade. Faltavam-me ainda uns meses
para ter dez anos. Isto não foi um pesadelo, mas uma memória antiga que
irrompeu em mim depois de almoço. Por vezes sou assaltado por fragmentos do
passado, coisas mortas que ressuscitam, sem que eu saiba como. Vêm da terra do
esquecimento, abrem caminhos sinuosos e desembocam na grande praça da
consciência. Não sei o que fazer deles. Se a minha fosse uma alma de
coleccionador juntava-os para os catalogar e depois arrumar numa vitrine e os
contemplar de quando em vez. Estou a falar de um tempo muito arcaico, onde a
vida ainda era regulada por ritos de passagem, mas do que tenho saudades é de
uma certa literatura de aventuras do oeste, livros pequenos, com 64 páginas e
seis desenhos, letras minúsculas, organizados em colecções com nomes como 6
Balas, Cow-Boy, Fúria dos Bravos e, supremo encanto, Gatilho. Naqueles dias em
que as férias se prolongavam por três meses, as tardes de calor eram
enfrentadas com a pistola na mão e o dedo no gatilho. Se havia pandemias, não
me informavam, mas os bons ganhavam sempre aos maus e a justiça não era uma
quimera. Não me perguntam, mas se perguntassem que livros influenciaram o meu
gosto literário, diria de imediato os da colecção 6 Balas ou Fúria dos Bravos.
Como é que se pode ler Kafka, Mann ou Dostoiévski, se nunca se leu Um Milionário no Far-West ou A Terra das Caveiras? Sim, é verdade,
não tenho assunto. Hoje é segunda-feira, dia 8 de Junho. A temperatura está
moderada e o sol cordato. Leio: Recuperando
o revólver, despejou a carga sobre o segundo assaltante, quando este tentava apanhar
Bill Shaterly desprevenido, no momento em que carregava a arma. O meliante
soltou um grito escalofriante – isso mesmo, escalofriante – e, em seguida, caiu de bruços, com o
estômago perfurado (Uriah Moltan, Matar
ou Morrer). Se o leitor não sabe o que é escalofriante nem tão pouco um
escalofrío, recomendo um dicionário de espanhol. Eu também não sabia.
domingo, 7 de junho de 2020
Não dar por nada
Uma vertigem, daquelas que se sentem quando se bebeu um
pouco, mas não tanto que não se permaneça no estado de sobriedade. Depois, uma
sonolência que não pára de atormentar as pálpebras, incitando-as a cerrarem-se,
a cortarem-me as imagens do mundo, como se me tivesse esquecido de pagar a
conta na operadora que prodigaliza os serviços de televisão. Olhei pela janela
e a paisagem pareceu-me uma pintura de um pintor que muito se cultua por aqui,
como se fosse um santo. O pior é que o lugar dos pintores não é o altar. Ele
esteve em Paris, que é um lugar certo para pintores do tempo dele, naqueles anos
em que tudo efervescia e as artes plásticas sofreram tal revolução que uma era
nova começou. Ele não deu por nada. Talvez seja por isso que muito se gosta
dele. Cultivamos com esmero quem não dá por nada e persistimos em não dar por
nada. Uma luz esbranquiçada dilacera a tarde, abre-lhe sulcos, pequenos veios
por onde deslizam os raios solares, sombras se algum objecto se interpõe pelo
caminho. Uma das coisas mais inúteis que o homem inventou foi as instruções.
Mesmo as mais claras e distintas não servem para nada. Não há quem as escute ou leia.
Quem teve a ideia de criar instruções para facilitar a execução das tarefas
sobrevalorizou a humanidade. Ninguém quer saber de instruções para coisa alguma.
As pessoas preferem a tentativa e erro do que a comodidade de seguir uma instrução.
Têm à sua frente a eternidade para fazerem aquilo que, seguindo as indicações
coligidas com amor e destreza, se faria num abrir e fechar de olhos. Não sei o
que me deu para estar aqui a moralizar. Deveria pegar em mim, pôr a máscara
descer no elevador, tirar a máscara e ir ao campo comprar laranjas. Do outro
lado da avenida, um jacarandá está exuberante. Deixo os olhos presos nele por
alguns instantes, depois movo-os em direcção ao castelo e recolho-os em mim,
fechando as pálpebras. Hoje é domingo, dia 7 de Junho. A semana que entra será na
utilidade mais curta, mais sensata, pois também as semanas podem ser
insensatas. Vou comprar laranjas ao campo ou limões à praça, desde que não
necessite de instruções, pois também eu não as escuto ou leio. Eu bem tento
encurtar os textos, mas depois esqueço-me.
sábado, 6 de junho de 2020
Um dia estragado
Acordei a desoras. A manhã corria já desenfreada para a tarde quando me levantei. Não gosto de estar na cama para além das nove da manhã, e isso apenas em dias excepcionais, mas uma insónia deu-me oportunidade para ler durante o amanhecer umas duas horas. Depois adormeci e foi o que se viu. Um dia estragado, pensei ao pôr os pés no chão e ir abrir a persiana da porta que dá para a varanda. Valeu-me ao humor a benevolência da balança. Continua cordata, evitando insultar-me ou entregar-se ao culto da hipérbole. Fui às compras numa grande superfície. Como numa festa de Carnaval, estava toda a gente mascarada, mas agora a dança tem uma nova particularidade. Os corpos afastam-se em vez de se aproximarem. Os passos não visam o encontro harmónico mas o afastamento prudente. Também é verdade que ninguém vai a um hipermercado para dançar, mesmo que seja com a rapariga da caixa. Um dia destes escrevo um ensaio sobre o erotismo em tempo de pandemia. Levantar tarde, tarde almoçar. Fico a olhar para estas palavras, com vontade de as apagar, mas resisto. A caixa de email está a sofrer um ataque aéreo. Parecem bombas a cair nela. Terei de lhe dar alguma atenção, montar as antiaéreas e começar a disparar sempre que o inimigo enviar um email. Ontem tive uma revelação. Estive tentado em escrever epifania. Um anúncio mostrou-me o caminho da salvação. Apregoava um dispositivo que se coloca em cima da página do livro e a ilumina, permitindo a leitura sem perturbar o sono de quem, ao lado, ainda há pessoas que dormem com outras ao lado, de quem, dizia, tenha dificuldade em dormir com luz. Apressei-me a comprar, mas segundo me informaram vai demorar tempo a chegar. Vem de longe, tem muito que andar. Só espero que não se transvie no caminho, pois não há coisa pior do que perder aquilo que nos pode salvar. Hoje é sábado, dia 6 de Junho. A temperatura está amena, a luz remeteu-se à sobriedade e o mundo rumoreja em diálogo com uma máquina doméstica que se excede no zelo para que foi criada. Até uma máquina foi criada para alguma coisa, só eu é que ainda não percebi para que fui criado. Não blasfemes, diz-me a consciência. No telemóvel, uma aplicação pergunta-me se eu quero optimizar as fotografias. Respondo-lhe que gostaria de optimizar muitas coisas, mas as fotografias podem ficar como estão. Não blasfemo.
sexta-feira, 5 de junho de 2020
A realidade está de volta
Depois de almoço, o estilete de cristal do sono perfurou-me as têmporas e a cabeça descaiu, o queixo tombou contra o peito e devo ter ressonado. Se sonhei, não dei por isso. Quando acordei, um fio de baba corria-me da boca, mas há coisas em que convém ser parco na descrição. O computador tinha hibernado e aquilo que eu estava a fazer congelou. Terei agora de recorrer ao micro-ondas para o descongelar, para o retirar da gélida petrificação em que caiu. O mais acertado seria também meter-me no aparelho e descongelar-me, para ver se me ocorre alguma coisa que faça sentido. Tenho uma revista em cima da secretária há mais de duas semanas. Tinha intenção de ler um artigo, mas olho a capa onde a prosa se anuncia, encolho os ombros e passo para outra coisa. Noutra altura, penso. E se essa altura nunca chegar, por certo não perderei grande coisa. A realidade está de volta ao lar dos portugueses. Voltou o futebol, a metafísica da bola na trave, a estética do fora-de-jogo e a ontologia da bola na mão ou mão na bola. Pressinto uma parte da pátria apaziguada, depois de uma longa ressaca. Não deveria tecer comentários jocosos sobre uma indústria tão poderosa e que alimenta tanta gente. Cada um aguarda a morte como quer ou pode e há coisas piores do que a bola, que ao menos é redonda, e nisso está, como bem sabiam os gregos, toda a perfeição. Nos relatos de futebol que eu ouvia na infância, pois também eu tive infância e gostei muito de futebol, os locutores tratavam a bola por esférico. Hoje não sei se continuam influenciados pela geometria ou se a origem das metáforas com que narram o jogo será outra, mais rude, mais de acordo com uma massa que não suporta erudições. Isto são suposições de um velho que, vendo a areia da ampulheta a correr demasiado depressa para seu gosto, é tocado pela equívoca nostalgia dos bons velhos tempos, como se os tempos alguma vez fossem bons. Bom é aquilo que não muda, que não se move, que não corre, e o tempo não pára de mudar, mover-se, correr como uma lebre perseguida por um cão de caça. Esta triste analogia venatória era dispensável, bem o sei, mas foi a que consegui. Hoje é sexta-feira, dia 5 de Junho. O fim-de-semana anunciou-se e sinto calor. Se abrir uma janela, talvez a temperatura desça. Anoto na agenda não dormir após o almoço e nunca mais usar expressões ridículas como o estilete de cristal do sono. Um vómito.
quinta-feira, 4 de junho de 2020
Sem nome
As ruas embrulham-se no ruído de antigamente. Vozes, rumores
de automóveis, roncos de motociclos sempre indispostos, gritos de crianças. Os
pássaros calaram-se. Estarão em algum estúdio a calibrar a potência do canto
para se sobreporem à novo situação. Com ímpeto muito moderado, avanço por
dentro de O Jardim dos Finzi-Contini.
Tendo lido já mais de cinco sextos do romance há um problema que não deixa de
me assaltar. Desconheço o nome do narrador – um narrador autodiegético, daqueles
que são protagonistas da história – e não faço a mínima ideia se alguma vez o
nome é referido ou não. Compenso-me imaginando que, por uma questão de contenção,
se tenha abstido de se nomear. Se for assim, compreendo-o muito bem, pois eu
também sou um narrador que não me autonomeio. Não porque seja contido, mas
porque sou destituído de nome. É possível que um dia, ao escrever mais um
destes textos infelizes, descubra o nome que me hei-de dar. À minha frente
tenho correspondência. Orçamentos para obras e uma carta de uma seguradora.
Tudo isto é cansativo. As cláusulas do orçamento, a informação de que ao preço
indicado acresce IVA, segundo as tabelas em vigor, as letras invisíveis da
seguradora, aquilo que ela segura e o que larga de mão. Não tivesse eu almoçado
há pouco e o sono não me chamasse, teria aqui uma grande oportunidade para
meditar sobre a prisão do mundo da vida nas malhas intrincadas da burocracia.
Que belas analogias haveria de fazer com os romances de Kafka ou com alguma das
distopias que a imaginação humana criou. A sonolência, porém, impede-me
meditações a esta hora. Tenho há dois dias um livro, ainda embrulhado, em
quarentena numa varanda. Desconfio que não devo estar bem, mas resisto em libertá-lo
do papel que o envolve. Hoje é quinta-feira, dia 4 de Junho. O tempo por aqui
está ameno, as horas deslizam sorrateiras, um casal passa na praceta em passo
cambado, ele à frente, ela atrás, cansados um do outro, esquecidos da ilusão
que os juntou. Um cão uiva e nesse uivo está toda a sabedoria do mundo.
quarta-feira, 3 de junho de 2020
A conquista da glória dos altares
Da gárgula escorre uma água suja, malcheirosa. Abre um sulco
na terra, um ribeiro minúsculo, e desliza sem pressa para ir morrer num buraco
fétido, coberto de ervas e arbustos secos. Não faço ideia de que sonho faz
parte esta descrição, pois raramente me recordo dos sonhos, mas não tenho
dúvidas que se extraviou de algum e começou a dançar dentro de mim, até que
saiu em forma de texto, antes que a sua pestilência destilasse e se
transformasse numa bebida amarga e venenosa. Lá em baixo, há vozes. Um homem,
pelo menos um, e uma mulher conversam. A voz dela ouve-se menos, é mais exígua,
quase sumida dentro do silêncio. Ele enche a praceta com um som redondo,
saltitante, como se fosse uma bola excessivamente cheia. Há risos de
conveniência, hesitações. Pela primeira vez em muitas semanas fui ao sítio onde
oficio um ritual que me permite enfrentar a terrível necessidade. Ao sair de
lá, estive tentado em ir a uma pastelaria. Lembrei-me da velha disputa com a
balança e contive-me. Há que cultivar a paz. Ao chegar ao prédio onde vivo
tomei a decisão de evitar o elevador e dispus-me a subir os cinco andares que
me separam da terra. Ao entrar em casa, pensei que subir aos céus é muito árduo
e pessoas haverá com pernas tão fracas que desistem a meio do caminho. Talvez a
santidade seja uma questão de musculação dos membros inferiores, um trabalho contínuo
de ginásio, onde os candidatos à glória dos altares encontrarão os seus personal trainers. Agora que esses
templos do músculo reabriram, não lhes hão-de faltar devotos ansiosos de ganhar
vigor para subirem ao céu. Não se pense que sou dado à blasfémia. Não sou. O
que acontece é que nem sempre me ocorrem metáforas decentes e então pego no que
me vem à cabeça, e aquilo que vem à cabeça das pessoas raramente é coisa que se
recomende. A rede de internet está a irritar-me e, como se sabe, a impaciência não
ajuda a subir a escada que nos leva ao alto. Hoje é quarta-feira, dia 3 de
Junho. Este é um mês cuja função nunca percebi. Serve para quê? Daqui a uns
minutos vou videoconferenciar. Respiro fundo e digo-me que isso é como ir ao
ginásio para treinar os músculos das pernas para subir aos céus. As persianas
tamborilam batidas pelo vento, enquanto as folhas das acácias tremem como se
sofressem de uma doença degenerativa. Não sofrem.
terça-feira, 2 de junho de 2020
As frívolas amenidades
Retornei ao meu caderno cor-de-laranja. Tem uma fotografia na
capa, mas não entendo o alcance de lhe terem maculado a lisura com uma imagem.
Nas folhas por mim escritas há um registo sobre os escrúpulos de Joachim
perante a natureza erótica do casamento. Refiro-me ao acontecimento e não à
instituição. Tenho de voltar ao romance de Broch. É uma pena as coisas que
lemos não ficarem registadas na mente. Fazia-se uma pesquisa, clicava-se no link neuronal e o texto deslizava na
consciência. Sempre desconfiei das analogias entre o hardware e o cérebro. Pode acontecer que façam sentido, mas o software que uso seja de tão má qualidade que não
consegue gerir a memória. Tenho uma série de coisas inadiáveis para fazer, mas
a única coisa que me apetece fazer é adiá-las. O mundo anda desassossegado,
cheio de algazarra, mas sobre isso estou impedido de falar pelo autor. Nada de
política por aqui, diz-me ele e eu, como narrador obediente, cumpro-lhe a
vontade. Um dia ainda hei-de escrever sobre a autonomia do narrador e as
estratégias do autor para o reter e escravizar. Há pouco, quando fui espreitar
as ameias do castelo, reparei que a orquídea branca está carregada de botões,
gera-os como se fossem filhos e ela estivesse continuamente grávida. É uma
orquídea parideira, pensei. O castelo parece estar exactamente no mesmo sítio
em que se encontrava ontem, mas talvez seja uma ilusão. Volto ao caderno
cor-de-laranja e encontro dislates como o que diz ao sujeito, a errância afasta-o do caminho. Aos outros, afecta-os e
surge-lhes como um mal, uma violência, uma violação. Não é de hoje a minha
tendência para a hipérbole. Que raio queria eu dizer quando escrevi aquilo, se
é que fui eu que usei a minha letra para o escrever? Hoje é terça-feira, dia 2
de Junho. O dia está ameno e penso que são as frívolas amenidades que nos
salvam uns dos outros. Não posso continuar a adiar o inadiável.
segunda-feira, 1 de junho de 2020
A força do prefixo des-
O país desconfina-se, descontrai-se, ansioso por fugir à
desconsolação dos últimos meses. Nunca é demais admirar a pujança do prefixo
des-. As línguas parecem possuir arquitectos poderosos que em segredo lhes
pensam as artimanhas e as tornam eficazes para dizermos aquilo que queremos que
oiçam. Alguém pergunta-me que balanço faço disto tudo. Quando diz disto tudo
faz um gesto englobante e eu percebo que os gestos também são significantes possuidores
dos seus significados. Respondo que balanços não são o meu forte e a
contabilidade é um assunto esotérico para o qual não estou iniciado. Respiro, o
ar está quente. Estive junto ao mar durante o fim-de-semana, o ar era fresco e
eu pensei que talvez o Éden fosse na Terra. Não fui à praia, lugar que dispenso,
mas caminhei bastante, até sentir o caminho nos músculos das pernas. Também elas
se vão desconfinando. Na praceta aqui em baixo oiço crianças, quase
adolescentes. Nas vozes não se nota vestígio do que se tem passado. Um incómodo
temporário na gestão dos rituais impostos pela idade. A temperatura ainda vai
subir até aos 27 graus. O silêncio de há umas semanas foi substituído pelo
rumorejo do trânsito. Ontem acabei de reler um romance em que a personagem
principal enlouquece e o filho é assassinado. Há vidas assim, mesmo as
romanescas, talhadas para desgraça, carcomidas lentamente pelo caruncho até que
desabam com um fragor tal que o barulho se ouve mil léguas em redor. Tenho nas
mãos um pequeno caderno cor-de-laranja. Nele está escrito: Cada ser humano tem
por fundamento o Urmensch, cada um de
nós representa uma limitação específica desse Urmensch. Não faço ideia o que teria bebido quando escrevi isso, e
se não bebera nada o caso ainda é mais grave. O melhor é rasgar a folha e
queimá-la. Hoje é segunda-feira, dia 1 de Junho. Continuo a vasculhar o
caderno, encontro umas anotações ilegíveis sobre Os Sonâmbulos, de Hermann Broch. Também sou um sonâmbulo. Pobre
Pasenow, penso eu para acabar esta conversa.
domingo, 31 de maio de 2020
Os falsos caminhantes
Hoje já andei seis quilómetros. Quase parecia um caminhante, mas ainda não consigo disfarçar o velho sedentário que habita no meu corpo. As almas podem ser classificadas sob diversos critérios, o que dá origem a um sem número de taxionomias e não menos controvérsias. Isto é do conhecimento geral, não estou a dar nenhuma novidade. Uma das classificações divide-as em dois tipos. Almas sedentárias e almas nómadas. A minha é completamente sedentária e quando me ponho a caminhar pelas ruas vê-se logo que se está perante uma falsificação. Se não o dizem abertamente é por convenção social, mas os verdadeiros caminhantes, ao verem-me, pensam lá vai um a tentar enganar meio mundo, sabe lá ele o que é caminhar. Têm razão, não sei, não faço a mínima ideia. Hoje andei mais de uma hora a falsificar a realidade, a disfarçar-me de andarilho, de alguém que se treina para fazer uma longa peregrinação ou então que há-de acabar na ignomínia de ser um turista que abre a boca por tudo o que é sítio, depois fecha-a e faz umas fotografias, para mais tarde recordar, embora não tenha nada para recordar. Os lugares também têm almas e estas são avaras e avessas a darem-se a conhecer à alma nómada do turista. O melhor é evitar estas meditações, não vão pensar que sou algum sociólogo. Tenho muitos pecados e defeitos, mas não esse. Imagino que vou almoçar tarde. Aproveito para pôr algum trabalho em ordem e assim infringir o descanso dominical. Os pássaros meus vizinhos estão hoje dados à garrulice. Tagarelam sem parar. Tento perceber o motivo da conversa, mas não tenho ido às aulas sobre a linguagem dos pássaros e o essencial da disputa passa-me ao lado. Como é habitual, também isto não é novidade. Hoje é domingo, dia 31 de Maio. O mês está a acabar e não sei o que hei-de dizer dele. O mais sensato é seguir uma instrução proverbial escutada na longínqua infância. O calado vence tudo. Não me recordo de ser loquaz, mas nunca se sabe.
sábado, 30 de maio de 2020
Narrativa sem nexo
Há quem escreva longos poemas para desaparecer dentro deles, como se fossem um véu que a tudo ocultasse, o esconderijo seguro contra os bombardeiros inimigos que, a toda a hora, sobrevoam a cidade e deixam cair, sobre as cabeças incautas, bombas ovaladas. Estas explodem com o barulho de um cataclismo, ensurdecendo a população, dando vida à palavra catástrofe, fazendo florir em bocas desdentadas vocábulos como desgraça, desdita, desastre. Ainda é cedo para que alguém diga tragédia, pensa o poeta que, com a sua inclinação lírica, não tem um estro trágico. As deflagrações ouvem-se a grande distância, mas, ao longe, ninguém vê a fragmentação das casas, o estilhaçar dos vidros, a queda das paredes, os corpos despedaçados, as loiças escaqueiradas ou o poeta a tecer o poema, onde se esconde, traçando um labirinto, para que nele o inimigo, a que Ariadne nenhuma concederá o fio da vida, se perca e, com o passar dos dias, morra de fome, deixando um cadáver cada vez mais ressequido, que alguém milénios depois encontrará. Não me perguntem porque escrevi isto, pois não faço ideia. Uma razão plausível diz-me que não me tendo ocorrido mais nada aproveitei estas palavras que me foram saindo dos dedos, entraram pelas teclas e desabrocharam no monitor. A maior parte das coisas que acontecem acontecem assim, sem que os seus autores façam qualquer ideia da razão. Outra hipótese, a que não faltará verosimilhança, é que tudo se deva aos astros, a uma conjugação enviesada entre o Sol e a Lua, talvez a um amuo de Júpiter, ao rancor de Marte ou ao desejo de Vénus. Ó Afrodite Citereia! Esta exclamação pontuada é uma saudação, um tributo, quase uma oração. Não me peçam explicações. Hoje é sábado, dia 30 de Maio. O mês colocou o pescoço na guilhotina, espera apenas que o carrasco acerte as contas do serviço, coisa a que a arte de regatear trará a sua demora. São soturnas as metáforas que me ocorrem neste início de tarde.
sexta-feira, 29 de maio de 2020
Ir ao campo
O que me vale é que não tarda e estou a caminho de casa. O
texto começa mal. Não devia ter vindo ao campo. Cansa-me tanto bucolismo
mecânico. Motores por todo o lado, numa imitação infernal da música minimal
repetitiva, composta por alguém à beira da loucura. Fala-se do campo e as
pessoas imaginam cenas idílicas com pastoras e pastores, longos interlúdios
musicais e fogosos amplexos amorosos, ao som do chocalhar dos rebanhos e do
canto dos pássaros, como se aquilo fosse o jardim do Éden, cujas portas
tivessem sido reabertas. Não foram. Na cidade, ao menos respiramos um ar
poluído autêntico e sujeitamo-nos ao ruído, pois nunca nos foi prometido outra
coisa, a não ser o desatino desenfreado, o vício sem controlo, a maldição
eterna. Falo assim, como se vivesse numa grande metrópole, mas a minha cidade é
uma aldeia pequena, num recanto da província, onde passa um rio afável, em
cujas margens pescadores apanham peixes que logo devolvem ao fio de água que
serpenteia entre o casario. O campo não faz bem à escrita, puxa-me para o lugar
comum, aviva o provincianismo que me habita. Apiedo-me de mim. O fim-de-semana
caiu-me em cima e ainda não sei bem o que fazer com ele. Dos escritores
neo-realistas, há um de que gosto bastante, talvez o único. Carlos de Oliveira.
Pensava que tinha toda a sua obra e hoje descobri, já nem sei bem porquê, que
me falta o segundo romance, Alcateia.
Não sei se ele o renegou, pois os escritores têm destas coisas. Fazem filhos e
depois recusam-se a reconhecê-los. Talvez me ponha em campo e descubra a matilha
de lobos. Existirão outros encontros bem mais perigosos, podem crer. Hoje é
sexta-feira, dia 29 de Maio. Não faço ideia para que serve contar os dias, como
se existissem dias, semanas, meses, anos. Uma voz vinda dentro de mim diz-me
não sejas idiota, se não fossem contados, não existiriam. Continua a contar, ou
queres acabar com o tempo. Não percebi a agressividade da voz, mas obedeço.
quinta-feira, 28 de maio de 2020
Liquidem os objectos
Os objectos tornaram-se exercícios difíceis. Portas, maçanetas, chaves, corrimãos, botões do elevador, terminais de multibanco, puxadores, superfícies lisas e rugosas, garrafas de vinho e de azeite, pacotes de arroz ou de massa e todo o resto do mundo dos objectos desde que venham do desconhecido ou do conhecido exterior à caverna que habitamos. Há que ter cuidado, não tocar, desinfectar, colocar ao sol, à sombra, à chuva, dar-lhe o ar do meio-dia ou da meia-noite, pô-los em repouso, em quarentena, oferecer-lhes uma quaresma, para ressuscitarem no seu domingo de páscoa. Haveremos de enlouquecer com esta xenofobia sanitária, nesta nova selva com aparência civilizada, onde os tigres, leões e leopardos foram substituídos por um frasco de compota, uma embalagem de bolachas ou a garrafa de água que se compra na estação de serviço. Confesso que não sei o que me deu hoje para este tipo de peroração, mas ainda há dois meses e meio pegava nos objectos sem pensar e agora é o que é. Tudo se pode dividir entre o puro e o contaminado, como se as coisas tivessem uma natureza moral, dotadas de sexualidade e que devessem entregar-se na noite de núpcias em estado virginal, puras, intocadas, plenas de inocência. Talvez o melhor seja acabar com os objectos. Quando a temperatura sobe por estes lados, não afianço a qualidade do meu estado mental. O termostato que mede a febre da casa começa a aproximar-se de uma zona perigosa. Tremo só de pensar o que poderá esconder. Hoje é quinta-feira, dia 28 de Maio. Terei de fazer duas visitas, uma ao meu neto, a outra à sua bisavó. Devia poder juntá-los, mas ainda não vai ser hoje. Bebo água por uma garrafa-termo, o que me vale é que a tinha comprado no ano passado, naquele tempo em que se dispensava certificação moral às meras coisas.
quarta-feira, 27 de maio de 2020
Trocas neuronais
A primeira palavra que escrevi continha um erro ortográfico, fruto de uma associação que poupo aos leitores. Fiquei a olhar para o teclado e para dentro de mim, perguntando-me que estranhas conexões se passaram na mente para que os dedos, sem quererem saber da ordem que lhes dera, conquistassem autonomia para se submeterem a um outro senhor, cujos impulsos sendo meus me escapam. Sim, a psicanálise também vive disso, embora o caso seja já mais do foro do neurologista. O telhado esbranquiçado, talvez um cinza muito claro, do pavilhão desportivo da escola vizinha reverbera batido pela impiedade dos raios solares. Oiço uma máquina em manobras, talvez numas obras por perto, mas não a avisto. O dia desliza quente e sorrateiro. Na rua estão 34 graus e nem as sombras me convidam para sair de casa, embora o arvoredo da Sá Carneiro esteja exuberante. Por vezes os erros preocupam-me, não pela ortografia, mas por aquilo que eles revelam do estado do meu aparelho neuronal, caso possua um, coisa por provar. Os livros das estantes que me rodeiam têm o condão de me irritar. Não por eles, mas pelas ilusões que me levaram a comprá-los. Talvez exista em mim um pendor masoquista, pois os livros com os quais estou reconciliado estão longe da vista. À minha volta só fantasias e quimeras. Isso, porém, não interessa a ninguém e, além do mais, pode nem corresponder à verdade. Hoje é quarta-feira, dia 27 de Maio. As acácias já esconderam debaixo das folhas os ramos que o Inverno despira. Há árvores que não cultivam o pudor, a primeira das virtudes públicas que qualquer um deve ostentar para não cansar os outros. Os pássaros não se calam, numa cegarrega interminável. Podiam ir cantar para outra rua, mas essa já deve ter os seu tenores.
terça-feira, 26 de maio de 2020
A data em que a vida muda
Nunca sabemos a data em que uma vida muda, foi o que pensei
ao consultar o calendário. Nicolau II, da Rússia, foi coroado a 26 de Maio de
1896, não sabia ele que isso lhe iria marcar a fortuna e que o levaria a uma
morte infeliz e prematura, porque alguém, talvez sem saber o que fazer dele, se
lembrou de a antecipar. Vejo-o a ser coroado, rodeado pela corte, num quadro de
Serov e quase sinto vontade de lhe gritar para fugir dali, que renuncie à coroa
e vá dar uma volta pelo mundo com a Feodorovna. Calo-me, pois ele não me
ouviria. Somos sempre surdos para as palavras do destino, as potestades mais do
que os outros mortais. A cidade vai retomando os seus ruídos e rumores, o
gorgolejar da vida, o trânsito que se adensa, as gentes que se tomam de calores
e, mesmo de máscara cingida, se despem para o Verão antecipado. Chegou-me um
vídeo do meu neto. Sobe para uma cadeira, dali trepa para a cadeira de
refeição, senta-se no tabuleiro e pega num livro. Abre-o e faz um discurso,
como se lesse na mais estranha das línguas. Isto gerou um conflito de
interpretações acerca da performance
da criança. A avó ficou encantada com a teatralidade da leitura e o avô com a
destreza da subida. Homens e mulheres vêem o mundo de lugares diferentes, disse
eu, mas não estou certo se, ao escrevê-lo, não estarei a ofender algum
imperativo igualitário. Nestes dias, contentamo-nos com poucas coisas. Ontem
anotei que tinha de encolher estes textos. Até a mim me cansam. Hoje é
terça-feira, dia 26 de Maio. Outro mês que declina e com ele também a Primavera
começa a preparar as malas para um novo exílio. Os anjos insistem em
disfarçar-se de pássaros. Eu finjo que me iludem, mas sei muito bem que não são pássaros.
segunda-feira, 25 de maio de 2020
Paisagens despovoadas
Uma algazarra lá em baixo, mas as vozes calaram-se de
imediato e tudo voltou ao silêncio que tem, não sem insídia, marcados os
últimos tempos. Continuamos cercados por estatísticas e profecias, numa
loquacidade que ainda não esmoreceu, numa facúndia que não sofre desânimo. Cada
espécie grasna à sua maneira e a nossa não é excepção. A escola aqui ao lado
deve ter alunos, mas ainda não os avistei. Ter-se-ão contraído até se tornarem
uma sombra que evita chocar contra outra, não vá acontecer uma faísca e logo um
incêndio. A janela aberta deixou-me ouvir alguém espirrar num apartamento
contíguo. Hoje já videoconferenciei por duas vezes, o que me ocupou a manhã. Medito
sobre estes textos e pergunto-me se não me tornei num insuportável misantropo.
Não tenho heróis nem vilões, não descubro personagens a quem dar vida, como se
estivesse apenas interessado em paisagens das quais, para sua salvação, vou
eliminando a humanidade. Imagino-me a escrever romances apenas compostos por
paisagens, sem presenças humanas mas com acção. Árvores e animais tomam a
palavra, arquitectam traições e assassínios. Os elementos animam-se e dotados
de alma falam. A água e o fogo disputam entre si, a terra e o vento proclamam, uma,
a excelência da imobilidade, e, o outro, a primazia da inconstância. Outras
vezes são os móveis que tomam a palavra. As cadeiras discordam, as mesas
marcham em protesto e até um aparador julga ter direito a exprimir uma opinião
que ninguém lhe pedira. À minha frente tenho a terceira edição de um dos mais
extraordinários romances escrito em língua portuguesa, Finisterra – paisagem e povoamento, de Carlos de Oliveira.
Comprei-o em Lisboa no dia 9 de Outubro de 1979. Nesses dias ainda assinava os
livros que comprava e registava o dia da aquisição. Depois o amor à propriedade
e ao calendário feneceu. Leio: Ao fim da
tarde, um último raio de sol embate no nódulo da vidraça, pulveriza-se em
coágulos brancos, dispersa-se pelos cantos do quarto. E em tudo isto há tal
perfeição que acho uma bênção não ter personagens nos meus textos. Hoje é
segunda-feira, dia 25 de Maio. A rede mosquiteira que me protege da invasão dos
insectos está caída, será sensato ir compô-la, antes que um exército de melgas
encontre por aqui o seu campo de combate. Talvez amanhã descubra alguma
personagem para me alegrar a narrativa. Tenho de cortar no tamanho dos textos,
anoto.
domingo, 24 de maio de 2020
Aloquetes e cadeados
Leio mais devagar. Pareço arrastar a leitura não por
desinteresse mas por um qualquer motivo que desconheço. É possível que os olhos
se cansem, é possível que as coisas habituais estejam a perder sentido, é
possível qualquer outra razão que desconheço ou que quero desconhecer. É o que
acontece com a minha leitura de O Jardim
dos Finzi-Contini. Há pouco uma palavra surpreendeu-me. O narrador, para
que a bicicleta não fosse roubada, deveria colocar nas rodas um aloquete. Fui
ver quem tinha traduzido o livro. O poeta Egito Gonçalves, um homem que nasceu
em Matosinhos e morreu no Porto. Percebi de imediato a opção por aquela
tradução e não pela sulista e latina cadeado. A primeira vez que ouvi a palavra
foi no dia em que me apresentei num quartel da cidade do Porto para cumprir
serviço militar. Sempre achei a palavra inusitada, apesar da sua origem inglesa
e francesa. O dia encandeceu. O calor espalhou-se pelas ruas e anuncia os dias
tórridos que hão-de vir. No final da manhã, desci o viaduto de carro e passei
pela velha ponte medieval que permitia chegar ao centro da antiga vila. Em tudo
havia um ar dominical, até o sol vestia um fato domingueiro, como antigamente
as pessoas o faziam para ir à missa. Depois tornou-se de mau tom, ao domingo,
andar vestido de domingo, uma coisa de provincianos retardados e, como todos
nós provincianos retardados sabemos, ninguém quer passar por provinciano
retardado. Estou a repetir-me demasiado. No friso que lhes cabem as orquídeas
estão praticamente todas floridas. Apenas uma ainda retém as flores em botão,
como se persistisse em defender um segredo que não quer partilhar com ninguém. Hoje
é domingo, dia 24 de Maio. Tivesse eu poderes para tal e fechava todo este
tempo numa despensa escura e esconsa e depois trancava a porta com um aloquete,
atirando a chave para o oceano. Haveria então de me sentar na borda do poço que
havia na entrada da infância e comer nêsperas, caso as houvesse, ou magnórios
se estivesse no norte.
sábado, 23 de maio de 2020
Luz e trevas
Nada o homem receia mais do que ser tocado pelo
desconhecido. É com esta frase que começa o longo ensaio Massa e Poder, de Elias Canetti. Este pavor é o horizonte onde se
desenrolam as vidas humanas. A maior parte do tempo nem damos pela a existência
dele, mas se algo desconhecido nos toca, ele lança as garras de fora e o homem
treme e teme. Talvez tenhamos aceitado sem grandes problemas este tempo de
confinamento devido ao pânico que o desconhecido desencadeia nos nossos
organismos. Depois, como em tudo, cansamo-nos e, intrépidos, enfrentamos o
desconhecido, ou imaginamo-lo conhecido e o medo de por ele ser tocado vai-se
desvanecendo, não porque se é corajoso mas porque o hábito venceu o estado de
vigilância. Aos sábados dever-se-iam evitar estas meditações, não porque traiam
melancolia mas por serem sérias. O dia está quente, mas temperado pelo vento
que faz balançar os ramos das oliveiras e refresca a atmosfera. No friso das
orquídeas, a branca ainda tem flores, mas a folhagem está a amarelecer devido
ao esforço contínuo em florir. Fora ela mulher e seria mãe de vinte filhos. É
um enigma ela estar neste estado há bem mais de um ano e continuar a rebentar.
Imagino que também ela terá medo do desconhecido e por isso se protege na
caverna da floração. Se não estivesse mole, com os neurónios lânguidos, devido
ao calor, esforçar-me-ia por encontrar uma metáfora mais reluzente. Tenho
estado a ouvir Palestrina. Este tem uma peça denominada Missa do Homem Armado. Isso lembrou-me um outro músico italiano,
quarenta anos mais novo, Don Carlo Gesualdo, Príncipe de Venosa, que assassinou
a mulher, Maria d’Avalos, e fez assassinar o amante desta, Fabrizio Carafa,
Duque de Andria, ao apanhá-los em flagrante. Um crime de honra que animou os
finais do XVI. A primeira vez que ouvi a sua música, interpretada pelo The Hilliard
Ensemble, pensei que só um anjo luminoso a poderia ter composto. Muitas são as
trevas que se escondem na luz. Hoje é sábado, dia 23 de Maio. A tarde começa a
perder o fulgor e, não tarda, dobrará o joelho para que o inexorável carrasco a
decapite e a entregue ao reino das coisas que passaram. Também Maria d’Avalos
teria a sua luz e não terá tido tempo para perder o fulgor. Não devia ter
casado com o primo.
sexta-feira, 22 de maio de 2020
Do tédio e das papoilas
Chegou o fim-de-semana, mas agora tudo parece contaminado. A
semana entra pelo seu fim como se este fosse dado à utilidade. Aqui deveria
acrescentar e vice-versa, mas talvez não seja verdade que também o
fim-de-semana contamina os dias de labor. Num livro de um filósofo americano
leio que o tédio é um assunto sério e ele acrescenta pressuroso que a essência
do tédio reside em não termos interesse no que se passa. Tudo isto é dito
candidamente num ensaio sobre o amor. Uns sofrem de spleen, outros são atacados pela náusea e outros não se interessam
pelo que se passa. Não vou pensar sobre este assunto, mas talvez coleccione as
palavras para criar uma taxinomia de estados existenciais e poder usá-los
sempre que tenha oportunidade. Comecei a falar de contaminação, mas logo me
perdi por outros caminhos, como se a realidade se estivesse sempre a bifurcar-se
diante de mim, para que eu me perca nela e não encontre o caminho para casa.
Voltando ao magno problema da contaminação, também a noite contamina o dia com
as suas asas de seda negra e assim a luz vai tornando-se crepuscular, cheia de
tremores e hesitações, fazendo crescer as sombras até que tudo se apague e se
envolva no pez que uma existência entediada faz cair sobre o mundo. Há pouco vi
gente a entrar para o bar do outro lado da rua. Pergunto-me se já se poderá ir
beber uma cerveja, embora eu não goste particularmente dessa bebida de
bárbaros. Como é habitual, não me ocorre nada para dizer. Hoje é sexta-feira,
dia 22 de Maio. Ontem foi feriado, mas esqueci-me de o proclamar. Muitos são os
concelhos que fazem da Quinta-Feira de Ascensão o seu feriado. Imagino que vejo
papoilas na escola ao lado, mas por certo não se tornarão no supremo encanto da
merenda, pois as burguesas já não fazem piqueniques, nem tomam parte em
histórias que mesmo sem grandeza dariam ainda uma aguarela.
quinta-feira, 21 de maio de 2020
Dia da espiga
Sem ser convidada, uma varejeira entrou pela janela. Zumbe e
rodopia até que encontra a saída, devolvendo ao lugar onde me encontro o
silêncio. Afundo-me nessa ausência de som, mas interrompo-a com o barulho dos
dedos a bater nas teclas. O melhor é fechar a janela, pensei. Há que evitar que
insectos não desejados entrem por ela. Passei o dia a fazer uma daquelas coisas
que o dever – ou a necessidade de pagar as contas – me impõe, mas que há-de
servir para pouco, caso sirva para alguma coisa. As minhas netas acabaram de
sair da escola, quero dizer que abandonaram o lugar em frente ao computador e
retomaram o ritmo incerto da adolescência. Se tudo o que se tem passado fosse
um intervalo, uma espécie de interlúdio dramático, talvez ainda fizesse
sentido, mas se é uma nova realidade, então há que fazer longos exercícios de
paciência. À minha frente ergue-se uma acácia, mais ao longe um bosque de
pinheiros mansos. Uma ilusão de óptica cria um espaço contínuo entre ambos,
apenas diferenciado pelos díspares matizes de verde. Os pardais ameaçam entrar
pela casa, mas no último instante arrependem-se e, numa curva apertada,
afastam-se. O terraço está cheio de folhas mortas. Cada uma é um pensamento que
a acácia pensou e logo esqueceu. Também eu vivo rodeado de folhas mortas, os
pensamentos que fugiram de mim, que foram mais rápidos que o meu desejo de os
segurar. Não tarda e virão os dias de calor e as pessoas hão-de vestir roupas
estivais e costureiros haverá que desenharão máscaras para cada estação. Nas passerelles, mesmo nos desfiles de
roupas interiores ou de praia, os modelos terão uma máscara atarraxada ao
rosto. Fui mordido num dedo. Uma baba cresce irritante, tenho de procurar a
pomada ou esquecer-me da mordedura. Não haverá maior virtude que a do
esquecimento. Hoje é quinta-feira, dia 21 de Maio. Não haverá festejos da Ascensão
e eu não irei pelos campos apanhar a espiga. Nunca fui, mas talvez esteja a
mentir. O alarme da casa disparou. O seu zumbido é pior que o da varejeira, mas
alguém o acalmou.
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