domingo, 24 de maio de 2020

Aloquetes e cadeados

Leio mais devagar. Pareço arrastar a leitura não por desinteresse mas por um qualquer motivo que desconheço. É possível que os olhos se cansem, é possível que as coisas habituais estejam a perder sentido, é possível qualquer outra razão que desconheço ou que quero desconhecer. É o que acontece com a minha leitura de O Jardim dos Finzi-Contini. Há pouco uma palavra surpreendeu-me. O narrador, para que a bicicleta não fosse roubada, deveria colocar nas rodas um aloquete. Fui ver quem tinha traduzido o livro. O poeta Egito Gonçalves, um homem que nasceu em Matosinhos e morreu no Porto. Percebi de imediato a opção por aquela tradução e não pela sulista e latina cadeado. A primeira vez que ouvi a palavra foi no dia em que me apresentei num quartel da cidade do Porto para cumprir serviço militar. Sempre achei a palavra inusitada, apesar da sua origem inglesa e francesa. O dia encandeceu. O calor espalhou-se pelas ruas e anuncia os dias tórridos que hão-de vir. No final da manhã, desci o viaduto de carro e passei pela velha ponte medieval que permitia chegar ao centro da antiga vila. Em tudo havia um ar dominical, até o sol vestia um fato domingueiro, como antigamente as pessoas o faziam para ir à missa. Depois tornou-se de mau tom, ao domingo, andar vestido de domingo, uma coisa de provincianos retardados e, como todos nós provincianos retardados sabemos, ninguém quer passar por provinciano retardado. Estou a repetir-me demasiado. No friso que lhes cabem as orquídeas estão praticamente todas floridas. Apenas uma ainda retém as flores em botão, como se persistisse em defender um segredo que não quer partilhar com ninguém. Hoje é domingo, dia 24 de Maio. Tivesse eu poderes para tal e fechava todo este tempo numa despensa escura e esconsa e depois trancava a porta com um aloquete, atirando a chave para o oceano. Haveria então de me sentar na borda do poço que havia na entrada da infância e comer nêsperas, caso as houvesse, ou magnórios se estivesse no norte.

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