sábado, 23 de maio de 2020

Luz e trevas

Nada o homem receia mais do que ser tocado pelo desconhecido. É com esta frase que começa o longo ensaio Massa e Poder, de Elias Canetti. Este pavor é o horizonte onde se desenrolam as vidas humanas. A maior parte do tempo nem damos pela a existência dele, mas se algo desconhecido nos toca, ele lança as garras de fora e o homem treme e teme. Talvez tenhamos aceitado sem grandes problemas este tempo de confinamento devido ao pânico que o desconhecido desencadeia nos nossos organismos. Depois, como em tudo, cansamo-nos e, intrépidos, enfrentamos o desconhecido, ou imaginamo-lo conhecido e o medo de por ele ser tocado vai-se desvanecendo, não porque se é corajoso mas porque o hábito venceu o estado de vigilância. Aos sábados dever-se-iam evitar estas meditações, não porque traiam melancolia mas por serem sérias. O dia está quente, mas temperado pelo vento que faz balançar os ramos das oliveiras e refresca a atmosfera. No friso das orquídeas, a branca ainda tem flores, mas a folhagem está a amarelecer devido ao esforço contínuo em florir. Fora ela mulher e seria mãe de vinte filhos. É um enigma ela estar neste estado há bem mais de um ano e continuar a rebentar. Imagino que também ela terá medo do desconhecido e por isso se protege na caverna da floração. Se não estivesse mole, com os neurónios lânguidos, devido ao calor, esforçar-me-ia por encontrar uma metáfora mais reluzente. Tenho estado a ouvir Palestrina. Este tem uma peça denominada Missa do Homem Armado. Isso lembrou-me um outro músico italiano, quarenta anos mais novo, Don Carlo Gesualdo, Príncipe de Venosa, que assassinou a mulher, Maria d’Avalos, e fez assassinar o amante desta, Fabrizio Carafa, Duque de Andria, ao apanhá-los em flagrante. Um crime de honra que animou os finais do XVI. A primeira vez que ouvi a sua música, interpretada pelo The Hilliard Ensemble, pensei que só um anjo luminoso a poderia ter composto. Muitas são as trevas que se escondem na luz. Hoje é sábado, dia 23 de Maio. A tarde começa a perder o fulgor e, não tarda, dobrará o joelho para que o inexorável carrasco a decapite e a entregue ao reino das coisas que passaram. Também Maria d’Avalos teria a sua luz e não terá tido tempo para perder o fulgor. Não devia ter casado com o primo.

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