quinta-feira, 21 de maio de 2020

Dia da espiga

Sem ser convidada, uma varejeira entrou pela janela. Zumbe e rodopia até que encontra a saída, devolvendo ao lugar onde me encontro o silêncio. Afundo-me nessa ausência de som, mas interrompo-a com o barulho dos dedos a bater nas teclas. O melhor é fechar a janela, pensei. Há que evitar que insectos não desejados entrem por ela. Passei o dia a fazer uma daquelas coisas que o dever – ou a necessidade de pagar as contas – me impõe, mas que há-de servir para pouco, caso sirva para alguma coisa. As minhas netas acabaram de sair da escola, quero dizer que abandonaram o lugar em frente ao computador e retomaram o ritmo incerto da adolescência. Se tudo o que se tem passado fosse um intervalo, uma espécie de interlúdio dramático, talvez ainda fizesse sentido, mas se é uma nova realidade, então há que fazer longos exercícios de paciência. À minha frente ergue-se uma acácia, mais ao longe um bosque de pinheiros mansos. Uma ilusão de óptica cria um espaço contínuo entre ambos, apenas diferenciado pelos díspares matizes de verde. Os pardais ameaçam entrar pela casa, mas no último instante arrependem-se e, numa curva apertada, afastam-se. O terraço está cheio de folhas mortas. Cada uma é um pensamento que a acácia pensou e logo esqueceu. Também eu vivo rodeado de folhas mortas, os pensamentos que fugiram de mim, que foram mais rápidos que o meu desejo de os segurar. Não tarda e virão os dias de calor e as pessoas hão-de vestir roupas estivais e costureiros haverá que desenharão máscaras para cada estação. Nas passerelles, mesmo nos desfiles de roupas interiores ou de praia, os modelos terão uma máscara atarraxada ao rosto. Fui mordido num dedo. Uma baba cresce irritante, tenho de procurar a pomada ou esquecer-me da mordedura. Não haverá maior virtude que a do esquecimento. Hoje é quinta-feira, dia 21 de Maio. Não haverá festejos da Ascensão e eu não irei pelos campos apanhar a espiga. Nunca fui, mas talvez esteja a mentir. O alarme da casa disparou. O seu zumbido é pior que o da varejeira, mas alguém o acalmou.

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