terça-feira, 29 de junho de 2021

Juramentos e maçadas

Ocorreu-me esta manhã que o problema estaria no célebre juramento de Hipócrates. Talvez os médicos, seja qual for a sua especialidade, tenham jurado nunca chegar a tempo às consultas. Parece-me uma explicação sensata. A consulta é marcada para as dez horas da manhã, mas, devido ao juramento, o médico só chega ao consultório pelas dez e meia ou onze horas. Isso irritava-me, pois não compreendia o motivo. Hoje, porém, ao perceber a verdadeira razão dos atrasos, não me irritei, pois creio que todos devem cumprir aquilo com que se comprometem. E se chegar atrasado faz parte do juramento de Hipócrates, então é bom que nenhum médico chegue à hora marcada. De resto, a consulta não tem que contar, apenas uma rotina. O mais desagradável era o vento que corria pelas ruas. Sob um sol quente, dançava um vento frio. Este tinha a vantagem de amenizar a temperatura, mas tornava desagradável uma pessoa andar vestida de Verão. Ontem, ao fim da tarde, disse já se notam os dias mais pequenos. Que exagero, ouvi em resposta. Talvez ainda não se note, mas as noites continuam a crescer. Ora, se as noites crescem, os dias diminuem. O país, ao que consta, encontrou outro motivo de entretenimento, depois do futebol ter dado em águas de bacalhau, seja o que for o que isto signifique. Uma história policial. Precisamos sempre de qualquer coisa para evitar olhar para a realidade, a qual, diga-se, é uma grande chatice. Talvez devesse dizer a realidade é uma grande maçada.

segunda-feira, 28 de junho de 2021

Moderações metafísicas

Acabei de ter, segundo a escala de Álvaro de Campos, um momento metafísico. Dizia ele – bem, não era o Álvaro de Campos que o dizia, pois nem sequer tinha dado entrada no clube dos nascidos, mas o Fernando Pessoa que o escrevia – Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates. Acabei de comer uns quadrados de chocolate, portanto penetrei nesse campo obscuro da metafísica. Dito isto, quero registar a minha discordância com o Álvaro de Campos ou com o Fernando Pessoa, ou com os dois. Para mim, nozes também são metafísica. Assim como batatas fritas, aquelas dos pacotes. É verdade que estas metafísicas não são idênticas. As nozes são uma espécie de metafísica da natureza, o chocolate, apesar das suas gradações, é claramente uma metafísica do espírito. Já as batatas fritas de pacote fazem parte da metafísica, embora eu não saiba de quê. Talvez sejam uma metafísica ao gosto popular. Todas estas metafísicas exercem sobre mim uma atracção, que não é fatal porque tenho uma certa tendência para a moderação, coisa fora de moda há muito. Fica sempre bem uma pessoa ser radical e eu fui-o há décadas, mas aquilo não calhava bem com o meu espírito e moderei-me. Nada em excesso, mesmo o chocolate, mesmo as nozes, mesmo as batatas fritas. Portanto, na metafísica sou um moderado. Uma tristeza.

domingo, 27 de junho de 2021

Tipologias romanescas

Talvez porque tenha tido, durante a noite, um período de insónia, que aproveitei para avançar na leitura de um romance, de manhã dei comigo a fazer uma espécie de taxinomia dos romancistas. Há os que escrevem para agradar ao público, quanto maior for este, melhor para eles. Há os que escrevem para agradar à crítica, hoje quase toda ela universitária. Estes dois tipos de escritores, apesar de terem em comum a inclinação para agradar e o gosto da glória, são diferentes. Os primeiros cultivam narrativas com enredo, com pouca atenção à inovação formal. Os segundos cultivam a inovação na forma que há-de fazer ressoar os encómios da crítica, embora desprezem, não poucos, o enredo, o contar uma história. Existirão outros, porém, que não querem saber da opinião nem do público nem da crítica. Estão comprometidos com o enigma da acção e da paixão e com a verdade que se esconde no agir e no sofrer dos homens. Não escrevem para agradar nem para desagradar, mas para descobrir. A sua poética é uma poética da descoberta, uma heurística. Depois, estes pensamentos desvaneceram-se, fui caminhar perto do mar e apanhei uma chuvada, ligeira. Aí os meus pensamentos eram muito mais prosaicos. Como chegar depressa a casa? Ou então mais imprecativos, onde está o raio do sol? Depois, a chuva foi-se levada pela nortada, o sol chegou e assentou arraiais, mas o pensamento não voltou a interessar-se pelo tipo de escritores. Na verdade, todo aquele pensamento era absurdo, mas isso é o pão nosso de cada dia, pensar coisas absurdas. O domingo cresce e o almoço será tardio, esta é a minha realidade.

sábado, 26 de junho de 2021

Sábados difíceis

Hoje comecei o dia com uma caminhada de seis quilómetros. Não havia sol nem vento e, por onde passei, poucos eram os que por lá andavam. Os sábados convidam as pessoas a manhãs recatadas, foi o que pensei. Depois, o dia expandiu-se, passou a fronteira do meio-dia e deixou-se cair na armadilha da tarde. As notícias, porém, não distinguem os dias úteis e os inúteis, o vírus também não, embora tenha um talento especial para a metamorfose e um gosto acentuado pela alteridade. Deveria evitar, dizem-me, projectar na fonte do nosso pesar características humanas, mas se tudo o que nos acontece e nos envolve é sentido e compreendido por faculdades humanas, não há outro remédio que não seja contaminar tudo isso, vírus incluídos, com as nossas projecções. Basta olhar para uma paisagem para que ela se humanize. Isto não significa que se torne melhor ou pior, mas que toma as características de quem para ela olha. Se isto não é verdade, poderia ou deveria sê-lo. Há sábados em que é muito difícil encontrar motivos para escrever. Cumpro ordens, apenas, e isso é tudo o que eu, pobre narrador, posso dizer em minha defesa. Talvez devesse ter sido mais frugal ao almoço, talvez.

sexta-feira, 25 de junho de 2021

Prelúdio e fuga

Para as três da tarde estão anunciados 37 graus. A partir de agora o calor vai entranhar-se nas paredes e a pequena cidade transforma-se numa antecâmara do inferno. Os pássaros meus vizinhos, todavia, parecem estar no paraíso. Cantam e voam como se estivesse em plena Primavera. Na rua, os vultos esgueirem-se entre sombras. Quem tem de suportar o sol dá passos vagarosos, como se não tivesse força para andar. Um prelúdio ao fim-de-semana que anuncia uma fuga. O problema das fugas é que acabam com os fugitivos a voltar ao lugar onde estavam. A verdade, é preciso reconhecê-lo, é que a maioria das pessoas fica extasiada com o Verão. Choram-no durante todo o ano e mal chega entregam-se-lhe com não escondido prazer. Talvez seja por isso é que ele se dilata pelo Outono dentro. Abro ao acaso um livro de Louise Glück e deparo-me com um poema com o título Pleno Verão, que começa assim: Como posso ajudar-vos, se cada um de vós / quer uma coisa diferente – sol e penumbra, / húmida sombra, calor seco. Então, penso que ser Deus é um trabalho árduo perante a diversidade dos desejos que Lhe são dirigidos como se fossem preces, acontecendo mesmo que muitos pedem uma coisa e o seu contrário. Esquecem que Deus pode tudo, mas no catálogo da sua omnipotência não consta poder o impossível. Chegou a hora de almoço.

quinta-feira, 24 de junho de 2021

Nostalgias

Há certos objectos com que estabelecemos uma relação funda, talvez porque nos tenham proporcionado um prazer, que já não conseguimos identificar ou explicar, mas que continua a viver nos subterrâneos da nossa consciência, ou talvez tenham despertado uma nostalgia incompreensível. Desses objectos fazem parte dois filmes. Não que esses filmes sejam realizações estéticas extraordinárias ou porque contem histórias avassaladoras. Tratam-se de Um Táxi Cor de Malva (1977), de Yves Boisset, e A Festa de Babette (1987), de Gabriel Axel. Aquilo que me prende a esses filmes é a sua atmosfera, uma certa ambiência despojada. O primeiro passa-se na Irlanda; o segundo, na Dinamarca. Não faço ideia por que razão me lembrei desses filmes agora. Talvez eles tenham vindo em meu socorro, dando-me motivo de escrita. Talvez exista em mim algum gene que pertence a esses mundos, de terras frias, e que tenha, em desespero perante o calor que cai por aqui, acordado uma nostalgia de alguma coisa que nunca vivi. Essas nostalgias, porém, são as mais duradouras e consistentes, as mais próximas da verdade. Um dia destes vou rever, mais uma vez, esses filmes, já que não posso voltar a lugares a que nunca pertenci, onde nunca vivi, onde nunca estive.

quarta-feira, 23 de junho de 2021

A noite imparável

Um dia ocupado com a nova modalidade de existência, reuniões por videoconferência. Umas por um motivo, outras por outro, a alma corrompe-se nestes ambientes que, apesar das aparências, pouco têm de etéreos. Todos se tornam em presenças fantasmáticas, imagens de imagens, como se se tivesse perdido o corpo e com ele a solidez. Depois, veio o futebol. Antes dos jogos, as selecções cantam os respectivos hinos. Primeiro, a Marselhesa. Depois, a Portuguesa. Há qualquer coisa de incongruente em tudo isto. Esses hinos pertencem ao mundo sólido, feito de aço e canhões. O português descende do francês, o que é justo, pois também Afonso Henriques descendia de franceses. A noite caiu há muito. Do céu, não vejo as estrelas, apenas a escuridão onde o dia se sepultou. As lâmpadas da iluminação pública derramam sobre as ruas a sua tristeza, enquanto os faróis dos automóveis varrem o ar com a luz inquieta de quem tem pressa. O vento açoita as acácias e estas gemem no gemido mecânico das roldanas dos baloiços do parque infantil. Afinal, ainda existem crianças. Não vivemos, por enquanto, numa dessas distopias que anunciam o inferno na Terra. Um cão de pequeno porte solta uns ladridos, imaginando-se, por certo, lobo feroz. As crianças, como as cigarras, não se calam. A noite corre imparável, mas não sabe para onde.

terça-feira, 22 de junho de 2021

Viagens e deambulações

As traduções portuguesas – recentes – da poetisa Louise Glück, prémio Nobel de 2020, são excelentes. Não me refiro às traduções propriamente ditas. Sê-lo-ão, por certo. Estava a falar dos livros enquanto objectos estéticos. Os quatro que tenho – falta-me um – são belíssimos, com capas muito depuradas e contidas. Possuía apenas Uma Vida de Aldeia, mas hoje dei uma volta por uma grande superfície que se dedica a ser papelaria, livraria, centro de cópia, tabacaria e posto dos CTT e encontrei lá A Íris Selvagem, Averno e Noite Virtuosa e Fiel. Em falta está Vita Nova. Não se pode dizer que a autora não possua talento para encontrar títulos. Não é uma tarefa fácil e muitos livros chocam de imediato contra essa parede que é o título. Ao lado da grande superfície está uma lavandaria. Também fui lá, não para mandar lavar camisas, mas para levantar uma encomenda. É o que se chama na moderna linguagem do comércio e distribuição um ponto pickup. Trouxe de lá uns sapatos, mas já tenho trazido livros. É muito mais raro ir buscar roupa lavada. Vivemos num mundo de contaminação. Não me refiro ao vírus, mas a esta disseminação de funções que os antigos e especializados estabelecimentos lançaram mão para sobreviver. No primeiro poema de Averno aprende-se que não existir será uma consolação para a alma, a dos mortos. Este poema deveria ser lido acompanhado pelo primeiro texto de Viagens, de Olga Tokarczuk, também prémio Nobel, texto com o título Existo. Nele, uma criança descobre dolorosamente que existe. Uma página, apenas. O poema da Glück, curiosamente, também se refere a viagens, mais precisamente a Migrações Nocturnas. Olho para o título e fico grato à editora e à tradutora por não terem desfigurado o velho Nocturno num insípido Noturno, o qual parece a adição acidental de no + turno, talvez o turno da noite. O texto vai longo e ainda não consegui dizer seja o que for, o melhor é parar.

segunda-feira, 21 de junho de 2021

De solstício em solstício

Hoje é o maior dia do ano. A partir de amanhã o ciclo inverte-se e a noite começa a crescer até que se torne maior que o dia. Este aparente eterno retorno do mesmo não podia ter deixado de fascinar os nossos antepassados. Uma luz laminada paira sobre o casario, fende as paredes, cai cortante pelo chão. Há pouco, porém, nuvens espessas tapavam o sol e parecia que Novembro tinha chegado. Também as notícias não são animadoras. Cada vez que se ergue a ilusão de uma esperança de nos vermos livres do vírus, a realidade revolta-se e entretém-se a desfazer as nossas mais queridas fantasias. Há pouco, alguém consertando uma máscara, disse: nunca mais nos livramos disto. Anuí. A vacina não elimina nem o contágio nem a transmissão. Atenua as consequências, o que é já uma grande vitória, mas essa vitória não representa a derrota do inimigo. Máscara, distância, higienização contínua das mãos, tudo isso parece ter vindo para ficar, para instaurar uma nova forma de habitar o mundo. As pessoas andam ansiosas para que tudo volte a onde se encontrava há pouco mais de um ano. Desconfio que haveremos de saltar de solstício em solstício, que os dias crescerão e minguarão, mas o passado é já uma terra distante a que nunca voltaremos.

domingo, 20 de junho de 2021

Um olhar turvo

Dois terços de Junho estão consumados. Tudo passa muito depressa, oiço dizer. É verdade, tudo passa muito depressa, ou muito devagar, como se as coisas fossem impedidas de passar num passo certo. A que velocidade deveria passar o tempo para que não fosse tomado ora pela mania da pressa, ora pelo vício da preguiça? Tenho de limpar os óculos. Uma mancha turva intromete-se entre os meus olhos e a realidade. Temo, porém, que os óculos não precisem de limpeza e o que esteja turvo seja o meu olhar. Os domingos na província prestam-se a este tipo de meditações, pois a província é um lugar onde o tempo parece exausto e em que a realidade vibrante das grandes metrópoles chega apenas com uma cor baça. Os serviços municipais esqueceram-se de olear as roldanas dos baloiços. Enquanto as crianças vão e vêm, um concerto de ferros a ranger entra-me pelos ouvidos. O céu nublou-se. Há pouco, um amigo ligou-me e disse que andava a ler um autor que foi cultuado pela nossa geração. Está surpreendido, pois o tempo não lhe tirou a vibração e o olhar acutilante. Senti um súbito impulso de voltar a essas leituras dos vinte anos. Talvez seja apenas a nostalgia desses dias onde tudo parecia possível e, na verdade, não o era. Não tarda o dia acaba-se e Junho também.

sábado, 19 de junho de 2021

Ordens de cavalaria

Lá em baixo, no parque infantil, crianças e pais parecem indiferentes à derrocada dos pobres cavaleiros de Cristo às mãos dos da Ordem Teutónica. Estive a ver um pouco do futebol, mas não consegui ir além da primeira parte. Não por causa do resultado favorável aos bárbaros, mas devido aos comentários que os locutores de serviço entendem distribuir sobre incautos espectadores como eu. Suspeito que haverá, no futebol, muita coisa execrável, mas o discurso à volta dele deve estar no topo das coisas a execrar. Recolhi-me ao escritório e, enquanto a bola vai e vem, entra e sai, vou pondo umas coisas em ordem. Não sou amigo do caos, embora não cultue em excesso a ordem. Talvez seja um aristotélico e pense que em tudo a virtude esteja no meio. Neste caso, uma ordem desordenada, para usar um oximoro e fugir ao pendor lógico do filósofo de Estagira. De vez em quando espreito um site onde vai dando o resultado da batalha e descubro que as probabilidades dos de cá ganharem eram completamente ínfimas. Um site de apostas pagaria quarenta euros, em caso de vitória de Portugal, por cada euro apostado. No caso de vitória alemã, apenas um euro e um cêntimo. Daqui a pouco chegará o meu neto. Ainda não sabe nada sobre cavaleiros de Cristo e Teutónicos, nem da metafísica da bola na barra ou da ética que impregna a extraordinária regra do offside. Seja como for, percam os portugueses por poucos ou muitos, há uma coisa inultrapassável. Eles, na Teutónia, o mais que podem fazer é cerveja. Nós por cá, cultivamos a vinha e dele extraímos o vinho. E nisso há toda uma diferença entre civilização e barbárie. Antes de ser acusado de alguma coisa indigna, volto para as arrumações. É esse o meu lugar.

sexta-feira, 18 de junho de 2021

Cruzamentos

Sem que se perceba a razão cruzam-se no horizonte das pessoas coisas que têm entre si uma conexão, mas que não foram procuradas por esse motivo. Há pouco, estive a ver o filme Vergonha, de Ingmar Bergman. O tema é a guerra. Tinha também começado a ler Kaputt, de Curzio Malaparte, com o mesmo tema, embora a experiência do italiano seja muito mais real. Talvez existam no espírito correntes subterrâneas que, apesar de desconhecidas, se manifestam nestas aparentes coincidências, mas que não serão mais que o resultado visível de um diálogo invisível que atravessa o fundo obscuro que há em todos nós, como existem em certos rios terríveis correntes sob a calma tranquila de lençóis de água benevolentes. Agora, o anoitecer é prolongado, como se o tempo se dilatasse e houvesse um medo real das trevas. Começou o fim-de-semana, o tempo parece não estar propício para grandes deslocações. Lisboa está sitiada aos fins-de-semana. Muitas são as formas que a guerra toma. Umas visíveis, outras invisíveis.

quinta-feira, 17 de junho de 2021

Perigos

Chove com intensidade. Adolescentes à espera de entrar no Instituto de Línguas abrigam-se sob uma varanda. Um deles, porém, decide pôr-se debaixo de água. Coloca-se no meio da praceta e abre os braços, como se estivesse crucificado. As raparigas não reagem à performance, e ele fica ali desolado, abandonado à sua cruz imaginária, a água a cair-lhe em cima, até que se farta. De imediato, a chuva decide suspender o aguaceiro. Penso muitas vezes que a espécie teria um notável upgrade caso conseguisse suprimir os anos de adolescência. Muitos dissabores se poupariam aos pais e os próprios adolescentes não perderiam nada com a supressão. Acordar do período de latência hormonal e de jogos infantis e encontrar-se em plena idade da razão, ainda com sonhos e ilusões, mas sem o pesadelo de um corpo à procura de si mesmo. Na espécie humana nada é fácil. Estão exuberantes as cevadilhas da escola ao lado e as que orlam a margem de um ribeiro que atravessa a zona. Ninguém, ao olhá-las, diz que o perigo que escondem. A beleza nunca deixa de ser uma coisa perigosa, mais perigosa que a adolescência.

quarta-feira, 16 de junho de 2021

Confissões e promoções

Também eu me confesso e faço exame de consciência. Não se pense, porém, que sou um confessado do padre Lodo. Amigos, amigos, confissões à parte. Nem sequer frequento os confessionários. Trata-se antes de uma prática das organizações modernas, sejam empresas privadas, sejam instituições públicas. Aí foi-se instituindo que todos, no exercício das suas funções, teriam de se entregar a um momento de confissão e de agudo exame de consciência. Para disfarçar o pendor religioso da manobra, deram-lhe o pomposo nome de auto-avaliação. Esta confissão, porém, é perversa. Presumo que aqueles que se ajoelham diante de um sacerdote seja para confessar, contritos, os seus pecados, as pequenas e grandes malfeitorias que andam por aí a fazer. O objectivo será obter o perdão, tranquilizar a consciência e ter esperança na recompensa na outra vida, caso haja uma. As confissões profanas são momentos não de humilhação perante o mal feito, mas de exaltação das virtudes e de esquecimento dos vícios. O que está em jogo é a subida na hierarquia, tornar-se chefe do chefe, do chefe. Enfim, chegar ao topo, o que não deixa de ser ainda uma evocação do céu. Sempre achei estes exercícios indecorosos, pois quem, em seu perfeito juízo, vai dizer mal dos seus desempenhos. Na confissão tradicional, o confessado escarafuncha no mal para se libertar dele. Na confissão moderna, há que esconder o mal do confessor, varrê-lo para debaixo do tapete e esperar que ele lá fique a germinar. Não é a absolvição que se pretende, é a promoção.

domingo, 13 de junho de 2021

O massacre dos teclados

Hoje devia registar aqui que o meu dia foi anódino e sem nada que merecesse nota. Não o faço porque também o são assim todos os outros dias e não deixo de incomodar o teclado com as irrelevâncias que me ocorrem. Os teclados são das peças dos computadoras as mais maltratadas. Ainda pior que os ratos. Estão constantemente a ser martelados, como se tivessem de sofrer uma contínua flagelação motivada sabe-se lá porquê. Hoje é dia de Santo António. Será que ainda se realizam os casamentos do santo? A Santa Casa da Misericórdia podia patrocinar o evento e realizava um jogo de sorte. Organizava umas apostas sobre quantos dias resistiria cada um dos felizes matrimónios. Quando se desse um divórcio, repartia o dinheiro das apostas por si própria, pelos vencedores e pelos venturosos divorciados. Ficava toda a gente a ganhar e as rupturas seriam menos dolorosas, caso ainda o sejam. Não devia estar por aqui a blasfemar contra a instituição casamento, embora ela já tenha tido melhores dias. Também eu já os tive, é verdade, como se pode vir pela densidade do meu escrito deste pobre domingo de Junho. Para que estive eu a massacrar o teclado?

sábado, 12 de junho de 2021

Uma conversa telefónica

Ainda tive esperança que os portugueses fossem um pouco mais prudentes e não se entregassem, como o estão a fazer, nas mãos da pandemia. Foi assim que o padre Lodovico Settembrini começou a conversa comigo, quando me ligou depois de dizer missa. Respondi-lhe que, como italiano, não poderia falar muito de nós. Ele riu-se, depois acrescentou que, ao fim de tantos anos, se sente pouco italiano e mais português. Depois, hesitou, e rematou, bem a diferença é pouca ou nenhuma. Estou já duplamente vacinado, mas tenho medo, continuou. Não porque tema a morte, mas porque ainda me dá muito prazer estar vivo. Talvez isto não seja digno de um sacerdote, mas antes de ter entrado para a Companhia, eu era um homem. Não deixei de o ser. Depois, disse-me que tinha visto as minhas netas. Estavam com o pai. Que grandes que estão. Anuí. Evitou recordar-me o desgosto de não ter baptizado nenhum dos meus netos, coisa que sempre lhe deu um grande desconsolo. Informou-me, então, que iria passar uns dias à casa de férias dos Jesuítas, no Baleal. Agendámos um encontro e um jantar numa certa Brasserie que ambos estimamos. O pior, acrescentou, é se eles têm de fechar às dez e meia. Talvez não, respondi, sem grande fé. Uma desolação, disse, mas também a desolação faz parte da vida. Por certo, continuou, toda a desolação só acontece porque um bem maior haverá de nascer dela. Eu pensei que ele continuava às voltas com os argumentos sobre a existência de Deus, mas evitei comentar.

sexta-feira, 11 de junho de 2021

Uma desolação

Não faço ideia quem é Carlo Levi, embora uma rápida consulta me possa esclarecer. Há tempos comprei, num alfarrabista, um livro dele por causa do título, Cristo parou em Eboli. Havia, claro, uma ressonância em mim, a recordação de existir um filme, dirigido por Francesco Rossi, com esse nome e que nunca vi. Presumo que o assunto do livro não exerça, na pessoa em que me tornei, grande atracção. São memórias de um deportado político, durante a confiscação de Itália pelo fascismo. Li há pouco as primeiras duas páginas e talvez o livro mereça o tempo da sua leitura. Hoje o dia esteve quente. O que não é, para mim, um bom prenúncio. Aqui o calor jorra de todo o lado. Do sol inclemente, das paredes das casas, das faldas da serra. Tudo conspira para que o ar quente não possa sair, como se estivesse encurralado. A partir de agora e até Outubro, as coisas só piorarão. As pessoas aproveitam para oferecer as carnes aos olhos descuidados dos transeuntes. Talvez por isso evito grandes deslocações dentro da cidade. Bem, não estou a falar verdade. Ontem fui jantar à praça principal do povoado. Quem conhece a animação de uma cidade espanhola, grande ou pequena, só pode ficar desolado. A desolação, porém, faz parte da vida, como me disse ainda há dias o padre Lodo, mas não é hoje que conto a conversa havida.

quinta-feira, 10 de junho de 2021

Feriado e vírus

Parece que hoje é feriado, um feriado com um nome extenso, como se resultasse da fusão de vários e, como aconteceu com as freguesias, mantivesse a denominação de todos eles. Contrasta em capacidade de síntese com o feriado religioso de Todos-os-Santos. O pior é que aquela história do vírus é um incêndio que se reacende sempre que parece estar quase extinto. Há muitos anos, havia um anúncio que proclamava que um certo carro, cujo nome omito, veio para ficar e ficou mesmo. Assim está o vírus. A continuar deste modo, com o tratamento simpático que os portugueses lhe oferecem, não tarda e está tudo confinado outra vez. O principal canal de contaminação, li em tempos, é as narinas. Ora, muitos portugueses gostam imenso de usar máscara, desde que as narinas possam ficar descobertas, não vá o inimigo não ter maneira de se intrometer nos pulmões. Nem sei o que me deu, para estar a escrever sobre este assunto mórbido em vez de celebrar Portugal, Camões e as Comunidades. Vou continuar a fazer aquilo que deixei a meio. Ainda não fui à rua, mas talvez não tenha oportunidade. Já agora, o vírus não reconhece feriados, fins-de-semana nem dias santos. É absolutamente democrático.

quarta-feira, 9 de junho de 2021

Da polimatia e outras sagas

A saga das impressoras talvez chegue em breve ao fim. Descobri uma loja que vende tinteiros e que parece perceber de impressoras. Não a loja, mas quem lá trabalha. Conversei com eles e disseram-me para levar lá as maquinetas. A laser é impossível, com o que tem trabalhado, que tenha problema grave, juraram. A de jacto de tinta, logo se verá. O caricato é que a loja está mesmo à mão de semear. Vejo-a da cadeira do meu escritório. Saio de casa e não são cem metros. Não me a tivessem indicado e eu não iria lá. Para continuar num registo ao gosto popular, direi que santos de casa não fazem milagres. Neste caso, são santos ao pé da porta. São estas banalidades que dão sentido à vida. Um bom banho no mar das trivialidades e desaparecem as melancolias, o spleen, o absurdo da existência, a náusea e até a angústia, seja para o jantar ou para qualquer outra refeição do dia. Descobri um senhor chamado William Whewell. Viveu no século XIX e era uma daquelas pessoas que, para minha inveja, parecia saber de tudo. Leio que foi cientista, padre anglicano, filósofo, teólogo e historiador da ciência. Um autêntico polímata. Bem, eu dispensava ser aquilo que ele foi, até padre anglicano. Seja como for, ele, enquanto padre, não devia ter uma paróquia que lhe exigisse tempo. O que me interessou foi a obra The Plurality of Worlds. Achei um título magnífico. Na verdade, a obra, que facilmente se encontra na internet, não me pareceu particularmente estimulante, mas o título é como a embalagem. Quantas vezes compramos uma coisa inútil apenas porque tem uma embalagem que nos agrada? O que tem a ver a saga das impressoras com um padre anglicano. Que eu saiba, nada, mas negar que existe uma relação entre ambas as coisas, apenas porque ela é desconhecida, é cair numa falácia. E cair numa falácia é tão mau quanto cair num poço.

terça-feira, 8 de junho de 2021

Uma pendência

Num pequeno excerto de um texto de Enst Jünger, leio que tudo o que nos cerca está impregnado, mais do que da racionalidade luminosa, de um cerrado mistério. Ele escreveu isto em 1916, em plena guerra mundial, nas instalações do Batalhão a que pertencia. Talvez a iminência da morte torne as pessoas mais sensíveis ao mistério, talvez existam pessoas mais sensíveis que outras. O texto reflecte uma pendência a que poderíamos chamar uma nova querela entre antigos e modernos. A racionalidade luminosa seria o facho erguido pelos modernos. O cerrado mistério, a sombra dos antigos. É possível, porém, que as coisas sejam bem mais simples. Quem conseguiria viver, envolvido em mistério, toda uma vida? Este dá profundidade à existência, mas as pessoas, como as crianças perante a escuridão, ficariam inseguras e temerosas. O que os pais fazem é ligar o interruptor, para que a luz dissipe o medo. A racionalidade dos modernos é essa luz. Não desfaz o mistério, mas oferece tranquilidade e segurança, ocultando-o na própria luz. A escola e as árvores que a envolvem oferecem-se ao meu olhar tranquilo, batidas pela inclemência da luz de Junho. Se ali há algum mistério, a luz não o deixa ver.