quarta-feira, 23 de junho de 2021

A noite imparável

Um dia ocupado com a nova modalidade de existência, reuniões por videoconferência. Umas por um motivo, outras por outro, a alma corrompe-se nestes ambientes que, apesar das aparências, pouco têm de etéreos. Todos se tornam em presenças fantasmáticas, imagens de imagens, como se se tivesse perdido o corpo e com ele a solidez. Depois, veio o futebol. Antes dos jogos, as selecções cantam os respectivos hinos. Primeiro, a Marselhesa. Depois, a Portuguesa. Há qualquer coisa de incongruente em tudo isto. Esses hinos pertencem ao mundo sólido, feito de aço e canhões. O português descende do francês, o que é justo, pois também Afonso Henriques descendia de franceses. A noite caiu há muito. Do céu, não vejo as estrelas, apenas a escuridão onde o dia se sepultou. As lâmpadas da iluminação pública derramam sobre as ruas a sua tristeza, enquanto os faróis dos automóveis varrem o ar com a luz inquieta de quem tem pressa. O vento açoita as acácias e estas gemem no gemido mecânico das roldanas dos baloiços do parque infantil. Afinal, ainda existem crianças. Não vivemos, por enquanto, numa dessas distopias que anunciam o inferno na Terra. Um cão de pequeno porte solta uns ladridos, imaginando-se, por certo, lobo feroz. As crianças, como as cigarras, não se calam. A noite corre imparável, mas não sabe para onde.

6 comentários:

  1. Respostas
    1. Parece que sim, e até há empates que parecem vitórias.

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  2. Tive mais sorte, vi uma belíssima lua cheia.
    Ficámos ambas admiradas, eu por ela estar tão brilhante, ela por me ver à janela em vez de estar a ver o jogo; fui ligar a tv ainda a tempo de ver que o futebol vai continuar a ser a nossa prioridade por mais uns tempos...

    Boa noite, HV.
    🌕
    Maria

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    1. Uma certa poluição luminosa não permite, por aqui, ver o céu como deve ser. É possível que todas as sociedades tenham um ponto de fuga da realidade, por norma sempre pesada. À nossa, como a muitas outras, calhou ser o futebol. Seja como for, a realidade lá estará quando os filhos pródigos voltarem.

      Bom dia, Maria

      HV

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    2. Só posso desejar que, ao contrário do outro, estes filhos pródigos voltem de mãos cheias.
      Isso, sim, seria um milagre: e os milagres por vezes acontecem...

      Um dia bom, HV.
      🏆
      Maria

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    3. Esperemos que sim, que haja um milagre.

      Uma boa tarde, Maria

      HV

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