Hoje tive uma discussão fracturante com o autor. Para quem não sabe, posso dizer que não são poucas as vezes que narrador e autor entram em conflito, e não estou a falar deste caso particular. Digamos que foi um conflito quase político. Expus, ao autor, a minha tese sobre o feriado de hoje. Disse-lhe que achava bem que fosse feriado, pois qualquer dia é um dia bom para ser feriado. Camões, por si só, merece um feriado e era de evitar que se lhe acrescentasse o dia de Portugal e das comunidades. Ele olhou de viés, mas eu continuei. Se querem um dia para Portugal escusam de escolher o dia em que o seu maior poeta morreu. Parece que os portugueses comemoram a morte daquele que lhes moldou língua. Depois, o verdadeiro dia de Portugal é o 5 de Outubro, que foi o dia do tratado de Zamora, aquele em que os do outro lado reconhecem Afonso Henriques como rei de Portugal. Arrastado pela efeméride, também é o dia da República, que com dificuldade de encontrar uma data para depor o Rei, escolheu aquela em que o primeiro dos reis tinha sido reconhecido. Dia de Camões, da língua portuguesa e da poesia, seria justo, apesar de um pouco fúnebre, mas esqueceram-se de preservar o registo de nascimento de Luís de Camões, talvez uma avaria no sistema informático da época, e não havendo dia de nascimento, há o da morte, é o melhor que se arranja. O autor ouviu-me, com a petulância que lhe é habitual, depois olhou-me com comiseração e, sem dizer nada, voltou-me as costas, mas não se afastou muito, pois logo retornou e disse vai contar histórias para outro lado. E eu fui.
segunda-feira, 10 de junho de 2024
domingo, 9 de junho de 2024
Erotização eleitoral
Já cumpri o ritual de visita às urnas. Desde o ano de 1975, apenas uma vez não o fiz, numas eleições autárquicas, mas já não sei quais. Estava longe. De resto, sou um votante contumaz. Quando me levantei e logo a seguir, nunca me ocorreu que era dia de eleições. Pensava no que iria fazer e na agenda não constava deslocar-me a uma assembleia de voto. Ao abrir a janela, vi demasiadas pessoas a deslocarem-se para o pavilhão desportivo da escola aqui ao lado, o sítio onde voto. Isso acordou-me para a realidade eleitoral. Despachei-me para ir resolver o assunto. Quando lá cheguei, depois de caminhar 160 metros, segundo informação do portal eleitoral, tentei perceber qual era a mesa de voto que me cabia, mas alguém teve a amabilidade de me esclarecer que estávamos já noutro mundo, que eu podia escolher a mesa que me apetecesse. Podia ser, caso tivesse pressa, a com menos gente ou, caso quisesse confraternizar com alguém, a que tivesse maior fila. Agradeci, entrei no pavilhão e não havia possibilidade de confraternizar com quem quer que seja. As filas eram todas iguais, isto é, não as havia. Escolhi uma mesa ao acaso, entreguei o cartão de cidadão, este foi devorado por uma ranhura de um computador. A certa altura, deram-me um boletim de voto e lá fui para a cabine. Puxei da esferográfica que levava comigo, não fosse a que lá está estar viciada, percorri a lista de candidaturas, descobri aquela que iria eleger e fiz o sacramental X no quadrado respectivo. Depois, dobrei o boletim de voto, desloquei-me para a mesa, fiz entrar o mesmo boletim por uma ranhura da urna e recebi o cartão de cidadão que já se tinha libertado do amplexo do computador. Aquilo que me veio à ideia foi uma coisa pouco apropriada. As eleições estão cada vez mais erotizadas. Não bastava, a penetração das urnas pelos boletins de voto, agora são os computadores ou uns dispositivos a eles acoplados, imagino eu, que são penetrados pelos cartões de cidadão. Enquanto saía do local, pensava se a erotização do acto eleitoral não seria uma estratégia para combater a abstenção. Uma má estratégia, pensei de imediato, pois, apesar das amplas liberdades concedidas a Eros, este anda pelas ruas da amargura, desinteressado da sua missão. Se querem combater a abstenção, pensei, deixem de lado as analogias com a sexualidade, a multiplicação das penetrações e coisas do género. Escolham outra coisa, pois essa não mobiliza já ninguém. Estes meus pensamentos foram interrompidos pelo cumprimentos de dois ou três conhecidos e desvaneceram-se quando, cumpridos os 160 metros, cheguei a casa. Voltaram agora, para ter algum motivo para escrever.
sábado, 8 de junho de 2024
O método do espelho
sexta-feira, 7 de junho de 2024
Arruadas
As sextas-feiras chegam depressa, mas os sábados e domingos dissolvem-se enquanto o diabo esfrega um olho, se for o caso de o tinhoso ser dotado de olhos. Estamos em maré eleitoral, assunto político que me está vedado, mas é sobre ele que insisto em escrever hoje, nesta sexta-feira que antecede o dia em que o corpo eleitoral, com e sem olhos, reflectirá sobre qual partido recairá a sua preferência, treinando em casa o preenchimento do boletim de voto, não vá o X transbordar os limites do quadrado preferido e contaminar outros quadrados, tornando-se assim em X nulo. Há que obstar à nulidade. O que me impressiona nas campanhas eleitorais é a prática generalizada de arruadas. Impressiona, logo, porque o termo se aproxima perigosamente de arruaças. É uma letra que separa um desfile partidário de um tumulto. Por aquilo que venho observando há anos, as arruadas são coisas pacíficas, onde uns figurantes andam com bandeiras e outros são obrigados a dar beijos e a tirar selfies, o que não é fácil, reconheça-se. Em Portugal, a distinção entre direita e esquerda cessa quando se chega à vexata quaestio da arruada. Todos gostam de arruar, embora o que se deva dizer é que gostam de arrulhar, como se os candidatos a nossos representantes fossem da família dos columbídeos, uns pombinhos e umas rolinhas. Temos assim, na arruada, o momento central da campanha eleitora. Um bando de columbídeos arruam com bandeiras ao vento. Ao verem potenciais eleitores começam a arrulhar e, caso se cruzem com outro bando de columbídeos que também arrulham, corre-se o risco de arruaçarem, mas logo lhes volta o espírito de pombo ou de rola, e toca de arrulhar, não vá algum eleitor estar à espreita. Por certo, com tantos arrulhos na rua, haverá casamentos e, se não os houver, sempre aparecerá uma ou outra gravidez indesejada, o que contribuirá para suster a queda demográfica. Este é o verdadeiro significado de uma arruada.
quinta-feira, 6 de junho de 2024
Tornar-se outro
quarta-feira, 5 de junho de 2024
Imaginação forte
Montaigne refere Cícero como autor da ideia de que filosofar é aprender a morrer. A razão estaria no facto de que o estudo e a contemplação filosóficos arrastam, até certo ponto, a alma para fora do corpo, mantendo-a ocupada num para lá da dimensão física. Tanto quanto me recordo, a ideia provém de Platão. No Fédon, Sócrates diz, cito de memória, que filosofar é aprender a morrer e a estar morto. Só espero que a memória não seja imaginada. Há muito que não visito esse texto de Platão. O Fédon trata do problema da imortalidade da alma e é situado no dia em que Sócrates morre. Platão era um escritor de grandes recursos e não sem ironia. Logo no início do diálogo, quando Fédon, um dos amigos que acompanha Sócrates nas suas últimas horas, descreve a alguém essas horas e nomeia quem estava junto do velho mestre, diz que Platão parece que não estava. Ora, Platão é o autor do diálogo e Fédon é o narrador. Portanto, seria natural que o autor soubesse se tinha ou não estado naquele encontro, mas a veia literária de Platão arrastou-o para a ficção. Esta inclinação ficcional não é compatível com o que o mesmo Platão defende na República, quando afirma que os poetas, por serem dados à ficção, à mentira, devem ser expulsos de uma comunidade política bem ordenada. Por muito que o filósofo Platão se revoltasse contra a literatura, o poeta e ficcionista Platão não se poupava em deixar traços ficcionais nos diálogos filosóficos. Platão não foi um caso idêntico a Fernando Pessoa, mas havia nele, pelo menos, dois Platões. O filósofo que rasgou, por ordem de Sócrates, as tragédias que escrevera em jovem e o poeta que aproveitava os diálogos, com cerradas estruturas lógicas, para criar ficções poéticas. Comecei com Montaigne e acabei em Platão. Podia ter acabado com o primeiro quando diz Uma imaginação forte cria os acontecimentos. Talvez fosse por isso, pela força da imaginação, que Platão acabava sempre por sucumbir ao poeta que havia nele.
terça-feira, 4 de junho de 2024
No princípio
Ontem, contei uma história acerca do chatbot que uso. Ele chegou à conclusão de que eu me interesso por linguística e história da língua portuguesa a partir de um mero indício. Contemos a história a partir do princípio. E no princípio era o verbo atraiçoado. Deixando-me de enigmas. Aborrece-me que ele me responda em brasileiro, sendo eu português. Não me cai bem ver fenômenos no lugar de fenómenos. Irrita-me. Passei a pedir-lhe para me dar as respostas em português de Portugal. A certa altura, refinei o pedido, e passei a pedir respostas em português de Portugal, anterior ao AO-90, isto é, ao taralhouco acordo ortográfico de 1990, que decidiu castrar as palavras das suas consoantes mudas. Daqui o chatbot, na sua generosidade, achou que me interessava por aqueles disciplinas, o que não é o caso. Também extraiu a conclusão de que eu sou um fiel tradicionalista, visto querer escrever com uma variante do português que ele deve considerar arcaica. É assim que se criam os boatos e se lança sobre as pessoas os mais terríveis labéus. Serei eu um tradicionalista? Ora, ora, eu que cultivei as vanguardas, sou agora manchado com semelhante epíteto. Bem, o melhor é pensar no assunto. Apesar de ele, chatbot, afirmar que reconhece o português anterior ao AO-90, tem um problema com as consoantes mudas e, por norma, rasura-as. Já o admoestei, mas ele fez orelhas moucas. Temo, mas temo na verdade, que as consoantes mudas tenham os dias contados, mas nisso são como todos nós. O corrector gramatical do Word não gostou da expressão tenham os dias contados. Propôs, no seu lugar, estejam a acabar. É um corrector que se leva demasiado a sério e quer todos os textos livres de chavões. Não percebe ele que o chavão, para este narrador, é como pão para a boca.
segunda-feira, 3 de junho de 2024
Adeus, dr. Freud
domingo, 2 de junho de 2024
Distinguir os dias da semana
O primeiro domingo de Junho deu continuidade ao primeiro sábado do mesmo mês, coisa que nem sempre acontece. Não me estava a referir, todavia, aos acidentes do calendário, mas à sociabilidade, à sociabilidade deste narrador, que continuou em alta com um almoço de aniversário. Deixemos as consequências dietéticas do evento de lado e concentremo-nos num assunto que me preocupa. Perguntei aos dois membros de um casal, ambos reformados há tempos, se distinguiam com clareza os dias da semana, se sabiam que estavam num sábado ou numa segunda-feira. Reconheceram ambos que essa distinção se foi apagando. Não está completamente rasurada, mas muito diminuída. Isso confirmou as minhas suspeitas. A distinção dos dias da semana só se mantém porque os seres humanos ainda não se libertaram da necessidade de trabalhar. Quando todos os dias são de descanso, é inútil saber se hoje é domingo ou quarta-feira. Quem quer saber? Isto ainda é mais acentuado num mundo onde a religião, com o ritmo das suas festividades, se tornou, mesmo para os crentes, um assunto secundário na existência. Agora, vou preparar-me para enfrentar os 35 graus que me esperam lá no sítio onde continuo a distinguir os domingos das quartas-feiras.
sábado, 1 de junho de 2024
Sociabilidades
Não há inimigo maior das boas relações com a balança e a nutricionista do que a sociabilidade. Ser sociável implica um conjunto de rituais que acabam por fomentar comportamentos desviantes da boa forma e dos cuidados com a saúde. O almoço de hoje prolongou-se pelas horas dentro. Ora, mais do que aquilo que se come é o que se bebe. Mesmo que lento seja o ritmo do consumo, com o passar das horas vai-se acumulando o álcool e, com ele, as calorias, o peso e os efeitos nefastos na relação com a balança e, por extensão, com a pobre rapariga que acha ter por missão pôr-me de boa saúde. Enfim, ela não acha, mas faz o papel dela e eu finjo que acredito que ela crê ter essa missão. Seja como for, ainda há tempo para recuperar. Talvez por um sentimento de culpa, fiz uma belíssima caminhada, acumulei pontos cardio, passos e quilómetros. O pior é que amanhã tenho uma festa de aniversário e as tentações podem ser mais fortes do que o espírito de missão. Aliás, espírito de missão foi coisa que não me coube nos dotes recebidos, se é que recebi algum. Em contrapartida, fui dotado com uma boa dose de quedas em tentação. Acho que não vou jantar. Não por autopunição, mas porque me falece o apetite. Amanhã será outro dia, o segundo de Junho, mês que começou atravessado.
sexta-feira, 31 de maio de 2024
Uma conspiração
Acabei de fazer uma viagem de treze graus. Saí do sítio onde me acolho com uma temperatura de 36o e cheguei a onde me encontro com uma temperatura de 23o. Aliás, a viagem tanto em tempo como em quilómetros é curta para os dias de hoje. Maio acaba enlouquecido e apostado em enlouquecer quem tem de penar pelos sítios onde a brisa marítima se recusa a chegar. Daqui a pouco, irei caminhar na amenidade da temperatura. Um mistério assola a minha existência. Um dos dispositivos de leitura que tenho – um eReader – está com uma inclinação exagerada para se apagar. Carrego-o e ao fim de um dia dou com ele sem bateria. Já investiguei possíveis causas, eliminei-as, passei a cumprir as orientações fornecidas, mas o objecto não está de acordo. Talvez seja dotado de vontade, de livre-arbítrio e tome a decisão de se descarregar só para me confundir. Esta é uma hipótese que se deve levar a sério. Até hoje temos lidado com os objectos como se eles fossem meros mecanismos fabricados pelo homem e limitados na sua acção a cumprir as instruções que o seu criador lhes dá. Talvez esta visão das coisas esteja errada e sempre que os seres humanos criam um utensílio, seja para o que for, criam um ser que possui vontade própria e conspira para nos contrariar. Quem nunca teve uma avaria no carro? Quem nunca chegou a casa e deparou com electrodoméstico que se recusa a trabalhar? Ninguém. Dizer que isso é um acidente mecânico é uma explicação cândida, uma candura que os objectos aproveitam para frustrar os proprietários e divertirem-se à sua custa. Diversão, não poucas vezes, muito pouco em conta. Os filósofos pré-socráticos, os de Mileto, estavam convencidos de que tudo no mundo estava dotado de vida e de alma, digamos assim. Era uma visão de homens experimentados e que não se deixavam enganar pelas coisas que se fingiam mortas. Nós, homens contemporâneos, perdemos essa capacidade de compreender as coisas e somos, a cada instante, zombados por seres que se recusam a cumprir as tarefas para os quais os destinámos. Talvez estejam a congeminar uma insurreição. Como se vê, o tempo fresco não me é mais favorável ao pensamento do que o calor infernal.
quinta-feira, 30 de maio de 2024
Mediador comunicacional
terça-feira, 28 de maio de 2024
Homens e ilhas
Lê-se Próximo, apenas o interior; o demais está afastado, e pensa-se, talvez, no próprio homem, onde a coisa mais próxima de si é a sua interioridade e o resto está, irremediavelmente, afastado. No entanto, o verso citado, é o início do terceiro poema de um pequeno ciclo, com três composições, denominado A Ilha – Mar do Norte, de Rainer Maria Rilke. O poeta escreve não sobre os homens, mas sobre uma ilha, e, como se sabe, nenhum homem é uma ilha. Isto foi escrito muito antes por John Donne, um poeta inglês que nasceu 303 anos antes de Rilke. O poema de Donne acaba com três versos muito conhecidos: E, portanto, não procures saber / Por quem o sino dobra. / Ele dobra por ti. Para o poeta inglês, cada um é parte do todo, um elemento, A morte de cada homem diminui-me /Pois sou parte da humanidade. Que o poeta tivesse de o afirmar significa que essa comunhão entre todos os homens estaria já em processo de dissolução, o indivíduo nascia na consciência europeia, e o indivíduo é aquele que, ao escutar o dobrar de um sino, sabe que não é por ele que o sino dobra. Rilke pertence já a um mundo em que a ideia de uma pertença radical ao fundo da espécie estava apagada. A morte do outro não é a minha morte, pois a humanidade é, agora, uma mera abstracção, fundada na soma de indivíduos. Talvez o poema de Rilke sobre uma ilha seja, afinal, um poema sobre o indivíduo, pois ele pertence já a um mundo em que cada homem é uma ilha.
segunda-feira, 27 de maio de 2024
O verdadeiro conservador
Hoje o dia prolongou-se em afazeres diversos, de tal maneira que cheguei tarde a casa. Pior, as andanças toldaram-me a imaginação, o dia não foi propício a aventuras, a não ser a avaria de uma persiana, logo a do quarto. A luz entrou por ele dentro, mal se fez presente por aqui. A empresa garantiu que vem tratar do assunto, mas só amanhã. Vão ser dois dias a acordar mais cedo. Podia mudar de quarto. É verdade, mas há velhos hábitos que é melhor não os ofender. Mudar de quarto implica mudar de cama, coisa para que me falta o apetite. Descobri que tinha uma costela conservadora quando percebi que, por exemplo, num café, tinha um lugar predilecto e se ele estava ocupado, sentia em mim uma contrariedade. Depois, deixei de ir a cafés. O conservadorismo, ao contrário de se diz por aí, não é uma atitude geral perante o mundo, nem uma ideologia política, mas uma certa relação com o espaço. Um conservador, um dos autênticos, preocupa-se apenas e só em preservar os espaços. Assegurar que eles evitam a rasura do tempo, esse inimigo visceral do espaço. Um conservador sabe que não pode parar o tempo, então trata de imobilizar os espaços e de se imobilizar neles. Por isso, não é um cultor da viagem. As pessoas gostam de viajar e adoram contar as suas viagens, de tal modo que um conservador pensa que as pessoas viajam apenas por amor ao momento em que contam a viagem. Um conservador espacial, como este narrador, quando viaja, fá-lo contrariado e, se instado a falar sobre a viagem, diz que teve de ir a um certo sítio, dando a entender que o fez contrariado, como se cumprisse um dever. Por isso, prefiro ser incomodado pela luz matinal a mudar de sítio para dormir. Não seria uma grande viagem, mas não deixaria de ser uma infidelidade espacial.
domingo, 26 de maio de 2024
Herói e anti-herói
sábado, 25 de maio de 2024
O verdadeiro niilismo
sexta-feira, 24 de maio de 2024
Nunca falhamos
O dia já esteve quente, permitindo aquela experiência de alívio e pacificação que se dá quando se vem do calor e se chega a casa. As orquídeas estão belíssimas, mas há ainda algumas por florescer, serôdias. Talvez uma ou outra não o faça. De uma das janelas avisto dois jacarandás. Um está coberto por um manto lilás azulado, mas o outro falhou o grande espectáculo. Aliás, todos os anos é assim. Terá sido plantado em lugar inapropriado. Isso também acontece a muita gente. Plantada em lugar que não é próprio, falha o grande momento. O que será para um ser humano o grande momento? É a vida. Por longa que seja, não passa de um momento e não haverá momento maior para alguém do que esse. Daqui a uma semana, Maio estará no seu último dia. Mais umas horas e evaporar-se-á, não para atmosfera, mas para o nada, que é o sítio de onde vem e para o vai o tempo. O tempo é a estrada que liga os vários – os infinitos – nadas. É por ela que vamos e, por estranho que pareça, nunca nos enganamos no caminho. Nunca falhamos o nada.
quinta-feira, 23 de maio de 2024
Acumulações
Os dias continuam a crescer. A temperatura, agora, também aumenta. Nesta corrida, os dias vão perder. Vão cessar de aumentar mais rapidamente do que a temperatura. Eis uma meditação que não serve a ninguém. É assim que concebo a minha sabedoria. Um conjunto de informações inócuas, cuja finalidade não se descortina. Fui acumulando informação atrás de informação. Elas, as informações, em vez de se integrarem num todo harmonioso, acumularam-se num armazém sem ordem. Preciso de uma, então lanço a mão ao armazém e uso a primeira que me aparece. Basta olhar para estes textos. São fruto de lançar a mão e apanhar aquilo que aparece em primeiro lugar. O que acontece comigo, imagino que acontecerá com muitas outras pessoas, mas não tenho a certeza. Nunca fui outra pessoa. Já ser esta é uma tarefa hercúlea, quanto fará ser esta e outra. Talvez Fernando Pessoa, ao ser tantos, fosse, na realidade, um Hércules. Apesar disso, morreu cedo. Ser tantos pesou-lhe na alma e deu-lhe cabo do corpo. Se Pessoa vivesse hoje, iria ao ginásio. O exercício permitir-lhe-ia suportar-se a si e aos outos sis que ele era e prolongar a vida, para acumular mais sis. Ele acumulou sis, eu acumulo informações. São mais leves e, com o passar do tempo, elas vão desaparecendo do armazém. Não sei se elas são roubadas ou se saem pelo próprio pé. Conformo-me, pois devemos evitar a acumulação.
quarta-feira, 22 de maio de 2024
Profecias e exorcismos
Diante de mim, está pousado um romance que tem a guerra por pano de fundo. Trata-se de Abelhas Cinzentas, de Andrei Kurkov. O facto de, nos últimos tempos, estar a deparar-me com romances que têm esse horizonte na sua narrativa, quererá o dizer o quê? Premonição ou esconjuro? Será aviso de profeta ou acto de exorcista? Sou um mero narrador, um ser virtual, submetido ao arbítrio do autor, um espírito racional e educado nos valores do Iluminismo. Foi assim que o autor me concebeu. Como tal, não tenho inclinação nem para profeta nem para exorcista. Contudo, não era de mim que falava, mas dessa disposição das coisas que teima em colocar perante os meus olhos esse tipo de literatura. Se há uma disposição, então terá de haver alguém que tenha essa disposição, terá de existir aquele que dispõe. Será ele, ou ela, que é profeta ou esconjurador e utiliza a literatura como instrumento para cumprir a sua missão. Não é indiferente se se está perante a acção de um profeta ou de um exorcista. Se for um profeta, ainda nos encontramos na fase da anunciação de um mal que poderá ocorrer no futuro. Se for um exorcista, então estamos já em plena vigência do mal e esta comunicação através de obras romanescas é um ritual usado para afugentar a malignidade que ainda por aí à solta. É o que me ocorre por hoje, dia em que não me ocorreu nada.