quinta-feira, 10 de outubro de 2024

Nobel da literatura

De Han Kang, agora premiada com o Nobel, apenas li A Vegetariana, de que gostei bastante. Como não acompanho as intrigas em torno do prémio, fiquei surpreendido com a atribuição. Até porque a premiada é relativamente jovem, ainda na casa dos cinquenta. Tenho a convicção, talvez errada, de que a generalidade dos Nobel atribuídos na literatura é para autores já em fim de carreira, uma espécie de consagração final. Não será o caso da premiada deste ano. A ideia do prémio é interessante, mas sofre de um defeito. O facto de ser anual tornou o Prémio Nobel da Literatura uma banalidade. A princípio, mesmo durante décadas, isso não se notaria, mas agora que número de premiados é grande, muitos deles já esquecidos, a nobelização terá menos impacto no público do que há cem anos. O primeiro Nobel da literatura foi atribuído ao poeta francês Sully Prudhomme, em 1901. Quem lerá ainda os seus poemas? Imaginemos que o Prémio era dado de cinco em cinco anos. Os vinte contemplados num século formariam uma excepção. Com cem parece que a excepção se aproxima da regra. É uma hipérbole, mas torna patente a banalização de se ser laureado com o prémio. Depois, o impacto editorial torna-se cada vez menor. A atribuição do prémio a Jon Fosse, no ano passado, parece ter tido pouco ou nenhum efeito na velocidade da sua publicação em Portugal. E Jon Fosse é um grande escritor. Como haverá escritores que desejam ardentemente o Prémio, também haverá aqueles que fogem dele. Sartre, por exemplo, recusou-o. Pasternak foi obrigado a recusá-lo.

quarta-feira, 9 de outubro de 2024

Desreconhecimento

Ao acaso, numa das estantes, peguei um livro. Era de Oswald Spengler, uma tradução de 1980 publicada pela Guimarães, de O Homem e a Técnica. Ao ver o título, pensei por que raio terei comprado o livro se não o li. Ao abri-lo, porém, deparei-me com o livro todo sublinhado e anotado por mim. Uma das páginas brancas de separação de capítulo estava completamente escrita. Reconheço a minha letra. Eu li o livro. Estudei a obra. Mas será que o li mesmo, agora que não encontro em mim vestígio dessa leitura? Mesmo ao ler as anotações feitas pela minha mão, estas são-me estranhas. Uma novidade, apesar de serem esmagadoras as provas de que um dia terei dominado bem o que aquela obra diz. Tornei-me um estranho. Entre mim e mim há um hiato, no qual esse mim anterior se tornou um outro, um radicalmente outro, perante o qual não há reconhecimento. Não se trata de uma desavença como aquela que dá vida a um dos poemas portugueses de que mais gosto, Comigo me desavim / Sou posto em todo o perigo; / Não posso viver comigo / Nem posso fugir de mim. // Com dor da gente fugia, /Antes que esta assi crecesse: / Agora já fugiria / De mim, se de mim pudesse. / Que meo espero ou que fim / Do vão trabalho que sigo, / Pois que trago a mim comigo / Tamanho imigo de mim? O meu problema não é o de Sá de Miranda, pois este ainda se reconhece como inimigo de si mesmo. O meu caso é mais radical e mais triste. Deixei de me reconhecer. Só podemos ser inimigos daqueles que reconhecemos. A inimizade é uma forma, talvez superior, de reconhecimento do outro. Eu, apenas, me desreconheço. Nem para imigo de mim sirvo.

terça-feira, 8 de outubro de 2024

Pathos romântico

Imagino, por vezes, que o mundo teria sido melhor caso o Romantismo nunca tivesse existido. Um mundo onde a ascese da razão servisse para dissolver o espasmo emotivo seria menos dado a grandes perturbações. Quando se celebra o Romantismo sublinha-se a afirmação da individualidade e presume-se a benevolência da subjectividade. Esquece-se, porém, que esse romantismo originou o nacionalismo, ao qual acrescentou a alavanca da emoção e o martelo da paixão. O resultado dessa mistura de emoções, paixões e sentimentos fundados na subjectividade foi simples e objectivo, duas guerras mundiais. O Classicismo e o Iluminismo representavam a rédea curta com que o espírito apolíneo punha ordem no seu irmão, o espírito dionisíaco. Ora, o romantismo foi uma estratégia para Diónisos se libertar da dura disciplina que lhe travava o poder dissolvente inerente à sua natureza. Libertado o deus, o resultado, que ainda não acabou de se manifestar, não foi particularmente entusiasmante. E o problema não está no suicídio do jovem Werther ou do também jovem Simão. O problema está mesmo nos milhões de jovens que enxameiam os cemitérios militares e que não se suicidaram por amor, mas participaram em rituais de suicídio colectivo, criado por um pathos romântico.

segunda-feira, 7 de outubro de 2024

Sensatez e conversão

Quando andei na escola primária, o dia de abertura das aulas era a 7 de Outubro. Na primeira classe, na do meu ano, porém, as aulas começaram a oito, pois sete foi a um domingo. Era um calendário propício à criançada e ainda não consigo perceber por que motivo o meu neto já vai para a quarta semana de aulas. Compreendo que isso seja um alívio para os pais de hoje, mas o alívio dos adultos soa-me a tortura dos mais pequenos. O facto de o começo do ano escolar ser tardio não me impediu de fazer as aprendizagens que tinha de fazer e, estou desconfiado, nada garante que este acréscimo de quase um mês – e talvez não se fique por aqui – não acrescentará nada, do ponto de vista cognitivo, aos alunos. Dar-lhes-á, ainda mais, uma sensação de tédio e o sentimento de que aquilo nunca mais acaba. Pensei isto enquanto fazia a minha caminhada crepuscular. Aproveitei uma aberta e pus-me ao caminho e quando estava mesmo a chegar a casa lembrei-me de que devia comprar nozes. A frutaria é mesmo ao lado. Entrei, comprei nozes e diospiros. De nozes sempre gostei, mas os diospiros é amor recente. Aliás, foi um velho ódio que se transformou em amor, talvez numa paixão. Como se deu essa transformação no meu gosto? Não faço ideia. Foi uma conversão. Paulo de Tarso, a caminho de Damasco, teve uma visão ou audição de vozes e do ódio aos cristãos passou a ter por eles um amor zeloso. A minha estrada de Damasco foi mais prosaica, apenas me converteu à fruta odiada, mas não tive visões nem audições especiais. Hoje é 7 de Outubro, se houvesse sensatez neste país, era hoje que o meu neto começaria as aulas.

domingo, 6 de outubro de 2024

Tigres de papel

Não devia escrever estas coisas aqui, mas não resisti a citar um texto de um homem político que, noutros tempos, inflamou o coração de jovens fogosos, mas que não encontravam quem lhes apagasse o fogo. Espero do autor destes textos e proprietário do blog a caridade da indulgência para com este quase fiel narrador. O homem político é Mao Tse-Tung, alguém que escreveu coisas (sic) com títulos extraordinários, como Uma simples faísca pode pegar fogo a toda a pradaria. Imagino que fosse isso que atraísse os jovens fogosos do Ocidente, que viram nele um deus, que, sabemos hoje, era um deus que não passava de um tigre de papel, uma adaptação de outro título do mesmo homem forte da China, o célebre O imperialismo americano é um tigre de papel. Ora, aquilo que prendeu a minha atenção, foi um título mais prosaico, Conversa sobre questões de filosofia. O texto começa da melhor maneira: Só quando há luta de classes pode haver filosofia. É uma perda de tempo discutir epistemologia à parte da prática. Os camaradas que estudam filosofia deviam ir para o campo. Deviam ir para lá este Inverno ou na Primavera que vem para participarem na luta de classes. Os que não estão bem de saúde também deviam ir. Ir lá não mata ninguém. O mais que lhes acontece é apanharem uma constipação, e se se agasalharem bem não há problema. Não sei a razão, mas isto fez-me lembrar o nosso actual Presidente da República, numa daquelas declarações que faz quando vai ao multibanco ou decide ir comer um gelado. Deixemos, porém, as analogias de lado, pois são sempre enganadoras. Há nestas declarações duas coisas extraordinárias. A primeira liga-se à questão filosófica. Para compreender o racionalismo de Descartes, o empirismo de Locke e Hume ou o transcendentalismo de Kant, não há nada melhor do que ir para o campo, embora, imagino eu, o campo nunca tenha inspirado qualquer teoria epistemológica. A outra coisa é que os camaradas que estudam filosofia – por certo, um equívoco – deviam ir para o campo, não para trabalhar no campo, mas para participarem na luta de classes. Eram coisas destas que incendiavam imaginações no Ocidente, o que é compreensível. Uma razão sensata logo descobriria a infantilidade destas ideias. Só a imaginação, talvez sob efeito de algum psicotrópico, veria nelas um futuro radioso para a humanidade. Ou talvez aquilo que maravilhasse a juventude europeia dos anos sessenta e setenta do século passado fosse o cuidado que o grande timoneiro – era assim conhecido o homem político em causa – tinha com a saúde dos doentes e o agasalho dos friorentos.

sábado, 5 de outubro de 2024

Dia do começo e do recomeço

Hoje é, neste país, o dia do começa e do recomeço. A 5 de Outubro de 1143, começou este país. Como era costume, o início foi uma Monarquia, o Reino de Portugal. Quase oito século depois, talvez porque o país estivesse cansado, isto de acumular séculos exaure as forças a qualquer um, deu-se o recomeço e, como era costume, o reinício foi uma República. Há grandes lições a tirar de tudo isto. O dia 5 de Outubro é privilegiado para começar ou recomeçar qualquer coisa. Se alguém se quiser casar, aconselho o 5 de Outubro, mas se se divorciou e quer recomeçar, nada melhor do que um 5 de Outubro. Começos e recomeços garantidos. A outra lição, mais de índole política, ou melhor, de psicologia colectiva, é que este país é um fiel seguidor da moda. Se a moda é o reino, então ele é um reino. Se a moda muda e se torna republicana, logo ele renasce como república. Nos dias que correm, não há uma querela, a não ser em grupos ínfimos de monárquicos tardios, sobre a questão da república e da monarquia. Felizmente, pois é uma querela sem sentido. Não é a ideia monárquica ou a ideia republicana que nos guiam, é a moda. Se a moda for monárquica, seremos monárquicos. Se for republicana, seremos republicanos. O que diz isto da nossa psicologia colectiva? Diz-nos que somos uma comunidade precavida e que não gosta de contrariar o Zeitgeist. É essa precaução que nos tornou um país de brandos costumes. Eles são brandos porque não são nossos. Usamo-los como quem usa um casaco emprestado, que um dia devolverá. Aqui que ninguém nos ouve, nós nunca fizemos grande questão de ser um reino nem uma república. E nisto reside a nossa virtude.

sexta-feira, 4 de outubro de 2024

Teoria sonora

Acabei de fechar uma janela. O zunir incansável de um ar condicionado entrava pelo escritório e aninhava-se no recôndito da minha mente, caso eu tenha mente e esta possua um âmago escondido não sei bem onde. Estes barulhos mecânicos são uma prova da existência do inferno, pois todos eles são infernais. Ora, se há coisas infernais, então o inferno existe. Esse inferno manifesta-se onde menos se espera. Por exemplo, no parque infantil aqui em baixo, onde as cadeiras de baloiço, em que crianças, sob o olhar de pais cansados, vão e vêm, rangem como mil belzebus depois de uma noite de copos ou mesmo de sex, drugs and rock ‘n’ roll. Até o meu carro está possuído por um súcubo que o faz arfar de modo despudorado. Para a semana, levo-o à oficina para o exorcizarem. Pode-se pensar que esta ligação entre o ruído mecânico e os ventos infernais é pura especulação de um ocioso, numa tarde de sexta-feira anunciadora da ociosidade do fim-de-semana. Não é. A prova é que o céu – isto é, os poderes celestiais – também têm também a sua sonoridade, na vibração das cordas da harpa, da lira ou da cítara. E aqui reside o magno problema da nossa civilização. Enquanto os ruídos mecânicos rangem, guincham, chiam e resfolegam por tudo o que é sítio, harpas, liras e cítaras escondem-se, como se fossem tomadas pela timidez perante o despudor de um caos mecânico. Um dia destes ainda escreverei um apocalipse.

quinta-feira, 3 de outubro de 2024

A benévola ilusão

Respiro fundo e penso que todos chegamos a um momento em que percebemos que o nosso tempo passou, que já não conseguimos lidar com a realidade tal como tínhamos feito. Nesse momento, percebe-se que se está a mais, e que é tempo de ocupar os dias de outro modo, um modo que a realidade nos permita. Não sei se pensei isto ou se o terei sonhado, pois, como o disse Descartes, não há critério seguro para distinguir o sonho da vigília. Aliás, com o passar dos anos descobrimos que não há critério seguro seja para o que for. O que existe é uma ilusão, a certa altura da vida, em que se é detentor de critérios seguros para o que se pensa e para o que se faz. É essa ilusão que evita que soçobremos num cepticismo contumaz e na mais pura apatia. A natureza, com a generalidade das espécies, foi generosa, pois não as dotou da faculdade de pensar e ligou-as às respostas instintivas que lhes permite sobreviver, sem que possam pensar nisso. Com a espécie humana, a mesma natureza decidiu fazer uma experiência e dotou-a de pensamento. Logo percebeu que a ideia não fora a melhor, pois pensar pode ter as mais funestas consequências para uma espécie que sabe que sabe que sabe que é finita e limitada. Então, essa mesma natureza, compadecida dos homens, deu-lhes a imaginação para fabricarem as ilusões que os prendem à existência, que lhes disfarça mesmo a evidência de que o seu tempo passou.

quarta-feira, 2 de outubro de 2024

Esperança

A saga do código para facultar a quem me entregue a encomenda continua. Ontem, não me entregaram aquilo que anunciaram entregar. Fizeram nova anunciação hoje, decretando a hora da entrega entre as quinze e as dezasseis. Caminhamos rapidamente para as dezoito, e nada de encomenda. Eu percebo bem a pessoa que anda na distribuição. É um pacote com livros e tudo o que se relacione com livros não implica pressa. É coisa de gente ociosa. Para piorar as coisas, fiz nova encomenda na mesma editora. Os três volumes das obras completas de Mário-Henrique Leiria e outros três volumes das Mil e Uma Noites, numa primeira tradução feita a partir dos mais antigos manuscritos árabes existentes. Deixemos estas coisas de lado, tudo se há-de compor, e se os Reis Magos, vindos do longínquo Oriente, conseguiram chegar a Belém, apenas com uma estrela por GPS, também o condutor da distribuidora há-de encontrar o caminho até aqui. Espero, e esperar é um sinal de esperança. Acabei há pouco uma daquelas reuniões em videoconferência, que, por amor à exactidão, se deveriam chamar vídeo-reuniões. Estas coisas acontecem para que os participantes se sintam pessoas modernas, pois seria uma grande tristeza alguém viver em plena modernidade – ou mesmo na pós-modernidade – e não se sentir moderno. Agora, não há livro que não traga em si um marcador de livros. Acumulo-os numa caixa, mas aquele de que mais gosto é um da velha livraria Buchholz. Há muito que não entro lá. E ao pensar nisto, senti-me como um traidor. Tenho de lá voltar um dia destes e levo as minhas netas, para uma visita cultural. Além de livros, há música clássica e música etnográfica, músicas do mundo, por norma, de grande qualidade. Vou caminhar um pouco, antes que chegue o crepúsculo.

terça-feira, 1 de outubro de 2024

Um código por facultar

Aqui estou eu, obediente, à espera. Recebi um SMS de uma transportadora que me informa – talvez me avise, não sei bem – que a encomenda com a referência tal será hoje entregue entre as 15:30 e as 16:30. Enviaram-me um código que deverei facultar a quem me entregar aquilo de que estou à espera. Antecipei a ida à farmácia, de modo a estar bem antes das 15:30 em casa e, neste momento, já passam das dezassete horas. Ainda não consegui facultar o código a ninguém e persisto neste acto de espera. Ainda sugeri, a quem fiz a encomenda, que a enviasse para um ponto de recolha. Seria tudo mais fácil. Decidiram, porém, que estava na altura de testarem a minha paciência e decidiram o contrário do que tinha sugerido, aliás em resposta a uma pergunta que me foi feita. Talvez Portugal seja um país difícil. Por que razão fazem perguntas, se não estão dispostos a ouvir a resposta? Por que motivo estipulam horas que jamais hão-de cumprir? Tenho uma teoria. Esta coisa de fazer perguntas ao cliente ou de estipular horários com algum rigor é uma cobertura de modernização importada do estrangeiro, daqueles sítios em que os clientes são pessoas a ser estimadas e os horários são para cumprir, caso contrário isso tem consequências negativas. Como por aqui não há qualquer consequência, os velhos costumes dum país saído há pouco da Idade Média rompem com enorme facilidade aquela finíssima capa de verniz com que se esconde a autocomplacência perante si e o desprezo pelo outro. Continuo à espera. Precisava de sair, mas se não receber hoje a encomenda, no caso de a virem entregar, vai ser o cabo dos trabalhos para que me chegue às mãos. Continuo com o código e não tenho a quem o faculte.

segunda-feira, 30 de setembro de 2024

O meu vento

As segundas-feiras tornaram-se muito cansativas. As coisas pioram se há calor, como hoje. Quando chego a casa e me sento à secretária, o corpo, de imediato, inclina-se para uma sesta tardia. Umas vezes cedo, outras resisto. Hoje resisti um pouco e cedi um pouco. Se tivesse ido caminhar o dilema não se punha, mas estava demasiado quente. Agora, enquanto escrevo, vou espreitando o céu e a aproximação do crepúsculo, essa hora em que a luz indecisa não sabe se há-de retornar ao dia ou se mergulhar nas trevas da noite. Depois, um férreo determinismo leva-a para a longe, para retornar com a aurora, não sem que uma nova fase crepuscular se exiba, embora com um desfecho contrário. Na avenida, os carros passam lentamente, as pessoas apressam-se nos passeios e o vento toca com dedos suaves a melancolia das tílias. Por vezes, recordo-me do modo como o vento soprava junto à primeira escola que frequentei. Era de uma maneira especial, que nunca encontrei em qualquer outro lado. Indescritível para os meus parcos poderes literários. Essa escola há muito que não é escola, mas o vento, estou certo, ainda corre da mesma maneira que corria nos dois anos que a frequentei. Várias vezes, durante a vida, fui lá só para comprovar que não era uma fantasia infantil ou uma ilusão sensorial. Nunca saí defraudado. Aquele é o meu vento.

domingo, 29 de setembro de 2024

Um domingo na província

Está um autêntico domingo de província. A frase anterior, desconfio, é destituído de conteúdo. Não quer dizer nada, pois domingos de província deverá haver muitos e para diferentes gostos. Quanto à autenticidade, a coisa ainda é mais espinhosa. Como se poderia falsificar um domingo provinciano desde que ele esteja certificado pelo calendário e pelo mapa? Poder-se-á argumentar que calendários e mapas são coisas sobre as quais poderá recair justificada dúvida. Não são os calendários produtos convencionados pelos poderes humanos? Não são os mapas, apesar dos esforços técnicos, susceptíveis de erros? É verdade, mas devemos confiar nas convenções que subsistem há tanto tempo, assim como no trabalho técnico que insiste, em múltiplas versões, em mostrar que esta cidade, que se engrandeceria caso fosse promovida a vila, não é a capital deste velho país, um dos mais velhos do mundo, saliente-se. Confiantes na gestão tradicional do tempo e do espaço, dizer, quando se está na província a um domingo, que está um autêntico domingo de província é falar – neste caso escrever – para não estar calado. Talvez seja o resultado de um almoço em família ou com parte da família. O resultado é a rasura dos assuntos. Contudo, posso contar uma coisa. Descobri há dias um autor polaco com o nome Stanisław Ignacy Witkiewicz (1885-1939). Terá sido um génio de múltiplas facetas. Pintor, dramaturgo, romancista. Além disso ainda realizou um filme e escreveu sobre Filosofia da Arte. Fazia parte do imenso oceano da minha ignorância. Parece que o seu romance Nienasycenie (Insaciabilidade), de 1930, é uma obra-prima modernista. Não está traduzida em português e de polaco sei tanto quanto de chinês. Poderia encomendar a tradução francesa, o que, por precipitação, fiz. Repousa diante de mim. Contudo, ocorreu-me outra estratégia. Como as obras Witkiewicz estão no domínio público, talvez as conseguisse encontrar num site polaco. O que confirmei em pouco tempo. O passo seguinte foi ir traduzindo, com a ajuda da inteligência artificial, o romance para português. Está traduzido cerca de um quarto das quase seiscentas páginas do romance original. Mais uns dias e estará completamente traduzido. Lê-lo-ei em português. O resultado da tradução automática é melhor, muito melhor do que poderia esperar. Por vezes, comparo um ou outro trecho com a tradução francesa e vejo que o chatbot se sai bastante bem. Não será perfeito, mas eu também não. E nesta tradução foi-se parte do meu domingo autenticamente provinciano.

sábado, 28 de setembro de 2024

Ciência na enfusa

Alguém terá confundido ciência infusa com ciência na enfusa. Eis um equívoco desagradável. Por aqui, chama-se enfusa – não se diz, nesta terra, infusa, embora se possa, ou talvez deva, escrever e dizer – a uma espécie de bilha que se enche com água, eventualmente, com outros líquidos. Aliás, nunca cheguei a perceber a diferença entre bilhas, cântaros e enfusas ou infusas. Também, seja dita a verdade, nunca me interessei pelo assunto. Deixemos de lado os preâmbulos e as taxionomias dos recipientes para transportar líquidos e entremos no assunto mesmo. A ciência infusa é aquela que, transcendendo a compreensão humana, Deus decide infundir num mortal eleito. É uma ciência do outro mundo. Já a ciência na enfusa é aquela que um mortal, esquecido de Deus ou esquecido por este, acumula numa espécie de cântaro – aqui chamado enfusa, recordo – que é a sua mente. A primeira é um dom, a segunda, um vício. A realidade diz-nos que são poucos os casos de ciência infusa, mas são legião os casos de ciência na enfusa. Esta, note-se, não é bem uma ciência, como o são a Física, a Química. Trata-se mais de uma recolecção abundante de informações variadas, sem estruturação digna desse nome, cuja utilidade cognitiva é nula e ainda menor é a sua utilidade prática. Tudo isto para dizer que aquilo que se pratica aqui é uma forma severa de ciência na enfusa, já que este narrador – e ainda menos o seu autor – não foi agraciado (de receber a graça) com a ciência infusa.

sexta-feira, 27 de setembro de 2024

Uma hipótese

Estou de cara ao lado. Falso. Sinto que estou de cara ao lado, mas não estou. Por causa das dúvidas, postei-me diante de um espelho e a cara pareceu-me normal, embora isso possa ser discutível. Apesar da afirmação inicial ser falsa, o sentimento é verdadeiro. Tenho parte da cara ainda sob efeitos de uma anestesia. O dentista achou por bem desvitalizar-me dois dentes e anestesiou-me. Não senti nada daquilo que ele fez, mas fiquei com esta estranha sensação de lateralidade facial. No fim da consulta, recebi o conselho de não comer nada na próxima hora, não vá morder-me a mim mesmo. Tudo isto serve para demonstrar uma tese sobre o mundo. Mesmo que, por hipótese, o senhor Gottfried Wilhelm Leibniz tenha razão e este seja o melhor dos mundos possíveis, ainda há nele muita coisa a melhorar. Por exemplo, ser anestesiado, sofrer o ataque do Sétimo Regimento de Cavalaria, dirigido pelo tenente-coronel Custer, antes da derrota em Little Bighorn, contra os dentes, não sentir nada, não ter a sensação de cara ao lado e poder comer mal se sai do consultório. Como se vê, há muitas coisas a melhorar neste mundo. Entre as coisas que poderiam ser melhoradas está o nome do senhor Leibniz. Que pai tinha ele para lhe chamar Godofredo Guilherme? Poder-se-ia melhorar o pai de Leibniz. Também os americanos gostariam de melhorar o resultado da batalha em Little Bighorne, onde foram derrotados pelas forças índias comandadas por Sitting Bull e Crazy Horse. Contudo, desde que os homens foram expulsos do paraíso, as melhorias retrospectivas foram descontinuadas e o Leibniz arrastará pela eternidade fora a alcunha de Godofredo Guilherme e o pobre do Custer nunca vencerá qualquer Touro Sentado ou Cavalo Louco. A anestesia talvez afecte o sistema neuronal. É uma hipótese.

quinta-feira, 26 de setembro de 2024

Vida quotidiana

O dia começou sob intensos aguaceiros, mas as coisas foram-se alterando, de tal modo que agora, enquanto escrevo, há um sol alegre, saltitante, uma luz que anima quem passa. As sombras crescem, esculpem relevos fugidios no alcatrão, e adormecem pisadas pela velocidade dos carros, ansiosos de chegar a casa e deixar o motor descansar. No meu carro, o rádio avariou-se, entrou em greve, fez voto de silêncio. Tenho de ver o que se passa, não eu que de rádios grevistas ou com tendências monacais nada sei, mas alguém que se dedique a essas coisas, nem que seja a de me trocar este por um novo, pouco dado à greve ou ao silêncio dos mosteiros. Daqui a pouco vou aproveitar e caminhar, para apanhar ar e encher-me de imagens destes sítios que conheço de olhos fechados – uma evidente falsidade – e onde amealho pontos cardio, os quais me haverão de ser úteis, caso a Organização Mundial de Saúde não se entregue à mentira. Ela ou quem declama as suas recomendações. Acabei de bocejar e logo um pensamento nasceu em mim sussurrando-me que o melhor era dormir um pouco. Há que resistir.

quarta-feira, 25 de setembro de 2024

Em memória

Chove e faz calor. Voltei à minha função de boletim meteorológico. É o que faz a falta de ideias. Imagino que esta esteja ligada à vida sedentária a que o tempo chuvoso me obriga. Se caminhasse por aí, alguma coisa me ocorreria. Assim, nada me ocorre. Há pouco, olhei para os frisos – agora já são dois – de orquídeas. Ainda há três em plena floração. As outras, depois da hora de cintilação, adormeceram, deixando cair as flores, como quem se despe para ir para a cama. Hoje, estive numa longa reunião, em videoconferência. Quando acabou, pensei que já não tinha idade para coisas daquelas. Depois, tive de admitir que nunca tive idade – isto é, saco – para aquele tipo de actividade, onde as pessoas derramam as palavras como se elas não tivessem custado toda uma longa história para se formarem e estarem prontas para o nosso uso. Em memória dessa história, deveríamos ser comedidos na sua utilização. Calo-me.

terça-feira, 24 de setembro de 2024

Passagens

Está um dia de Outono, sereno, melancólico e tocado pelo cinzento-claro dos céus. Uma luz pálida derrama-se sobre a cidade. Indiferentes, as pessoas passam, perdem-se no dia-a-dia. Levar e buscar os filhos ou netos à escola, fazer compras, entrar neste ou naquele estabelecimento, passear à trela um cão. Eu olho e deixo o tempo passar. Virá o crepúsculo e, logo de seguida, a noite escura. Que outra coisa pode um mortal fazer senão deixar o tempo passar? Enquanto passa o tempo, também em nós passam os pensamentos e as imagens. Fluem, arrastados por uma água sem nome, e, se formos atentos, vemo-los passar e podemos dizer: ali vão os nossos pensamentos e as nossas imagens, são como ramos de árvores secas arrastados pela força das águas. E isso dá-nos prazer, pois sentimos que nos libertamos deles, do seu peso e da carga emotiva que têm. Essa ingénua rêverie tem um efeito terapêutico, reconciliando-nos com a passagem do tempo. Uma brisa suave – um poeta antigo diria um zéfiro – toca as folhas das árvores, e elas dançam diante dos meus olhos.

segunda-feira, 23 de setembro de 2024

Véu da ignorância

Voltou a segunda-feira. Os dias da semana têm este problema, substituem-se uns aos outros com inexcedível regularidade e uma monotonia sem fim. O mais curioso é que a sua invenção propunha-se pôr fim a uma outra monotonia, a da indiferenciação dos dias, os quais se seguiam uns aos outros sem nada que permitisse distingui-los. O Sol nascia, fazia a sua jornada e punha-se, como quem entra no quarto para se deitar e dormir. O pior seria a sensação de que os dias iam diminuindo e que poderiam soçobrar na noite eterna. Há muitas coisas que seria muito interessante, embora ocioso, saber. Imaginemos os nossos antepassados de há cinquenta mil anos. Como se relacionariam eles com o dia e a noite, com a passagem das estações ou com as metamorfoses da luz? Sabemos hoje, graças à análise genética, que sapiens sapiens e neandertais se cruzaram e que parte da humanidade possui genes dos neandertais. Esse cruzamento ter-se-á dado há dezenas de milhares de anos, mas parece não ter ficado registado na memória colectiva, na tradição. Sabemo-lo por recurso técnicas analíticas muito sofisticadas. Isto coloca um outro problema, que é o da duração da memória colectiva. Quanto tempo permanecem, cifrados em mitos e lendas, na memória colectiva acontecimentos memoráveis? Quando penso nisto, tenha sempre uma sensação de tristeza pela ignorância efectiva sobre quem somos. Sabemos alguma coisa até há alguns milhares de anos, mas depois o véu do esquecimento é cada vez mais negro, como se uma parte do que somos se devesse ocultar, talvez para que possamos viver com o que somos.

domingo, 22 de setembro de 2024

Mitos e rituais de passagem

Tenho uma neta outonal. Hoje começa o Outono, neste ano de 2024, e ela faz 16 anos. Parece que fazer 16 anos, nos dias que correm, é uma marca importante. Eu não me lembro quando os fiz, mas tenho a certeza de que os 16 não se destacavam dos 15 ou dos 17. Mesmo os 18 eram ofuscados pelos 21, altura em que se atingia a maioridade. Ainda tive de ser emancipado para tirar a carta de condução. Os rituais de passagem mudam com o tempo, mas, o mais decisivo, é que não passamos sem eles. As sociedades modernas, as sociedades desencantadas, colocaram de lado mitos e rituais. O que aconteceu, porém, é que tanto uns como outros se multiplicaram. Por vezes, como ervas daninhas. Não são os grandes mitos e os grandes rituais que dão sentido às existências, mas os pequenos mitos e os rituais insignificantes que assumem esse papel. Por isso, a pequena mitologia, com os seus rituais, do grupo desta minha neta, já não terá qualquer sentido para a irmã, com menos dois anos e meio e muito menos para o meu neto, com menos dez anos. Seja como for, são muito importantes para ela e vou-me despachar para que possa participar numa parte desses rituais e dar força à sua mitologia privada.

sábado, 21 de setembro de 2024

Da autenticidade

Retorno a uma referência anterior, a Gilles Lipovetsky e um título musical de um livro que está na fronteira da Filosofia e da não Filosofia, A Sagração da Autenticidade. A natureza musical deste título deve-se a um empréstimo ao bailado de Igor Stravinsky A Sagração da Primavera. Esta é uma peça musical – e de dança, um bailado originalmente produzido por Sergei Diaghilev e coreografada por Nijinsky – que, durante uma parte da minha vida, considerei como o começo musical do século XX, embora a sua estreia tenha ocorrido em 1913. Nessa altura, considerava que o século XX musical terminava com a terceira sinfonia de Henry Górecky, composta em 1976. Roubava 37 anos ao século, mas sentia que as coisas eram assim. Passei muitas tardes a ouvir a Sagração da Primavera seguida da terceira de Góreky. Há muito que não o faço e deixei de ter qualquer ideia sobre o começo e o fim do século XX musical. Ora, o título do livro de Lipovetsky é uma clara citação da tradução inglesa da peça de Stravinsky, que no original russo parece denominar-se A Fonte da Primavera. Hoje recolhem-se todas estas informações em segundos, desde que se saiba aquilo que se quer perguntar. Ora, sagrar a autenticidade é sagrar um equívoco. O que é ser autêntico? É, ao mesmo tempo, ser sincero – ser uma expressão sincera de si mesmo – e ser autor, autor de si. Por norma, pensamos a sinceridade como expressão espontânea, natural e não fabricada de si, mas isso choca com a autenticidade de ser autor de si, pois esse si já não é espontâneo, mas uma fabricação, ou, melhor, uma ficção. Talvez, e isso salvará o título de Lipovetsky, tudo o que é sagrado o seja por ser equívoco, como o é, por exemplo, o Deus do Antigo Testamento, o Deus da ira e o Deus da misericórdia.