domingo, 16 de agosto de 2020

Um sapo perturbado

É nos dias de Agosto que mais vezes frequento cafés ou esplanadas. Imagino que seja uma forma de me alienar e de esquecer toda a ambiguidade que se oculta no coração deste mês, o mais cruel dos meses, ao contrário do que pensava Eliot, que via essa crueldade excessiva e inultrapassável em Abril. Nesses espaços públicos que frequento para fugir à maldade de Agosto, ponho-me a observar a humanidade que se expõe diante dos meus olhos. É então que recordo o príncipe Saurau e digo para mim que não há, em toda a literatura ocidental, personagem que melhor retrate a nossa humanidade que o príncipe. Pobre e ricos, famosos e ignorados, corajosos e cobardes, inteligentes e estúpidos, nómadas e sedentários, qualquer que seja a categoria em que se acolha um ser humano, ele não deixa de ser uma emanação do príncipe Saurau, uma exalação lamentável da sua perturbante perturbação. Há qualquer coisa de errado em todos nós, em mim como em todos os outros, um erro que se foi acumulando ao longo dos séculos. Pensei isto quando estava na esplanada e não me apetecia ler o jornal. Thomas Bernhard, o criador do príncipe Saurau, é um dos maiores escritores do século XX, leio num artigo americano, mas o autor sublinha que nunca será muito lido no mundo anglo-saxónico, habituado a uma literatura fundada numa intriga claramente desenhada. Em Bernhard não existe nada disso, apenas a perturbação da nossa espécie exposta de forma cruel, de uma forma encantatória. O monólogo do príncipe, no romance Perturbação, ocupa talvez umas cem páginas, que começando a ser lidas ou rapidamente se põem de lado, ou se fica preso nelas e se percebe, então, que Saurau é mais que uma personagem, é um arquétipo do homem perturbado que se manifesta em cada um. Tanto nos que são alienados, como naqueles que são conscientes e cheios de causas, estes são ainda piores que os outros, porque ter uma causa é fingir que não se é uma emanação de Saurau, mas talvez seja a pior das emanações. Não devia escrever estas coisas. As pessoas não gostam que se digam coisas como estas, pois esperam metáforas para pôr na jarra ou uma causa que lhes realce a moralidade e as faça esquecer que vão morrer. Só não digo que a única emanação de Saurau sou eu, porque ainda haveriam de pensar que me acharia um príncipe, enquanto eu penso que não passo de um sapo perturbado, uma cópia degradada da degradação de Saurau. Pelo menos foi isso que, à socapa, ouvi dizer, quando o autor destas palavras falava de mim, o seu narrador, com os seus amigos mais próximos.

sábado, 15 de agosto de 2020

Campeões em tudo

Desde que amistosos e laudatórios, escritos sobre o passado têm a fortuna assegurada, dizia-me ontem um amigo que se exilou do mundo num lugar recôndito deste país. Ninguém gosta de ver as pústulas do que passou nem olhar para as horas em que as chagas lhe arderam. Celebram o carrossel onde andaram, mas esquecem as patifarias que aí mesmo foram alvo. O Álvaro de Campos é que os conhecia de ginjeira, acrescentou, enquanto soprava o fumo de mais uma cigarrilha. Depois soletrou não sem ironia: Nunca conheci quem tivesse levado porrada. / Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo. Somos todos campeões de tudo, acrescentou, mas eu exilei-me derrotado e cansado. Não tenho paciência para toda esta gente e cultivo um afastamento profiláctico da humanidade, muito antes de haver pandemia, pois a nossa sociedade já sofria uma pandemia muito mais generalizada e, na verdade, muito mais grave. A estupidez estrutural, continuou o meu amigo, está enraizado e vamo-nos todos enterrar num lodaçal de idiotice, só porque se acha graça a coisas estúpidas. O que vale, continuou, é que a amanhã é feriado, mas ninguém faz ideia por que razão. Lamentarão que tenha calhado num fim-de-semana e é tudo. Isto foi ontem, quando o visitei. Hoje, porém, é sábado e feriado, e nas ruas não deixo de avistar todos os grandes campeões da vida que nos hão-de precipitar na pior das derrotas, pensei, mas logo me distraí ao avistar a mulher que, na esplanada, olha o horizonte. Há nela uma derrota inscrita na solidão, como se ela, tão dotada para todas as vitórias, tomasse a decisão de se entregar à mais vil das derrotas e, como recurso para se manter viva, usasse a linha do horizonte para repousar os seus olhos e o mistério que se esconde dentro deles. Hoje celebra-se a assunção da Virgem ou, noutras paragens, a sua dormição, mas isso é um assunto que já não dirá respeito a ninguém.

sexta-feira, 14 de agosto de 2020

Sobre hibiscos

Também eu terei de me render à ideia de que os sonhos são uma fonte de revelação. Ando há meses para ver se me recordo do nome de um certo tipo de arbustos de jardim. Esta noite, ao contrário do que é hábito, um sonho conseguiu romper o denso véu que me separa o inconsciente do consciente, e fui lembrado de que esse arbusto se chama hibisco, um dos mais comuns. O que me perturba, todavia, é outra coisa. Após a revelação do nome, seguiu-se entre duas partes que presumo serem eu uma discussão ortográfica sobre se hibisco se escreve com um h inicial ou um i. Não sei qual das partes saiu vencedora da contenda, mas que uma delas tenha pensado que hibisco se inicia com um i, isso deixa-me desgostoso com a existência, em mim, de um poço obscuro que me dispõe ao erro. Enquanto contemplo os hibiscos floridos, penso que não é normal alguém sonhar com discussões ortográficas, encenar uma disputa como se escreve uma palavra, cuja grafia, em estado de vigília, nunca ofereceu dúvidas. Fora eu dado à psicanálise e teria, em torno dos hibiscos, do esquecimento do nome e da disputa ortográfica, matéria para muitas sessões. Não o sendo, só espero que o corrector ortográfico, no dia em que escrever ibiscos, me faça o favor de corrigir para hibiscos. O mais estranho de tudo isto é que a jardinagem nunca gerou em mim um grama de curiosidade. As sextas-feiras de Agosto não me parecem propícias para encontrar assunto que interesse a quem quer que seja.

quinta-feira, 13 de agosto de 2020

Um calor de ananases

Oiço uma milonga e a tarde abre-se como um enorme poço de nostalgia. Os portugueses, pensei, têm uma grande fixação pela música brasileira, mas há uma profundidade de sentimento naquela que nasce na Argentina que me parece inultrapassável. Talvez o fado se lhe equipare, mas não estou certo disso. Lembrei-me disto porque ontem estiveram cá uns amigos da geração intermédia. Um deles tocava violão, mas apesar de argentino apenas se interessava pela Bossa Nova, a qual estudava com um afinco profissional. Ao longe, uma outra música se intromete na Milonga del Solitario, a célebre Mrs. Robinson, de Simon & Garfunkel. Será outra nostalgia, pensei. Uma notícia informa-me que a bandeira vermelha para indicar praia cheia já foi hasteada quase 2 500 vezes. A minha consciência sorriu plena de orgulho. Em nenhuma dessas vezes a lotação esgotada se deveu à minha presença. Gosto de tal maneira da areia da praia que evito pisá-la. Nunca se deve pôr os pés em cima daquilo que amamos. Estas graçolas secas dão a medida do meu talento. Agosto caminha para a meia idade, não tarda estará velho. Depois, virá o mês em que a realidade reclama a pesada corveia, cheia de projectos, objectivos, cheia de humanidade e um rosário de abjecções e coisas sem sentido. Estará um tempo de escachar, de rachar, de derreter os untos, de ananases. De todas estas expressões ao gosto popular, em uso no tempo do Eça, a que mais me agrada é a de ananases. Um calor de ananases. Um dia ainda vou investigar a origem da expressão, mas é possível que já não exista ninguém que tenha assistido ao seu nascimento. A milonga acabou há muito, agora oiço uma zamba, Luna Tucumana, e uma melancolia suave escorre sobre o dia.

quarta-feira, 12 de agosto de 2020

Descrições

O sol brilha estrangulado por um cordão de nuvens, deixando cair fiapos de calor sobre o lençol encardido do mundo, depois o cordão adensa-se, o sol sem ar para respirar esconde-se e um vento suave toca a ramagem dos arbustos. Nos vasos, aspidistras, buganvílias e costelas-de-adão reclamam água, enquanto se ouve o troar gorgolejante e contínuo dos corta-relvas. Nas ruas, transeuntes descuidados passam vagarosos e os poucos carros seguem em velocidade moderada, como se toda a azáfama tivesse sido suspensa pela sombra que Agosto projecta no calendário. Podia ficar horas e horas a descrever o mundo, mas depois recordei-me que, durante a noite, acordei e, insone, retomei a leitura de um romance de Thomas Bernhard. Há nele uma enorme capacidade para descrever o mundo humano, um mundo perturbante que se esconde na Estíria, gente de uma humanidade rude, violenta, imoral. O leitor do sul da Europa, habituado ao destrato que o Norte tem por hábito fazer dele, descobre-se, não sem espanto, como superiormente civilizado. Não é impunemente que se é herdeiro dos romanos – pensa-se, então – e que se vive em terras onde as vides crescem para transbordar em vinhos quentes, complexos, vinhos que mobilizam exércitos de metáforas e sinestesias para serem descritos, ou, melhor, para que deles nos possamos aproximar através da linguagem, depois da visão, do odor e do sabor se terem confrontados com sensações para as quais a língua ainda não encontrou o som exacto. Houve uma altura que Bernhard proibiu a publicação dos seus livros na Áustria natal, tão insuportáveis lhe pareciam os austríacos. Os pinheiros que avisto daqui, pinheiros mansos, abobadados, mostram as folhas novas num tom verde tocado ao de leve pelo amarelo, enquanto na ramagem mais velha o verde das agulhas é inundado pela cinza, que as escurece, como se prenunciasse o luto pela sua futura transformação em caruma, hoje em dia inútil. No livro de Bernhard, o príncipe de Sarau enche páginas e páginas com a descrição da primeira entrevista que faz aos candidatos para um cargo relevante na sua imensa propriedade, um homem sem capacidade para o trabalho, um homem enfermiço e que nada sabe dos assuntos que teria de tratar. A escrita é de tal maneira envolvente que me prolongou a insónia por mais tempo que devia. Eolo recolheu, com o seu sopro, o cordão de nuvens e o sol brilha sobre o arvoredo. Um pássaro poisa no ramo de um cedro e deixa-se baloiçar, e tudo é tomado pelo silêncio, como se o mundo tivesse emudecido, ou talvez seja eu que esteja a ficar surdo.

terça-feira, 11 de agosto de 2020

O peso da verdade

Poderia contar uma história de ninfas a saírem das águas do rio, mas a verdade da narrativa teria tal peso que se tornaria insuportável. Se alguém avistar, como eu avistei, ninfas nas águas de qualquer rio, o melhor é omitir a história, pois não devemos sobrecarregar o mundo dos outros com o peso da verdade. Recolho-me à sombra e protejo-me do sol de Agosto. O ramalhar das árvores e dos arbustos indica a presença do zéfiro e que o dia, aqui neste lugar onde me escondo da realidade, terá um calor moderado.  Ontem nadei, coisa que não fazia há muito. Não se pode dizer que o resultado seja animador. Os corpos sintonizam-se para certas actividades e quando os surpreendemos com outras não programadas, eles nunca deixam de protestar. Há mais de uma semana que oiço, embora sem escutar, as obras para piano de Grieg. É um ouvir despreocupado, uma presença longínqua que me abre para o silêncio, a confissão de que por estes dias cultivo a mais funda despreocupação. Nos arbustos, os nomes escapam-me, fulguram flores a cujas cores também não sei que nome lhes dar. Talvez nada disso exista, pelo menos para mim, pois só existe aquilo que sabemos nomear. No dia em que me esquecer do nome, também eu deixarei de existir.

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

A tortura como prazer

Ao acordar pensei que os dias de férias são uma ilusão, que passa rapidamente. Depois, pensei que talvez sejam a antevisão do paraíso celeste. As pessoas, mesmo as que foram educadas no mais estrito catolicismo, esquecem que, na tradição judaico-cristã, o trabalho foi dado aos homens como punição e não como uma bênção. Se se quer uma prova de que vivemos num mundo pós-cristão, basta olhar para o culto do trabalho e da produtividade que há por todo o lado, basta ter em conta que a punição é agora vista até como um prazer. Isto disse ontem, ao jantar, o padre Lodo. Estando ele tão perto, não podia deixar de vir jantar cá a casa. As suas palavras, porém, indignaram a geração intermédia da família, toda ela crente na máxima que o trabalho é o destino dos homens. Foi uma indignação silenciosa, pois por deferência remeteram-se ao silêncio, mas eu bem os conheço. O padre, talvez fingindo que não percebia, continuou, com o seu espírito verrumante, e disse que mais valia um santo ócio do que ser-se masoquista e fazer da tortura um prazer. Depois riu-se e pediu para não o levarem a sério, pois não era pessoa de fiar, ele que foi inimigo da Igreja e depois dera em Jesuíta, ainda por cima. O ainda por cima ficou em suspenso. Foi esta conversa que se prolongou noite dentro que me assaltou ao acordar. Agora, porém, preciso de sintonizar o espírito com a realidade, pois não tarda vêm aqui fazer umas pequenas obras e, como se sabe, qualquer pequena obra é um grande incómodo.

domingo, 9 de agosto de 2020

O trabalho do fogo

Uma cidade foi devorada por uma grande explosão. O fogo fez em pouco tempo aquilo que a água, o ar e os interesses terrenos dos homens levam mais tempo a fazer. Somos sempre tocados pela espectacularidade da morte e da destruição, ainda mais se esta for envolvida em chamas, mas somos cegos para o restolhar sombrio e secreto dessa mesma morte dentro do nosso corpo ou a invisível destruição dos lugares que habitamos ou amamos. A nossa atenção precisa de espectáculo para se mover da praça da indiferença até à avenida do sentimento. Pensava eu nisso, quando vi um pequeno dragão de cabeça para baixo tatuado na zona que vai do umbigo ao púbis, de uma rapariga que não teria ainda trinta anos e que se mostrava em biquíni. Das fauces da besta imaginária saíam chamas e fiquei indeciso na hermenêutica daquele símbolo com que ela se apresentava ao olhar distraído dos circunstantes. Para mim, tocado por uma veia conservadora que a idade não esquece de acentuar, nunca foi compreensível este culto das tatuagens, ainda mais em corpos de mulheres. Lembro-me que há décadas só homens se tatuavam nos braços, com dizeres como Angola 1967, Guiné 1970 e o mais estranho de todos eles, Amor de Mãe, o que mais tarde interpretei como a existência em Portugal de um enorme problema de complexos de Édipo por desfazer. Hoje já fiz a minha caminhada de seis quilómetros e continuo desapontado comigo. Chego sempre ao sítio de onde parti. Tivesse sido eu bafejado pela lotaria genética e teria a inteligência necessária para descobrir uma meta que se diferenciasse da partida. Sendo assim, contento-me em caminhar para o sítio onde estou.

sábado, 8 de agosto de 2020

Sem alma comercial

Raramente, ao acordar, tenho consciência de ter sonhado, mas não foi o que aconteceu esta manhã. Era um imbróglio qualquer em torno de um negócio que já não sei precisar. Qualquer coisa que me resultava numa situação muito desconfortável. Eu que não possuo uma alma comercial acordei em sobressalto e lembro-me que fui sossegando dizendo-me, no silêncio do quarto, que era apenas um sonho, nada mais que um sonho e que, se fosse na vida real, jamais me meteria num negócio, quanto mais num imbróglio aflitivo. Depois, abri a janela, a luz entrou, e o sonho começou a apagar-se, restando aquilo que acabei de contar. Entreguei-me à vida de um sábado de Agosto, mas um certo desconcerto não me tem abandonado. Será que a minha alma de narrador é apenas uma alma comercial travestida e frustrada? O mundo está cheio de equívocos e alguns dever-me-iam calhar, pensei. Será que também a mim se aplicam aqueles versos, Esperanças mal tomadas / Agora vos deixarei / Tão mal como vos tomei, com que Sá de Miranda inicia um vilancete? Depois, alvitrei que fora do reboliço académico já ninguém deve ler Sá de Miranda, mas posso estar enganado. Passa por mim um grupo de rapazolas e um diz, entre palavras que me abstenho de reproduzir, que falhou o golo com a baliza aberta. Ele não sabe ainda que a vida não é outra coisa senão uma sucessão de golos falhados com a baliza aberta, mesmo quando a bola entra. Entre ou não entre a bola, o resultado será sempre o mesmo. Talvez seja por sofrer de pensamentos como estes que eu não tenho uma alma comercial.

sexta-feira, 7 de agosto de 2020

A geografia do silêncio

O silêncio tem uma geografia imprecisa, o que torna inúteis os mapas que dele se fazem. É um território mutável, umas vezes cresce rapidamente, conquista espaço ao império do ruído. Outras, porém, vê-se drasticamente diminuído pela invasão de gente inoportuna, que faz da emissão de sons pela boca a razão de uma existência. Fora eu dado a pedagogo, haveria de criar uma teoria em que o silêncio seria a primeira coisa a ensinar às crianças. Idiossincrasias de velho, dirão as pessoas sensatas. Eu concordarei com elas. Recordo que, em certa altura da vida, procurava sítios em que não se ouviam ruídos nem havia, durante a noite, qualquer luz artificial. Então, ficava a olhar o céu, as estrelas nos seus arranjos ilusórios, a que chamamos constelações, a via láctea como um grande poço polvilhado de pontos brancos, luminosos. Escutava o silêncio, e conforme ele ia crescendo para dentro de mim, uma música estranha aos ouvidos citadinos compunha-se no rumor da terra, no murmúrio do vento, no mistério do éter onde tudo parecia mergulhado. Se se ensinasse o silêncio, talvez as pessoas aprendessem a escutar e a usar a voz apenas para dizer alguma coisa. Hoje tornei a ver a mulher que olha o horizonte. Toda ela é silêncio e nesse silêncio há um convite. A grande vantagem de se ter passado do politeísmo clássico para o monoteísmo é que se trocou a algazarra dos deuses greco-latinos pelo silêncio do Deus judaico-cristão. A mulher levantou-se, saiu da esplanada e, chegada à rua, acendeu um cigarro. Afasta-se lentamente e eu sigo-a com os olhos perdido no silêncio que há nela.

quinta-feira, 6 de agosto de 2020

Um passeio pelo molhe

Quando se põe o pé no cimento que cobre o chão do molhe, são mais seiscentos metros até alcançar o farol. Se está uma névoa ligeira, como tantas vezes acontece, esse pequeno passeio proporciona algumas sensações que não são de desprezar. A cidade à direita esbate-se, como se fosse um desenho a carvão, desmaiado pelo tempo, adquirindo uma beleza que uma luz límpida lhe recusa. O mar troca a tonalidade esmeralda e azul por um cinzento cheio de enigmas, ameaças e promessas, enquanto se ouve o seu restolhar nas rochas. Os outros molhes fazem lembrar ruínas deixadas por civilizações desconhecidas. Os barcos ancorados são fantasmas que baloiçam embalados pelo vento, enquanto os veleiros e os barcos de recreio se aproximam ou afastam do porto, conforme o destino de cada um. É preciso caminhar de olhos bem abertos para não tropeçar. Quando se chega ao farol pode-se ficar a contemplar o oceano, a meditar no seu enigma, ou então virar costas ao sonho e apressar-se, empurrado pelo vento norte, em direcção a terra. Chegados aqui o sortilégio desfaz-se. Há um porto, com barcos em reparação, o areal das praias que se vão sucedendo, até se perderem de vista, o voo das gaivotas que negoceiam com o vento a poupança da energia, planando sobre a terra. Enquanto caminhava, ainda antes de chegar ao molhe, o sol matinal foi cedendo lugar à névoa, e eu pensei que o verdadeiro romantismo só pode existir em paisagens assim, paisagens das terras frias do Norte. Se importado pelo povos meridionais nunca deixa de ser insípido e, na verdade, vazio. A luz nunca foi a melhor companhia para os enigmas do sentimento.

quarta-feira, 5 de agosto de 2020

Pão e vinho

À minha frente, havia um caminho estreito de terra batida, ladeado por arbustos espontâneos, raquíticos, carcomidos pelo vento norte. Algumas rochas erguiam-se como marcos miliários. Por ali, circulavam aqueles que, afastando-se um pouco da cidade, imaginavam estar no campo, para lhe sorver o ar, encher os pulmões de ruralidade. Um homem ia apressado, arrastando ligeiramente uma perna, um casal caminhava com demora, ele fazia comentários sobre a paisagem, ela ouvia com atenção e sorria, evitava as palavras, não se queria comprometer. Dois corvos desenharam um semicírculo no céu e desapareceram atrás de uns cedros altos. Isto foi antes de ir ao supermercado, ter de esperar a vez para entrar e, depois, ver-me rodeado de gente inóspita apenas porque precisava de pão e vinho, para com eles compor um poema, ou esboçar uma pequena narrativa onde as duas espécies litúrgicas entrariam para produzir o ambiente e dar-lhe profundidade. Quando acabei as compras e saí, havia sol. Procurei uma esplanada onde pudesse beber café rodeado de silêncio e esquecer-me do poema ou do conto que me levaram às compras. Agosto nunca deixa de ser um mês estranho, cheio de rituais fundados numa mitologia precária, movida pelo desejo, por sonhos eróticos, histórias onde se cruza a inverosimilhança e a necessidade de mostrar aos outros que se existe e se tem uma vida plena, como se a plenitude fosse prerrogativa de mortais. Não é.

terça-feira, 4 de agosto de 2020

A linha do horizonte

Uma mulher pousou o cotovelo na mesa da esplanada, depois apoiou o queixo na palma da mão. Fiquei à espera que, num súbito movimento de contorcionista, um pé, levantando-se, acabasse por aterrar-lhe na cabeça. Tenho demasiadas expectativas sobre a humanidade, não admira que me sinta continuamente defraudado. Ela podia ser uma contorcionista, afinal era só uma mulher solitária que apoiava a cabeça para olhar o horizonte e beber café. Quando não se sabe o que se há-de fazer com as pessoas, o melhor é pô-las a olhar o horizonte. Não foi este o caso. Eu faria dela uma contorcionista, dar-lhe-ia o melhor dos futuros num circo já sem animais amestrados, a não ser os humanos, mas ela preferiu olhar em frente, para aquele sítio onde uma linha ténue une o céu e o mar. Com vagar, um veleiro foi crescendo, rompendo a linha, e eu temi, confesso-o sem vergonha, que o oceano se entornasse para dentro do céu, ou que este lançasse sobre o mar alguma coisa que não quisesse nele. A mulher que podia ter sido contorcionista mexia, com os seus belos dedos, longos e afilados, o meio pacote de açúcar que depositou dentro da chávena. Eu vi o pequeno monte de cristais brancos sobre a espuma castanha. Eu vi-os desaparecer tragados por aquele buraco líquido. Eu vi-a a fazer rodopiar, com a mão direita, a colher dentro da chávena, enquanto a esquerda lhe segurava a cabeça para olhar o horizonte. Se eu tivesse um circo, contratava-a para contorcionista de horizontes. Não tenho, as minhas palhaçadas – de palhaço pobre, note-se – não chegam para animar o negócio. Também eu fiquei a olhar a linha do horizonte.

segunda-feira, 3 de agosto de 2020

Destinos

A primeira notícia que li hoje deu-me a boa nova de que posso produzir cerveja em casa. É muito mais fácil do se pensa, asseguram uns mestres cervejeiros. Isso raptou-me a atenção. Sempre me fascinou a ideia de faça você mesmo e a entrada no mundo obscuro do artesanato. O meu único problema é que não encontro motivo para entrar nesse universo artesanal através da porta líquida da cerveja. Que me perdoem os amantes, mas passo bem sem ela, embora uma vez por outra a beba. Fosse um belo tinto, ainda pensaria duas vezes, mas esse não se deixa enganar com artesanatos caseiros e diletantes à procura de experiências para matar o tempo. O vinho é um exercício rigoroso, nascido da contemplação do passar dos dias, não se presta ao faça você mesmo, ao pronto a beber e todas essas coisas que um mundo superficial decidiu parir como filhos. Julgo que há uma conspiração do mundo contra mim. Sempre que vejo anunciado uma boa nova, ela não me é destinada. Não devemos menosprezar o destino. Prodigioso é o silêncio na pedra, escreveu um dia o poeta austríaco Georg Trakl. Mais tarde, foi mobilizado como oficial farmacêutico, ele que era dado ao consumo de substâncias psicotrópicas, para a primeira grande guerra. A 3 de Novembro de 1914, uma overdose de cocaína pôs-lhe fim ao desconcerto de ter de participar nesse grande evento da loucura europeia. Não tornará a escrever um verso, nem poderá murmurar Nos muros, apagar-se-ão as estrelas / e as brancas figuras da luz. Se prodigiosa é a palavra do poeta, mais prodigioso é o seu silêncio, esculpido na pedra fria da morte. Um melro, vestido de um luto fulgurante, saltita diante do canavial. Duas rolas passam e poisam num ramo seco duma árvore morta há muito. O tempo resvala para dentro de si, enquanto procuro um copo para beber o vinho deste dia.

domingo, 2 de agosto de 2020

Pessoas de papel

Os ociosos dias de Agosto espalham-se por dentro das folhas de calendário, trazem odores que o tempo fizera esquecer e recordações inúteis. As aventuras do salteador Dick Turpin, num livro aos quadradinhos, comprado pelo meu pai com os jornais antes de entrar no café, uma toalha perdida no meio do mar, a esteira deixada pela passagem de um veleiro. Em vez dos magnos problemas do mundo ou do intelecto, eram essas coisas que me ocupavam ainda agora o espírito. Desconfio, embora sem certezas, de que com o avançar da idade só as coisas realmente importantes têm o poder de nos captar a atenção. O mundo e a inteligência sempre fizeram a sua vida sem a nossa contribuição e, portanto, há que deixá-los sossegados. Ontem conheci o tenente Sturm. O nome não deixa de ser curioso. Traduzido significa tempestade. O tenente Tempestade não era um salteador de estrada como Turpin, mas um combatente na primeira guerra mundial, talvez um alter-ego do seu criador, o escritor alemão Ernst Jünger, também ele envolvido na guerra e, como Sturm, dado às letras. Uma homenagem também ao Sturm und Drang. As coisas mudam muito menos do que se pensa. Na infância, era Turpin ou Alvega que me ocupavam o espírito, hoje é Sturm e Bradomín, o marquês galego dado a D. Juan. Se temos pessoas de papel para que precisamos nós das outras? Devia evitar frases como esta. Não respeitam o senso comum e ainda hão-de servir para me acusarem de inimigo do humanismo, senão da humanidade. Como se sabe, se este narrador tem uma característica, embora não um carácter, é o de cultivar a hipérbole. Vou comprar um livro à minha neta e tomar café.

sábado, 1 de agosto de 2020

Eu e o Marquês

Para começar o mês, um provérbio do Oeste. Primeiro de Agosto, primeiro de Inverno. A imprensa de hoje está tenebrosa. Parece que o PIB caiu, só espero que não se tenha magoado. As quedas são sempre propícias a fracturas. Então se for do fémur, um cabo dos trabalhos. Como se vê, inicio este mês ferial mergulhado não nas águas atlânticas, mas na cultura popular. Essa é a minha glória, exprimir-me por lugares comuns e não ter sobre o mundo outros pensamentos senão aqueles que já não pensam nada. Confesso, porém, que nisto de expressões populares, como em todo o resto, sou um diletante. Nem tenho um dicionário de expressões populares portuguesas. Na agenda, anoto as referências de um que devo comprar. Tem 700 páginas e capa dura. Não lhe faltarão expressões para usar nestes textos, e um livro encapado com dureza dá outro sainete. Sempre detestei esta palavra e vejo-me agora obrigado a usá-la. As pessoas não acreditam, mas as sensibilidades de autores e de narradores estão muito longe de coincidirem. Hoje já pus a máscara para ir comprar limões à praça, mas a Rosinha não estava lá. Acabei por me esquecer do que lá ia fazer e comprei figos, uma das poucas frutas que detesto. Uma desgraça. O que me tem valido, para me dar boa disposição, é o marquês de Bradomín, esse D. Juan feio, sentimental e católico, burlador burlado, um fidalgo da velha cepa, daqueles que já não há. Também ele teve a sua Salammbô, menos dramática e mais carnal. Por mim, já não seria mau se tivesse comprado limões à Rosinha. Bradomín sempre é um marquês dos antigos e eu um narrador plebeu e de gosto duvidoso.

sexta-feira, 31 de julho de 2020

Julho fina-se

Como o mês acaba hoje, acho que vou dedicar-me a uma sessão de auto-análise, para descobrir os avanços e os obstáculos que me tolhem no glorioso caminho em direcção à excelência. Quanto mais excelente me torno, mais próximo fico da morte. Começar assim não é recomendável. Quem há-de querer ler coisa mórbidas, pois para mórbida basta a vida. Sentados numa esplanada, um homem e uma mulher formam um casal perfeito. Ela não fala, ele não olha para ela, prefere um jornal desportivo, muito mais palpitante do que vinte anos de cansaços e amarguras. Ela elege como destino do olhar o horizonte. Ali, esconde-se tudo o que a vida prometeu. Afinal eram falsas promessas. Quanto a mim, tomo café com a lentidão de um veleiro num mar sem vento e escrevo estas coisas destituídas de sentido no bloco notas do telemóvel. A vida é sempre muito mais exígua do que o nosso desejo, o problema é que além do desejo também nos foi dada a ilusão. O homem põe o jornal de lado e preenche com demora um boletim do Euromilhões. Talvez esteja a consultar no inconsciente as informações que o guiarão à fortuna. A mulher revira os olhos, cansada de tanto horizonte e eu deixo-os em paz, afinal o motivo da minha existência, no dia de hoje, sou eu, agora que me imagino no divã a fazer associação livre, enquanto escrevo os meus feitos e defeitos naquele sítio onde me é permitido enfrentar a necessidade. Não devias falar por enigmas, diz-me a consciência. Sempre achei a consciência uma grande rameira. Vende-se-me com demasiada facilidade. Se fosse casado com ela passaria o dia a ler jornais desportivos. Julho está a finar-se.

quinta-feira, 30 de julho de 2020

O dia da matrícula

Lembrei-me agora de que tenho um assunto a tratar numa dessas repartições públicas que, apesar de continuamente modernizadas, nunca deixam de parecer emanações neo-realistas vindas dos anos quarenta do século passado. A memória vive de súbitas eclosões, relâmpagos raramente antecedidos pelo trovão. Vive também de associações. Vejo-me há muitos anos a subir, levado pela minha mãe, uma rua inclinada que terminava lá no alto, numa praça, mesmo ao lado de uma igreja dedicada ao Salvador. Naquele dia, a ida ficou-se a meio caminho. Entrou-se pelo portão de ferro e o destino era uma dependência modesta de um palácio, então em decadência. Subimos os degraus. Lá dentro, dois sacerdotes da instrução pública registavam matrículas, distribuíam alunos por professores, tratavam do expediente. Era um dia quente de Julho, eles estavam de fato e gravata e usavam as negras mangas de alpaca como qualquer amanuense. Lembro-me, passados tantos anos, da poalha a girar nos ares iluminada pelos raios de sol que entravam pelo vidro encardido de uma janela. Tudo aquilo era tão soturno, que se fosse dado a sonhar, certamente aquelas imagens haveriam de vir misturadas em algum pesadelo. Os livros de registo eram, aos meus olhos, descomunais, pareciam ocupar todo o tampo das secretárias, e os missionários educativos preenchiam-nos vagarosamente, usando uma caneta de aparo que ia molhando num tinteiro de tinta azul aguada. Desenhavam a letra com a precisão que o hábito dá. O meu nome ficou lá inscrito, aguado de azul, na classe de um professor de fama tenebrosa, soube-o depois. Na parede, ladeando um crucifixo onde Cristo continuava pregado, duas fotografias assombravam aquela repartição já de si assombrada. Quando a minha mãe me tirou dali, pensei que me tinha libertado de qualquer coisa que, mais tarde, associei a um filme de terror, daqueles em que uma inquietante estranheza prenuncia uma desgraça. Não devemos dar trela à memória, pois ela não se cala e aquilo que esqueceu inventa-o para que a conversa não acabe. Parece ser hora de almoço. Ainda oiço o ranger do aparo sobre as folhas de papel almaço. Seriam?

quarta-feira, 29 de julho de 2020

Familiaridades irritantes.

Há familiaridades que me irritam. Quem terá dito aos programadores do novo Word que sempre que se abre um ficheiro temos de levar com uma mensagem de boas vindas? Ainda por cima vem acompanhada por uma injunção disfarçada de conselho: comece onde ficou ontem. A cortesia deve poder desactivar-se, mas estou suficientemente desactivado para o conseguir fazer. Talvez não tenha acordado com boa disposição e não saiba apreciar esta urbanidade informática. Num outro tempo, esta terra era um mar a fervilhar de oliveiras e figueiras. O azeite e o álcool alimentavam as lamparinas com que a vida por aqui se iluminava. Havia um calendário de cheiros que desapareceram, substituído por um mundo inodoro e insípido. A memória apazigua-me com as tontices do marketing. Aqui perto alguém canta. Não é um pássaro, nem um anjo. É uma voz de mulher perdida numa lide doméstica. Do prédio em frente, alguém chega à janela, apanha a roupa e refugia-se. O ritmo dos dias enrola-se no perfume que alguém deixou no elevador. Sentado, olho para a rua e procuro descobrir no silêncio a transparência com que o passado me assedia a memória. Numa outra casa, havia um poço com uma roldana de ferro. A corda descia e subia com um balde cheio de água pura. Não sei o que hei-de fazer com essa água, agora que a casa já não existe.

terça-feira, 28 de julho de 2020

Manobras militares

Começa-se a ouvir o bater das botas cardadas no alcatrão. Os exércitos de Julho batem já em retirada, derrotados pela implacável queda das folhas do calendário. Muito ainda haverá a penar para que um cessar fogo de alguns meses permita uma vida sem a ameaça contínua de se ser bombardeado pela aviação do calor. A milícia estival estende quase sempre as suas operações muito para aquém e para além daquilo que um tratado antigo, que dividia o território do ano em estações iguais, lhe outorgou. Bebo água para me hidratar e observo o vagar com que a minha mente orquestra a realidade. Oiço vozes lá fora, mas não consigo compreender o que dizem. São apenas ondas sonoras que vão e vêm, murmúrios, súbitas irrupções de notas agudas, e logo o som baixa e não é mais que um restolhar de folhas secas num Outono adiantado. Há muito que me recomendo o evitar de truques estilísticos, a pôr de lado metáforas e alegorias, alguma metonímia perdida. Falta-me o talento. Descrever a realidade com exactidão é a mais difícil das tarefas. Suspeito que a realidade não gosta que a descrevam e depois lança feitiços sobre quem escreve para que se perca no desvio retórico, imaginando que a metáfora nasce do brilho da escrita, quando não é mais do que a manifestação da sua pobreza. Eu sei que não estou no melhor dos dias, mas escusava de ter escolhido um assunto tão mórbido. Sempre podia falar do friso das orquídeas, do que me disse a Marília ontem, quando se cruzou comigo à porta de uma grande superfície e me reteve para confidências. Talvez ache que eu tenho cara de sacerdote ou alma de psicanalista. Não tenho, a minha virtude que tanto atrai a confissão é a indiferença. Quero eu lá saber da vida dos outros, se nem da minha sei. Não tarda e ouvem-se os primeiros pelotões de Agosto. Pobre Marília, também os calores a importunam.