domingo, 9 de agosto de 2020

O trabalho do fogo

Uma cidade foi devorada por uma grande explosão. O fogo fez em pouco tempo aquilo que a água, o ar e os interesses terrenos dos homens levam mais tempo a fazer. Somos sempre tocados pela espectacularidade da morte e da destruição, ainda mais se esta for envolvida em chamas, mas somos cegos para o restolhar sombrio e secreto dessa mesma morte dentro do nosso corpo ou a invisível destruição dos lugares que habitamos ou amamos. A nossa atenção precisa de espectáculo para se mover da praça da indiferença até à avenida do sentimento. Pensava eu nisso, quando vi um pequeno dragão de cabeça para baixo tatuado na zona que vai do umbigo ao púbis, de uma rapariga que não teria ainda trinta anos e que se mostrava em biquíni. Das fauces da besta imaginária saíam chamas e fiquei indeciso na hermenêutica daquele símbolo com que ela se apresentava ao olhar distraído dos circunstantes. Para mim, tocado por uma veia conservadora que a idade não esquece de acentuar, nunca foi compreensível este culto das tatuagens, ainda mais em corpos de mulheres. Lembro-me que há décadas só homens se tatuavam nos braços, com dizeres como Angola 1967, Guiné 1970 e o mais estranho de todos eles, Amor de Mãe, o que mais tarde interpretei como a existência em Portugal de um enorme problema de complexos de Édipo por desfazer. Hoje já fiz a minha caminhada de seis quilómetros e continuo desapontado comigo. Chego sempre ao sítio de onde parti. Tivesse sido eu bafejado pela lotaria genética e teria a inteligência necessária para descobrir uma meta que se diferenciasse da partida. Sendo assim, contento-me em caminhar para o sítio onde estou.

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