sábado, 15 de agosto de 2020

Campeões em tudo

Desde que amistosos e laudatórios, escritos sobre o passado têm a fortuna assegurada, dizia-me ontem um amigo que se exilou do mundo num lugar recôndito deste país. Ninguém gosta de ver as pústulas do que passou nem olhar para as horas em que as chagas lhe arderam. Celebram o carrossel onde andaram, mas esquecem as patifarias que aí mesmo foram alvo. O Álvaro de Campos é que os conhecia de ginjeira, acrescentou, enquanto soprava o fumo de mais uma cigarrilha. Depois soletrou não sem ironia: Nunca conheci quem tivesse levado porrada. / Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo. Somos todos campeões de tudo, acrescentou, mas eu exilei-me derrotado e cansado. Não tenho paciência para toda esta gente e cultivo um afastamento profiláctico da humanidade, muito antes de haver pandemia, pois a nossa sociedade já sofria uma pandemia muito mais generalizada e, na verdade, muito mais grave. A estupidez estrutural, continuou o meu amigo, está enraizado e vamo-nos todos enterrar num lodaçal de idiotice, só porque se acha graça a coisas estúpidas. O que vale, continuou, é que a amanhã é feriado, mas ninguém faz ideia por que razão. Lamentarão que tenha calhado num fim-de-semana e é tudo. Isto foi ontem, quando o visitei. Hoje, porém, é sábado e feriado, e nas ruas não deixo de avistar todos os grandes campeões da vida que nos hão-de precipitar na pior das derrotas, pensei, mas logo me distraí ao avistar a mulher que, na esplanada, olha o horizonte. Há nela uma derrota inscrita na solidão, como se ela, tão dotada para todas as vitórias, tomasse a decisão de se entregar à mais vil das derrotas e, como recurso para se manter viva, usasse a linha do horizonte para repousar os seus olhos e o mistério que se esconde dentro deles. Hoje celebra-se a assunção da Virgem ou, noutras paragens, a sua dormição, mas isso é um assunto que já não dirá respeito a ninguém.

Sem comentários:

Enviar um comentário