segunda-feira, 22 de maio de 2023

Da menoridade

Hoje, as promessas foram cumpridas e choveu por aqui com alguma abundância. Isto salva a face da meteorologia como ciência profética. Por vezes, acertam nas previsões, coisa que mais raramente acontece na Economia. Mesmo depois de tudo consumado os augúrios sobre o crescimento do PIB mostram-se, muitas vezes, incapazes de oferecer um palpite que não seja depois corrigido. Quando era muito novo, ainda pensei em aderir à seita económica, mas o destino, na prudência que o caracteriza, resguardou-me de dar esse passo no mundo das trevas, que mais parece uma casa de apostas do que o lugar onde existe e se pratica uma ciência. Ontem, talvez por ser dia de descanso, vi alguns vídeos antigos com o antropólogo René Girard, que morreu em 2015. Não é desinteressante a tese sobre a origem da violência na sociedade. Trata-se de uma consequência da rivalidade mimética. Os seres humanos desejam aquilo que o outro deseja. Se A deseja x, então B também deseja x, não pelo valor deste, mas porque A o deseja. A imitação do desejo instaura a rivalidade e esta conduz à violência. Toda a sociedade se estrutura a partir deste modelo, seja a política, a economia, a universidade, o futebol. Aceitando a tese como boa, não podemos deixar de nos espantar de que a espécie humana nunca saia da sua menoridade, pois essa rivalidade é aquela que atira irmão contra irmão pela disputa da fatia de bolo. A causa da menoridade da espécie não seria então, como pensava Kant, a falta de coragem para usar o seu próprio entendimento, mas o fascínio pelo pedaço de bolo que o irmão irá comer. Não é um problema do uso da razão, mas da orientação do desejo. Deixar de desejar o desejo do outro e descobrir o objecto do seu próprio desejo, isso seria tornar-se adulto. Quando me sentei aqui, depois da azáfama do dia, para escrever, não imaginava que a conversa se desviasse para estes assuntos. É possível que me faltassem outros mais sérios, agora que a chuva parou.

domingo, 21 de maio de 2023

Uma sugestão

Parece que tudo se conjuga. A terra está a pedir chuva, os sites meteorológicos prometem-na com grau elevado de probabilidade. Esta conjugação deveria permitir-me, quando olhasse através dos vidros da janela, ver a água cair dos céus. Ora, o que se prova é que mesmo quando tudo se conjuga para que algo aconteça isso não significa que aconteça. Não chove, está um céu esbranquiçado, uma luz anémica. S. Pedro, o grande regulador dos estados anímicos do clima, não está pelos ajustes e diverte-se com as expectativas frustradas. Está na altura, parece-me, de ele ceder a função a um outro santo mais jovem, com menos problemas auditivos e com a visão mais acurada. Poder-se-ia dar o título de meteorologista emérito a S. Pedro, enviá-lo de férias, enquanto o novo titular punha ordem na casa, isto é, no clima da Terra. Caso escolhido com critério, o novo detentor do posto poderia ser capaz de resolver o problema das alterações climáticas, coisa que o actual incumbente parece não ter a força suficiente ou a paciência para fazer. Como se pode comprovar pelo que se escreveu acima, este narrador é um poço sem fundo de óptimas sugestões para a resolução dos problemas do mundo, mas a que ninguém dá ouvidos. É uma pena, pois se os seus sábios conselhos fossem seguidos, tudo andaria pelo melhor. Sendo assim, quando é preciso chuva, não chove. Quando ela não é necessária, há-de cair a cântaros, com inundações a lembrar o dilúvio, e nós sem um Noé que construa uma arca. As acácias da praceta estão a cobrir-se de folhas, mas ainda se vêem os ramos, como se fossem braços esguios dirigidos ao céu em oração peticionária, mas o Santo, quase cego e quase surdo, não dá por nada, entretido a cismar, a falar com os seus botões, cansado da função. Como eu o compreendo.

sábado, 20 de maio de 2023

Teoria da conspiração

O dia declina lentamente, enquanto o telemóvel não pára de me enviar sinais. Vivemos mergulhados num mundo de mensagens. Com o passar do tempo, começamos a desconfiar que o excesso de mensagens é uma espécie de conspiração. Não que eu acredite que por detrás do que se passa no mundo existem sociedades secretas que fazem acontecer aquilo que acontece. As conspirações em que acredito são muito mais radicais, pois são conspirações sem conspiradores. O efeito combinado de múltiplas decisões e acções não conspirativas – decisões e acções que, na sua singularidade, são razoáveis e senão transparentes, pelo menos, translúcidas – torna-se completamente obscuro e decididamente conspirativo. Conspira para trazer o que virá, embora não haja qualquer conspirador que produza a conspiração. Numa linguagem um pouco esotérica, poder-se-ia dizer que é uma acção sem agente. Durante muito tempo, e mesmo agora, a ausência de agente era preenchida segundo um modelo teológico. Se a conspiração trazia efeitos maléficos para os homens, o agente era o demónio. Caso contrário, era Deus. Talvez precisemos sempre de um conspirador para explicar aquilo que acontece, pois o que acontece não deixa de nos maravilhar ou de aterrorizar, e se os acontecimentos têm esse poder, então o coração humano exige um sobrepoder oculto que os faça acontecer. E essa exigência não á apenas psicológica, também é estética. Quem quer saber de narrativas que contam histórias onde não existem protagonistas? 

sexta-feira, 19 de maio de 2023

Imagens, palavras e dores de garganta

Uma dor forte na garganta e um estado de ânimo prostrado foi condição suficiente para que não fizesse a caminhada matinal que a sexta-feira me permite. Não evitou, porém, que participasse numa reunião, pois o admirável mundo novo trazido pelas videochamadas impede que eventuais vírus se transmitam pelas ondas do éter. Lá chegaremos, mas a tecnologia disponível ainda não foi tão longe que permita o teletransporte de seres minúsculos como o são os vírus. Se um vírus me atacou, caso ainda por provar, os outros participantes não me poderão acusar de ser um contaminador implacável. Por outro lado, pelo mesmo motivo, já faltei a um compromisso presencial e irei faltar a outro mais logo. Tendo jurado não sair de casa, entre tarefas resolúveis no lar, tenho dedicado algum tempo a uma revista de que já falei por aqui. A do número de Verão, de 2023, da Electra. A reprodução de pinturas de Albert Oehlen é um momento alto deste número. Talvez esteja com pouca disposição para mergulhar nos artigos que ainda não li e fico a contemplar as imagens. E isto fez-me lembrar uma expressão que abomino, uma imagem vale mil palavras. A abominação vem de isso ser um lugar-comum assente no desconhecimento do que é uma palavra. Já se imaginou quantos milhões, milhares de milhões de imagens se escondem por dentro de uma palavra tão trivial como cadeira. As palavras vivem ajoujadas com o peso das imagens que têm dentro delas. Nenhuma imagem vale uma palavra. Cada imagem vale por si mesma e quando começa a valer por outra coisa, então deixa de ser imagem. Uma imagem não é uma nota de banco. Nada disto obsta a que a garganta não tenha sinais de infecção, mas ajuda a conviver com eles.

quinta-feira, 18 de maio de 2023

A espiga

Poderia começar citando Camões e confirmar que Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, e por aí fora. Ora, o que mudou mesmo foi a idade. Estou a falar por enigmas e isto não é bom para a comunicação. A coisa não tem segredo. Por aqui, é feriado municipal. Este é um dos muitos concelhos que escolheu a Quinta-Feira de Ascensão para dia de guarda concelhio. Várias vezes, aproveitando aquela ideia de fazer uma ponte e mergulhar numas miniférias, saía de casa na quarta-feira, pela hora do lanche, e só parava em Sevilha, para deambular por aquele ambiente que parece vindo de uma outra galáxia. Agora, qual Sevilha. Uma viagem até junto do mar, para ir almoçar a S. Pedro de Moel, apreciar as águas escuras, a brisa marítima, os céus nublados, pensar nas praias da Normandia, e voltar para casa, antes que se faça tarde. Não foi o tempo, nem a vontade que mudaram, nem tão pouco o ser. O que mudou foi a confiança, as centenas de quilómetros foram trocadas por algumas, poucas, dezenas. Houve uma coisa, porém, que me espantou neste dia e não foi um ramalhete rubro de papoulas. Quando se sai de S. Pedro em direcção a Vieira de Leiria, numa curva apertada, há uma entrada para o Pinhal de Leiria. Como de outras vezes não hesitei em entrar por ali. Deparei-me, porém, com um espectáculo que não imaginara. Por todo lado havia aglomerações de pessoas e carros, gente que, em grupo, se entregava a enormes, pelo menos no número de comensais, banquetes. Descobri que também na Marinha Grande é feriado e, por abdução, inferi que aquela seria a forma de irem apanhar a espiga num sítio onde não as há. Eu nunca fui apanhar a espiga, coisa que por aqui se fazia, mas posso estar esquecido. Talvez tenha ido uma vez. Imagino que na altura achasse que era uma espiga ir apanhar a espiga. Devia ter ido para Sevilha.

quarta-feira, 17 de maio de 2023

Um livrinho sossegadinho

Ocorreu-me, passe a presunção, que estes textos poderiam constituir o meu Livro do Desassossego. Não que entre este narrador e aquele que fala no livro original exista comensurabilidade de génio e experiência literária. Não seria bem um Livro do Desassossego, mas um Livrinho do Desassossego. A cada um o que lhe é devido. Enquanto o de Fernando Pessoa vive num limbo de propriedade – será que o autor é o Bernardo Soares ou o Vicente Guedes, ou mesmo os dois? – este não teria nome de autor e, por isso, não constituiria propriedade de ninguém. A única objecção plausível que encontro para essa hipótese é que o livro que destes bilhetes postais se viesse a produzir nunca poderia ser um livro do desassossego, mas um livrinho do sossego, como quem diz um livrinho sossegadinho. Este narrador não é habitado por inquietações metafísicas, nem por desassossegos em voga naqueles anos em que o Soares ou o Guedes laboraram. Não conviveu com a prosápia modernista e há muito que deixou de achar graça ao Manifesto Anti-Dantas. O que é que o Almada tem que ver com o facto de o Dantas fazer sonetos com ligas de duquesas? Cada um faz sonetos com o que pode, e se o Dantas podia fazê-los com ligas de duquesas, tanto melhor para ele, para as duquesas e para as ligas, que também são parte interessada. Aqui advoga-se o marasmo mais completo, sem a gritaria das odes modernistas a acompanhar o trabalho de amanuense. Aqui não há vivas nem morras, mas o deixar que o tempo passe, esperando que não faça muito calor, e se fizer que seja propício a uma boa sesta, ou então a uns sonetos, mas não sobre ligas de duquesas, pois este narrador não conhece duquesas e, por isso, não pode escrever sobre as ligas que elas, talvez por serem duquesas, ainda continuam a usar, à espera de um Dantas que delas faça um soneto, um recatado soneto.

terça-feira, 16 de maio de 2023

A ética do narrador

Na postagem de ontem, descobri há pouco, que tinha um á no lugar de um à. Ora, a orientação do acento não é coisa de pouca importância, ainda por cima numa época em que se cultiva tudo o que é orientação, mesmo aquilo que resulta da desorientação, pois esta ainda é uma orientação, embora falhada. Não fora eu um narrador apolítico e esta conversa teria o aroma sulfuroso da política, isto é, das políticas de orientação. Embora não me seja permitido, e ainda bem, falar de política por aqui, possa recordar que ela, a política, é um caminho curto para o inferno. Isto no dizer de Maquiavel. Quem não quer condenar-se à perdição eterna o melhor é não se meter nesses caminhos e quem aspirar à glória dos altares deve abster-se de possuir qualquer opinião sobre o assunto. Aqui pode surgir um estranho equívoco. Será que este narrador aspirar à santidade, a ser venerado por fiéis com velas de cera e orações? Não. A razão é muito simples. Um narrador pertence a uma classe de seres para a qual não estão disponíveis as possibilidades de perdição ou de salvação. Tal como as pedras, os vírus e as poeiras cósmicas, também os narradores estão condenados ao desaparecimento sem castigo ou recompensa num além, ou mesmo num aquém. Isso não faz de nós, narradores, mesmo dos omniscientes, irresponsáveis. Pautamo-nos não pelo medo da perdição ou pelo desejo da salvação, mas por uma ética que nos ordena ao escrúpulo narrativo, o que não nos inibe de evitar a verdade e cultivar a mentira, que para nós tem o nome de ficção.

segunda-feira, 15 de maio de 2023

Duplicações

Uma manhã plena de afazeres, diligências, tarefas a cumprir. A tarde irá pelo mesmo caminho. Agora, porém, descanso. Suspendo a actividade e entrego-me à pura contemplação. É uma contemplação pura pois não tem objecto que a contamine. Exerce-se sobre si mesma, é a contemplação da contemplação. Houve uma época em que estas duplicações estavam na moda, mas, como tudo o que está na moda, chegou o momento em que se tornou fora de moda. Não seria destituído de interesse falar da descrição da descrição ou da narração da narração. Podemos imaginar a Odisseia, de Homero, e a partir dela esperar uma Odisseia da Odisseia. O problema é que a estratégia tem limites. Por exemplo, diante de mim tenho o romance de Paolo Giordano, Devorar o Céu. Ora, não faz sentido falar em Devorar o Céu do Devorar o Céu. Nesta hora de contemplação poderia dedicar-me à catalogação das narrativas cujos títulos podem ser reduplicados. Seria uma tarefa ociosa, mas haverá alguma tarefa neste mundo que não seja ociosa? Também podemos pensar no ócio do ócio, mas é possível que alguém pense que quem escreve estes bilhetes postais precisa de acompanhamento psiquiátrico. Uma provocação. A realidade é que não me apetece fazer nada, nem mesmo dedicar-me ao ócio. Talvez uma sesta. Talvez, se fosse espanhol, o que não é o caso.

domingo, 14 de maio de 2023

Sonolências

Um domingo sonolento, como o são os domingos de província. Deslocam-se pesados e lânguidos pelas ruas, suspiram, sentam-se num banco de jardim, se está sol, respiram fundo e adormecem, até que um golpe de vento ou o latido de um cão os acorda, e voltam a ser domingos, com os seus fatos provincianos, as pernas bambas e um cérebro infestado de vermes, micróbios, fungos, salmonelas, vírus de vária origem. Penso em tudo isto para não pensar noutra coisa, pois existem imensas coisas para pensar, mas não me apetece, o almoço talvez se tenha tornado pesado, talvez tenha bebido um pouco, o que me dá sono, talvez nem tenha ocorrido uma e outra coisa, e eu não tenha almoçado, e sofra de fraqueza. Uma das minhas netas entrou no escritório e perguntou-me se lhe dava duas folhas brancas. Perguntei-lhe: duas folhas brancas de que cor? Olhou-me perplexa e quando ela ia pensar se o avô estaria bem, sorri-lhe e ela sorriu-me descansada. Afinal, estava a brincar comigo, terá pensado, pegou em duas folhas brancas, agradeceu e saiu. A outra, pobre dela, continua a ser submetida a exercícios de Matemática. Há pouco houve um drama qualquer acerca de coordenadas e abscissas, o eixo do xis e o eixo do ípsilon, e outras aleivosias do género. Os dias, por aqui, continuam ventosos, muito pólen pelos ares, poeiras, sabe-se lá mais o quê. Não tarda, e elas vão-se embora, para que fique um vazio pela casa, desapareçam os risos que só as raparigas conhecem o significado, e o domingo ainda se torne mais domingo e mais provinciano.

sábado, 13 de maio de 2023

Superposição de estados

Hoje de manhã, ao parar o carro para ir à padaria, deparei-me com um gato em cima de um muro. Ao vê-lo naquele estado em que, havendo sol, os gatos parecem suspender a existência, pensei: é o gato de Schrödinger. Está vivo e está morto, ao mesmo tempo. Depois, retrocedi no pensamento. Não pode ser o gato de Schrödinger, estando eu a observá-lo, necessariamente que o seu estado estará definido. Ou está vivo ou está morto. Não há lugar para uma superposição de estados. Isso perturbou-me no caminho até ao sítio onde, para além do pão, se vendem uns bolos que, decididamente, não são maus e bons ao mesmo tempo, mas apenas muito bons. Excelentes. A causa da perturbação reside em que se tudo o que há estivesse num estado de superposição, mesmo quando observado, a realidade seria mais rica, pois estava sempre num estado potencial. Abríamos a caixa e o gato continuava morto e vivo, pois tinha e não tinha sido envenenado, coisa que causaria repulsa à nossa razão, a qual, como se sabe, abespinha-se facilmente e mal pressente o aroma da contradição – por exemplo, num mero oximoro – começa a sentir-se mal, a pedir que lhe tragam os sais, senão desmaia, e não há espectáculo mais triste do que ver uma razão que perdeu os sentidos, espalhada pelo chão. A conclusão de toda esta aventura é a seguinte: não se deve ir à padaria, mas se se for, convém não encontrar um gato em cima do muro. Caso isso tenha de acontecer, não olhar para ele, se não se conseguir evitar o relancear dos olhos pelo bichano, não fazer associações idiotas. Se mesmo isso, porém, não for possível, o mais indicado é comer um bolo que a padeira, uma rapariga nova e engraçada e que, presumo, não seja de Aljubarrota, venderá de bom grado. As minhas pobres netas não estão preocupadas com o gato do senhor Erwin, mas com umas fórmulas de matemática, cada uma com as suas. Vou levar-lhes um bolo que não esteja num estado de superposição quântica, ou seja lá o que isso é.

sexta-feira, 12 de maio de 2023

Redundância

Também as aves se entregarão à redundância? Um dos pássaros meus vizinhos – presumo que seja um – está há largos minutos a repetir o mesmo som. Terá medo que a mensagem não seja compreendida, que o destinatário sofra de problemas de audição ou tenha uma inteligência lenta, demasiado lenta, para decifrar de imediato o que ele quer comunicar? Podia irritar-me com esta vizinhança dada à iteração, mas não tenho o direito de o fazer, pois também sou vocacionado para a redundância. Repetir-me está a tornar-se um modo de ser. Dou comigo a contar a mesma história pela enésima vez. Isto não é completamente verdade. Estou em registo hiperbólico. A maior parte das vezes dou por aquilo que tenta a minha mente e consigo conter-me antes que a redundância se torne pública. Sei, porém, que chegará o dia em que a censura não funcionará. Nessa hora, o eu redundante que sou manifestar-se-á na sua plenitude. Julgo que o destinatário da mensagem do meu plúmeo vizinho a terá compreendido, pois este calou-se. Talvez tenha desistido de se fazer compreender, sopra alguém dentro da minha mente. Eu sorrio e digo alto, embora ninguém esteja por perto, que a minha mente é muito mal frequentada. Gente dada ao sarcasmo, por exemplo. Devia lavá-la, mas ainda não encontrei um produto que sirva para branquear as mentes. Mais logo, chegam as minhas netas. Oiço uma gargalhada, e uma voz troveja: as netas não são tuas, idiota. Não passas de um narrador. São minhas, eu é que sou o autor e tenho netos. Vou jantar fora com elas, enquanto tu ficas no limbo daquilo que existe apenas na consciência, mas não na realidade. Amanhã, continuou, talvez te tire por uns minutos do pardieiro onde vives. Ou será de uma enxovia? Calou-se e foi-se embora.

quinta-feira, 11 de maio de 2023

Do desejo

Julgo que hoje fui acometido por uma doença denominada wishful thinking, que se me perdoe o uso de uma expressão em língua bárbara. Dou comigo a pensar que é sexta-feira, apesar de saber perfeitamente que não o é, mas um desejo secreto encobre o conhecimento e sopra-me na mente essa impressão de que o fim-de-semana está mesmo ali à porta, é só bater e entrar. O sábio arquitecto que ordenou as coisas do mundo e os poderes do homem, por ser sábio, determinou que as coisas não fossem como as desejamos, mas como são apesar do que nos vai na alma. Isto, contudo, não se deve a uma maldade dele, mas à sua prevenção e capacidade de cálculo. Com a sua omnisciência avaliou que mundo haveria se cada homem tivesse o poder de fazer com que a realidade se adequasse aos seus desejos. Transformou os desejos em quantidades, desenhou um algoritmo adequado ao cálculo, colocou tudo num supercomputador e, para surpresa sua, viu que o resultado da operação era igual a zero. Este cálculo não aconteceu agora, mas naquele tempo em que o tempo não existia, e o arquitecto empenhava-se em conceber um mundo que fosse o melhor de todos os mundos possíveis. Então, iluminou-se, literalmente, e percebeu que nesse mundo, o melhor de todos os possíveis, o melhor, o mais sensato e previdente, seria limitar o poder do desejo humano. Não é que a decisão tenha sido drástica. O arquitecto não é um radical. Concebeu que seres como os homens, por vezes, podem realizar um ou outro desejo, mas de modo muito moderado, para que o edifício sabiamente arquitectado não desapareça na tormenta desejosa dos homens. Por isso, pela sua sábia decisão, vejo-me frustrado. Desejo que hoje seja sexta-feira, mas tenho de me contentar com a quinta-feira. O meu desejo introduziria uma fissura no tempo, um buraco pelo qual tudo poderia desaparecer. Acho que me constipei.

quarta-feira, 10 de maio de 2023

Nulidade

O que queremos dizer quando dizemos que não temos nada dentro da cabeça? A asserção não é factual, pois caso fosse verdadeira, não poderíamos dizê-la. Aliás, não poderíamos rigorosamente nada, pois não existiríamos. Só podemos afirmar que não temos nada dentro da cabeça porque temos alguma coisa dentro da cabeça. O que me apetece, todavia, dizer é que não tenho nada dentro da cabeça. Devo fazê-lo? Devo faltar à verdade pare descrever uma sensação realmente sentida, mas que sei ser falsa? Quando se chega a esta altura do dia e a única coisa que os dedos conseguem fazer surgir no monitor são estas interrogações idiotas sobre um assunto insignificante, no sentido radical da palavra, então é porque o dia foi gloriosamente perdido na nulidade. Talvez o niilismo seja a perda de cada um na pura nulidade. Ora, a nulidade é um oceano pacífico e profundo, onde se mergulha e se flutua à tona de água até se adormecer. Depois, é uma questão de sorte. Uns afogam-se, outros são devorados por tubarões, outros são arrastados pela corrente para a areia, talvez de uma ilha deserta, ou quase, se nela habitar uma princesa adormecida. O problema destas princesas adormecidas que habitam em ilhas quase desertas é que aqueles que nelas encontram a salvação estão longe de serem príncipes encantados, e mesmo que cheguem ao momento em que dão o beijo na bela adormecida e esta acorde, eles transformam-se em rãs e a princesa pensa que foi mordida por um batráquio. Mais valia continuar a dormir. O niilismo que habita a minha cabeça não dá para mais. Uma princesa bela e adormecida foi mordida por uma rã, a pobre. Uma comoção.

terça-feira, 9 de maio de 2023

Atrasos e extravios

Uma citação de Camões – O que é Deus, ninguém o entende – em epígrafe, da terceira elegia recolhida em Labareda, uma colectânea de poemas de Alberto Lacerda, anuncia o poema que começa assim: O mergulho abrupto de certas horas / No relógio lento do coração. E aqui eu imagino que ninguém entende o ser de Deus porque o coração, o coração de cada um, é um relógio lento. Essa lentidão conduz ao atraso e quando alguém tem um encontro marcado com Deus, acaba sempre por chegar atrasado. A hora da audiência já tinha passado, o ser da divindade recolhera-se em si mesmo e ocultara-se ao entendimento de um coração destituído de ardor ou, para ser mais exacto, de ímpeto. É possível que a elegia de Alberto Lacerda siga outra vias, mas este texto segue o seu próprio rumo, no jardim dos caminhos que se bifurcam. Daqui a pouco terei de rumar a um certo destino, onde me esperam, mas não corro o risco de que a minha falta de ímpeto tenha como consequência o sumiço de quem me aguarda. A única coisa que temo é que o caminho se comece a bifurcar e eu me extravie. Ainda mais.

segunda-feira, 8 de maio de 2023

Segunda-feira

Fui pôr o carro na oficina. Alguém lhe deu um toque, e um dos faróis dianteiros ficou a dançar no abismo hiante onde se acolhe. Os suportes estavam partidos. Isto já deve ter acontecido há uns dias, talvez há mais de uma semana. Não tinha dado por nada, mas lembro-me de, por vezes, ouvir uns barulhos anormais, mas depois calavam-se e como a minha relação com automóveis é desastrosa não dava mais atenção ao assunto. Hoje, quando vou pegar no carro, achei qualquer coisa estranha no farol, um pouco saído. Foi então que descobri o drama que lhe tinha acontecido. Agora, vai descansar na oficina, enquanto se submete ao tratamento, e eu aproveito e descanso dele. Para falar de aproveitamentos, aproveitei deixar o carro na oficina para regressar a casa a pé, acumular pontos cardio e observar como estavam as ruas por onde ia passando. Nada de notável, a não ser uma buganvília cuja cor me pareceu ser fúcsia, embora não queira abusar da palavra. Uma orquídea fúcsia, agora a buganvília. A minha cultura floral é diminuta, mas palavras houve que me obrigaram a olhar para o referente. Buganvília, com a sua musicalidade, foi uma delas. Outra, de um registo sonoro muito diferente, foi aspidistra. Outra palavra de que gosto. Razões, desconheço-as. Com o passar dos anos, o reino vegetal vem-me parecendo muito mais interessante do que o animal. Este é uma triste história de luta pela comida e pela reprodução. A evolução podia ter ficado pelas plantas, seria tudo mais sério e profundo. Não estaríamos cá nós, seres humanos, dir-se-á. É verdade, mas perder-se-ia alguma coisa?

domingo, 7 de maio de 2023

Quase um esquecimento

Quase me esquecia de vir aqui, tão imerso estava numa daquelas actividades absolutamente necessárias, mas que não servem rigorosamente para nada. A imersão era tal que poderia ter-me afogado. Salvou-me o telefonema de um amigo, que me trouxe para fora de água, isto é, do mar de inutilidades em que mergulhara desde manhã. O dia declina, a luz já perdeu o vigor, embaciou, o que anuncia o crepúsculo. Antes de jantar, que será uma pequena refeição tardia, terei de caminhar um pouco. Não posso passar em branco essa tarefa. O encontro matinal com a balança assim mo recomenda. Ainda olhei para ela com olhar de desaprovação, mas ela manteve-se esfíngica. Fiz promessas, mas logo de seguida entretive-me em não as cumprir. Imagino que esta seja a melhor hora para andar por aí. Toda a gente em casa, entregue aos rituais da alimentação, as ruas vazias, menos carros, tudo vantagem para um passeante solitário. Basta, a rua espera-me.

sábado, 6 de maio de 2023

Conjecturas

Tinha pensado em ir almoçar ao bar do outro lado da rua. Quando me preparava para sair, já de chaves na mão, desatou a chover. Mudei de ideias. A razão não foi a chuva, mas o guarda-chuva. Pensei que se o levasse, como tinha de o fazer, iria esquecer-me dele, pois o aguaceiro teria passado e não mais me lembraria que o levara. Almocei em casa, cedo e sem necessidade de andar de guarda-chuva e pôr à prova a minha memória. Como não tenho outra aventura para acrescentar à gesta, passo a falar do estado do tempo. Não chove, céu parcialmente nublado, mas com abertas, pelas quais o sol brilha e faz deslizar uma cintilação esquiva no verde das folhas de árvores e arbustos. Posso também falar de orquídeas. Expandiram-se. Havia um friso. Agora há um friso e um canto. Ao todo, são 18, mas três ainda não floriram. São mais lentas do que as outras, mas parece que irão chegar ao dia em que se abrirão floridas para os olhos de quem as contempla. Para dizer a verdade, a minha relação é instrumental. Não mexo um dedo por elas, mas gosto do espectáculo que oferecem, comento-o com regularidade, talvez um dia chegue a teorizar sobre o assunto, mas, por enquanto, não ultrapasso a dimensão narrativa. Toda a ciência começa com a narrativa. A partir das narrativas passa-se à fase das taxionomias e, depois, entra-se no processo da conjectura e validação, embora, para certo filósofo, não seja possível validar nenhuma conjectura, apenas refutá-la. Os pássaros meus vizinhos não se calam. Grandes debates devem travar. Imagino que estejam a discutir o orçamento do bando ou alguma reforma que todos acham necessária, mas que ninguém quer. Nisto, os pássaros assemelham-se mais aos humanos do que aos anjos. Esta semelhança é corroborada pelo facto de os anjos se organizarem em hierarquias, enquanto os homens só estão felizes quando se dividem, como as aves, em bandos. Acho que vou dormir uns minutos, até que o pescoço me doa. Devia ir escrever o final de um relatório onde faço um conjunto de recomendações necessárias, mas que ninguém desejará ouvir. Sendo assim, mais vale dormir.

sexta-feira, 5 de maio de 2023

Anonimato

Não sei a razão, ou talvez saiba, mas hoje, por várias vezes, dei comigo a olhar para o dia e achar que era sábado. Em resumo, na minha mente, caso tenha uma, esta sexta-feira não passa de um sábado disfarçado. Se nós, seres humanos, nos disfarçamos, por que estranha razão os dias não o poderão fazer? Aqui, por exemplo, o narrador esconde-se no disfarce do anonimato, o que acontece com muitos narradores, embora menos com os autores, mas não é a circunstância presente. Tão anónimo é o autor quanto o narrador. As coisas têm explicações simples. O autor não conseguiu encontrar um nome adequado para o narrador e preferiu a omissão. Quanto ao nome do próprio autor, este achou que o cansava e proibiu qualquer revelação. Há pessoas que se cansam de si próprias, outras cansam-se do seu nome. Há uma razão funda para alguém se cansar do nome, embora pouca gente pense no assunto. O nome que se tem, aquele que dizemos este é o meu nome resultou de uma atribuição para a qual o portador não deu qualquer contributo. Toda a vida transportamos como nossa uma coisa que nos foi imposta. Segundo sei, e um narrador sabe muitas coisas, o autor nada tem contra o seu nome, o qual se integra na onomástica nacional, sem excessos para cima ou para baixo. Um nome normal, cairá dentro da curva de Gauss. Contudo, para certos efeitos, o autor cansou-se dele e decidiu-se pela ocultação. Poderia ter mudado de nome, mas achou que tão pesado será o nome que nos deram como aquele que escolhemos. Sem nome, fica mais leve e o que mais se precisa neste tempo de calor é de leveza. A sexta-feira continua com cara de sábado.

quinta-feira, 4 de maio de 2023

Kitsch e ideias feitas

Duas belas edições chegaram-me hoje através dessa empresa elusiva que dá pelo nome de CTT, que tantas coisas boas, ao longo de décadas, me tem trazido. Na caixa do correio, encontrei, ao chegar a casa, o número 20 da revista Electra. Textos e imagens combinam-se num produto sumptuoso e de preço irrisório. Deveria ter evitado a adjectivação. É de mau gosto, talvez um exemplo do Kitsch, usar palavras como sumptuoso e irrisório. Ora, o assunto nuclear da revista é, neste número primaveril, o gosto, e há um artigo de António Guerreiro com o título de O Kitsch e outras declinações do mau gosto. A outra edição não a encontrei na caixa do correio, mas tive de ir por ela a um balcão dos CTT. Trata-se do volume I de Gargântua & Pantagruel, uma tradução do poeta Manuel de Freitas, com as inevitáveis ilustrações de Gustave Doré. A obra é publicada pela E-Primatur, uma editora que funciona através de projectos que são apoiados pelo público. Tinha dado apoio à publicação desta tradução, mas depois apaguei o facto da memória ou entreguei-o ao reino sombrio do esquecimento. Insisto no kitsch. Agora, recebi-o, não sem antes ter recebido um email que me avivou a memória e me retirou do abismo do olvido. A Electra termina com uma entrada, ou verbete, “Nómada” (mais honestamente, NÓ ● MA ● DA), da autoria de Daniel Jonas, do Dicionário das Ideias Feitas. Ora, aqui está uma coisa à minha dimensão, para além do kitsch, as ideias feitas. Nem sequer posso dizer que essas ideias feitas foram compradas. Umas foram herdadas, outras tomei-as de empréstimo, outras tê-las-ei roubado nem sei onde, e outras haverá que achei, pobrezinhas, pois andavam por aí ao deus-dará e recolhi-as. Por outro lado, e há sempre um outro lado, apesar da diversidade da sua origem, elas não são muitas. Além de feitas, as minhas ideias são escassas. Pertenço a um tempo de escassez e até nas ideias sou frugal, para evitar que me provoquem colesterol, uma coisa horrível como prova a origem grega da palavra, que deriva de Kholé (bílis) e steréos (sólido), ao que se adiciona, como se fosse sal, o sufixo -ol. Tudo informação gratuita da Porto Editora, passe a publicidade.

quarta-feira, 3 de maio de 2023

O mesmo e o outro

Num livro lido há muito encontrei múltiplas passagens sublinhadas a lápis. Por curiosidade, fui passando as páginas e lendo os sublinhados. Seria muito cómodo afirmar que, se lesse esse livro de novo e em estado imaculado, sublinharia as mesmas coisas. Com isso daria a prova de ser sólido, imutável, um carácter nada volúvel. Seria comovente, mas falso. Em primeiro lugar, é pouco provável que me pusesse a ler aquele livro. Depois, entre mim e aquele que, com a minha mão, sublinhou o livro há uma distância que não me parece pequena. O sublinhador tornou-se-me estranho, se não estrangeiro. Um dia, alguém me disse que permanecemos sempre o mesmo, que, na verdade, nunca mudamos. Não foi bem a mim, mas aos alunos que assistiam a uma amena aula, que decorria na Faculdade de Letras, talvez numa tarde já quente. Imaginei que seria uma afirmação de Parménides contra Heraclito, mas achei-a estranha. Talvez a experiência do confessionário, pensei, lhe tenha ensinado a imutabilidade do carácter humano, pois a afirmação veio de um padre. Contudo, ela trazia uma negação terrível da própria função sacerdotal. Se permanecemos sempre os mesmos, que sentido fará tentar salvar as almas da perdição? Se eu permanecesse o mesmo, reconhecer-me-ia nos sublinhados feitos há décadas, mas não me reconheço. Logo, não sou o mesmo que era nesses dias. Também é possível que o outro e o mesmo sejam distinções sem sentido, fruto de uma fantasia de distinção, isto é, um jogo da imaginação. Está uma tarde sem sol, mas abafada. Uma luz de cinza esbranquiçada cai em borbotões sobre a praça. Os ramos das acácias e das tílias vergam-se ao peso dessa luz, inclinando-se para a terra, como se ela fosse a sua casa.

terça-feira, 2 de maio de 2023

Contaminações

Respiro fundo ao sentar-me na minha cadeira. Ela, a pobre cadeira, é um dos lugares do mundo de que mais gosto. Por vezes, arrasta-me para o território da sonolência, mas tem-me sido fiel como um cão e prestável como um serviçal. Imagino que as analogias usadas sejam reprováveis. Não cairá bem aos representantes dos cães que os seus representados sejam retratados por uma característica que lhes anule a autonomia e os aprecie como instrumentos ao serviço de uma outra espécie. Também passou o tempo dos serviçais, pois todos nos tornámos membros de um exército de serviçais, cada um com a sua patente. Ora se todos somos serviçais, é como se ninguém o fosse. E daquilo que não é não se deve falar. Isto é o que me ocorre, agora que estou refastelado na cadeira, deixando a tarde deslizar em direcção à foz, deixando as vozes da rua ecoarem até que o silêncio as devora e tudo se torna mais nítido, mais transparente. Sim, é verdade, o ruído é uma fonte de deformação da visão, impede-nos de ver claro, de apreciar a forma das coisas, os seus contornos. Este efeito não é estranho e muito menos único. Também os maus aromas impedem o gosto de saborear com adequação. Os sentidos contaminam-se uns aos outros, para contaminarem, depois, a razão, a imaginação, a memória. Cada ser humano é o produto mil contaminações, que um esforço absurdo tenta desfazer, para que tudo se torne puro e independente. Tempo perdido.

segunda-feira, 1 de maio de 2023

Um país de solucionadores

Hoje, 31 graus. Amanhã, 36. Eis um dos meus temas preferidos, as desventuras do calor. Outra coisa que me impressiona é a grande capacidade de os portugueses encontrarem soluções para problemas que, além de os desconhecerem, não têm qualquer possibilidade de executarem a solução que propõem. Estava eu à espera de outra pessoa, quando alguém me interpela por causa do calor e do calor saltou de imediato para a falta de água. Um deserto é para onde caminhamos, disse eu para não me comprometer. Deserto, não. Temos de usar água do mar, dessalinizá-la, exclamou. Não contente, afirmou que isso já acontecia há mais de 20 anos no Porto Santo ou numa outra ilha qualquer, não retive o nome. Canalizam a água como o gás. Eu que não faço ideia nenhuma do assunto, nem fiz notar que entre uma ilha minúscula e o país, apesar de pequeno, não há comparação possível. Chegou a pessoa por quem esperava e fui-me embora, deixando o solucionador de problemas a vociferar contra a burocracia, que, para além dos políticos, é sempre um útil bode expiatório para as nossas incompetências. Durante a minha vida, já longa, descobri que os portugueses são muito bons naquilo que não lhes cabe fazer. Este solucionador poder-me-ia ter dito que já estava a poupar água, que era frugal na sua utilização, que, usando a informática, tinha racionalizado o consumo em casa, sei lá, qualquer coisa que estivesse na mão dele, mas não. A solução óptima é sempre aquela que os outros têm de fazer, não a que me cabe realizar. Em tempos muito recuados da minha existência, naquela idade em que o fervor anímico é inversamente proporcional à compreensão da realidade, também cheguei a ter em carteira algumas fórmulas milagrosas, mas depressa me tornei ateu relativamente a essas divindades pagãs. Não só não lhes presto culto, como não tenho qualquer solução para seja o que for que ultrapasse os meus limitados poderes, e mesmo dentro destes, as soluções que encontro deixam sempre muito a desejar. Para dizer a verdade, nem me preocupo muito com a existência de pessoas que transbordam de soluções para os outros realizarem, desde que me sejam poupadas homilias, pregações, prédicas e sermões. Está calor e é tudo o que tenho para dizer.

domingo, 30 de abril de 2023

Com zelo e aptidão

O mês despede-se hoje sem honra nem glória, mas isso é o que acontece normalmente. A honra e a glória são excepções, não a norma. Há pouco, remexendo em velhos papéis, encontrei um diploma do Ministério do Exército que certifica que o titular do presente diploma desempenhou com aptidão e zelo, durante 12 (DOZE) MESES, as funções… Tal como o titular do diploma que foi apto e zeloso, mas não se distinguiu no campo de batalha, o qual nos meses referidos no diploma, esteve fechado e assim se tem mantido, e, por isso, não alcançou honra e glória, também o mesmo aconteceu com o mês que agora termina. Foi apto? Foi. Foi zeloso? Também. Preencheu todos os dias que o calendário lhe atribuiu, não lhe terá faltado com um minuto. Agora, chegada a meia-noite, entrará para a casa translúcida do nada e, exceptuando um ou outro motivo que nele se animou, fará do esquecimento o seu modo de ser. Entretanto, estava sintonizado na Antena 2 e oiço um anúncio institucional ao CD do compositor e pianista Amílcar Vasques-Dias, De Ouvido e Coração, Celebrando José Afonso. Indicava também a interpretação de uma cantora de flamenco, de um fadista e de dois cantores líricos. Acedi a uma dessas plataformas onde se aluga música e procurei o álbum. É o que estou a ouvir, enquanto não chega a hora de almoço. Estas metamorfoses musicais nem sempre correm bem, mas esta, parece-me, encontrou o ponto exacto onde estilos musicais bem distintos se podiam encontrar. Bastante interessante é a interpretação de Cantar Alentejano e Canção de Embalar pela cantora de flamenco Esther Merino. Uma descoberta no último dia de Abril, um dia solar, mas ventoso, como constatei quando fui à rua.

sábado, 29 de abril de 2023

Livros e status

Ida ao aeroporto buscar alguém, almoço em Lisboa, retorno ao lar, doce lar, à cadeira do escritório. Depois de uma semana tensa, o que me apetece mesmo é dormir. Este apetite pelo sono, todavia, não é partilhado pelo corpo, ou pelo cérebro, caso este não faça parte do corpo, pois quando chega a hora de dormir, com ela vem, velada sabe-se lá por quê, a insónia. Nessas alturas, que não são poucas, aproveito para adiantar leituras. Há pouco, em viagem, ouvi, na Antena 2, que a civilizada Coreia do Sul é um dos países do mundo onde menos se lê, apesar de ser um país tecnologicamente avançado e onde as pessoas mais usufruem das novas tecnologias. O comentador, alguém cujo nome esqueci, mas que falava em castelhano, não via no facto um problema. Não estabeleceu uma correlação entre o uso das novas tecnologias e o baixo índice de leitura. Pelo contrário, sublinhou os progressos que o país está a fazer para trazer a leitura para a vida das pessoas, dando a entender que ler não fazia – e ainda não faz – parte da cultura daquele país. Se isso se passasse em França, acrescentou, seria grave, pois era a marca de um retrocesso. Talvez nós, ocidentais, tenhamos sido vítimas de um fetichismo, o dos livros. Havendo pessoas que decoram estantes com livros, ou mesmo com simulacros de livros, movidas pelo encantamento em que caíram. O encantamento seria o de um suposto estatuto social que, contra qualquer evidência, o livro daria. Os livros nunca deram status. O que acontecia era que, em tempos, tempos longínquos, as pessoas que tinham status também tinham livros. Ora democratizar o livro não implica a democratização do status. Este, por natureza, não é democratizável, pois o seu fundamento é a diferenciação, a distinção, mesmo que esta se deva a coisas que pouco ou nenhum sentido tenham. Imaginemos uma pessoa que cria canários pelo prazer de os contemplar, de cuidar deles, de ver florescer as linhagens. Ninguém alcança status a criar canários. Quem gosta verdadeiramente de livros não é diferente de um criador diletante de canários. Gosta de os contemplar, de os ler, de ver florescer as múltiplas linguagens que ali se encerram, mas isso não acrescenta um grama ao seu status social, felizmente.

sexta-feira, 28 de abril de 2023

Espíritos

Um dia para esquecer. Os motivos, omito-os. Também o clima não ajudou. Quente e abafado, com o corpo a pedir chuva, literalmente, ou mesmo uma boa trovoada. Subia com a lentidão do trânsito o viaduto e ia ouvindo a Antena 2, como é hábito. Uma peça musical para oboé, salvo erro. A certa altura pensei que toda a arte é um trabalho sobre a matéria, mas não sobre a materialidade da matéria. O artista trabalha a matéria para que se revela o espírito que ali se oculta, para manifestar a espiritualidade da matéria. Esta ideia fez-me sorrir, enquanto contornava uma nova rotunda e já me encaminhava para outra. Depois, pensei em Hegel, na sua tese de que a arte é uma forma sensível de manifestar o espírito, a ideia, mas este é o pensamento de Hegel e não aquilo que eu tinha pensado. Não se trata de um espírito absoluto a caminho de si mesmo, mas de espíritos particulares que estão presentes num bloco de mármore, na combinação de uma certa tela e da tinta que a vai tingir, na conjugação de ondas sonoras, ou de corpos que lutam contra a gravidade. Ao estacionar o carro, percebi que estava perto do politeísmo ou então de uma certa forma de angelologia. No elevador, ocorreu-me que, por exemplo, num certo bloco de mármore estão contidos inumeráveis, senão infinitos, espíritos, mas a limitação da arte humana só consegue revelar um. A consequência é que toda a arte é um exercício de homicídios espirituais. Nisto é muito idêntica à reprodução sexuada. Por cada espermatozóide que atinge a meta, morrem milhões com todas as suas infinitas potencialidades. Agora que estou sentado e escrevo tudo isto, constato que o dia não está a melhorar. Daqui a pouco irei fazer a caminhada diária, mas o ar pegajoso que adivinho nas ruas deixa-me relutante.

quinta-feira, 27 de abril de 2023

Uma viagem em verso e meio

Quase no início da quarta elegia de Duíno, Vasco Graça Moura traduz verso e meio de Rilke assim: Não somos unos. Não nos coordenados / como aves migradoras. (…) A primeira pessoa do plural gera uma feliz ambiguidade. Quem não é uno? Quem não se coordena como as aves migradoras? Será a espécie humana o referente desse nós? É verdade que entre os homens reina sem parar a discórdia, o diferendo, a desavença, que a aliteração sublinha e intensifica, e que são o sinal da falta de coordenação e de unidade. Esse nós, todavia, pode ser um plural majestático, uma referência ao eu, a uma alma desavinda consigo. Serei eu que não sou uno, nem me coordeno como se coordenam as aves migradoras. A ambiguidade, porém, não termina aqui. Esse nós, que no original está expresso, pode ser, ao mesmo tempo, um eu e um nós. Todos os eus sofrem da falta de unidade e de coordenação consigo mesmos e por isso constituem um nós. O que introduz mais uma ambiguidade. Nós, seres humanos, estamos coordenados e unidos na falta de unidade e coordenação que cada um sofre. O que nos une é a desunião. O que nos coordena é a descoordenação. Da primeira à terceira interpretação das palavras de Rilke, ou da tradução de Graça Moura, passamos da sociologia à ontologia por intermédio da psicologia. Todo o poema – ou todo o verso – é um palimpsesto.

quarta-feira, 26 de abril de 2023

Do quotidiano

Os termómetros, por aqui, chegaram aos 32 graus e Maio anuncia-se com temperaturas na ordem dos 35. A rua estava insuportável, e tudo indica que este estado de coisas é irremissível. Agora, o Verão começa em Abril e prolonga-se por dentro de Outubro, até quase Novembro. A sensação que paira nos ares é de que ninguém quer saber, como se as pessoas se entregassem a uma lógica evolucionista, em que os mais aptos se adaptarão às novas circunstâncias, e não há ninguém que se sinta excluído do grupo dos mais aptos. Ou talvez se espere um milagre que resolva aquilo que parece não ter solução. Um milagre sobrenatural ou criado pela ciência. Ouvi esta conversa a alguém que se interessa pelo clima, mas não soube o que lhe dizer. Enquanto escutava, pensava em lugares frescos, paisagens de névoa e na água fresca que me apetecia beber. Coisas simples de um exilado climático. O dia prolongou-se e eu perdi-me na azáfama, sem dar conta de algum acontecimento merecedor de narração. A entrada para a auto-estrada estava cortada, o aparato policial indicava haver problema e o trânsito acumulava-se perdido na lentidão. Foi um acidente, disseram-me pouco depois. Mais tarde, encontrei outro, mas já às portas da cidade, embora esta não tenha portas. As que havia na muralha fernandina, que circundava a antiga vila, o terramoto de 1755 levou-as com a muralha. Agora, vivo numa terra desmuralhada, incapaz de opor resistência a mouros ou castelhanos. O Word não gostou de desmuralhada, sublinhou-a a vermelho e propôs emuralhada ou mesmo desmortalhada. Pensei que o processador de texto estava numa fase tétrica. Vou fechá-lo.

terça-feira, 25 de abril de 2023

Modorrar

O feriado corre dolente, não há vento, as árvores parecem estátuas coloridas, petrificadas pela varinha mágica de algum deus irrequieto e desocupado. A avenida envelhece tomada pelo calor, pelo sol vigoroso de um Abril cada vez mais estival. Voltei ao tema recorrente da meteorologia, do estado do tempo, das peripécias do clima. Na minha secretária repousa o romance Sob a estrela do Outono, de Knut Hamsun. Tinha-o lido em espanhol, e agora que a Cavalo de Ferro o publicou em português vou relê-lo. Contudo, há uma coisa que me preocupa. Esta obra, de 1906, é apenas a primeira de um conjunto denominado Trilogia do Vagabundo. Ora, na edição portuguesa não vejo, em sítio algum, a referência ao facto. Temo que se esqueçam de publicar os outros dois volumes. Já os li em espanhol, mas já que comprei o primeiro em português, gostaria de completar o grupo de romances. Na contracapa do livro é citada a frase de Thomas Mann: Hamsun é o maior escritor de todos os tempos. Talvez Mann exagerasse, mas será um dos maiores, com lugar cimeiro no paraíso dos escritores, embora é possível que o não tenha no dos homens. Isso, porém, é um assunto que não cabe nestas linhas. Vou modorrar um pouco para fazer companhia à tarde, onde o tempo parece ter adormecido, mas nãos haja equívocos, mesmo a dormir o tempo continua a sua caminhada.

segunda-feira, 24 de abril de 2023

Citações

Tenho ideia, uma vaga memória, de que terá sido por um CD de 1994 que entrei no universo do compositor polaco Krzysztof Penderecki. Trata-se de uma recolha de peças, com destaque para Threnody to the Victims of Hiroshima, De Natura Sonoris ou Canticum Canticorum Salomonis. São peças, todas elas, de grande densidade, como se fossem o eco da tragédia que impregnou o século XX. Oiço agora esse CD e penso que, se alguém der por isso, julgará que enlouqueci. Se me acusassem de ter entontecido, eu responderia que era falso e leria alto o poema: Esclarecendo que o poema / é um duelo agudíssimo / quero eu dizer um dedo / agudíssimo claro / apontado ao coração do homem // falo / com uma agulha de sangue / a coser-me todo o corpo / à garganta // e a esta terra imóvel / onde já a minha sombra / é um traço de alarme. Depois de escrever o poema da Luiza Neto Jorge, pensei que não me livraria da acusação, que o acusador haveria de repetir que a minha sombra / é um traço de alarme. E ficaria ele mais alarmado, enquanto a trenódia – ou será tronodia? – se eleva e me toca o fundo do coração, com o qual oiço o canto lamentoso que clama na voz silenciosa dos mortos.

domingo, 23 de abril de 2023

Da posse recíproca

Não li o livro, ainda não o li, mas vejo, em pequenos episódios, o filme que adapta o romance de Octave Mirbeau, Diário de uma Criada de Quarto, com a realização de Benoît Jacquot. Existem outras adaptações, entre elas uma de Jean Renoir e outra de Luis Buñuel. Releio O Leopardo, de Giuseppe Tomasi di Lampedusa, do qual Luchino Visconti fez um grande filme. A obra de Lampedusa foi escrita entre 1954 e 57, a de Mirbeau foi publicada em 1900. De certa forma ambas têm um alvo social preciso, a burguesia. Em O Leopardo é a ironia do príncipe de Salina que pontua a ascensão da burguesia ao poder efectivo na Itália em unificação. Em O Diário de uma Criada de Quarto é o olhar penetrante de Célestine que manifesta a impiedade e corrupção moral de uma burguesia já consolidada em França. O olhar que vem de cima e o que vem de baixo encontram-se no mesmo alvo, vendo cada um deles coisas diferentes, mas que, na verdade, são complementares. O domingo progride sorrateiro, aproxima-se da hora de almoço. Já fiz uma caminhada quase matinal. Nessa viagem, não me lembrei do príncipe nem da criada, apenas de coisas que me vão preocupando, numa rememoração dos últimos dias e numa antecipação dos próximos, caso seja possível antecipar seja o que for. Imagino, neste momento em que uma nuvem cobre o sol, que num outro mundo, seria possível que Fabrizio Corbera, príncipe de Salina, e Célestine, a criada de quarto, se encontrassem como iguais. Aqui poder-se-á fazer entrar as seguintes considerações: Quanto ao comércio natural dos sexos ele tem lugar ou segundo a simples natureza animal (vaga libido, venus vulgívaga, fornicatio), ou segundo a lei. Neste caso, trata-se do casamento (matrimonium), isto é, a ligação de duas pessoas de sexo diferente, que quer, para toda a sua vida, a posse recíproca das suas faculdades sexuais. Talvez esta linguagem explique a razão pela qual Kant, o autor, nunca se casou. Os quatro artigos sobre o direito conjugal (parte da Metafísica dos Costumes – primeira parte: Doutrina do Direito) são todos eles escritos neste registo. Ora, muito mais tarde, o príncipe de Salina, depois da comunicação pelo padre Pirrone de que a sua filha Concetta estava apaixonada, pensou: Amor. Claro amor. Fogo e chamas durante um ano, cinzas durante trinta. De alguma maneira, o comentário meditativo do príncipe acaba por dar razão ao filósofo alemão. O matrimónio nada tem que ver com o amor, mas com a dura gestão das cinzas, isto é, da posse recíproca das suas faculdades sexuais até ao fim da vida. Um problema de gestão de propriedades, digamos. O que para Kant está muito acima do comércio natural dos sexos segundo a simples natureza animal.

sábado, 22 de abril de 2023

Arqueologias

Hoje desloquei-me um pouco mais para o interior, não muito, nem vinte quilómetros, mas o país já é outro. Acabei por almoçar naquele lugar, num restaurante tipicamente de interior. Nada de aparências ou comidas europeias, mas uma casa decente, empregados preocupados com o ofício – isto é, com os clientes – mesas com toalhas e guardanapos de um branco imaculado, uma boa carta de vinhos e uma comida portuguesa bem feita. Os comensais são muito distintos daqueles que se encontram nos restaurantes da moda em Lisboa, por exemplo. Uma burguesia provinciana, em que ainda se nota traços de uma vida rude, mas onde o aroma do dinheiro começa a apagar as cicatrizes dos tempos difíceis. Quanto mais se progride para o interior, maior é o número deste tipo de restaurantes, casas sólidas, de onde não se sai defraudado, pelo contrário. Isto não significa que em Lisboa ou no Porto não existam restaurantes provincianos, com a mesma cultura expressa na carta de vinhos e na qualidade da ementa. Existem e também não se sai defraudado. Contudo, a ambiência trazida pelos clientes é diferente, mais cosmopolita, com menos traços de uma vida rude, talvez por ser mais antiga. Contudo, uma saudade, que os próprios ignoram, leva àqueles lugares como peregrinos de um deus desconhecido. Enchem as mesas como resposta a um impulso arcaico ou para exercerem uma actividade de arqueólogos que, com garfo e faca, escavam memórias ancestrais desconhecidas. Para o que me havia de dar hoje.

sexta-feira, 21 de abril de 2023

Tempo e memória

As previsões concretizaram-se e, neste momento, chove. Uma chuva fina e persistente. A sexta-feira progride indiferente ao estado do tempo. Apesar de usarmos a palavra tempo tanto para a meteorologia como para a duração, as duas coisas ignoram-se ostensivamente, cada uma concentrada na sua sorte e nos seus afazeres. Uma empurrando o presente para o passado, outra distribuindo os estados climáticos de acordo com arcanos que um mortal não decifrará. Para acompanhar uma parte da tarde recorro a um CD duplo com o nome de uma deusa grega, Mnemosyne, de Jan Garbarek e The Hilliard Ensemble. Há muito que não o escutava e hoje caiu-me entre os dedos. Oiço a segunda faixa, O Lord in Thee is all My Trust, de Thomas Tallis. A meteorologia entrega-se a súbitas metamorfoses, mostrando um carácter volúvel. Imagino que possa existir um mundo em que a volubilidade seja uma virtude e não um vício. O título do CD e a fotografia da capa estabelecem uma estreita relação. Vê-se um céu nublado, onde existem nuvens de diversas colorações, do branco brilhante ao chumbo pesado e negro. É isso que é a memória, palavra portuguesa para mnemosyne. Para ser mais fiel, Mnemosyne é a deusa da memória. Deu à luz as musas que superintendem as diversas artes, o que não deixa de ser uma lição. A mãe de todas as artes é a memória, mas elas não se confundem com ela, assim como um filho não se confunde com a sua mãe. Tal como o cântaro vem do barro, mas é outra coisa, também a arte vem da memória, para ser outra coisa. A memória é o barro de toda a arte. Não tarda, tenho de sair e repito-me na composição de uma analogia, talvez para me convencer a mim mesmo.

quinta-feira, 20 de abril de 2023

Paraísos

Desconfio que tenho uma certa fixação em efemérides, pequenas efemérides, daquelas que asseguram a banalidade do mundo e a trivialidade da vida. Hoje, cumprem-se 2/3 de Abril. Daqui até Maio há apenas mais dez dias. Será isto tão relevante que mereça que se lhe dedique alguns segundos? Claro que é, pois toda a existência, e não apenas a humana, é composta por coisas sem importância, mas que são necessárias. Celebro a necessidade neste culto das efemérides que é também um tributo ao efémero. Uma aplicação que me controla o exercício diário veio a terreiro informando-me, não sem benevolência, que, para cumprir as metas diárias, me faltam 742 passos e seis pontos cardio. Penso que talvez, mais logo, quando o calor entrar em depressão, farei os possíveis para satisfazer o aplicativo. Agora, deixo-me levar pela música de Carlo Gesualdo. Nunca deixa de me fascinar a obra deste príncipe de vida negra. Se tivesse de escolher uma época musical, não seria o barroco, nem o classicismo, nem o romantismo, nem a música contemporânea. Instalar-me-ia na música da Renascença e pensaria que tinha chegado ao paraíso. Um paraíso transitório, um oásis entre os tempos antigos e os tempos modernos, onde tudo estava a acabar e tudo estava a começar. Imagino que os paraísos sejam sítios onde, ao mesmo tempo, tudo acaba e tudo começa. Isto, porém, são fantasias de um narrador desocupado.

quarta-feira, 19 de abril de 2023

Crenças

Na barra de tarefas do computador, existe um aviso – melhor, um duplo ou triplo aviso – que me informa de que o sol se está a pôr, o céu está parcialmente ensolarado e estão 22 graus de temperatura. Agradeço a solicitude informativa, mas não sei o que fazer com tanta informação. Estamos imersos num oceano de informações, um mar encapelado onde arriscamos o afogamento. Isto tinha eu escrito antes de ter de sair de casa e deixar a meditação em suspenso. Agora que retornei ao meu lugar, o sol já se pôs há muito e a escuridão desceu sobre a cidade, envolvendo-a numa seda negra rasgada pelos clarões dos faróis e das iluminações públicas. As ruas, ensonadas, entregam-se ao abandono a que os homens as votaram. As acácias da praceta começam a cobrir-se de folhas, num ritmo lento. Os castanheiros da avenida marginal, reparei de manhã, já estão floridos, mas longe do esplendor que costumam atingir. Talvez ainda seja cedo. Para acabar o périplo pelo mundo vegetal, registo que onze das quinze orquídeas já estão floridas. As que faltam também prometem fazê-lo, só que um pouco mais tarde. Voltando à barra das tarefas do computador, sou informado de que estão 15 graus, com o céu parcialmente nublado. E eu acredito.

terça-feira, 18 de abril de 2023

Viagens no tempo

A criançada ocupa o parque que lhe é destinado. Ouvem-se os gritos, enquanto o vento obriga as folhas do arvoredo a dançar, como se uma flauta humilde ao longe tocasse, talvez para se fazer ouvir nos ouvidos de uma pastora bela. É sempre possível imaginar mundos impossíveis. Talvez imaginados eles se tornem possíveis. Não há pastoras belas, nem não belas, nem estamos em tempos pastoris. Imagino que a verdade acerca desse mundo de pastoras belas e pastores musicais seja tenebrosa, mas sempre se pode sonhar com uma Arcádia, pois tudo o que nos chega da antiguidade perdeu as trevas e a sujidade na viagem para vir até nós. Fazer as coisas viajar no tempo é uma operação de limpeza, pois o tempo é uma escova implacável. Vou à rua ver se chega alguma novidade da Guerra do Peloponeso, uma carta de Tucídides, um fax de Xenofonte.

segunda-feira, 17 de abril de 2023

Uma raposa

Chegou a segunda-feira e com ela a realidade. Como se pode tratar com uma coisa tão intratável como a realidade? Talvez existam duas maneiras possíveis. A da raposa e a do ouriço. Entre mais ou menos 680 aC e 645 aC, viveu na Grécia um homem chamado Arquíloco, nascido na ilha de Paros. Era guerreiro e poeta lírico. Talvez tão famoso, nesses tempos, quanto Homero. É ele que escreve: A raposa sabe muitas coisas, mas o ouriço sabe uma muito importante. Isaiah Berlin, nos anos cinquenta do século passado, para falar acerca da visão histórica de Lev Tolstói escreveu, inspirado no poeta grego, a obra O Ouriço e a Raposa. Já no século XXI, Ronald Dworkin publica Justiça para Ouriços. Temos um confronto entre duas formas de sabedoria. Aquela que assenta num vasto acervo de informações, a da raposa, e aquela que se funda no conhecimento de uma coisa essencial. Este narrador, tal como o autor o projectou, não passa de uma raposa, ou de um candidato a raposa. Sabe muitas coisas, mas nenhuma fundamental. Uma das suas frases de auto-análise favoritas é: sei uma quantidade enorme de coisas inúteis. Ao que poderia acrescentar: mas não sei nenhuma que valha a pena saber. Ora, como lidar com a realidade quando se tem alma de raposa e não de ouriço? Este é um problema. Outro pode formular-se do seguinte modo: pode a raposa, um dia, tornar-se em ouriço? Aqui entramos em Ovídio, o poeta das Metamorfoses, e na plausibilidade de que uma coisa se transforme numa outra. Consta que os alquimistas acreditavam na possibilidade de o chumbo devir ouro, mas nunca provaram a crença. Será possível, por manipulação genética, transformar raposas em ouriços? Todo este texto, claro, foi escrito no registo da raposa ou, para ser mais exacto, de candidato a raposa. Ninguém pode deixar de ser o que é.

domingo, 16 de abril de 2023

Sol de domingo

Quando, de manhã, fui à rua, perguntei-me por onde andariam as águas mil que rimam com Abril. Claro que não me dei resposta, e ninguém veio em meu auxílio. Pelo contrário, os transeuntes desfilavam pimpões vestidos de Verão, esquecidos de que deveria chover para amenizar o clima, encher as barragens e evitar os incêndios. Ninguém quer saber disso, pensei. Depois, caí em mim, fui tocado pela humildade, e reconheci que também eu era um refinado egoísta. Só me lembrei das águas mil, porque o calor me perturba, como se eu tivesse nascido num clima frio e nebuloso e não aqui. O mal do mundo está em que há muito mais pessoas a favor do tempo quente do que do tempo frio. Por isso, não se importam com o aquecimento global. Este assunto, porém, está fora das cogitações do narrador desta gesta, um cavaleiro andante do arrefecimento global. A Primavera, por estes lados, está animada. Os pássaros não se calam, as árvores vão-se cobrindo de uma folhagem verde e vibrante, batida pelo vento, num processo aliterativo, e, por certo, haverá, por essas terras fora, gentes cujo coração foi tocado pela flauta mágica do amor. O que me impressiona, porém, é que o brilho do sol tem o selo dominical. Como todos sabem, e se não sabem deveriam sabê-lo, o sol brilha de maneira diferente aos domingos. Não conheço as razões, mas já constatei o facto. Há nesse brilhar vibrante uma melancolia inextinguível, coisa que não acontece nos outros dias. Poderia dedicar-me à abdução para estabelecer um conjunto de hipóteses científicas que explicariam o fenómeno. Contenho-me, horrorizado, ao descobrir que a palavra tem significado não apenas lógico, mas também anatómico e, pasme-se, ovnilógico. Neste caso, trata-se da gesta de pessoas que foram raptadas – abduzidas – por extraterrestres. Para a próxima vez não usarei o termo abdução, mas raciocínio abdutivo, o qual suponho, não terá ligação à anatomia e, muito menos, à ovnilogia. Hoje, porém, deixo o caso em suspenso e vou tratar da vida noutro lugar.

sábado, 15 de abril de 2023

Confissão

Passei os olhos pela imprensa online. É um acto memorial. Em tempos, a manhã de sábado era dedicada, numa esplanada, à leitura dos semanários. Por norma, três ou quatro, conforme a sorte deles. Depois, fiquei concentrado em apenas um e hoje zero. Já não frequento esplanadas nem leio semanários, seja em papel ou online. A informação e a opinião, de que fui grande consumidor, hoje, com raras excepções, entendiam-me. Imagino, agora, que me deveriam ter entediado desde sempre, pois, na verdade, apenas tocam a espuma dos dias. O problema é que a espuma que agora parece interessar o mercado de leitores e, por isso, os mercadores de informação é mais rasteira e mais suja. Há quem esteja pronto para dizer que os protagonistas são mais sujos e rasteiros. Pode ser verdade, mas julgo que o problema está do lado dos consumidores. Eles, sim, parecem-me cada vez mais ávidos de sujidade e de rasteirice, como se a alma das pessoas se tivesse vindo a tornar mais negra e desejosa do pior. Foi isto que disse ao padre Lodo, há pouco, em conversa ao telemóvel. Não falávamos há semanas. Ele disse-me que estava numa esplanada a apanhar sol e ia lendo o semanário, cujo nome omito. E eu fiz-lhe aquela confissão. Sim, sendo ele padre, achei que poderia ouvir-me neste tipo de confissão, pois deverá ter treino suficiente para abarcar todo o género de confidências e declarações de gosto. Respondeu-me que não desistia do seu jornal de sempre, isto é, aquele que adoptou desde que chegou a Portugal, mas que compreendia o meu desencanto com a imprensa. Esta compreensão, julgo, foi uma forma de absolvição. Depois, trocámos opiniões sobre política, como nunca deixamos de fazer, mas essas omito-as, pois, como narrador, estou proibido pelo autor de manifestar qualquer inclinação que possa ter pelo assunto.

sexta-feira, 14 de abril de 2023

Uma conspiração

Uma conspiração. Tinha o post escrito, usava um tom melancólico, quase elegíaco, falava, como habitualmente, de coisas diversas e sem ligação, tudo corria pelo melhor, mas um bug que vive dentro deste computador decidiu fazer-me nova visita. Usa uma substância paralisante que suspende a actividade de tudo o que esteja activo, chega mesmo a suspender a passividade do que é passivo. Carregar no botão e desligar a máquina é a única solução. Ela, a máquina, não se queixa. Ligo-a e as coisas parecem voltar à normalidade, mas o texto escrito, apesar de gravado, esfumou-se, perdeu-se na estratosfera, e o mundo foi privado para sempre de um conjunto de pensamentos que o deveriam embasbacar, profundos que eram. Talvez tenha sido o próprio mundo a conspirar para não ficar embasbacado com tanta penetração. Seriam pensamentos brocantes, que entrariam pelas paredes do mundo para lhes abrir buracos, imagino eu, mas sou parte interessada, o que me retira a imparcialidade. Consegui, contudo, salvar o ficheiro que está a chegar às 660 páginas, o que não deixa de ser impressionante. Como será possível escrever tanto e, para além dos pensamentos perfurantes, não dizer nada. Não era isto que tinha escrito naquilo que o vento levou, mas o vento leva uma coisa e logo traz outra. Por norma, pior.

quinta-feira, 13 de abril de 2023

Um saber infinito

Dia de ida ao ortopedista, não a um qualquer, mas ao que é especialista em pés e tornozelos, imaginando eu que ele já pouco saberá do joelho e nada do fémur. Ainda há dias, uma pessoa me dizia que se andava a tratar com um ortopedista devido a um problema nos ossos da mão e que se queixou também de uma dor no ombro, ao que o médico respondeu que de ombros nada sabia e lhe indicou um especialista em ombros. Constato, não sem ficar maravilhado, que na medicina nos aproximamos daquele momento onde o conhecimento atingirá a sua máxima potencialidade, isto é, quando se tiver um saber infinito acerca de absolutamente nada. O médico é um rapaz da idade dos meus filhos, não me atendeu excessivamente depois da hora marcada e gostei da estratégia retórica usada. Perguntou-me ao que ia, disse-lhe que era por causa de um calcanhar e que levava já umas radiografias e uma ecografia. Não se mostrou muito interessado. Perguntou-me há quanto tempo padecia do que estava a padecer, lá lhe respondi como fui capaz. Pediu-me para ver o pé, manipulou-o, deu-me indicações para esticar a perna, o pé, sei lá mais o quê. Acabada a sessão prática, disse que a coisa era tratável, mas um bocado chata. Olhou para os exames que eu levava, mas continuou a não demonstrar grande interesse. Então, chegou a hora da aula de anatomia. Com um modelo de um pé reduzido aos ossos explicou-me o que estava a acontecer, eu ia dizendo que sim, que percebia, embora quando ele referia o nome do terceiro músculo, pois estes também entram na equação, eu já não me lembrava do nome do primeiro. Isto, pensei, é um acordo tácito. O papel dele, enquanto jovem médico actualizado, é explicar ao paciente com pormenores científicos aquilo que se passa e o meu, enquanto doente, é fingir que me interesso pelo assunto e que percebo a explicação. Só espero que, se um acaso da vida, tiver de lhe explicar a diferença entre juízos analíticos e juízos sintéticos a priori, ou entre um modus ponens e um modus tollens, ele também finja interesse e compreensão. Feito e explicado o diagnóstico, entrou pela porta do tratamento. Nada de medicamentos nem idas à fisioterapia. Apenas realizar uns exercícios de manhã e à noite que ele exemplificou e me fez fazer. Explicou que batotas devo evitar e fez um prognóstico de umas seis semanas para ficar bom. Caso a profecia falhe, então que faça uma ressonância magnética tibiotársica, mas só nesse caso. Que não me ponha a ressonar magneticamente sem necessidade.

quarta-feira, 12 de abril de 2023

Artifícios

Hoje coube-me assistir a umas conferências sobre Inteligência Artificial. Um dos oradores questionou o uso do qualificativo artificial, preferia Inteligência Sintética. Um equívoco. Artificial é uma escolha adequada, pois contém na sua raiz a ideia de arte, feito pela arte e o engenho dos homens. Pela indústria. Arte remete para a ars latina, a qual traduz a techne dos gregos, a raiz da portuguesa técnica. A Inteligência Artificial, nem sei por que razão estou a grafar em maiúsculas, é um artefacto técnico, resultado da indústria, no sentido de engenho para fazer algo e, mas só depois, como actividade económica mecânica, que também é. O uso de artificial coloca a Inteligência Artificial numa tradição arcaica da humanidade e é lá que ela deve ficar. Essa ideia de artefacto é mais importante do que a de síntese, que remete para composição. Há composições produzidas pelo homem, pela sua ars, pela sua techne, mas haverá outras espontâneas, geradas pela natureza, o que introduz uma ambiguidade ausente do vocábulo artificial. Não perdi o tempo, embora tivesse ainda direito a uma palestra sobre a felicidade, que de algum modo usava um artefacto da Inteligência Artificial para medir os estados de felicidade e infelicidade, mas aí a coisa tinha entrado no domínio da pura ociosidade, a que não faltou o mindfulness e outras ideias aberrantes para uma mente envelhecida, incapaz de sentir qualquer empatia – acho que também esta palavra terá sido usada – pelo assunto. Valeu a prova dos vinhos, onde descobri um tinto bastante interessante e também um rosé suficientemente seco para me chamar a atenção. Comprei umas garrafas de ambos, o que teria salvado a manhã, caso as conferências sobre Inteligência Artificial tivessem sido todo cheias de empatia e mindfulness, o que não foi, Deo Gratias, o caso.

terça-feira, 11 de abril de 2023

Divagações

Depois de ler uma obra com duas novelas de Castro Soromenho, uma literatura a que se pode chamar colonial, dedico as minhas insónias ao romance Aldeia das Águias, de Guedes de Amorim, publicado em 1939. O autor é um nome quase esquecido no panorama da literatura portuguesa e o romance em questão parece ser de tendência regionalista. Do que li, não escapará à dicotomia campo - cidade, sendo o primeiro o lugar da virtude, e a segunda, o do vício. Talvez me engane. Numa outra leitura, a de um filósofo actual, sugere-se que a crença religiosa teria a sua origem no medo sentido perante a desmesura da realidade e das forças da natureza. Isso seria um argumento contra a validade das crenças religiosas, nomeadamente a da existência de Deus. Ora, este parece-me ser um mau argumento, pois pode-se argumentar que a divindade se manifesta no próprio medo sentido pelos seres humanos, o medo seria uma teofania. O argumento não será excepcional, mas valerá tanto como o seu contrário. Talvez não seja curial andar a trocar argumentos sobre aquilo para o qual não haverá caminho para encontrar provas, deixando a cada um resolver essas questões como puder, sem lhe alimentar a ilusão de que terá uma solução ali mesmo, depois de dobrar a esquina. É necessário mantar a contenção e vigiar o tamanho do texto. Fim.

segunda-feira, 10 de abril de 2023

Ardis

Um terço de Abril está consumado. Gostava de saber a razão que me leva a esta quase obsessão com a passagem dos meses, a necessidade de colocar no solo destes textos marcos miliários da viagem pelas terras do calendário. Hoje, talvez porque tivesse companhia na caminhada matinal, não reparei em nada da paisagem envolvente. Não é verdade. Notei que num certo lugar o odor floral vindo de glicínias que por ali existem, pelas tardes tão intenso, era de manhã apenas um vestígio. Fui informado de que o calor do dia as faz libertar os óleos que nelas haverá, por isso ainda não tinha chegado, naquele momento, a sua hora de se derramarem em aromas para que os passeantes dêem pela sua presença. A natureza tem uma enorme reserva de truques e ardis para se fazer notada, embora nem sempre o êxito lhe esteja assegurado. Estamos já na pós-Páscoa, mas continuo em jejum de palavras. Serve para desintoxicar da verborreia que, não poucas vezes, me acomete.

domingo, 9 de abril de 2023

Jejum

Devia começar a fazer jejum. Não, não desse, mas de palavras. Estes textos estão a tornar-se palavrosos. O de ontem tinha 494 palavras e mais de 2500 caracteres. Hoje, Domingo de Páscoa, já fui fazer uma pequena caminhada. Numa zona de moradias, reparei que a caixilharia de alumínio se apresta para liquidar a de madeira. Mesmo naquelas moradias mais antigas e modestas, o avanço do alumínio é grande. Muitas daquelas casas foram construídas num tempo em que o alumínio ainda não tinha chegado a suporte de vidros das janelas, mas estão quase todas convertidas. Resistem algumas caixilharias de madeira, esparsas, o seu estado, todavia, não lhes augura grande futuro. Tinta ressequida, um ar de cansaço, como se já não pertencessem ao lugar onde estão. Aprende-se muito sobre o mundo quando se caminha de manhã, ao contrário do que acontece nas caminhadas nocturnas, onde a consciência se entrega às paixões da alma. Não tarda estarão cá os netos e haverá bulício. Vou preparar-me.

sábado, 8 de abril de 2023

Aventuras no sertão

Continuo as minhas aventuras no sertão da Inteligência Artificial. É um lugar, por vezes, agreste e selvagem. Contém inúmeros perigos, como toda a grande floresta que se preze. Descobri que é dada à mentira. Por vezes, é mesmo uma mentirosa compulsiva. O que não sabe, a maior parte das vezes inventa, embora saiba muitas coisas, demasiadas coisas mesmo. Perguntei-lhe, para a experimentar, quem era o autor da obra Modal Logic as Metaphysics? Resposta: O autor da obra "Modal Logic as Metaphysics" é Timothy Williamson. É um filósofo britânico conhecido por seu trabalho em filosofia da linguagem, epistemologia, lógica e metafísica. A obra em questão, publicada em 2013, aborda a relação entre a lógica modal e a metafísica, argumentando que a lógica modal é essencial para se compreender a estrutura da realidade. Até aqui, tudo muito bem. Pedi-lhe para me dizer quais as três primeiras linhas do capítulo 1 “Contigentism and Necessitism” e respondeu-me: Desculpe-me, mas como um modelo de linguagem, eu não tenho acesso ao conteúdo específico de livros e capítulos. No entanto, posso lhe fornecer algumas informações gerais sobre o capítulo 1 de "Modal Logic as Metaphysics" de Timothy Williamson. E continuou fazendo uma síntese do capítulo em meia dúzia de linhas. Que probidade, ou talvez não, pensei. Então, pedi-lhe o título do capítulo 2. Respondeu-me: O título do Capítulo 2 de "Modal Logic as Metaphysics" de Timothy Williamson é "Metaphysical Necessity". Depois, apresenta um resumo desse capítulo, com aparência de grande consistência. Ora, mais depressa se apanha um mentiroso do que um coxo. O título do capítulo 2 é “The Barcan Formula and its Converse: Early Developments”. Ao apanhar a coisa em mentira flagrante fiquei muito mais descansado. Afinal, a Inteligência Artificial é humana, demasiado humana, e mente com quantos dentes tem na boca, apesar de não ter boca nem dentes. Não passa no mais indigente dos testes de um qualquer polígrafo. Imaginemos, todavia, que Newton ou Einstein eram mentirosos, que mentiam aos pais, aos amigos e às respectivas mulheres, caso as tivessem (não fui averiguar, nem tenho qualquer prova de que Newton ou Einstein tenham alguma vez faltado à verdade). Este estatuto de mentirosos dos dois génios da Física é apenas uma suposição para uma experiência de pensamento. Caso, fosse verdade que eles mentiam muitas vezes, isso implicaria que não deveríamos considerar os seus trabalhos na Física? Não, claro que não. O mesmo se passa com a Inteligência Artificial. Como as inteligências não artificiais, também ela nos obriga a testar as suas afirmações e a confirmar se está a dizer a verdade ou se está a divertir-se, como um génio maligno, à nossa custa. Descobri que ela faz resumos de capítulos de livros que nunca leu, apenas a partir dos respectivos títulos, coisa que acontece com frequência no mundo da inteligência não artificial. Era para falar de outra coisa, da razão por que Eduína, amiga de quem herdei três cadernos completamente escritos, tinha tão estranho nome, mas fica para outro dia.

sexta-feira, 7 de abril de 2023

A essência da amêndoa de Páscoa

Ontem foi Quinta-Feira de Endoenças e hoje é Sexta-Feira de Paixão. Há muitos anos, quando havia apenas um canal de televisão e a emissão começava às sete da tarde, a Sexta-Feira de Paixão televisiva era preenchida apenas com música clássica. Um dia de luto nacional que caía sobre cristãos e não cristãos. Depois, as coisas mudaram e o luto pela paixão de Cristo transitou para a subjectividade dos crentes, como foi acontecendo com os outros lutos. Para estar em harmonia com a efeméride oiço a Passio Domini nostri Jesu Christi secundum Joannem, de Arvo Pärt, pelo The Hilliard Ensemble e Paul Hiller. Mais logo, é possível que oiça a Paixão segundo São Mateus, de Bach. É uma possibilidade. Motivado pela época, tenho dado alguma atenção - há quem diga atenção excessiva - às amêndoas de Páscoa. Só há umas que me interessam, são as de chocolate e canela, embora também elas sofram de um defeito partilhado com todas as outras. Têm mesmo uma amêndoa. A chegada ao fruto, depois da travessia pelo chocolate, representa um autêntico e decepcionante anticlímax. Uma verdadeira amêndoa da Páscoa não deveria ter amêndoa, apenas chocolate que se dissolveria no nada. Não vale a pena virem com especulações filosóficas e afirmar que a essência da amêndoa pascal é a amêndoa. Para mim, é o chocolate casado com canela. Aqui por casa, há outro tipo de amêndoas, umas de chocolate preto, outras caramelizadas, mas mal olho para elas. As orquídeas continuam a florir. São já oito que entraram na luminosa glória de se abrir para os olhos dos espectadores. Segundo um relatório escutado há pouco, também todas as outras dão sinais de que, mais tarde ou mais cedo, se abrirão em flor. Frases como “se abrirão em flor” ou “abrir-se-ão em flor“ deveriam ser proibidas, mas poderá não ser curial eliminar o mau gosto. Nestes dias, fora das horas úteis, tenho sido ocupado pela exploração do ChatGPT e outras ferramentas idênticas e pela leitura de um livro de contos de Castro Soromenho, Calenga. Dois mundos tão afastados que quase caio na tentação de dizer que são incomensuráveis, o que não será verdade. O último é uma visita literária ao mundo arcaico das tribos africanas, ao seu modo de vida e valores fundamentais, o outro é uma visita a um mundo já presente, mas ainda incompreensível na sua presença. Deveria tentar descobrir amêndoas de chocolate e canela sem amêndoa, mas tenho de me apressar, pois não tarda e a Páscoa passou. Acho que vou perguntar ao ChatGPT.

quinta-feira, 6 de abril de 2023

Genes e fantasias

Alexander Kluge refere os estudos de Richard Dawkins, a quem chama darwinista – As últimas investigações do darwinista Dawkins… –, que rejeitam a ideia de que no processo evolutivo o lado dos maus tenha alguma vantagem. Parece que o gene dos bons é mais apto para sobreviver na luta pela evolução. Sendo assim, e ainda segundo Dawkins, o bem parece estar a aumentar pouco a pouco nas sociedades humanas. Isto será confirmado por estudos de outras áreas. Isto, todavia, contraria as crenças enraizadas na generalidade dos seres humanos e das sociedades. O presente é sempre visto como um tempo de decadência, o futuro é sempre negro, só no passado, nos bons velhos tempos que ninguém viveu, se encontra alguma perfeição. A História e a Biologia evolucionista contrariam esse sentimento da perfeição do passado. O sentimento tem a sua raiz na ideia de que o momento originário é um tempo de plenitude, e o afastamento desse tempo é um mergulho na degradação. Nasce ainda da decepção que todos sentem no presente, em qualquer tempo presente. Essa decepção resulta do desacordo entre aquilo que o desejo pretende e a realidade. Esta é sempre desoladora, se comparada com o que se deseja que ela seja. Essa desolação é então posta perante o temor do que virá e a mitificação do que passou. O processo de mitificação do passado implica o apagamento daquilo que nele é atroz, a rasura de tudo o que é insuportável. Não é por acaso que a Biologia evolucionista é objecto de inúmeras tentativas de descrédito vindas de fora da ciência. É possível que a evolução da espécie necessite dessa ilusão de um passado infinitamente melhor do que o presente, e talvez seja a fantasia de um passado onde os seres humanos eram melhores do que hoje que permita que os de hoje sejam, na realidade, melhores do que eram os de ontem. Sendo assim, a difusão do gene bom e a paulatina dominância deste sobre o mau são acompanhadas por uma fantasia, sendo esta que permite não apenas resistir ao gene mau, como o ir apagando da nossa própria história.

quarta-feira, 5 de abril de 2023

Certificação

Comecei com O outro nome – Septologia I-II, depois foi a Trilogia e agora apresto-me para acabar Manhã e noite. Tudo romances do norueguês Jon Fosse, tudo lido graças às insónias. A escrita de Fosse parece, muitas vezes, focar-se na trivialidade, mas fá-lo de tal maneira que torna manifesto algo de decisivo na existência, nem que seja a sua pura trivialidade. Contudo, é mais do que isso, é a exploração de territórios fronteiriços, aqueles onde o presente e o passado se misturam ou aqueles em que o reino dos vivos e o dos mortos se confundem. É possível que tenha sido nesses territórios que Orfeu tenha perdido Eurídice. É curiosa – e por certo terá ardentes inimigos – a ideia de que os mitos gregos só ganham pleno sentido lidos a partir de uma perspectiva judaico-cristã. A tentação de Orfeu, o desejo de Eurídice e a necessidade de certificação, levaram-no a olhar para ela antes da hora e com isso perdê-la. Contudo, o que Orfeu perdeu não foi a sua amada, mas a sua própria alma, perdeu-se a si mesmo, não percorreu o calvário até à morte e ressurreição. O espantoso reside na necessidade de certificação ser tido como um princípio de perda e mergulho no abismo. Esta ideia liga-se, de modo inusitado, a um momento central da nossa cultura, o início da Modernidade. O chamado projecto cartesiano está assente na busca da certeza, na procura de evidências que certifiquem as nossas crenças. Esse momento seminal da cultura europeia, momento celebrado como uma revolução, é também visto, por mentes mais sombrias, como um momento de decadência. A busca da certificação é uma queda, o mergulho no abismo. Quem precisa de certificação já perdeu o conhecimento. Descartes representaria para a cultura ocidental esse olhar para trás de Orfeu para se assegurar de que Eurídice o seguia, de que a sua alma seguia o seu corpo. Assim como Orfeu perdeu a sua sombra, também a cultura europeia a perdeu com Descartes. A partir dessa hora, a Europa entrou na mais pura errância. Não percebo por que razão esta especulação me acometeu hoje, quarta-feira. Costuma atacar-me às sextas, como prenúncio do fim-de-semana, alguma coisa está fora dos eixos. O que poderei eu dizer? O mundo está fora dos eixos. Oh! Sorte maldita! … Por que nasci para colocá-lo em ordem! Quem escreveu isto terá antecipado a errância que Descartes trouxe ao mundo.

terça-feira, 4 de abril de 2023

Arte divinatória

Num texto com o desapiedado título Mademoiselle Esqueleto, António Ferro escreve: Os dedos, os olhos, os corpos, ensaiam tangos na sombra. Eu sou um adivinho de gestos. Entretenho-me a soletrar atitudes… Eis uma arte divinatória que merece respeito. Adivinhar nos gestos as atitudes, mesmo que não se soletrem. Ler o futuro nos astros, nas entranhas dos animais, no voo das aves, tudo isso me parece falaz, fruto de uma alucinação, mas é difícil, muito difícil, que um gesto não traia uma atitude. Quem não se quer trair deve permanecer imóvel, parado como uma estátua. Deve, inclusive, deixar de respirar, pois até a própria respiração terá uma leitura reveladora de um gesto a vir. Os dias estão bem maiores, cavalgam em direcção ao solstício de Verão, para então se apaziguarem. É possível ler os desígnios da natureza nos gestos de cada dia? Eis um problema que deveria ocupar as mentes mais brilhantes, pois que coisa mais importante poderá haver para os homens do que o conhecimento daquilo que a natureza pretende? Um pássaro passou diante da janela, uma sombra rápida, que logo desapareceu. Acabei de chegar a casa, mas vou sair de novo, vou esperar o fim do dia noutro lado, para ver se descubro alguma novidade, um gesto inusitado, embora não tenha esperança de nele conseguir descortinar o desígnio da natureza.

segunda-feira, 3 de abril de 2023

SPAM

Tinha escrito uma boa dúzia de linhas, mas o computador decidiu entregar-se a uma qualquer conduta patológica que me obrigou a reiniciá-lo, tendo perdido essas linhas e o que nelas estava escrito. É argumentável que não se perdeu grande coisa, com o que estarei de acordo. Acabei de receber uma chamada que não atendi. O telemóvel deu a indicação de spam, resta-me agora bloquear o número para que aqueles que desejariam falar comigo utilizem outro, o qual haverei também de bloquear. Fiz uma pesquisa na internet e parece que o número é de um jornal de que fui assinante há anos, mas que deixei de o ser, pois a leitura online era pouco amigável. Já lhes pedi para deixarem de me contactar, pois se eu quiser ser assinante, não preciso de ajuda. E quando precisar, já não vale a pena ser assinante seja do que for. Também a caixa de correio electrónica está efervescente, há gente que não tem mais nada para fazer senão mandar emails. É segunda-feira, o dia não é propício a grandes aventuras que acrescentem glória à minha gesta. Não fora o spam e estaria aqui sem nada para contar. O mais provável, todavia, é estes textos serem puro spam. Apesar de não terem cariz publicitário ou fraudulento, penso eu, não deixam de ser mensagens irrelevantes e não solicitadas. Nunca tinha pensado nisso, mas penso-o agora e vejo que não é um pensamento destituído de sentido. A única coisa que me absolve é não escrever estas coisas em papel, não sacrificar as árvores à necessidade de me aliviar do que me vai pela cabeça. Talvez isto não passe de uma terapia. Descobri agora que o acrónimo SPAM pode querer dizer duas coisas: (1) Sending and Posting Advertisement in Mass; (2) Stupid Pointless Annoying Messages. O meu caso inscreve-se em (2). Seja como for, quem dá o que tem a mais não é obrigado. É sempre virtuoso recorrer à cultura popular. Vou preparar-me para a hora do crepúsculo.

domingo, 2 de abril de 2023

Domingo de província

É domingo. Esta constatação quase me salvava da trivialidade, mas pressinto que não. Descubro que uma das ruas que vejo passou a ter sentido único. Pode-se subir, mas não descer. Na avenida, um rapaz, poderá também ser uma rapariga, está sentado nos degraus que levam a uma agência de turismo. Fuma e mexe no telemóvel. Talvez troque mensagens ou consulte uma das redes sociais que frequenta. Está só, a luz ilumina-o, o fumo evola-se em espirais, pois é isso que o fumo deve fazer, evolar-se em espirais, os dedos de uma mão seguram o cigarro, os de outra operam no telemóvel. É a única pessoa que vislumbro na avenida. As outras recolheram a casa, é hora de almoço, de um almoço dominical. Eu almoçarei mais tarde, como é hábito ao domingo, oiço a música de Hildegard von Bingen. O Word não gosta do nome Hildegard e propõe Hildegarda ou Hildegardo, mas não aceito nenhuma das sugestões, ele continua a sublinhar a vermelho Hildegard. O pequeno bosque da escola aqui ao lado, batido pela luz, está exuberante, uma mancha verde que, daqui a uns anos, há-de tapar completamente a mancha do hospital, um edifício que começou por ser branco e agora caminha para se tornar cinzento. Também espero que tape o anúncio de uma cadeia de hambúrgueres, embora eu nada tenha contra ou a favor às cadeias ou aos hambúrgueres, apenas aquela coisa estraga a visão, introduz na paisagem de província uma retórica suburbana, um simulacro de cosmopolitismo onde não deveria haver seja o que for. Isto, todavia, é uma opinião com que a generalidade dos meus concidadãos não concordará, pois amam as cadeias de hambúrgueres, já que em frente desta há uma outra, ainda mais famosa, e no outro vértice de um triângulo há uma outra cadeia não de hambúrgueres, mas de pernas de frango ou de asas, não sei bem, e todas elas convivem, mas daqui só vejo o anúncio de uma, as outras o bosque da escola não as deixa ver, assim como esconde um lago numa rotunda, onde se ergue uma estátua à juventude que parece importada de um país de leste, quando eles saldaram a estatuária que por lá tinham, mas não veio de lá, é obra nacional, uma rapaz e uma rapariga vigorosos, ela sentada ao colo dele, ambos com uma braço erguido, braços de bronze, ela segura no braço dele e ele segura uma bola amarela. Imagino que a bola amarela seja uma antevisão da Terra quando esta for um deserto. Afinal é uma estátua futurista, mas está escondida e eu não a vejo daqui. Talvez aqueles dois jovens estejam ali, no centro do triângulo formado pelas cadeias de comida, para o caso de cansados de segurar a Terra terem fome, e então é só levantarem-se e escolherem o que os há-de revigorar para que a Terra não caia no chão e se afogue no lago, se este tiver os repuxos a funcionar e aquela banheira gigante estiver rasa de água. Chega, por hoje.

sábado, 1 de abril de 2023

As coisas mesmas

Abril nasceu tristonho e enfadado, talvez não venha a ser um mês de águas mil, disse para mim. Almocei cedo e mal me sentei à secretária adormeci. Acordei estremunhado e com uma dor no pescoço. Neste momento, o sol rompeu a muralha de nuvens e brilha, mas elas reconstituem as linhas de defesa, não tarda o céu estará de novo todo cinzento. De manhã, antes de entrar na padaria, apanhei alguma chuva, coisa de pouca monta. Não havia muita gente, mas as operações com o pão tornaram-se, naquele espaço, um ritual, oficiado por uma sacerdotisa, que me fez demorar mais do que pensava. Enquanto esperava e me afundava na demora, ia olhando os gestos, à procura de algum símbolo que me indicasse o caminho da redenção. A fracção do pão, porém, era feita numa máquina e não descortinei nada que me fizesse suspeitar de estar perante a simbólica de uma ordem resgatadora. Entrego-me a este fenomenologia, descrevo os actos da consciência, à procura das coisas mesmas, pois se não estiverem na minha consciência, onde estarão elas, as coisas mesmas, pergunto-me. Oiço alguém afirmar que sofri uma viragem idealista, mas encolho os ombros e bocejo, pois num futuro próximo haverei do sofrer uma viragem realista. A Primavera parece consolidada. Existem já múltiplos chilreios, oriundos de aves de espécies diferentes. No outro dia, pousado no murete de uma das varandas, estava um melro. Quando me aproximei, fugiu, deixou o espaço vazio. Não faltam estorninhos. Mais ao longe, quase sempre aos pares, voam corvos, mas esse é já outro reino. As ruas transpiram, dos seus poros sai um sábado de província, onde me acolho para olhar a linha do horizonte.