domingo, 19 de junho de 2022

Da obesidade do tempo

Há qualquer coisa errada nas apreciações correntes sobre a passagem do tempo. Não são poucas as pessoas, onde se inclui este narrador, que têm a impressão – ou mesmo a certeza – de que o tempo passa cada vez mais depressa. Ora, tive a prova irrefutável de que não é assim. Pelo contrário, o tempo está a passar mais devagar. Ontem falei da súbita manifestação no meu horizonte sonoro de um amola-tesouras e referi – ou pensei fazê-lo – a decepção de não ter chovido. Cheguei mesmo ousar escrever que há alguma coisa a funcionar mal no mundo, o que, em boa verdade, é uma impossibilidade, pois, como todos sabem, vivemos no melhor dos mundos possíveis. Ontem não choveu, mas hoje sim. O som da flauta de pã do amola-tesouras sempre é anunciador de chuva, só que esta atrasou-se. Melhor, o tempo passou mais devagar, como se os segundos tivessem sofrido uma dilatação. Isto traz um importante problema sobre a relação entre o tempo e o mundo. Se o tempo pertence ao mundo e este é o melhor dos mundos possíveis, então temos aqui um sarilho qualquer. A minha intuição é que o tempo não pertence ao mundo e, por isso, a sua obesidade, não afecta o facto de este ser o melhor dos mundos. Os atrasos que há nele não se devem a ele, mas a um factor estranho – o tempo – que não deve ser tido em consideração quando se julga a bondade deste mundo. Isto tem aplicações extraordinárias. Por exemplo, por que razão os transportes públicos andam sempre atrasados? Não por eles, que são os melhores transportes públicos possíveis, mas porque o tempo, por falta de ginásio, se dilatou. Esta também é uma excelente explicação – que nunca me tinha ocorrido – para um problema que me atormenta com alguma regularidade, o do atraso das consultas médicas em relação ao horário acordado. Os médicos não se atrasam, o tempo, que é um factor estranho à medicina, é que se dilata. Penso que para um domingo, uma descoberta como esta é razão suficiente para me sentir realizado, dilatadamente realizado.

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