Em dias sombrios como o de hoje, penso nas verdades eternas. Não nelas mesmas, mas numa suspeita que há em mim. Essa suspeita diz: como podes tu, ser efémero, finito e limitado, pensar naquilo que é eterno. Uma verdade eterna seria qualquer coisa que se manteria verdadeira por toda a eternidade. O problema está na expressão qualquer coisa. Qualquer coisa significa aqui uma proposição, uma afirmação. Tudo isto supõe que, em primeiro lugar, que o pensamento humano, na sua finitude, consegue captar aquilo que é eterno e, depois, que a linguagem o consiga expressar com uma exactidão tal que assim se manteria por toda a eternidade. Uma fantasia. O melhor que consigo arranjar, num dia como o de hoje, é uma ideia mais plausível: a consciência que temos da nossa mortalidade abre em nós um desejo de continuidade. E como todo o desejo, o de persistir é infinito. Daí a ideia de eternidade. Isto não significa que não existam coisas eternas e, entre elas, verdades eternas. Significa apenas que para nós, na melhor das hipóteses, se apresentam sob a forma de uma objecto do nosso desejo. Este é o sinalizador de algo que está fora da nossa experiência possível. Não pensamos no eterno. Desejamo-lo. Mesmo quando julgamos estar a pensar na eternidade ou em verdades eternas, apenas estamos na esfera obscura do desejo, da pulsão, na cabana de eros e não no palácio do logos. Agora, porém, vou ver se chove. A vida é feita de coisas prosaicas.
sábado, 25 de outubro de 2025
sexta-feira, 24 de outubro de 2025
Emmanuel e Immanuel
Terá nascido em 1688 e morrido em 1772 e foi, durante parte substancial da sua vida adulta, um respeitável cientista. Emmanuel Swedenborg, um sueco, interessou-se por matemática, geologia, anatomia, fisiologia, astronomia. Esta amplitude de interesses não era rara naqueles dias. Por volta dos 56 anos, porém, teve uma série de sonhos, visões, experiências místicas. Estas aventuras culminaram com uma visão de Jesus Cristo, que, segundo Swedenborg, o terá instruído a escrever sobre assuntos espirituais. A partir de então, substituiu as múltiplas ciências pela sua muito particular teologia. Argumentou que se lhe tinham aberto os sentidos espirituais, o que lhe permitia comunicar com anjos, espíritos e visitar o mundo espiritual. A sua teoria mais conhecida é a doutrina das correspondências. Defende que o mundo físico é um reflexo do mundo espiritual, cada objecto material corresponde a uma verdade espiritual, o que não difere muito do platonismo. Um outro Emanuel – precisamente, Immanuel – agora alemão, e de apelido Kant, chegou a interessar-se pelo homónimo sueco. Contudo ao ler a obra principal, Arcana Coelestia ficou em estado de choque. Em 1766, escreveu Träume eines Geistersehers, erläutert durch Träume der Metaphysik, o que significa em português: Sonhos de um Vidente, Esclarecidos por Sonhos da Metafísica. Kant nunca achou que Swedenborg fosse um charlatão, mas uma mente sonhadora fruto de uma doença mental ou de uma imaginação sem controlo. O problema das crenças do sueco residia, segundo o alemão, em que o primeiro ultrapassava os inflexíveis limites da experiência possível. Talvez seja neste momento que Kant descobre o caminho para se tornar o Kant que conhecemos. Não acreditava em sentidos espirituais, mas apenas naqueles que nos dão informação sobre o mundo, os prosaico cinco sentidos. O conhecimento do mundo espiritual, segundo o filósofo alemão, está-nos interdito. A metafísica, enquanto ciência, é uma impossibilidade. Ora, até aos 56 anos, Swedenborg não parece ter tido grande interesse por esse mundo metafísicos. O enigma, porém, não reside no sueco, mas no alemão. O que seria Kant se, aos 56 anos, tivesse o conjunto de experiências que teve Swedenborg? Tornar-se-ia um vidente sonhador ou procuraria um médico para se tratar?
quinta-feira, 23 de outubro de 2025
Outonados
Apesar de ameaçar chuva, o calor resiste e não se dobra a um Outono que consumou já o primeiro terço do seu percurso. Ontem, em conversa com um amigo reforçámos a consciência daquilo que é uma certeza. Este já não é o nosso tempo. Não nos estávamos a referir ao clima, ao desconcerto – ou ao desconserto – das estações, mas à época em que vivemos. O nosso tempo passou e não mais voltará. Isto, porém, será sentido por todos aqueles que chegam à idade a que já chegámos. É evidente – presunção e água benta cada um toma a que quer – que concordámos que, no mundo, se move qualquer coisa de tenebrosa que se prepara para enterrar os nossos luminosos dias, que na verdade, concordámos, também nisso, nunca foram muito luminosos. Estamos outonados, não tarda invernosos, e nem dos dias primaveris nos haveremos de recordar. Contamos os amigos mortos. São assim os dias de Outono.
quarta-feira, 22 de outubro de 2025
Despovoamento
Numa entrevista, de 1999, dada à revista Arte Ibérica, citada pelo Público, João Queiroz dizia: Há gestos que tinham que ser e outros que podiam não ser… Por isso estou atento a como o meu corpo aprende os gestos. Agora, o pintor deixou de atentar ao modo como o seu corpo aprende os gestos. Morreu hoje, aos 68 anos. Deixa uma das obras fundamentais da pintura portuguesa da transição do século XX para o XXI. Fomos colegas de curso, depois ele abandonou os conceitos e escolheu a pintura. Trocou a lógica pelo gesto, mas, basta ver as suas obras, nunca abandonou a metafísica, uma forma muito própria de se relacionar com ela. É assim que o mundo se despovoa.
terça-feira, 21 de outubro de 2025
Avós
Lembrei-me das minhas avós, como elas eram no tempo em que descobri que existiam avós. Não foi, na verdade, uma descoberta. Elas estavam lá, quando nasci, no lugar que era o delas, com as suas especificidades, as suas diferenças, os seus olhares sobre o mundo. Lembrei-me delas ao ler um poema do poeta polaco Zbignew Herbert, com o título Avó. Herbert escreve sobre o que ela lhe contava e, fundamentalmente, o que lhe ocultou, o massacre dos arménios pelos turcos, para o poupar na sua infância, para lhe conceder vários anos de ilusão, sabendo que ele um dia o descobriria. Pergunto-me o que me terão ocultado as minhas avós, na esperança de que eu o haveria de descobrir. Talvez não existisse nada a ocultar. Ou talvez houvesse, mas o meu talento para a descoberta fosse e seja diminuto.
segunda-feira, 20 de outubro de 2025
Falar, falar, falar
Nas suas reflexões sobre a obra de arte, o escrito austríaco Arthur Schnitzler, escreve, no aforismo 78, de “Obra e Repercussão” (in Livros dos Provérbios e das Reflexões): A primeira pergunta do crítico deveria ser: Tu, obra, o que tens para me dizer? Mas, regra geral, isso pouco lhe importa. O seu primeiro impulso é antes: Agora, obra, presta atenção ao que tenho para te dizer! Uma experiência quotidiana mostra que esta atitude do crítico de arte se enraíza numa inclinação mais geral que há nos seres humanos. Raramente numa conversa, os interlocutores se prestam a escutar o que os outros têm para dizer. Seguem a divisa: Presta atenção ao que tenho para dizer. Se supusermos um observador não humano, mas dotado de razão, facilmente podemos imaginar a sua perplexidade perante a utilidade da conversação entre os seres da nossa espécie. Se esse ser for suficientemente perspicaz, porém, descobrirá que esses monólogos conjuntos dão um prazer aos interlocutores. Não o da intercomunicação e da partilha, mas o de cada um se ouvir a si mesmo, perante testemunhas. O testemunho dos outros é a prova de que falei para mim mesmo, claro, mas que consegui articular palavras e frases. Uma conversa em grupo é fecunda, não pela partilha de ideias, mas pela expansão do universo de testemunhas que podem provar, caso um tribunal as convoque, que cada eu fui capaz de falar comigo mesmo. A dura disciplina da escuta, se alguma vez foi praticada pela humanidade, há muito caiu em desuso, afectada pela má imprensa e por uma pedagogia social fundada no inexorável direito à palavra.
domingo, 19 de outubro de 2025
Destinos
É bem anterior aos gregos a ideia de que o destino dos heróis é decidido em concílio dos deuses. A grandeza de um herói não está na sua capacidade de moldar um destino, de dobrar o mundo às suas decisões, mas em cumprir e suportar um destino – por norma, adverso – que lhe é imposto. Isto para nós, homens modernos, é estranho, pois concebemos a grandeza fundada no livre-arbítrio e no poder de realizar aquilo que decidimos. Talvez por isso, um herói moderno, como D. Quixote, seja, na verdade, ridículo, ou destituído de qualidades, como Ulrich, do romance de Musil. A grandeza humana é, para o homem pré-moderno, não humana. O que os homens são, não são ou deixam de ser é-lhes dado pela decisão dos deuses. Resta saber, todavia, se essa decisão é livre ou fruto de um acaso que acaba por determinar os humores dos deuses quando se sentam para deliberar destinos humanos e, por certo, entregarem-se à bebida.
sábado, 18 de outubro de 2025
Manhã de sábado
Hoje não fui caminhar de manhã. Dormi mais do que é hábito. Quando a manhã já se inclinava para o meio-dia, saí, sentei-me na esplanada do café aqui ao lado e fiquei a saborear a frescura que ainda se fazia sentir. As acácias deixam amarelecer as primeiras folhas, mas ainda são um mar de verdura a caminho do céu. Havia gente em trânsito, mas ninguém com pressa. Pais com filhos pequenos, casais reconciliados, um ou outro solitário. Numa mesa ou noutra, havia quem lesse o jornal, mas agora esses leitores são raros. As pessoas preferem os telemóveis. Entram neles e perdem-se num labirinto, sem que um fio de Ariadne os conduza para a liberdade. Ali ficam à espera de que o Minotauro as encontre e devore. Os tributos são para pagar. Depois, levantei-me e dei um pequeno passeio pelas redondezas, e em todo o lado o espírito do dia era o mesmo. As manhãs de sábado, na província, são assim. Ou talvez de outra maneira, sei lá como elas são naqueles lugares onde não me encontro. Tenho de domesticar a tendência para a generalização, embora saiba que quanto mais particular é a experiência, mais universal é.
sexta-feira, 17 de outubro de 2025
Autenticidade
O hábito inclina-nos a pensar a autenticidade como sinónimo de sinceridade ou de veracidade. Contudo, essa qualidade está ligada, em primeira instância, à de autoridade. Não de uma autoridade proveniente de um desígnio legal, mas da autoridade de quem é autor. Assim, a autenticidade é a qualidade – ou a virtude – daquele que realiza alguma coisa, que a faz vir à existência. Quando tomamos a autenticidade no sentido de veracidade já estamos a perder um elemento essencial. O verdadeiro resulta do acordo entre um pensamento e a realidade que ele pensa. Por seu turno, a sinceridade é acordo entre aquilo que um sujeito expressa e aquilo que sente ou pensa. Em ambos os casos, perdemos a dimensão de realização e, com ela, a de autoria. A pessoa que ostenta a virtude da autenticidade é virtuosa não porque pensa verdadeiramente ou se expressa com sinceridade, mas porque faz acontecer algo no mundo. A autenticidade – para usar o jargão filosófico – pertence ao domínio da ontologia e não da epistemologia ou da ética.
quinta-feira, 16 de outubro de 2025
Acessórios
Num livro de 1932, A Arte do Cinema (Film als Kunst), Rudolf Arnheim salienta uma característica decisiva do cinema: o mais recente progresso do cinema consiste em tratar o actor como um acessório que se escolhe pelas suas características e… se monta no sítio certo. A constatação de Arnheim, porém, sofre de uma desatenção essencial. Não ao cinema, mas ao próprio homem. Não é o actor que, com o advento do cinema, passou a acessório a encaixar no sítio adequado. Isso acontece num mundo em que os próprios indivíduos são acessórios, sofrendo, não poucas vezes, a dor de não encontrarem o sítio certo que lhes deveria corresponder. Nas sociedades de castas ou estamentos, todos tinham o sítio certo, dado a priori. Quando essas estruturas se começam a dissolver e o indivíduo emerge no panorama social, ele torna-se um acessório, no duplo sentido da palavra. É acessório no sentido substantivo porque é uma peça de uma engrenagem, de um maquinismo. É acessório no sentido adjectivo porque não é, na verdade, fundamental para o movimento da máquina, podendo ser substituído a qualquer momento. O actor de cinema – uma arte mecânica – é a emanação desse indivíduo acessório de um mundo que, desde o século XVII, se tornou mecânico, num processo em contínuo aprofundamento. Somos todos acessórios na grande máquina social, substituíveis, a qualquer momento, por obsolescência ou por razão nenhuma, a não ser o arbítrio de um qualquer outro ser acessório, mas com uma posição mais elevada no mecanismo. Somos todos substantiva e adjectivamente acessórios.
quarta-feira, 15 de outubro de 2025
Pensamento
Há pouco passei os olhos pelos títulos de uma revista a sair em breve. Um deles reteve-me: Recuperar a hegemonia do pensamento progressista. Há aqui um equívoco doloroso. O uso da palavra pensamento. Onde há pensamento autêntico não há progressismo nem regressismo, não há revolução nem reacção. Muito menos um desejo de hegemonia. Tudo isto faz parte do não pensamento a que se dá, não sem correcção, o nome de ideologia. Pensar é abrir-se ao inesperado e comprometer-se com a verdade, seja do que for. Ora, a ideologia – qualquer que seja – usa os mecanismos do pensamento, as estruturas lógicas e as técnicas retóricas não para descobrir o que ainda não foi pensado e a verdade que aí reside, mas para impor um conjunto de simplificações sobre a ordem social e moral. Se há uma coisa incapaz de hegemonia é o pensamento, a acção mais frágil que um homem pode empreender em busca da verdade, a flor mais rara presente no jardim botânico da mente humana. Onde há hegemonia, ou busca de hegemonia, o que está em jogo não é pensar, mas alcançar ou manter o poder sobre os outros. Há palavras cujo uso deveria ser muito parco. Pensamento é uma delas, pois são raras as vezes que um ser humano, de facto, pensa.
terça-feira, 14 de outubro de 2025
Sombras
Continuo a caminhar ao crepúsculo. Em vez de pessoas, cruzo-me com sombras, e também eu me transformo numa para quem comigo se cruza. A essa hora ainda está algum calor, mas ignoro-o tentando descortinar se existe alguém por detrás de cada sombra. O resultado é incerto. Por vezes, está lá um conhecido, outras um desconhecido. O mais das vezes, é apenas a sombra de coisa nenhuma. Às 19:15, confirmei pelo relógio, acende-se a iluminação pública e as sombras transformam-se. Umas ganham auréola, outras extinguem-se, como se lhes tivesse acabado o prazo de validade. Uma cola-se a mim, persegue-me, ultrapassa-me, retrocede e vigia-me. Reconheço-a: é a minha sombra. Isto é, sou eu.
segunda-feira, 13 de outubro de 2025
Um email
Hoje fui caminhar ao cair da noite. Esperava encontrar, ao crepúsculo, alguns anjos ou velhos deuses pagãos. Nada. Não sei onde se meteram. Que saiba não está a decorrer nenhum congresso de anjos ou concílio de deuses. Faltaram, uns e outros, ao encontro aprazado. Imagino que cada um dos bandos decidiu não vir por causa do outro. Fiquei sem companhia nas minhas andanças. Tinha-lhes dito que podíamos parar num bar de vinhos, sempre se conversava e se bebia um copo. Pareceram interessados, mas esqueceram-se. Talvez tenham algum conflito com compromissos ou a memória já não seja o que era. Entretive-me a observar os transeuntes, mas em nenhum encontrei um traço angélico ou um porte divino. Uma jovem mulher ainda me pareceu, ao longe, angelical, mas ao aproximar-me, o rosto foi-se transformando, de tal modo que, caso tivesse idade e condição para isso, nunca a pediria em casamento. Isto, porém, é uma presunção, pois nem tenho idade nem a lei autoriza a poligamia. Estes pensamento tranquilizaram-me e fizeram-me esquecer a desdita de um encontro falhado com agentes de outros mundos. Ficará para a próxima. Pelo menos é o que diz um email recebido mesmo agora. Não sei se enviado por algum anjo ou por uma divindade grega. Ah… parece que é de Afrodite. Pelo menos, sinto-me lisonjeado, apesar de posto ao longe.
domingo, 12 de outubro de 2025
Má-fé
No périplo que me levou do meu escritório, onde estava acantonado e em meditação transcendental para obter uma iluminação, à cabine de voto, onde exerci o meu direito de eleger, embora sem que a iluminação me chegasse, ouve-se dos transeuntes – vêm ou vão fazer o que eu fiz; também eles, pela cara que ostentavam, sem iluminação alguma – pedaços de conversas, mensagens truncadas vindas de mundos desconhecidos. Numa dessas conversas, alguém diz que fulano agiu de má-fé, tentou prejudicar beltrano. Uma coisa tenebrosa, pensei, sem saber quem eram fulano e beltrano, em que consistia a intenção dolosa e a deslealdade catalogadas como má-fé. Depois, ocorreu-me que a mais autêntica má-fé é a mentira a si mesmo, a negação da sua liberdade. Isto aprende-se lendo O Ser e o Nada, de Jean-Paul Sartre. Quando alguém tem de tomar uma decisão e decide não decidir, está de má-fé, está a negar a sua liberdade, embora nunca se possa fugir a ela. Decidir não decidir é ainda uma tomada de decisão, um acto de liberdade. Pensei que não era desta má-fé que sofria o fulano. Pelo contrário, agira mesmo de modo determinado e perfeitamente consciente da sua liberdade quando prejudicou beltrano. Uma maldade, talvez uma canalhice, mas ainda um acto livre em plena consciência, o que lhe retira o estatuto de má-fé. Pode-se ser mau de boa-fé, isto é, com plena consciência de que se está a ser malvado.
sábado, 11 de outubro de 2025
Canto de sereia
O Verão parece ter voltado. Talvez tenha sido contaminado pelo espírito do tempo, em que potências políticas de diversos tamanhos e graus de importância sonham tornar-se grandes. Não dou exemplos, pois eles abundam, e mesmo uma pessoa distraída acabará por tropeçar num desses casos patológicos. Esta é uma assunção política, que deveria ter evitado, segundo a orientação da casa. Decidi não me conter, mesmo que o autor fique furioso e me venha lembrar que ainda não foi decretada a autonomia do narrador. Voltando ao Verão. Também ele sonhará com um Grande Verão que irá de meados da Primavera até ao Verão de S. Martinho, antiga colónia do Estio, anexada há milénios pelo Outono. Se o Inverno, porém, se lembrar de declarar que também ele pretende reconstituir o Grande Inverno, acabaremos por ficar sem as duas estações mais apaziguadoras e cuja beleza suscita ora os encantos do amor nascente, ora a pacificação dos desejos ardentes. Também as estações do ano estão a sofrer da doença da polarização, embaladas pelo canto de sereia da radicalização.
sexta-feira, 10 de outubro de 2025
Está a acabar
Está a acabar. As comitivas partidárias fazem, por hábito antigo e falta de imaginação, os últimos circuitos pela cidade. Buzinando como se fossem adeptos de um clube de futebol acabado de se sagrar campeão. Estou a mentir. Falta-lhes a convicção dos adeptos. Esperam que chegue a hora de jantar, para regressarem a casa, comer uma boa refeição e sair à noite, pois hoje é sexta-feira. O dia de amanhã é de desintoxicação, mas os candidatos que vejo pela rua não me parecem intoxicados. Cumprem o seu papel de modo administrativo e aguardam o resultado das urnas. Os que ganharem hão-de improvisar uma caravana com cachecóis e bandeiras, gastarão uns litros de gasolina, ferirão alguns tímpanos sensíveis, mas depois voltarão sossegados para casa como se nada se tivesse passado. Haverá um ou outro crente que estará convicto que o mundo mudou, mas este recusa-se cooperar. Não se pense que sou um adepto da não ida às urnas. Vou sempre, não porque espere uma redenção, mas porque tenho o dever de ir. E os deveres são por cumprir por amor ao dever.
quinta-feira, 9 de outubro de 2025
Absurdo
Por vezes, lêem-se coisas que se transformam, de imediato, em candeias. Como se sabe, ou talvez já não se saiba, uma candeia é um dispositivo tradicional de iluminação. O lido é iluminante. Foi o caso de um pequeníssimo texto, um aforismo, de Arthur Schnitzler, um escritor austríaco: Por mais absurdo que o mundo te possa parecer, nunca te esqueças de que, quer ao agires, quer ao não agires, estás a contribuir em boa parte para esse absurdo. Eu já tinha a sensação de que o mundo era absurdo. Também estava convicto de que a minha acção, muitas das vezes, se não sempre, era absurda. Agora, sei mais. Sei que tanto a minha acção como a minha inacção contribuem para o absurdo do mundo. E como corolário adquiri a sabedoria que também eu sou culpado desse absurdo. Sou culpado por actos e por omissões. O mais adequado será dizer, declinando todas as ferramentas culposas, que contribuo para o absurdo do mundo por palavras, pensamentos actos e omissões, como estes textos provam.
quarta-feira, 8 de outubro de 2025
Exílio
Aproxima-se a hora do crepúsculo. Depois virá a noite, mas a noite há muito que deixou de ser noite. É apenas um crepúsculo artificial e diferido. Tudo tem um preço. A vida cómoda tem como contrapartida o acantonamento da velha natureza numa ilha que ninguém sabe onde fica. Eu também não e não tenho disposição para me aventurar no mar tenebroso à sua procura. Fico com o artifício. Ao pescoço, trago um dispositivo que me vigia o ritmo cardíaco, registando com fidelidade – assim o espero – a sua marcha. Na ilha onde a natureza se escondeu, não o podia usar, nem escrever o que estou a escrever, nem sequer pensar o que estou a pensar, pois a natureza não pensa. Pensar é o artifício do homem para enviar a natureza para o exílio.
terça-feira, 7 de outubro de 2025
Palha
Jacques Maritain, referindo-se a Tomás de Aquino, diz que este leu todos os Santos Padres, e todos os livros então conhecidos, e que também sabia a Bíblia de cor. Podemos imaginar que Tomás era um ávido leitor, com tempo disponível para a leitura, mas também podemos especular que o acervo de livros existentes no seu tempo era reduzido, o que terá permitido não apenas ler tudo o que havia para ler, mas também escrever o que escreveu, com idêntica avidez. Ora, o mais notável é que a sua dupla avidez não foi obstáculo a que se tornasse santo. É certo que, a dada altura, após uma visão mística, durante a celebração de uma Missa, absteve-se de escrever, de tal modo que deixou incompleta a monumental Summa Theologica. Deu, ao seu secretário, uma razão plausível: Não posso, porque tudo quanto escrevi me parece palha. Ele não teria a certeza, mas confiou na aparência, na sensação subjectiva de um me parece. Terá sido essa confiança numa aparência que o libertou da avidez da escrita e, talvez, da leitura. Se se podemos imaginar que a porta para glória dos altares foi a tal visão, o deixar de escrever foi os passos que o levaram a transpor a porta. O seu exemplo, porém, não frutificou. Pelo contrário, desde o seu tempo que o volume das coisas escritas não deixa de se multiplicar exponencialmente. De tal modo, que não há na Terra, nem na soma de todos os planetas rochosos dos sistema solar, espaço suficiente para construir armazéns para guardar a palha produzida, a qual, na sua generalidade, nunca protegeu qualquer grão.
segunda-feira, 6 de outubro de 2025
Queda no caldeirão
Tenho de me preparar. Não tarda e é hora de sair. Espera-me o cinema, embora nada nem ninguém me espere. Há dias assim, em que ninguém nos espera, nem sequer uma instituição, um animal, um objecto. Em contrapartida, também não espero ninguém. Uma espécie de empata técnico, como se diz nas sondagens eleitorais. Agora, que caminhamos para um acto eleitoral, pergunto-me se votaria em mim. A resposta parece-me óbvia. Nunca votaria em mim. Aliás, neste caso, sou um platónico. Uma pessoa sensata não quer governar. Isto não quer dizer que eu me considero sensato, mas que tenho um módico de imaginação que me permite criar a fantasia de ser sensato. Entrando na fantasia, comporto-me como uma pessoa sensata e recuso, de imediato, a possibilidade de me ver à frente dos destinos seja do que for. Aliás, acho extraordinária a desfaçatez dos candidatos, de todos eles. Apelar ao voto na sua pessoa revela um estado patológico profundo. Se fossem sensatos, se não estivessem doentes, diriam: por favor, não vote em mim, com tantos candidatos, por que infeliz razão me escolhe a mim? Vote noutro, por favor. Em vez de dizer mal dos adversários, elogiava-os. Eles responderiam na mesma modalidade. Que não, eles não eram merecedores do voto, e assim sucessivamente. Se isto deixasse o eleitor confuso, este teria sempre uma solução: sortear o candidato em que votará. De certa maneira, é já isso o que se passa. Por mais convicto que o eleitor esteja do seu voto, este não passa de um acaso. É um acidente, que não é reconhecido como tal. Tudo se tornava mais urbano e, fundamentalmente, mais educado. Que presunção alguém achar que é o melhor. Também é verdade que presunção e água benta, cada um toma a que quer. E parece não haver candidato que não tenha caído na pia da água benta, tal como o Obélix caiu no caldeirão da poção mágica. Melhor: não há candidato que não imagine ter caído no caldeirão do druida Panoramix.
domingo, 5 de outubro de 2025
Tempo humano
Um domingo feriado. Que diferença faz isso, se agora todos os dias são, ao mesmo tempo, domingos e feriados? Faz mais do que se possa imaginar. Imagine-se uma batalha entre o tempo cósmico e o tempo social. Um marcado pela indiferença absoluta, o outro pela diferenciação exaustiva trazida por convenções que servem como bússola. Entre ambos, existe outro tempo, o tempo humano, aquele que navega entre o cósmico, produto da natureza, e o social, produto da sociedade humana, um tempo que está sempre à beira de ser esmagado por eles. O tempo humano não é a mesma coisa que o tempo social, apesar deste ser criação humana. É antes um exercício de acomodação entre um e o outro, uma negociação sempre difícil com dois negociadores intransigentes. É preciso um grande talento para conseguir umas migalhas de tempo humano, um tempo em que a liberdade de cada um lhe permite moldar a experiência da duração em conformidade com aquilo que lhe está a acontecer, ora dilatando o seu tempo, ora diminuindo-o. Talvez tenha sido isso que sentiram os republicanos que há 115 anos proclamaram a República, ou Afonso Henriques que há 882 viu reconhecida a Monarquia e a sua pessoa como Rei. Pois esses acontecimentos não são nem cósmicos, nem sociais. Inscrevem-se no mundo cósmico e fundam o mundo social, dependem de um outro tempo, aquele que os gregos designavam por kairós (καιρός), que, sendo divino, é também a emergência do tempo humano.
sábado, 4 de outubro de 2025
Demasiado humano
Mais uma vez deparo-me com uma experiência absurda. Abro um livro que jazia numa estante e que juraria nunca o ter lido. Porém, sou confrontado com a minha letra nele, para além de sublinhados. O que me terá ficado desta obra, pergunto-me. A certa altura, encontro, grafada pela minha mão, a transcrição de uma frase do texto: A piedade ultrapassa o desejo. A frase vem de uma análise do romance Adolphe, de Benjamin Constant. Não sei como será em França, mas em Portugal o autor, nos círculos onde será conhecido, é-o menos pela sua dimensão de romancista e mais pela sua obra política. Fundamentalmente, um discurso pronunciado em 1819, em defesa do liberalismo: A Liberdades dos Antigos Comparada à dos Modernos. Contudo, o pequeno romance Adolphe, além de ter merecido referência na Poética, de Tzvetan Todorov, o tal livro que supunha nunca ter lido, terá desencadeado, no seu tempo, alguma controvérsia. No prefácio à segunda edição, o autor escreve: Mas todas essas supostas ligações são, felizmente, demasiado vagas e desprovidas de verdade para terem produzido qualquer impressão. Também não haviam nascido na sociedade. Eram obra desses homens que, não sendo admitidos no mundo, o observam de fora, com uma curiosidade desajeitada e uma vaidade ferida, e procuram descobrir ou provocar escândalo numa esfera acima da sua. Referia-se à acusação de que as personagens romanescas seriam a capa de pessoas reais. A resposta combina vanglória e crueldade. Vanglória porque se louva como fazendo parte de um mundo onde poucos seriam admitidos. Fez parte do círculo de madame de Staël, de quem foi amante. Crueldade, porque sublinha nos críticos a exclusão desse mundo a que não teriam acesso. Tudo muito humano, demasiado humano, apesar da piedade de Adolphe ultrapassar o desejo por Ellénore.
sexta-feira, 3 de outubro de 2025
Galateia
Sexta-feira. Perdido o amante, Galateia demora-se nas ondas, faz delas uma casa para a eternidade, pois a eternidade é o horizonte de todos os seres que vivem, sejam animais, deuses, ou homens. Quando um homem se senta numa esplanada perto do mar e contempla com demora a linha onde céu e oceano se fundem, o que ele vê é uma manifestação não apenas daquilo que não tem limites, mas também do que não pertence ao casulo do tempo. Ao demorar o olhar, sai dos limites terrestre e, por momentos, perde-se no que está fora do mundo. Então, Galateia passa diante dos seus olhos, brincando nas ondas. Como Méris, ele chama-a. Vem até aqui; deixa que loucas, as ondas firam as praias! Mas a nereida não o escuta, perdida no seu jogo eterno, e ele levanta-se, vira as costas ao mar e reentra na casa do tempo, no lugar onde tudo tem um princípio e um fim.
quinta-feira, 2 de outubro de 2025
Poderes da palavra
Em 1580, no Livro do Cortesão, Baldassare Castiglione assevera que aquele que muito ama pouco fala. E Lourenço o Magnífico, citado pelo mesmo Castiglione, garante que os verdadeiros apaixonados têm a língua tão fria quanto o coração ardente. O decisivo é o olhar e não a palavra. Há aqui uma crença implícita. A verdade reside noutro lugar que não na palavra. Aquilo que os olhos dizem e aquilo que vêem é mais adequado do que aquilo que se pensa e se transmite através da linguagem. No encontro entre o olhar de um homem e de uma mulher, o amor torna-se presente. Nas palavras, apenas está representado. E é nessa representação que ele se mostra como falsificação. Contudo, uma língua fria, ao contrário do que pensa Lourenço, não é, necessariamente, o correlato de um coração ardente, pois a palavra tem poderes a que Eros, não sem prazer, se submete e que reclama, quando estes não estão presentes.
quarta-feira, 1 de outubro de 2025
Rei-Sol
Outubro entrou vestido de Verão. Calor, um sol sem piedade, um desejo de fugir daqui, para outras lados menos dados a abraços calorosos. Saí, ainda vagueei um pouco, mas logo me refugiei. Tenho um contencioso inultrapassável com o excessos do astro-rei, cujo império deveria, em muitas ocasiões, ser mais moderado. Se se meditar um pouco, percebe-se que o Sol está longe de ser um governante sensato e previsível. Atiça os fogos quando lhe apetece. Irrita-se sem que se saiba a razão e deixa que um frio vindo dos confins do universo atormente as almas, que se perdem no desvairo do rei, ora opulento nas vestes com que se cobre, ora mísero esfarrapado que se de esconde dos mortais atrás da nuvens densas, que amontoa nos céus para cobrir a sua vergonha. Tenho as persianas corridas para que ele não entre. Seria um hóspede não convidado e nunca se sabe lidar com hóspedes que não foram convidados. Só um equívoco fundado na ignorância, terá levado um certo rei francês a alcunhar-se como Rei-Sol.
terça-feira, 30 de setembro de 2025
Filhos de ficções
Setembro acaba hoje, embora não exista na natureza nada que seja Setembro ou Outubro. E aquilo que não existe não pode acabar, pois nem sequer chegou a ser. As convenções humanas são expedientes para lidar com o insólito de estarmos vivos, num mundo estranho, cheio de ameaças, mas também de oportunidades. Contudo, estas coisas que não existem na natureza, mas que são fruto de acordos, tornam-se obsidiantes, ocupando o espírito. Tudo isto terá nascido do medo de nos perdermos. Perdermo-nos no tempo e no espaço, as duas grandes condições de possibilidade da vida, mas também a razão de muitos conflitos. Por isso, submetemo-los à pesada geometria das convenções, que vão do calendário ao mapa, onde podemos desenhar o espaço que nos cabe, o que nos é favorável e aquele que devemos evitar. Toda essa geometria é uma ficção, mas é com ela que tecemos a nossa existência. Numa linguagem sem propósito, podemos dizer: do nada tirámos a possibilidade de sermos. Somos filhos de puras ficções.
segunda-feira, 29 de setembro de 2025
Experiências
Ontem não saí de casa para caminhar. Chovia. Hoje saí, mas o sol era quente, esquecido já da tristeza de ontem. Estes traços de volubilidade do tempo – melhor, do clima – deixam-me sempre perplexo. Não é por falta de experiência. São décadas e décadas perante estas alterações súbitas com que sou acolhido. Perturba-me a mudança e a inconstância não porque eu seja imutável e constante, mas porque sonho com um quadro onde a vida se desenrole com a suavidade das coisas que não mudam. Sim, eu sei. É um sintoma de velhice, mas o que posso fazer, se essa é a minha condição. Voltando a ontem, um acontecimento inesperado trouxe-me uma experiência a que me desabituara. Ia já o crepúsculo avançado, quando a electricidade faltou nesta zona da cidade. Demorou algum tempo o retorno da energia, o tempo suficiente para ver o adensar das trevas sobre a cidade. Essa, porém, não é a experiência fundamental. O que vi de mais decisivo foi a impossibilidade de ficar a sós com a escuridão, não porque me rodeasse a turbamulta, mas porque a escuridão foi proscrita na nossa cultura. Um clarão vindo de longe, de outras zonas onde a iluminação eléctrica se mantinha viva, invadia o meu espaço. Uma luz irreal, como se viesse de uma procissão de fantasmas de olhos ateados de uma brancura fosca. Depois, tudo voltou ao normal, embora o que cultivamos como a norma – estarmos sempre rodeados de luz – seja uma anormalidade, cujas consequências ainda não percebemos. O Outono finca-se nos pés e progride à procura da fortuna ou do encontro com o Inverno.
quinta-feira, 25 de setembro de 2025
Questão de enquadramento
Acabei de lanchar. Frugal, apenas uma dúzia, nem tanto, de avelãs. É preciso anotar estas trivialidades, não porque serão esquecidas, mas porque são a própria vida. Esta é o somatório de gestos sem importância, mas, no seu conjunto, têm a importância de uma vida. O que marca os tempos modernos é a ascensão do trivial. A alegria e a tristeza, a coragem e a cobardia, a beleza e a fealdade, tudo isso faz parte da banalidade, pois deixou de existir o enquadramento onde um gesto se revelava extraordinário. Aquilo que distingue as eras da existência humana é, antes de mais, o enquadramento. É neste que tudo se organiza e é ele que confere sentido. Coube-nos o da trivialidade e, contra isso, nada há a fazer. O nosso enquadramento é também o do excesso. Qualquer gesto que se faça, haverá milhões a repeti-lo. Por isso, é indiferente narrar o lanche ou uma aventura onde se combata contra moinhos de vento ou se mate um dragão. Se eu sair de casa e, numa esquina, matar um dragão, haverá milhões de “eus” a matar dragões, numa esquina, ao saírem de casa. Talvez tudo isto seja falso e a verdade seja mais crua: falta-me o talento para o não trivial e, assim, como avelãs para contar como a aventura a que tive direito, enquanto oiço o Canto Ostinato XXL, de Simeon ten Holt. A peça tem apenas quatro horas e oito minutos, por isso não pode ser considerada XXXL. Já a estou a ouvir há bastante tempo, mas devo ir a meio da aventura. Talvez não estejam, neste momento, milhões a ouvir o Canto Ostinato XXL. Talvez.
quarta-feira, 24 de setembro de 2025
Anotações
O Outono chegou – já na segunda-feira –, mas veio tão tranquilo que nem dei pela sua presença. Tenho com ele um tratado de amizade: declarei-o como a estação do ano preferida, e ele gostou da distinção. Também as estações do ano se deixam lisonjear e retribuem como podem. Olho pela janela para ver se as árvores já estão adaptadas ao tempo, mas as que vejo aqui ou são de folha perene ou amarelecem as folhas mais tarde. Imagino que as tílias da avenida já estarão outoniças, mas não me apetece confirmar. Oiço o ruído de uma sirene, a luz da tarde reverbera anémica na brancura do telhado do pavilhão desportivo da escola ao lado. Não está ninguém na praceta nem no parque infantil; talvez na esplanada do café haja por lá alguma alma cansada, mas também não vou verificar. Faço um esforço para identificar o dia da semana; depois, não sei o que fazer com a identificação. Não tenho nada agendado. Um cartão de um restaurante dorme em cima da secretária: vejo o número de telefone, mas apenas por curiosidade; serviu-me para marcar um livro. Talvez o restaurante já não exista. Não quero saber. Olho para as horas no telemóvel e penso que já é tarde. Para quê? Não sei o que responder à pergunta.
terça-feira, 23 de setembro de 2025
Novidade
As minhas netas ofereceram-me os dois grossos volumes com que a Quetzal empacotou os vários tomos – para usar uma expressão de ressonância grega – da Conta-Corrente, de Vergílio Ferreira. Claro que elas não sabem quem foi o Vergílio Ferreira, mas a avó sabe e eu também. No dia 8 de Setembro de 1984, o escritor registou nessa conta-corrente o seguinte: E todavia uma ideia faz-me falta. Mas que é que hei de ainda pensar? Arrumei a vida e assim, quando percorro o caminho que vai dar a uma ideia, vou ter sempre a um lugar conhecido. Tinha ele 68 anos. Fiquei a meditar na experiência, mas a meditação foi interrompida várias vezes com uma experiência recente. Ontem, mas hoje também, sempre que me olhava a um espelho – e, meu Deus, há espelhos por todo o lado – não reconhecia aquela cara que via. Havia ali – o que me desconcertava, e ainda desconcerta – uma novidade. Perguntei se estava diferente, olharam para mim como se estivesse a enlouquecer. Não estou a ficar doido, mas essa é a convicção de todos os que endoidecem. Esta novidade – reputo-a de real – dá-me esperança de que não me aconteça o mesmo que ao Vergílio Ferreira. Se procurar uma ideia, espero que descubra uma desconhecida. Se o meu rosto se pode transformar em qualquer coisa que não conheço, talvez o meu pensamento me possa oferecer uma ideia que também desconheço, mesmo que isso represente um risco, pois essa ideia pode negar todas as que tive até hoje.
domingo, 21 de setembro de 2025
A virtude da perplexidade
Foi Gottfried Leibniz que, pela primeira vez, colocou a questão mais radical que se pode colocar: por que razão existe alguma coisa em vez de nada? Os seres humanos estão de tal modo imersos na existência que, só muito tardiamente, início do século XVIII, lhes terá ocorrido a questão de que, em vez de tudo o que existe, nas suas múltiplas formas de existência, poderia não haver nada. A questão colocada pelo filósofo alemão centra-se, porém, na constatação de uma evidência: existe alguma coisa, aquilo a que chamamos mundo, como globalidade de tudo o que há. A pergunta incide na razão dessa existência. Este é o enigma dos enigmas, aquele perante o qual a razão humana se detém perplexa. Podemos, contudo, supor que essa perplexidade não se deve à natureza enigmática da existência do mundo, mas ao limite da razão humana. Uma razão mais potente poderia apreender a razão que leva à existência do mundo em vez de nada existir. Contudo, a razão que temos é esta e não outra. É uma razão fabricada à medida da perplexidade. E ficar perplexo é a maior virtude que um ser humano pode ostentar. E, como se pode verificar, é uma virtude pouquíssimo cultivada. Poucos são os perplexos. A multidão habita a casa das certezas, sem que a menor perplexidade lhe ilumine a sombria caverna.
sábado, 20 de setembro de 2025
O último refúgio
Graças à ignominiosa inteligência artificial, traduzi do alemão as primeiras seis cartas de Rilke sobre política. Como desconfiava, a maior parte delas tem alusões muito genéricas sobre povos e costumes, que só com muita boa vontade se podem denominar cartas sobre política. Contudo, uma carta a Bodo Wildberg, datada de 7 de Março de 1896, tem um conteúdo efectivamente político. Trata da oposição entre as concepções de Rilke e de um certo Thiel: Thiel desenvolve a sua opinião estritamente germano-patriótica, em oposição ao meu «delírio cosmopolita» [Weltdusel], e parece-me que a história das nossas concepções da vida é a das duas rectas paralelas que se intersectam no infinito! O conflito entre o nacionalismo e uma visão cosmopolítica. Sabemos – embora se esteja em maré de esquecimento, se não mesmo de negação – que a opinião germano-patriótica conduziu a duas guerras mundiais. O mais surpreendente, porém, é a filiação do poeta na perspectiva de um autor tão pouco dado à poesia. O grande pensador cosmopolita é Kant. Hoje vivemos, mais uma vez – talvez como comédia, mas que pode desembocar em tragédia –, a exaltação das opiniões patrióticas e uma caça às bruxas cosmopolitas. Pergunto-me por que razão o resultado haverá de ser diferente daquele que se obteve no século XX. Poder-se-ia dizer que, apesar de pouco inclinados à política, os poetas têm sensibilidade para certos perigos. Seria o caso de Rilke. Estaria, porém, a mentir. Nem é verdade que os poetas sejam pouco inclinados à política – há de tudo –, como muitos deles não deixarão de louvar o espírito patriótico, o barulho das botas cardadas, o fogo dos combates e a dor das mortes inúteis. Nunca esqueço as palavras atribuídas ao Dr. Johnson – Samuel Johnson: o patriotismo é o último refúgio dos canalhas. Consta que não as terá escrito, mas tê-las-á dito perante testemunhas.
sexta-feira, 19 de setembro de 2025
Conversa com o anjo
Peguei num romance de Ruben A., A Torre de Barbela, e como a obra é antecedida por uma “Antologia Crítica”, entretive-me a ler os comentários. Os críticos antologiados eram, naqueles tempos, os anos de 1965 e 1966, figuras de prestígio e autoridade. Fiquei abismado com o texto de um reputadíssimo académico da área da literatura, figura cimeira da história e crítica literárias. A sensação não foi das melhores. Pensei comigo: o homem não percebeu o objecto que teve debaixo dos olhos, talvez a academia e a literatura tenham um conflito insuperável. Depois, considerei que talvez fosse eu, cuja autoridade é nula, a estar errado, e a obra de Ruben A. seja risível. Foi aí que o anjo bom que me protege nas coisas literárias decidiu entabular conversa comigo. Falou, falou, falou. Em resumo disse-me que em arte – e o romance é uma arte, coisa que frisou longamente – o melhor é não ter autoridade nenhuma, pois quanto mais autoridade, mais são os riscos de não perceber os objectos que caem sob os olhos. Quem não tem autoridade, continuo a resumir o meu anjo literário bom, é humilde e tenta perceber o que está ali. A autoridade aniquila não só a humildade, como o desejo de compreender. Quando o anjo se foi batendo as asas, pensei que todos deviam ter um anjo literário bom. Os académicos da literatura, mais que qualquer mortal. A cátedra – quando a têm ou quando a ela aspiram – mata a sensibilidade artística, embora desenvolva a capacidade de emitir opinião e proferir sentenças.
quinta-feira, 18 de setembro de 2025
Hildegard
Hildegard von Bingen, não me canso de ouvir a sua música. Terá nascido em 1098 e morrido em 1179. Não consigo imaginá-la fisicamente, pois a diferença dos seres humanos entre aqueles dias e os de hoje é mais do que se imagina. Foi uma mulher extraordinária. Monja beneditina, além de compositora notável, foi poeta, teóloga, cientista (naturalista), linguista, médica e mais não sei quantas coisas. É doutora da Igreja. Não conheço a sua poesia nem o seu pensamento, mas a música basta para ficar grato à sua existência. Há seres extraordinários que têm o dom excepcional de não ter de sacrificar os múltiplos dons que receberam para afirmarem a excelência num deles. Por exemplo, Kant ou Mozart foram extraordinários, mas apenas no seu campo: vieram ao mundo num tempo em que a especialização se tinha tornado a norma. A questão, porém, não é apenas de época: Tomás de Aquino, outra figura notável da Idade Média, estava longe da maleabilidade de Hildegard; o seu campo era a filosofia e a teologia. Desde que descobri a sua música, nunca deixei de retornar a ela, sempre com a sensação de estar a ouvir algo de inédito, como se aquela música não pertencesse ao tempo, mas à eternidade.
quarta-feira, 17 de setembro de 2025
Perder o pé
Dois versos de Rilke: Es tauchen tausend Theologen / in deines Namens alte Nacht. A tradutora portuguesa – Maria Teresa Furtado Dias – verteu assim: Mil teólogos mergulharam / na antiga noite do teu nome. Talvez fosse preferível traduzir tauchen por afundaram-se, não porque a tradução esteja incorrecta, mas porque estaria mais perto da realidade. Mais do que mergulhar na antiga noite do nome de Deus, os teólogos afundam-se, perdem o pé, andam à deriva naquele lago feito de uma noite antiga, a mais antiga das noites. Contudo, foi Rilke que escolheu tauchen e a tradutora tentou evitar a traição. Mesmo contra Rilke, prefiro a ideia de que os teólogos se afundam, pois o mar onde entram é feito de uma água que não é própria ao logos que cada teólogo transporta no nome da sua ocupação e no espírito com que entram nela.
terça-feira, 16 de setembro de 2025
Azares
Deixei passar a tarde como água que se esvai entre os dedos. A imagem não é extraordinária e muito menos inédita. Talvez devesse ser acusado de plágio. Contudo, tenho uma teoria sobre o plágio e os plagiadores. O facto de usarmos palavras que foram criadas muito antes de sabermos falar é um exercício de plágio. Para designarmos uma laranja dizemos a palavra laranja roubada sabe-se lá a quem. Só não haveria plágio se inventássemos todas as palavras que usamos. Isso conduziria a uma cacofonia universal e a uma radical incomunicabilidade. Conclusão: o plágio é a condição de possibilidade da comunicação humana. Quanto mais plagiamos, melhor comunicamos. Há ainda o problema dos plagiadores, aqueles que são censurados moralmente e, talvez, juridicamente. Esses, em vez de censura, merecem piedade. Porquê? Porque têm um grande azar. Eu uso laranja, mesa, intervalo, tudo palavras que plagiei, mas ninguém me censura. Ora, os pobres plagiadores sofrem de falta de sorte. Imaginemos que alguém, numa tese de doutoramento, tem toda a tese ou parte substancial dela igual a uma outra que foi escrita antes por outra pessoa. O plagiador consegue um feito notável: escreve as mesmas palavras e na mesma ordem que o plagiado. Querem azar maior? Uma pessoa senta-se para escrever e, na sua inocência, escreve um texto exactamente — nos casos mais radicalmente azarados — igual a um outro que já existia. Com tantas combinações de palavras possíveis, é preciso mesmo grande falta de sorte para sair um texto igual, mas essas coisas acontecem. Todos conhecemos pessoas que têm azar. Ainda há pouco, ao passar por um canal desportivo, vi uma guarda-redes — era um jogo de futebol feminino — deixar escapar uma bola das mãos, vê-la passar sorrateira entre as pernas e entrar vagarosamente na baliza. Um azar. Acontece o mesmo com os plagiadores: deixam passar, por entre as mãos, as palavras organizadas por outros, e estas caem no seu texto.
segunda-feira, 15 de setembro de 2025
Meia efeméride
Efeméride. Chegou-se ao meio de Setembro. Então, não é uma efeméride, mas apenas meia efeméride. Concordo, pois hoje estou virado para a concórdia, mas não tanto para a concordância, o que é um perigo para quem escreve, ainda que coisas sem sentido. Não convém exagerar, e há que assegurar, por exemplo, a concordância entre sujeito e predicado. Discutível, oiço-me dizer. Imagine-se a frase: Ela corremos todos os dias. Uma frase lamentável, onde o sujeito não concorda em pessoa e número com o verbo. Contudo, a frase pode ser lida de modo mais fundo, percebendo-se que o eu está subentendido: ela (e eu) corremos todos os dias. As regras gramaticais são impotentes para dar conta do uso da língua, pois é tão importante o que se explicita como o que se cala. Podemos imaginar que o eu tem prazer em correr com ela, mas pretende guardar segredo linguístico. A sua omissão no sujeito é uma máscara, mas o verbo na primeira pessoa do plural é uma pista para quem queira descobrir com quem ela corre. O verbo “correr”, na expressão “correr com ela”, é ingrato: pode significar que eu e ela nos deslocamos juntos com rapidez superior à marcha, mas também que o eu corre com ela, a expulsa, a põe a milhas. Também é plausível que seja ela a correr com o eu, mas aqui entra-se no domínio da ascese: ela liberta-se do seu eu na busca de realização do self. Esta foi a minha comemoração da efeméride – ou meia efeméride – de 15 de Setembro. Amanhã será 16, e a temperatura disparará.
sábado, 13 de setembro de 2025
Uma alegoria
Diante de mim tenho um pequeno romance de Hermann Hesse. Há muitas décadas, li várias obras do autor alemão. Li-as com verdadeiro prazer: desde Siddartha até a O Jogo das Contas de Vidro, passando por O Lobo das Estepes ou Narciso e Goldmundo. Por volta dos trinta, tentei voltar ao autor, mas, ao fim de algumas páginas, abandonava enfastiado a obra. Vou tentar de novo: começo com o primeiro romance, Peter Camenzind, que nunca li. Se conseguir ler a obra romanesca de Hesse, então sei que estou já num processo de regressão. Ficarei a aguardar o momento em que procurarei as edições antigas da Romano Torres das Aventuras de Pinóquio, tendo antes passado por Enid Blyton e por outros autores que não vêm agora ao caso, sem esquecer as aventuras de Jaime Eduardo de Cook e Alvega, o famoso Major Alvega da colecção Falcão. Do Pinóquio aos grandes autores da literatura universal, e retorno à casa da partida: eis uma alegoria sobre as limitações do mito do progresso.
sexta-feira, 12 de setembro de 2025
Meditação
A semana útil termina hoje, mas para mim a utilidade desvaneceu-se. Entrei pela casa da inutilidade e estou nela como quem está numa casa de repouso, embora não saiba que tipo de casa é esta, pois nunca me repousei por lá. Talvez já não existam casas de repouso. Há estabelecimentos – ou designações de estabelecimentos – que o tempo, com os seus dentes aguçados, devorou. Uma dessas designações desaparecidas é a de casa de pasto. Não havia vila ou cidade que não tivesse a sua casa de pasto. Depois, sem me darem qualquer explicação, desapareceram. Seriam uma solução intermédia entre a taberna e o restaurante, um lugar onde se comia barato. Hoje, os portugueses já não têm onde pastar, mas também os seus gostos começam nos restaurantes com estrelas Michelin e terminam sabe-se lá onde. Estou a cometer uma falácia, a da generalização precipitada, mas este é um tempo de falácias. Quanto mais falácias um indivíduo mobilizar nas suas arengas, e quantas mais mentiras contar, mais digno de crédito se torna no auditório universal. Universal referente aos portugueses. Não é que os outros auditórios sejam diferentes, mas conheço melhor o nacional. E este é o que é. Não há nada que uma boa tautologia não resolva, e «é o que é» será a melhor de todas as tautologias. Em vez de explicar, afirma a existência. E se existe, então não precisa de explicação ou de justificação. Isto recordou-me uma antiga idiossincrasia pátria coeva das casas de pasto. Para certos – e não seriam poucos – assuntos de ordem burocrático-legal, não bastava o bilhete de identidade: era preciso uma certidão de nascimento passada no registo civil. A medida justificava-se plenamente, não fosse o portador do bilhete de identidade estar ali e não ter nascido. Era uma coisa frequente, naqueles dias, andarem por aí pessoas que, apesar de devidamente identificadas, não tinham nascido. Eram os chamados vivos não nascidos. Hoje, o Estado português já não se importa que possam existir pessoas que não tenham nascido: deixa-as andar por aí e não exige certidão de nascimento. Se se descobre algum cidadão não nascido, é obrigado a pagar uma coima, pois ninguém imagina como seria possível obrigar a nascer alguém que existe mas não nasceu. A coima é mais sensata e rentável. Perdi-me na meditação. Vou repousar e, depois, procurar uma casa de pasto.
quinta-feira, 11 de setembro de 2025
O filho do sapateiro
Ontem referi o estranho caso de Manuel Ribeiro. Protelei na revelação da sua estranheza. Nasceu em 1878, em Albernoa, filho de um sapateiro, e morreu em 1941. Por norma, conta-se que foi um dos fundadores do Partido Comunista Português e que, posteriormente, se converteu ao cristianismo. Ora, a história é mais complexa. É um facto que foi eleito, em 1920, para a comissão organizadora do Partido Comunista. Em 1921, foi eleito para a Junta Nacional do Partido e, imagine-se, foi enviado a Moscovo, ao III Congresso do Comintern (Internacional Comunista), como delegado da Secção Portuguesa. Antes disso, tinha escrito no jornal anarquista A Batalha e fora secretário da Comissão Executiva da Federação Maximalista Portuguesa e director do jornal A Bandeira Vermelha. A lista da sua actividade revolucionária é maior, incluindo o sindicalismo revolucionário. É provável que seja após 1921 que ele se desliga deste mundo, mas a sua atracção pelo cristianismo e pela vida espiritual católica é bem anterior. Em 1920, publica o romance A Catedral, onde é muito clara essa aproximação. No ano de 1916, publica no jornal A Capital artigos sobre literatura monástica. A estranheza reside nesta dupla atracção – pelos valores do cristianismo e pelos ideais revolucionários – num tempo em que a adesão a uns implicava a negação dos outros. Quem ler A Catedral, sem saber estes traços biográficos, nunca imaginará que o autor é um dos fundadores do Partido Comunista Português, que também é um estranho caso, e que, de algum modo, se liga a Manuel Ribeiro. Enquanto a generalidade dos partidos comunistas nasceu de cisões nos partidos sociais-democratas, o português nasceu a partir de um grupo de anarquistas, como o terá sido Manuel Ribeiro. Se se deixar de lado a espuma dos dias, o caso de Manuel Ribeiro deixa de ser estranho. Os credos anarquista e comunista são laicizações do credo cristão, devendo-lhe muitas das suas ideias. Manuel Ribeiro terá pressentido isso. Descobriu, porém, que o original era preferível aos sucedâneos – simulacros poderá ser o termo mais exacto – e abandonou a ideia de um paraíso na Terra. É pena que já não seja lido. Também é verdade que um leitor actual teria de o ler com um dicionário à mão, tal a riqueza do vocabulário deste filho de um sapateiro.
quarta-feira, 10 de setembro de 2025
Uma visita a Lisboa
Chegado hoje a casa, em fuga do mau tempo na Figueira, encontro na caixa do correio um livro que tinha comprado num alfarrabista online. Não se trata, na realidade, de um verdadeiro livro, tal como o imaginamos, mas de uma brochura, de pouco mais de trinta páginas. Foi publicada em 1922 e contém uma novela de Manuel Ribeiro, A Madona do Convento. Faz parte de uma colecção lançada pela revista mensal Contemporânea, que parece ter tido notoriedade naqueles anos. Talvez um dia, caso me lembre, escreva sobre o estranho caso de Manuel Ribeiro. A brochura apresenta na capa a identificação do comprador. Um certo António, cujo apelido omito, apesar de explícito, comprou-a em 1923. Custou, segundo a indicação da badana da capa, um escudo, o preço de qualquer uma das novelas da colecção lançada pela revista. Do proprietário, não consigo descobrir mais nada. Terá lido a novela? Nada há que permite dizer que sim ou que não. Descobrem-se, porém, coisas interessantes. Há uma lista de autores de novelas e nessa lista, de acordo com uma prática antiga, os licenciados surgem com o título de dr. no nome. Por exemplo, a novela número 2 é do Dr. Feliciano Santos. Descubro, também, que o melhor chocolate é o da Leitaria Portugália, na Rua do Ouro, que também tem a melhor doçaria regional. Por outro lado, se alguém quisesse mandar imprimir livros de luxo ou revistas ilustradas, podia ia à Imprensa Libânio da Silva, na Travessa do Fala-Só. E fotogravuras? Na Fotogravura Nacional Ld.ª, na Rua da Rosa. Se o problema era comprar um relógio ou um anel, uma jóia, na Praça dos Restauradores, Júlio Rei, Ld.ª seria um destino a ponderar. Contudo, se o problema era barbear-se ou tratar das unhas, o Salão Modelo de Pereira & Brio esperava o cliente no número 94 da Rua dos Fanqueiros. Isto no ano de 1922, há 103 anos. E também se descobre onde era a sede da Contemporânea. No segundo andar do 53 da Rua Nova do Almada. Lisboa era pequena, os portugueses eram, em grande percentagem analfabetos, mas os romances de Manuel Ribeiro – tanto A Catedral como O Deserto – já iam na terceira edição, o equivalente a oito milhares. E o que trata a novela? De uma Madona, claro.
terça-feira, 9 de setembro de 2025
Outros mundos
Procurei, durante o dia, um poema que fosse pequeno e que nele contivesse uma porta para outro mundo. Encontrei-o há pouco, de Emily Dickinson: Uma sépala, uma pétala e um espinho / Numa vulgar manhã de Verão — / Um frasco de Orvalho — uma ou duas Abelhas — / Uma Aragem — um volteio nas árvores — / E sou uma Rosa! Mas este não será o nosso mundo? Claro que não. Este é o mundo onde o sujeito do poema – como é insuportável a expressão sujeito lírico – é um ser do mundo vegetal. Entramos nele e vemos rosas que não as nossas rosas, mas seres dotados de consciência, pensamento e linguagem. Não são mudas nem surdas, e não estão presas ao solo. Pelo contrário, caminham e voam, talvez nadem, mas não tive tempo de averiguar. A estadia nesse lugar é excessivamente cara, alguns minutos ainda se podem comprar, mas há que ter cuidado para não se ficar falido para o resto da vida. De resto, a contabilidade sempre teve um contencioso com a poesia e ainda mais com a poesia dos mundos possíveis. Vi o que me foi possível e paguei o que pude. Agora, estou sentado no quarto de hotel, olho o mar e recito baixo o poema da Dickinson. Espero uma rosa, ou uma Emily, ou uma poetisa vinda de um outro mundo possível.
segunda-feira, 8 de setembro de 2025
Coincidência
Sentado na varanda do hotel, olho o mar. Este, porém, está longe, pois o areal parece não ter fim. A nortada agita o arvoredo, fustiga as bandeiras que nunca faltam em lugares de veraneio, o sol hesita entre o vigor de Junho e o cansaço de Novembro. Imagino que um dos encantos da Figueira da Foz seja esse: uma promessa de oceano que parece retroceder a cada passo. Daqui a pouco irei caminhar, talvez me aproxime das águas, se os passadiços me levarem até lá. Respiro o ar marítimo trazido pelo vento, observo o movimento na marginal e penso que Setembro deixou de ser um dos meses de férias, apesar de ainda haver pessoas a fazer a grande travessia das areias até chegarem perto do mar. Hoje, sabe-se lá porquê, tenho-me lembrado dos tempos de escola, dessas férias grandes, tão grandes que só o Outono, e não de imediato, lhes punha fim. Gostava particularmente do mês de Setembro, mas não me lembro das razões. Talvez não as tivesse ou ainda não me preocupasse com elas. Gostava porque gostava, e isso era tudo. Coincidia comigo, na inocência que me cabia naqueles dias. Perde-se a inocência quando se descobre que não se coincide consigo mesmo ou, para ser mais exacto, quando a coincidência consigo se torna um projecto, ou uma doença, o que será a mesma coisa.
domingo, 7 de setembro de 2025
Tempo
Sem se dar por isso, a primeira semana de Setembro – sete dias exactos – está consumada. Faltam ainda umas horas, é certo, mas elas apressar-se-ão a esgotar-se. Talvez o tempo não exista. Para onde vão os dias que acabam? Nunca ninguém encontrou vestígio de nenhum. É certo que não é prova suficiente para negar a existência do tempo o facto de ninguém ter encontrado vestígios de um dia que passou; contudo, pode ser razão suficiente para tornar plausível a sua inexistência. Fomos habituados a pensar na existência do tempo. Esse hábito, todavia, não se deve a uma experiência real do tempo, mas à necessidade de ordenar a nossa existência. Transferiu-se uma crença utilitária para uma crença ontológica. Isto quer dizer: transformou-se a utilidade para os nossos negócios de ordenar as coisas em sequências – umas vêm antes de outras, outras acontecem em simultâneo e outras, depois – numa realidade a que se dá o nome de tempo, mas essa transformação é subjectiva e pode não corresponder a nada de efectivamente real. Não devia pensar nestas coisas ao domingo. É dia de descanso e o pensamento – por fútil e incompetente que seja – também precisa de sossego, mesmo que, durante o resto da semana, seja pouco dado ao trabalho. O dia, por aqui, nasceu chuvoso, mas agora debita uma luz açucarada que banha o telhado do pavilhão desportivo da escola aqui ao lado, que responde com uma reverberação anémica. Na avenida, os carros passam devagar, sem motivação para chegar a segunda-feira, enquanto os peões seguem a sua transumância habitual dos domingos. Caminham para aqui e para ali, sem destino, mas apenas porque é domingo e eles não sabem o que fazer com esse dia. Nem eu.
sábado, 6 de setembro de 2025
Hábitos
O sábado começou com uma ruptura com as rotinas ultimamente instaladas. Levantei-me demasiado tarde para ir caminhar. Portanto, a rotina ainda não é um verdadeiro hábito. Se o fosse, ter-me-ia levantado mais cedo, apesar das razões que tive para o não fazer. Aristóteles definiu o hábito como uma segunda natureza. Como muitas coisas que provêm de Aristóteles, também esta ideia deveria fazer parte do senso-comum da época. Ele registou-a, dando-lhe um relevo que, sem esse acto de registo, não existiria. Diante de mim tenho um livro publicado no final do século XVIII. Questiona duas coisas: o fundamento da autoridade e o dever de obediência. A resposta que o autor dá não vem para o caso, mas eu poderia dizer que ambos se devem ao hábito. Uns habituam-se a mandar e outros a obedecer. O que conduz a uma conclusão inesperada: não há uma humanidade, mas duas humanidades, a humanidade que manda e a humanidade que obedece. A pergunta que surge é se essas espécies, caso se cruzem, darão origem a um novo ser ou se esses eventuais cruzamentos serão estéreis. Imagino, mas imagino apenas, que ainda não serão completamente estéreis. As razões, porém, não são fundadas em dados empíricos, mas numa intuição. A educação daqueles que se habituaram a mandar destina-se a que os novos membros da espécie evitem cruzar-se com alguém que esteja habituado a obedecer. Seja como for, é muito possível — contam-se histórias — que existam híbridos, o que será sempre um problema, mais para quem pertence à espécie obediente do que para quem pertence à espécie mandante. A hibridação, caso seja verdade, mostra, porém, que a teoria aristotélica do hábito apresenta alguns problemas. Confesso que me falta assunto. Poderia falar do romance Ave do Paraíso, de Carlos Selvagem, mas nunca o li.
sexta-feira, 5 de setembro de 2025
Caminhar
Começo, agora, os dias com uma caminhada. Saio ainda o ar da manhã está fresco e são poucas as pessoas em circulação. Se me atraso um pouco, porém, já encontro pais a deixarem crianças nos infantários e algum movimento perto dos cafés. Num dos parques da cidade, deparo-me todos os dias com um grupo de imigrantes vindos da Ásia, talvez do Paquistão, mas não sei. Estão divididos em duas equipas e jogam futsal, num campo para o efeito mas a céu aberto. É a sua preparação para o dia de trabalho. A forma como gritam durante o jogo é em tudo idêntica ao que fazem os portugueses, só que a letra é, para mim, incompreensível. Pela música que emana da disputa, porém, quase sei o que estão a dizer. Quando caminho ao anoitecer, também se joga no mesmo campo, mas agora é gente mais nova, em idade escolar, e muito misturada: portugueses, brasileiros, angolanos. Enquanto o jogo matinal é exclusivista, o vespertino é abrangente, pois não só alberga múltiplas nacionalidades – mas apenas uma língua – como existe sempre uma rapariga, por vezes duas, entre os jogadores, bem como um atleta de cadeira de rodas, que toma parte no jogo, umas vezes como guarda-redes, outras como jogador de campo. Enquanto caminho, deixo que a cidade invada os meus olhos e descubro-a sempre diferente, apesar da aparente imutabilidade com que ela se apresenta à razão. Este é o velho conflito entre Parménides e Heraclito: onde o primeiro vê a imutabilidade do ser, o segundo considera tudo em devir, um fluxo perpétuo. Enquanto caminho, sou os dois ao mesmo tempo. Os meus olhos são os de Heraclito; o pensamento, porém, está fidelizado – tal como um cliente a uma operadora de telecomunicações – a Parménides.
quarta-feira, 3 de setembro de 2025
Descobertas tardias
Hoje passei pela Biblioteca Municipal. Descobri que ali havia a velha tradução de Paulo Quintela de Os Cadernos de Malte Laurids Brigge, de Rainer Maria Rilke – sim, Rilke mais uma vez. Eu tenho uma outra tradução da obra, a de Maria Teresa Dias Furtado, para a Relógio d’Água. A do professor Paulo Quintela foi publicada pela Editorial Inova, do Porto. Percorro-lhe as páginas e irrito-me. Existem sublinhados e anotações nas margens. É certo que são feitos a lápis, mas o livro é público e o seu utilizador não tem o direito de o conspurcar com os seus pensamentos, se é que são pensamentos. Eu sei que existe, na mesma biblioteca, um outro exemplar. Faz parte do espólio deixado por alguém que conheci. De súbito, retornou, vinda de um tempo arcaico, a sua imagem de mulher, um pouco descompassada das imagens das outras mulheres – raparigas, quero eu dizer – que por aqui havia. Enquanto viveu, nunca soube que lia Rilke e, agora que o sei, desconfio que esse meu não saber talvez tenha sido uma perda irremediável. Há coisas que se descobrem demasiado tarde. Se fosse o seu exemplar que estivesse nas minhas mãos, aquelas podiam ser as suas palavras, e eu haveria de as ler como se fossem uma revelação.
terça-feira, 2 de setembro de 2025
Doença, morte, política
Recebi hoje um grosso volume com as cartas de Rainer Maria Rilke sobre política. A primeira carta, enviada de Praga, é de 29 de Janeiro de 1896, e a última, enviada da clínica de Val-Mont, s/Terriet, p. Glion (Vaud), no dia 21 de Dezembro de 1926. O poeta morrerá oito dias depois, a 29 de Dezembro. A carta — apenas algumas linhas — é dirigida ao poeta Jules Supervielle, como agradecimento de algo não especificado. Não há, em momento algum, qualquer alusão à política. A carta começa dizendo: Gravemente doente, dolorosamente, miseravelmente, humildemente doente… O que há nela é a declinação em vários tons da doença, o pressentimento da iminência da morte. Dir-se-á que, no âmbito de uma biopolítica, nem a doença nem a morte estão fora da política. Pelo contrário, estão no seu centro, são o seu tema decisivo. Mesmo a doença e a morte privadas de um poeta são casos políticos. Não encontro outra explicação para que os editores tenham integrado a mensagem para Supervielle no âmbito da correspondência rilkeana sobre política. Muito provavelmente, Rilke terá morrido na clínica. Esta, porém, ainda existe. Comemora os 120 anos. As instituições são mais duradouras do que os homens. Isso é uma coisa boa, pois, quando um ser humano vem ao mundo, precisa de instituições que o acolham e dêem um significado, mas não um sentido, a essa vinda à existência.
segunda-feira, 1 de setembro de 2025
Um regresso
De regresso a casa, escutava a Antena 2. Um programa sobre a música no cinema. O de hoje era dedicado a uma obra extraordinária, a Flauta Mágica, de Ingmar Bergman. Um filme que faz cinquenta anos. Ora, vi-o pela primeira vez, ainda nos anos setenta do século passado, no cine teatro daqui, num ciclo dedicado ao cinema do realizador sueco. Bergman não se limitou a gravar uma ópera, produziu uma obra de arte onde a ópera de Mozart, a encenação teatral e a sua linguagem cinematográfica se conjugaram para produzir qualquer coisa que me deixou completamente perplexo. Claro, a célebre ária onde a Rainha da Noite, Birgit Nordin, atormenta Pamina, a filha, mas também as figuras de Papageno e de Sarastro, ou o próprio conteúdo iniciático da ópera de Mozart. Foi também nesse ciclo que vi, pela primeira vez, Morangos Silvestres, talvez o filme de Bergman que mais vezes vi. Já não consigo precisar o ano em que isso aconteceu e uma pesquisa online não me forneceu qualquer indicação. Talvez porque um ciclo de Bergman numa vila de província seja uma coisa inverosímil, uma espécie de sonho ou uma fantasia. Caminho para a idade de Isak Borg, o protagonista de Morangos Silvestres, mas ainda não terei atingido a sabedoria de Sarastro, da Flauta Mágica. A cada um os seus limites e também as suas perfeições.
domingo, 31 de agosto de 2025
Mar de Setembro
Na esplanada, via-se, na linha do horizonte, o mar fundir-se com o céu, nessa zona de indistinção onde qualquer mundo se torna possível. O sol dardejava, a espaços, a areia, para logo se ocultar atrás de nuvens viandantes, nuvens de cinza, neve e alcatrão que se dirigiam para aquele lugar onde todas as nuvens se reúnem. Está um mar de Setembro, disseram-me. Concordei, o mar de Setembro tem uma natureza própria, ondula de outra maneira, mistura o branco da espuma e o turquesa das águas como se fosse uma anunciação. Não de um deus por vir, mas do fim de uma estação ou a aproximação de uma outra. Fiquei ali, diante daquele mar setembrino, contemplando o ir e vir das ondas, o exercício dos surfistas, a passagem de algum barco em direcção a um porto que desconheço. Talvez, pensei, venha de um daqueles mundos possíveis e se dirija para um porto num mundo impossível. Devemos esperar que as coisas mais inusitadas aconteçam, pois se nós próprios, com a vinda à existência, somos uma prova de coisa inusitada, por que não esperar que outras – talvez, menos inverosímeis – possam acontecer? Claro que podem, murmurei, enquanto o sol rompia, de novo, a muralha das nuvens.
terça-feira, 26 de agosto de 2025
Um mundo ruidoso
Retorno depois de prolongadas férias. Isso não significa que não continue em férias, pois a realidade deixou de solicitar a minha atenção. O mundo dispensa os meus afazeres e concede-me a graça de dispor do tempo que resta, seja lá ele qual for. Talvez devesse ter recomeçado de outra maneira: Vim da casa do silêncio e, agora, tomo a palavra. Diante de mim está um livro publicado pela Quetzal, com uma belíssima capa. O autor é Alain Corbin e o título, História do Silêncio. O Prelúdio da obra começa assim: O silêncio não é apenas ausência de ruído. Nós quase o esquecemos. As referências auditivas desnaturaram-se, enfraqueceram, dessacralizaram-se. Intensificaram-se o medo ou mesmo o terror suscitados pelo silêncio. Agora, estou envolvido pelo ruído. Máquinas em trabalho. Uma azáfama planeado no gabinete de algum demónio apostado em fazer perder a cabeça até a um santo. O mundo tornou-se num lugar em que o silêncio é um bem escasso e, por certo, haverá um mercado para o vender. Aquilo que inunda o mundo de ruído é também o que mercadeja o silêncio. Pode-se mesmo pensar que a omnipresença do estardalhaço foi uma estratégia para tornar o silêncio uma mercadoria mais valiosa do que qualquer outra. Se fosse economista, com ambições a crítico social, coisa que não sou, diria que houve uma apropriação por alguns de um bem que era de todos. O melhor é continuar a ler Corbin: No passado, os ocidentais desfrutavam a profundidade e o sabor do silêncio. Consideravam-no como condição do recolhimento, da escuta de si mesmo, da meditação, da oração, do devaneio, da criação; sobretudo como lugar íntimo do qual a palavra emerge. Uma máquina ronca, outra troa, uma outra estrondeia. Não tarda, e surgirá a que ribomba. O demónio ri no seu escritório, o plano de negócios cumpre-se com eficácia. As almas perdem-se no meio de tanto barulho. Ou não se encontram, para ser mais preciso, pois a condição de qualquer alma é de andar perdida à procura do caminho. Um súbito silêncio. Não, apenas uma pequena ausência de ruído.
domingo, 3 de agosto de 2025
Nevoeiro
Hoje é domingo. Escrevo-o para não me esquecer. Levantei-me cedo e fui caminhar também cedo. O molhe estava livre, mas o nevoeiro era tanto que não se via o farol que termina o espigão que dilacera o mar. Por aí fui, envolto numa penumbra que anunciava o regresso de D. Sebastião. O porto, logo ali, era um belo sítio para que o desgraçado rei chegasse à pátria que o viu partir para nunca mais regressar. Quero dizer: para ainda não ter chegado. Como é hábito seu, D. Sebastião recusou-se a voltar, continua emigrado, ninguém sabe onde, não se importando ele com o ódio tecido em volta dos imigrantes, pois, onde quer que esteja, o nosso rei é um imigrante, que haverá quem queira expulsar, pois não percebe que é um rei, daqueles antigos, um monarca garboso, cavaleiro como D. Quixote. Quando voltar, no dia que lhe der na veneta, vai descobrir que o trono dele foi ocupado por outro, por outros, até por três espanhóis com o mesmo nome — que é a mesma coisa do que não ter nome —, e que agora já não há tronos, que a potestade é republicana e, se ele quiser ser o número um, como era quando partiu, tem de ir a eleições, fazer-se eleger e ser proclamado Presidente da República e, caso tenha talento, estar dez anos a presidenciar, para depois se retirar para Alcácer Quibir ou, se tiver algum trauma com Quibir, poder ser mesmo ali mais abaixo, para Alcácer do Sal, para depois passear pelo litoral alentejano em vez de ir matar mouros e acabar morto, sabe-se lá onde, com o reino a definhar e ninguém sem saber dele, só promessas de que haveria de voltar — e ainda hoje estamos à espera —, e sempre que há grandes nevoeiros, vai tudo para as praias e diz: é desta. Mas nunca é desta. Resta-nos esperar, mesmo aos republicanos, pois também estes têm o seu fraco pelo rei que se perdeu no caminho, não sabe onde é a pátria de onde partiu, falta-lhe um bússola e um mapa, talvez um GPS ajudasse ou o Waze e o Google Maps. Tivesse ele uma Penélope, e faria como Ulisses: voltaria, apesar dos trabalhos, mataria os pretendentes e cairia nos braços da mulher amada, sem notar que o rosto desta já tinha algumas rugas, pois o desejo do seu corpo era tanto que não havia rugas que o matasse. Mas o pobre rei foi desavisado, embarcou para a sua Tróia sem uma Penélope e agora, como uma alma penada, anda perdido por esse mundo — e nós, sempre que há nevoeiro, vamos para as praias à espera dele —, mas ele não volta. Um incómodo, pois uma nação inteira não pode estar sempre a caminhar para a praia só porque está nevoeiro, isso dá cabo da produtividade nacional, o PIB não sobe só porque vamos para a praia, mal um nevoazinha surge no horizonte, e olhamos, olhamos, olhamos, mas se aparece algum barco, não nos traz um rei, apenas sardinha e pouca, ou é um veleiro de um americano em férias, ou é um navio fantasma de corsários mortos há muito. E o PIB fica sempre aquém da expectativas, tudo por causa desta mania de ir esperar um rei que não quer, ou não pode, ou não sabe como voltar.
sábado, 2 de agosto de 2025
Desastres naturais
Há por aqui festejos; ouvem-se vozes ampliadas por potentes colunas, também um foguetório sem fim, depois uma espécie de música ao gosto popular, cada uma pior do que a anterior. Um desastre, ou a combinação de múltiplos desastres. Para piorar as coisas, o molhe estava interdito a caminhantes e pescadores: preparavam-no como ponto de lançamento de fogo de artifício que há-de abrilhantar os festejos. Como encarar estes acontecimentos? Como se encaram as tempestades, os tufões, os ciclones, os tsunamis. São coisas da natureza que não se tem – ainda não se tem – o poder de evitar. Os festejos populares, mais do que acontecimentos culturais, devem ser interpretados como episódios naturais. Neles manifesta-se a natureza humana, e ainda não se descobriu como evitar tudo aquilo. Serão reminiscências de épocas arcaicas – talvez ainda pré-humanas – em que certos episódios geravam uma grande confusão, um enorme alarido, uma tremenda algazarra. Com o passar dos milénios, o processo foi-se suavizando, deu-se-lhe o nome de festa, mas ainda está longe – muito longe – de se ter tornado razoável. Talvez tenha dormido pouco, pois a açougada vai pela noite fora, não deixando dormir mesmo quem está longe. A inclinação misantropa incendiou-se – talvez seja do calor, que agora chega em vagas, uma espécie de ondas gigantescas feitas de temperaturas elevadas e que não param de crescer, de se elevar, desejosas de tocar nos céus. Enquanto o mundo arde, as festas continuam, com aquela música ronceira, o vozear aviltante da razão humana, o foguetório inútil, que há-de trazer um fogo de artifício cheio de lágrimas – as lágrimas de quem não pode dormir, dos animais assustados, das plantas que amam tanto o silêncio que se tornaram mudas.
sexta-feira, 1 de agosto de 2025
Correspondência
Julho despenhou-se no grande abismo onde todas as coisas se precipitam, mal chegue a hora da precipitação. Para o seu lugar, veio Agosto, um mês dedicado ao imperador Augusto, como aquele que acabou pagava tributo a Júlio César. Há meses atraídos por imperadores, outros por deuses, outros nem se sabe bem por quem. Recebi uma encomenda de livros vindos da Alemanha, comprados num alfarrabista online. São romances alemães. Como vou lê-los, eu que não sei alemão, pode perguntar-se. Irei lê-los, mas omito o processo. Não serão os primeiros, nem os segundos, nem… que lerei desse modo, aqui omitido. O importante, porém, é que num deles vinha um postal datado de 2 de Agosto de 2017. Fará amanhã oito anos que foi escrito por uma mulher alemã para uma amiga, também alemã, que, lido o postal, o guardou dentro de um livro que acabou por vender. A receptora tem o apelido de um importante músico do romantismo alemão, um compositor de que gosto bastante. O seu nome próprio é belíssimo em alemão e também é de bom gosto em português — por acaso, o nome de uma tia-avó minha e o feminino do nome de um dos meus bisavôs. O postal reproduz, em fotografia, duas focas-cinzentas e três ostraceiros (Haematopus ostralegus), sendo um deles um junior, ainda sem a belíssima aparência dos adultos. E o que diz o postal? Transcrevo, omitindo os nomes: Querida ..., A grande onda de calor passou; com 18º–20º, sol e vento, aguenta-se bem. Tomamos banho no mar todos os dias e já contornámos várias vezes o extremo norte da ilha. Com a … e o … tornou-se tudo mais animado, mas também mais cansativo. Agora, a última semana de férias está quase a terminar. Até breve, com muitas saudações luminosas da … E eu fico a imaginar quem será a mulher com nome musical e se aquela que lhe escreve está em férias familiares. Serão ainda todos vivos, as quatro pessoas envolvidas no postal? E elas continuarão amigas? A que escreve, por certo, está preocupada com o ambiente, pois o postal tem a seguinte mensagem: Com a aquisição deste postal, está a apoiar a protecção da natureza e das aves marinhas. Saiba mais sobre nós em… Também não é sem interesse o selo, com uma paisagem da Suíça Saxónica, que nada tem que ver com a Suíça. Um postal de férias, no primeiro dia em que entrei numas férias das quais não terei de regressar, pois agora só haverá férias diante de mim — férias ininterruptas das funções exercidas até que chegue o dia das férias eternas da existência, a hora de me precipitar no abismo em que Julho se precipitou.
quinta-feira, 31 de julho de 2025
Convicções
Alguém disse alguma coisa com a qual discordo. Há, na afirmação, um grande equívoco. Terei desfeito o equívoco? Não. Apenas encolhi os ombros, pois a convicção com que aquilo fora dito é ainda maior que o equívoco. A convicção não nos diz nada sobre a relação da crença com a verdade, mas diz-nos muito da relação da crença com a identidade da pessoa. Quem está disposto a uma crise de identidade só para adquirir uma crença verdadeira? Se tentamos descobrir quem somos, a única coisa com que nos deparamos são convicções. Se estas são postas em causa, ficamos ameaçados. Por isso, a ideia iluminista do esclarecimento, do desfazer dos equívocos, choca sempre com uma realidade que resiste em nome da existência. Por isso, mudar de ideias ocorre apenas naquilo a que se dá o nome de conversão. Veja-se o caso de Paulo de Tarso: de zeloso perseguidor de cristãos, por conversão transformou-se em zeloso pregador do cristianismo. A sua mudança de convicção – e Paulo era um homem de convicções – não se deveu a nenhum esclarecimento, apenas a um acontecimento inexplicável. O melhor que posso fazer por alguém que, convictamente, está errado é desejar que encontre a sua estrada de Damasco.
quarta-feira, 30 de julho de 2025
Ultravioletas
Encurtei a caminhada matinal, uma ânsia de chegar a casa, um cansaço de sol sobre o corpo. Os ultravioletas dardejavam com inclemência — entravam já numa escala anunciada como muito elevada — e eu pensava nas possibilidades de combinar infra e ultra com as cores: o ultra-amarelo e o infra-azul; mas a realidade é muito mais prosaica, entrega-se aos infravermelhos e aos ultravioletas, como se fora um pedinte, incapaz de investir no grande empreendimento cromático do mundo, comprar acções do supra-verde ou do sub-rosa. A verdade, porém, é que os ultravioletas me fizeram regressar um pouco mais depressa: apenas seis quilómetros de caminhada, partir de casa para chegar a casa. Que estúpido — pensei —, se era para chegar ao ponto de partida, mais valia não ter saído, não me tinha encontrado com os UV que andam por aí, desencabrestados, prontos para apunhalar caminhantes desavisados, enlouquecidos pelo desejo de caminhar, com o sangue a latejar nas têmporas e o sol a chamar o suor, a transpiração, um asco. O melhor é ir para casa e tomar banho, deixar os UV para as ervas, as dunas, os passadiços de madeira, para aqueles que sonham com calor e navegam sonâmbulos pelas chamas do Inferno. Em casa, sento-me e olho para a existência, e tudo se passa entre o excesso dos ultravioletas e o defeito dos infravermelhos, como se todas as outras cores não possuíssem nem acima nem abaixo — o que faz delas cores sem espaço, pois, se há espaço, há, necessariamente, um acima e um abaixo, que podemos dizer ultra e infra, se tivermos desejo de o fazer, mesmo que os outros digam que não é a mesma coisa, que cores e espaço têm outra relação, as cores pegam-se às superfícies, mas elas não têm superfície. É nestas coisas que penso, enquanto espero que me dê vontade de ir tomar banho: um compromisso social, um almoço com amigos, um silêncio no coração, com o punhal do tempo encostado à jugular, os ultravioletas a mudarem de cor e o choro contido dos infravermelhos a murmurejar nos meus ouvidos, como se fosse água a correr de uma torneira ou um bico do fogão a libertar gás, para envenenar o ambiente e liquidar de vez todos os ultravioletas e os infravermelhos. São dias difíceis, a pátria está a partir para férias, e o ribombar dos canhões solares, disparando projécteis ultravioletas, não se cala. Partir de um sítio e chegar a ele. A vida — a minha, pois não conheço outra — é uma circularidade, um círculo vicioso, uma petição de princípio. Nasci predisposto à falácia.
terça-feira, 29 de julho de 2025
Um ataque
Por aqui o calor não morde como no resto do país. Sim, o calor é um cão raivoso, agastado com a vida amena, sedento de uma água que não pode beber. Que começo dramático!, grita de dentro de mim um homúnculo que habita na minha consciência. Enquanto o homem não tem consciência, não há homúnculos que habitem nela. Porém, como no processo evolutivo da espécie, há um momento em que os homens adquirem — lentamente, pois não têm pressa para certas coisas — consciência, esta torna-se um propriedade imobiliária, um imóvel para habitação. E, como tal, os preços são exorbitantes. Os homúnculos instalam-se em sótãos e caves. Não têm dinheiro, dizem, nem para um Tê Zero. É daí que investem contra mim. Este é um homúnculo da cave, cavernícola e impiedoso, mais próximo do orangotango do que dos homens. Contudo, arvora-se a esteta opinioso e, caso se lhe preste atenção, começará a dissertar sobre filosofia da arte, a discutir o problema da morte da beleza – um tema que lhe é adequado – ou o da possibilidade de definir arte, enquanto olha para uma reprodução dos quadros com latas de sopa Campbell e vocifera contra a Pop-Art. Ora, como se vê, o homúnculo é eficaz, pois desviou-me do começo, da vexata quaestio do calor e das metáforas que usei ou que estaria disposto a usar, caso não fosse interrompido. Aqui retomo: o calor não é um cão raivoso, mas um cachorro simpático, que se deixa enrolar pela nortada e poisa sobre os corpos com a leveza de uma bela mão feminina. Ah…, grita o homúnculo, agora falas em beleza, mas na arte és capaz de preferir latas de sopa a belas paisagens que repousam o olhar e tranquilizam a alma. Olhei para ele, ergui a mão e fiz um gesto pouco digno de um narrador respeitável. Ele sumiu-se na cave, cujo aluguer está por pagar há anos. Devia pôr-lhe um processo de despejo.
segunda-feira, 28 de julho de 2025
Mudanças
Entrei hoje definitivamente naquela fase da vida em que a diferenciação dos dias da semana não tem importância. É uma aprendizagem que tem de se fazer com algum cuidado. Não é que não tenha experiência, mas ela é tão arcaica que a esqueci. Ocorreu até ao dia em que entrei na escola; desde essa hora, a recitação dos dias da semana foi sempre uma espada encostada à garganta. A desconstrução da semana – que expressão tão pomposa – não é coisa que se faça, mas que se deve deixar acontecer. A memória desliga-se da realidade, e esta evapora-se. Pelo menos, devia evaporar-se. Agora estou mais interessado nos dias dos meses: por exemplo, nos concertos a que espero ir e para os quais já tenho bilhete comprado. Aí posso esquecer-me do dia da semana, mas não do dia do mês. Imagino que posso alongar as caminhadas e vou fazer a assinatura das transmissões da Filarmónica de Berlim. Talvez esta decisão seja insensata, caso queira que a semana se desconstrua. Terei de estar atento aos dias dos concertos, em que momento da semana ocorrem. Diante de mim, uma tarefa interessante: esquecer os dias da semana e, ao mesmo tempo, lembrar-me deles. São estes desafios que alimentam as epopeias e que tornam heróis aqueles que se tornam heróis. Estou a escrever de forma circular – influência de uma leitura de Thomas Bernhard. Contudo, não quero imitar a escrita do autor austríaco. Não há em mim o rancor que o devorava. Prefiro cultivar inutilidades e platitudes, e agora posso distribuí-las ao acaso, sem me preocupar com as que devo dizer à segunda ou à quarta, as que devo evitar ao sábado e as que tenho por obrigação cultivar aos domingos à tarde, naquelas horas de melancolia que antecediam o crepúsculo e a conformação com a entrada, no dia seguinte, no império da realidade. O meu mundo mudou; o outro, porém, não tem melhoras.
domingo, 27 de julho de 2025
Buracos negros
O hábito é uma segunda natureza. Atribui-se a origem da expressão a Aristóteles, mas que sabemos nós da origem das expressões que são usadas pelos grandes homens? O mais adequado seria dizer que é em Aristóteles que encontramos registada, pela primeira vez, a ideia. Podemos imaginar que era uma expressão corrente nos meios familiares. A primeira natureza seria marcada por uma necessidade inexorável; a segunda teria de ser conquistada pelo esforço, uma viagem que iria do porto do possível ao cais do necessário. Isso formaria um carácter. Por que razão me haveria de lembrar disto? Por causa destes textos. Quase me esquecia deles. Quando me deparei com o esquecimento possível, ocorreu-me que escrevê-los ainda não se tornou um hábito, apesar de haver uma possibilidade forte de o fazer em cada dia. O domingo deslizou por mim com leveza, e eu deixei-me embalar por ele e habitei-o como um sonâmbulo. Foi ao chegar da caminhada que descobri a falta. Isto leva-me a pensar que não existe qualquer segunda natureza. Todo o hábito é susceptível de excepção, logo não é uma necessidade inexorável. Caminho todos os dias, mas ainda não se formou em mim o hábito de caminhar. Cada vez que me ponho ao caminho tenho de me vencer, de derrotar a inclinação para ficar onde estou. O pior, porém, é que talvez não exista sequer uma primeira natureza. A necessidade que vemos nos processos a que chamamos naturais talvez seja um defeito da nossa visão. Se não existe uma primeira natureza, o que existirá então? Não faço ideia. “Natureza” é apenas uma palavra. O que ela refere, porém, é algo que me escapa. Quem diz “natureza”, diz qualquer outra palavra. Por detrás de cada uma existe uma obscuridade tão grande que não a vemos. Dito de outra maneira: por detrás de cada palavra existe um buraco negro.
sábado, 26 de julho de 2025
Epopeia
Bocejo. A vida quotidiana é uma autêntica epopeia. Quantos ardis mais inteligentes do que o astucioso cavalo de Tróia são necessários para suportar a trivialidade que é a marca de qualquer existência. Ontem fui a um concerto. Antes de começar, tive a oportunidade de escutar quem estava mesmo atrás de mim. Tratavam da quotidianidade. Discutiam onde se podia ir buscar raparigas. Não haja confusões: queriam dizer criadas de servir, internas. Havia uma instituição com o nome de uma santa que as fornecia, mas as coisas, concordavam, já não eram como dantes. Umas servem, outras nem por isso. Eram homens — um deles já um pouco surdo — que discutiam o assunto. As mulheres estavam caladas. Imaginei que estivessem fartas do quotidiano com eles, mas é uma mera suposição. Nem lhes vi as caras. Pensei que, para eles — nascidos, como não se esqueceram de fazer notar, numa das melhores zonas do Porto —, encontrar raparigas que servissem no serviço das suas casas era uma epopeia. De imediato, ocorreu-me que, para elas, as serviçais, poderia ser uma epopeia ou um drama burlesco ter de suportar aquela gente. Podíamos pensar numa tragédia, mas raparigas que servem em casa alheia não têm estatuto social que lhes permita serem uma Antígona. Talvez nem tenham coragem para enfrentar aqueles pequeninos Creontes, dignos de uma comédia. Ter de suportar a conversa foi uma epopeia. É o que faz ir a concertos em igreja aberta ao culto: o espaço entre bancos não é suficiente para que se consiga evitar ter de escutar o chilreado de pássaros pouco canoros. Continuo a bocejar. Se alguém entender este texto como crítica social, desengane-se: constatar não é criticar, mas uma mera descrição da realidade. E esta é, por norma, trivial e bocejante — o que daria uma epopeia.
sexta-feira, 25 de julho de 2025
O Espírito
Fui tomar café com o padre Lodo. Chegou ontem, disse-me. Umas férias merecidas, gracejei. Claro, respondeu. Férias são sempre merecidas, embora não tenhamos propriamente férias, pois também não temos trabalho. Trabalhar é uma função; nós, homens da Igreja, temos uma missão. E uma missão nunca admite interrupções. Olhei para ele com ar divertido e perguntei se, naquele momento, também estava em missão. Claro, respondeu ele. Qual? A de me converter? Olhou-me e riu-se. Não são os homens que convertem os homens. Sou jesuíta — será preciso lembrar-lho? — e a nossa formação não nos permite tal grau de ingenuidade. O Espírito, acrescentou, fará o seu trabalho, onde e quando quiser. Desviei a conversa e perguntei-lhe pela estadia em Itália. Se havia mais Settembrinis. Disse-me que não, mas que a estirpe não está em vias de extinção. Apesar de se ter recusado a dar um contributo, retorqui, não sem um toque de maldade. Não seja inconveniente, resmungou. Os votos são para cumprir. Seja como for, não foi para esta conversa mole que lhe telefonei. Então? perguntei. Não quer marcar um jantar? Onde? Onde havia de ser? No sítio habitual, respondeu. Compreendo, o Espírito também se manifesta na qualidade da cozinha. Levou a chávena à boca. Depois — e aqui fez um gesto amplo da mão — disse: o mar é maior dos mistérios. Deixemos a cozinha de lado.
quinta-feira, 24 de julho de 2025
A desgraça do narrador
Como não poucas vezes aqui foi dito, ou, melhor, foi escrito, existe um conflito entre mim, narrador desta epopeia, e o autor. Este impõe-me limites e proíbe-me certos assuntos, impedindo-me de expressar o que me vai na alma. Sim, na alma, pois até um narrador tem uma alma — uma alma narrativa, mas não humana; caso contrário, seria um desalmado, o que, manifestamente, não é o meu caso. Ora, um dos pontos de conflito é a tecnologia. Eu sou um conservador e, não fora as imposições do autor, escreveria estes textos em papel, com pena de cisne. Ele, porém, não mo permite. Obriga-me a usar um teclado. Pior do que isso, cultiva coisas estranhíssimas, como o uso da inteligência artificial ou o interesse — embora sem uma convicção militante — por questões políticas, apesar de dizer sempre que quem quiser compreender alguma coisa nesse campo nebuloso deve começar por ler as tragédias gregas, e não O Príncipe, de Maquiavel, ou A República, de Platão. É uma das poucas coisas em que estamos de acordo. Tenho-lhe dito que a inteligência artificial é um perigo para a humanidade, mas ele responde-me sempre que não há maior perigo para a humanidade do que ela própria. Calo-me, pois, sendo apenas um narrador, não sou propriamente humano e, em última análise, não tenho qualquer interesse pelo destino dessa espécie tão dada à volubilidade, que é impossível perceber o que pretende da existência. Ora, descobri-lhe uma prática viciosa: pega em livros do domínio público, escritos em línguas que não domina, e manda-os traduzir pela inteligência artificial. Depois, lê-os. E parece não ficar desagradado com o resultado. É aqui que começo a temer pela minha existência. Um dia, ele substituir-me-á por um narrador proveniente de um modelo de linguagem. Escreve um prompt ordenando-lhe um post com certas características, e aquela coisa escrevê-lo-á. Por uns tempos, ainda sem grande graça, mas, estou certo, progressivamente, as suas narrativas serão melhores do que as minhas. Nessa hora, apesar das juras de fidelidade do autor, serei um narrador no desemprego, derrotado na contenda com o autor. A minha esperança é que ele próprio seja deglutido por um bot. Tudo se paga nesta vida. E, se não for nesta, há-de ser na outra — ou numa outra.