Está um sábado tristonho, indeciso, ora ameaçando tempestade, ora prometendo tempo de praia. Isto tem sobre mim um efeito desagradável, talvez dois. Em primeiro lugar, interfere com o corpo, tornando-o dorido aqui ou ali. É da instabilidade do tempo, penso. Melhor seria tomar um analgésico e deixar de pensar. O segundo efeito é tornar-me mais cinzento do que o habitual. Tinha uma tese – aposto que falsa – sobre a minha perfeita conformação com o tempo do norte da Europa: a má relação com o calor e uma certa configuração física. Ora, este ano tem sido um teste ao meu enraizamento ancestral em terras sombrias. Resultado: estou farto deste tempo. Venha sol, mas sem grandes calores. Quero luz, não ser cozinhado em lume pouco brando. Agora chove sem pudor. Há uma tristeza neste cair da chuva que toca toda a cidade, tornando-a mais pequena e humilde do que aquilo que ela é. Ao longe, troveja. Diante de mim tenho dois livros de Georges Simenon. Não se pense que são Maigrets. Não são. São dois romans durs, segundo a própria qualificação do autor. A Cavalo de Ferro publicou As Janelas Defronte e A Neve Estava Suja, dois entre largas dezenas de romances que Simenon escreveu sem ter o inspector Maigret como protagonista. Além de duros, são sombrios, o que seria de esperar de um escritor belga. São romances que estão em linha com o clima que se faz sentir por aqui. Vou aguardar dias mais luminosos para os ler. Simenon, seja dito, é um grande escritor, um dos maiores em língua francesa, língua em que existem grandes escritores, pois um escritor só existe na língua em que escreve. Aqui, porém, já estou a especular. O homúnculo que vive em mim corrigiu-me de imediato: não estás a especular, estás-te a armar aos cucos. Esta é uma expressão que corria muito por aqui, não sei se ainda corre, e também não sei se é um mero regionalismo ou se todo o país está disponível para atirar à cara de alguém: estás a armar-te aos cucos. É provável que seja um nacionalismo. Seja como for, o homúnculo, meu inimigo, conhece-a bem.
sábado, 12 de abril de 2025
sexta-feira, 11 de abril de 2025
Dos simples e da sua simplicidade
O mundo exterior invade-me o escritório: o grupo musical da escola secundária vizinha teima em ensaiar música dos anos sessenta e setenta do século passado, enquanto um bando de adolescentes ocupa o tempo, com o vozear que lhe é próprio, antes de entrar para o instituto de línguas. Não sei o que é pior; talvez nenhuma das coisas seja um mal em si mesma — só a sua conjugação se torna um pouco disruptiva. Num dos textos sobre cultura, Antonio Gramsci diz, não sem cândida inocência: a filosofia da práxis não tende a manter os «simples» na sua filosofia primitiva do senso comum, mas, pelo contrário, a conduzi-los a uma concepção superior de vida. Polemizava com aquilo que seria a filosofia católica, a qual, depreende-se, desejaria manter os simples na sua simplicidade. O equívoco de Gramsci reside no pressuposto de que os simples querem abandonar a sua simplicidade e o doce conforto do senso comum. Gramsci morreu em 1937, e a denominada filosofia da práxis ainda não tinha feito a prova do tempo. Talvez hoje Gramsci tivesse menos ilusões. Pensa-se sempre que a simplicidade dos simples — para nos mantermos fiéis ao jargão do pensador e político italiano — se deve a uma estratégia dos opressores, da qual a filosofia católica seria um instrumento. Quando as sociedades se abrem à possibilidade de os simples saírem da sua simplicidade, são eles que gritam contra quem os queira tirar desse lar, onde se sentem, verdadeiramente, chez-soi. Quem ler com atenção a célebre Alegoria da Caverna percebe que já Platão tinha percebido isso. Ora, Nietzsche, na sua relação intempestiva e destrambelhada com o cristianismo, disse que este não passava de um platonismo para o povo — e nisso terá alguma razão. Isto permite afirmar o seguinte: se Platão percebeu que o desejo dos simples é manterem-se na sua simplicidade, então também o cristianismo o compreendeu. Corolário: a filosofia católica percebeu muito melhor o desejo dos simples do que a filosofia da práxis. Os simples não desejam uma concepção superior de vida, mas ouvir umas músicas do seu tempo de juventude ou deixar o som vibrar com vigor nas gargantas, se vivem na simplicidade da adolescência. Tenho de ir com o meu neto ao parque infantil.
quinta-feira, 10 de abril de 2025
Trovoada
Também os deuses envelhecem. Quando novos, a sua ira é terrível. Envelhecidos, resmoneiam entre dentes, numa rezinga a que nem os mortais dão atenção. Refiro-me, claro, a Zeus — ou, em versão latina, a Júpiter — o deus dos deuses. Quando eu era mais novo, tenho ideia de que havia por aqui trovoadas épicas. Relâmpagos, raios e coriscos — tudo acompanhado com o ribombar exaltado dos trovões. Era uma ira magnífica, que só acabava quando as nuvens vertessem, em abundância, uma água também ela irada, que tornava as ruas num rio revoltoso. Oiço agora o rezingar de Zeus, mas uma coisa débil, sem energia, nada de relâmpagos. Apenas uma atmosfera abafada, calor ainda a esta hora, os corpos a pedir uma bela trovoada, uma grande chuvada que limpasse os corações e as mentes — poluídas que andam dos negócios da vida, pois, como se sabe, não há coisa mais poluente do que a vida. Uma possibilidade, porém, é que a antiga ira dos imortais seja mais imaginada do que real. Será que as antigas trovoadas seriam tão épicas quanto me parecem agora? Juraria que sim. Fecho os olhos e ainda as oiço e vejo. Magníficas. Todavia, o mais sensato será não jurar, para não faltar à verdade. Está um crepúsculo arrastado, um céu cinzento, uma noite que não cai. O mundo está fora dos eixos, e não é minha missão colocá-lo no lugar, nem endireitar tortos. Sou um herói sem causa, nem vilões para enfrentar, nem gesta para me elevar à glória. Comento trovoadas com recurso à mitologia, mas não descendo dos deuses. Não sou um Aquiles — mas também não tenho o calcanhar dele. Terei os meus, claro.
quarta-feira, 9 de abril de 2025
Procrastinar
Procrastino. Que palavra esta. Olho para ela e decido tentar perceber de onde vem. Vou consultar um dicionário, para que me informe acerca da sua origem ou, melhor, da etimologia do verbo procrastinar. É dada a informação de que vem do latino procrastināre, com o mesmo significado. Decepção. O próprio dicionário procrastinou o meu esclarecimento. Eis um sinal importante. Talvez a procrastinação não seja um problema meramente humano, mas que toda a realidade procrastine, a começar pelos dicionários. Não posso procrastinar a aquisição do sentido etimológico do verbo que traduz o meu estado em relação a um conjunto de coisas que tenho de fazer. Recorri a uma conversa com um bot. Foi muito mais esclarecedora. O prefixo latino pro indica “para diante”, “em direcção ao futuro”. Por outro lado, cras é um advérbio que significa “amanhã”. A isso adiciona-se o sufixo -ināre, comum nos verbos da primeira conjugação, que forma verbos de acção. Sinto-me, relativamente, esclarecido. A minha inclinação procrastinadora significa a acção de atirar (algo) para amanhã. Contudo, sinto-me apanhado numa armadilha: eu não quero agir, não quero praticar uma certa acção, mas, mesmo assim, pratico a acção de enviar qualquer coisa para o futuro, para amanhã. Uma injustiça. O que eu queria era não agir de qualquer forma. Haverá, no meu desejo, uma forma de pensamento mágico: em vez de enviar para amanhã a acção objecto da minha procrastinação, aquilo que em mim ressoa é o desejo de que isso, pura e simplesmente, não exista. A essência da procrastinação não está em adiar para amanhã, mas no desejo de que qualquer coisa não tivesse vindo à existência. Por hoje, chega de contributos para esclarecer a verdade que se esconde nas palavras que estão disponíveis para uso comum. Procrastino novos esclarecimentos.
terça-feira, 8 de abril de 2025
Ensaio sobre a estupidez
Não tenho a certeza, mas, não poucas vezes, sou assaltado pela crença de que a eliminação da estupidez na espécie humana seria um contributo assinalável para que todos pudéssemos viver uma vida mais decente. A incerteza nasce de gente inteligente – ou mesmo muito inteligente – ser mais capaz de causar problemas graves aos outros do que gente idiota. No entanto, podemos pensar que alguém inteligente, ou muito inteligente, pode ser um rematado estúpido, pois a maldade, em última análise, não deixa de ser uma estupidez, uma enorme estupidez. Contudo, a maldade praticada por estúpidos destituídos de um módico de inteligência é uma cruz difícil de suportar pela espécie humana. Na maldade proveniente de uma mente brilhante, por terrível que seja, há ainda um lado estético, tal como acontece num lance brilhante de um qualquer desporto. Na maldade originada apenas pela limitação da capacidade neuronal, só há desolação. Agora que há empresas que conseguem, através de manipulação genética, trazer à vida espécies que se encontravam extintas há milhares de anos, talvez se possa conceber uma manipulação do genoma humano com a finalidade de eliminar a estupidez — tanto a derivada do baixo uso neuronal, como a resultante de uma elevada qualidade do trabalho dos neurónios. Perguntar-se-á a razão deste discurso. Bem, não é difícil: basta olhar para o estado do mundo. Outra razão: não me ocorreu mais nada.
segunda-feira, 7 de abril de 2025
Conjugações
A minha mente, cujo controlo estou longe de possuir, é assaltada, não poucas vezes, por associações que me deveriam envergonhar. Se não a mim, ao menos a ela. Essas associações ocorrem-me sem que eu faça alguma coisa para essa ocorrência. Sofro-as. Há pouco dei com essa tal mente a que chamo minha – mas será? – a associar o Ludwig Wittgenstein do Tractatus Logico Philosophicus com o James Joyce de Finnegans Wake. Como é possível? Perguntei-me, não sem condescendência e com alguma falta de paciência. Wittegenstein no tempo em que escreveu o Tratactus devia andar a treinar para asceta. Asceta da linguagem. Limpar toda a linguagem dos seus pecados mortais e mesmo dos veniais. Esse seu tormento com as acrobacias da linguagem que diz coisas para as quais não encontramos referentes sensíveis, resume-se numa frase famosa acima de todas as frases famosas do filósofo austríaco: Acerca daquilo de que não se pode falar, tem de se ficar em silêncio. Caso levasse em consideração o imperativo wittgensteiniano, não abriria a boca e os meus dedos não tocariam nas teclas do teclado para escreverem aquilo que escrevem, coisas sem referência empírica no mundo. E o Finnegans Wake? Bem, esse é o contrário. Poderíamos, a partir dele, dar uma nova versão da última frase do Tratactus: Acerca daquilo de que não se pode falar, tem de se gritar. Sim, eu sei, o grito é deselegante, basta ver a cara da personagem de O Grito, do Edvard Munch. Dizem que ele está aterrorizado ou coisa que o valha, mas apenas está numa pose deselegante, a gritar qualquer coisa que devia ser calada, mas que ele – e eu estou de acordo com ele – julga ser importante ser gritada ao mundo. O Finnegans Wake do Joyce é O Grito do Munch em forma de literatura, centenas de páginas para contrariar o austríaco. Ou será para estar de acordo com ele? Isto é o que se passa na minha mente, quando foge à minha vigilância, o que é norma. Sonhei – um dia – em ter uma mente domesticada, uma mente à minha medida de animal doméstico, mas a cabra – que me seja desculpada a queda na linguagem baixa – furta-se ao açaime, pensa o que não deve e conjuga o inconjugável e assegura-me, pomposa, que tanto um como o outro estão mais próximo do que eu penso. Isto é a minha mente a atirar-me à cara a ignorância infinita que me pertence.
domingo, 6 de abril de 2025
Da beleza
Hoje ainda não saí de casa. Há pouco, fui espreitar a Sá Carneiro, mas nem reparei no que se passava naquela avenida. Os olhos ficaram retidos no friso das orquídeas. Durante um tempo, apenas cinco estavam floridas. Quatro delas eram brancas. Não sei se este avanço – também é pujança no porte – associado ao branco é alguma antífona em honra da pureza, talvez uma proclamação sobre a eminência daquilo que não está maculado. Esta é uma linguagem esotérica que os dias de hoje não compreendem, mas isso também não será de admirar. Não cabe aos dias terem compreensão – nem os de hoje, nem os de ontem, ou de amanhã. Era isto que me ocorria enquanto observava com atenção o lento florir das outras, das que são manchadas de múltiplas cores, e concluía que o belo tanto reside no que está puro como no que está maculado, e a beleza é a coisa mais terrível que existe ao cimo desta terra. Ela toca em qualquer coisa que nos desconserta. Por isso, temos de fazer uma longa aprendizagem sobre o modo como lidar com ela. Facilmente lidamos com o bem, o verdadeiro e o justo, mesmo que façamos o mal, sejamos contumazes na mentira e agentes da injustiça. Com o belo, porém, ficamos fascinados, e esse fascínio mergulha-nos nas profundezas obscuras que habitam no fundo da consciência, naquele mar revolto a que se costuma dar o nome de inconsciente, que nos empurra tantas vezes para o mal, a mentira e a injustiça. Na beleza não há utilidade. O bem, o verdadeiro e o justo são úteis, mas a beleza não pertence ao jogo da utilidade. Por isso, será abissal, provoca-nos e afasta-nos. Nunca sabemos se o que sorri nela é a vida ou a morte.
sábado, 5 de abril de 2025
Uma chamada matinal
Acordado até às quatro da manhã. Pouco passavam das oito, quando chega uma chamada telefónica. Perdido, pego no telemóvel. Era o meu neto, em chamada-vídeo, à revelia dos pais, a perguntar-me se estava em Lisboa. Nem percebi. Não, não estou, respondi quando compreendi o ele estava a dizer. O avô está no escuro, ouvi. Acendi a luz do candeeiro. Lentamente, fui chegando à realidade. Era só para saber – informou – se o avô quer ir ao torneio de râguebi. Não devo ter pensado coisas agradáveis, mas disse que estava longe. Anuiu, depois mudou de conversa. Acabou a ler-me qualquer coisa de um livro da escola, mas informou-me que o texto tinha letras que ainda não tinha dado. A conversa prolongou-se até o pai o mandar despachar para ir ao torneio. Decidi seguir-lhe as pisadas e levantei-me. Não para ir a qualquer torneio, mas para ir fazer umas compras, antes que o hipermercado se enchesse de clientes ansiosos. Esta é uma história moral. Os netos têm um poder de dissensão sobre o mau humor dos avós poderosíssimo. Ao ver a cara dele no telemóvel, nem me ocorreu protestar, quanto mais ficar irritado. Quando declinamos, eles são a nossa continuidade e isso, descobri-o, é consolador. Descobri outra coisa. Que essa continuação por terceiros é muito mais justa e melhor do que uma continuação indefinida pelo próprio. Pode-se dizer que não tenho outro remédio. É verdade, mas não é apenas uma mera conformação com a natureza das coisas. É conceder que há sabedoria nessa natureza e acabar por amá-la, não porque seja um poder cujos decretos são irremissíveis, mas porque dela se desprende uma luz que ilumina o mundo.
sexta-feira, 4 de abril de 2025
Sobre um rio
Existirá — mas não estou certo — uma incompatibilidade entre a voz poética e a voz filosófica. Eliot, não muito longe do início de As Dry Salvages, escreve: O rio está dentro de nós, o mar está a toda a nossa volta. Bem, não foi isto o que escreveu, quem o escreveu foi o tradutor. Ele escreveu: The river is within us, the sea is all about us. Dito isto, o poeta continua, como se tudo fosse uma evidência que ele, ao escrever, traz à luz para que todos vejam. O filósofo será cego, pois, de imediato, ficará preso na proposição “O rio está dentro de nós.” Meditaria sobre como ele teria entrado em nós ou se, por acaso, teria nascido em alguma parte esconsa do nosso ser. É um filósofo que já tem um apetite de cientista. Medita, mas inclina-se para a observação empírica — o que é um risco tremendo, pois, se insistir nessa inclinação até que se dê a queda, pode descobrir que não há nenhum rio que nos habite, que a proposição de Eliot tem uma natureza metafórica: nenhum rio pode estar dentro de nós. Contudo, se nos observarmos, descobrimos que em nós está qualquer coisa líquida, fluida, qualquer coisa que anseia pela foz, pelo mar onde se dissolve, fundindo águas com águas. O rio pode ser o desejo que nos habita. O desejo está dentro de nós, e o seu objecto está todo à nossa volta. Mas não foi isso que Eliot quis dizer. O que ele quis dizer foi apenas: The river is within us, the sea is all about us. Caso quisesse ter escrito outra coisa, tê-lo-ia feito. Escreveu que o rio está dentro de nós e, depois, esqueceu-se, durante toda a longa estrofe, desse rio, mergulhando no mar. Talvez o rio fosse o próprio poeta que desagua no poema. Isto, porém, são especulações ociosas de quem está a despedir-se da semana útil com as inutilidades que profetizam o fim-de-semana. A luz solar rompeu o cerco das nuvens e os raios crepitam no telhado do pavilhão da escola aqui ao lado. São pequenas explosões invisíveis, em número incontável, mas cujo efeito reverberante atinge os meus olhos e faz saltar em mim uma pequena faísca de júbilo, apesar do troar inquieto do vento nas persianas. Nas varandas do prédio em frente, uma assembleia de anjos discute, mas não consigo perceber o que dizem. O discurso tem um ritmo que anuncia a eternidade, e a voz que o pronuncia é sempre grave. São anjos barítonos e anjos baixos, nenhum deles é tenor. Sabem que eu estou a vê-los, mas não se importam. O assunto que tratam não me diz respeito e, como tal, não consigo perceber as suas palavras; jorram das suas bocas como se fossem rios muito antigos à procura de um mar profundo que as receba. Tudo isto, porém, é falso. Os anjos estão lá e discutem, mas não existe nenhum prédio em frente.
quinta-feira, 3 de abril de 2025
Uma autobiografia
Estava eu em estado de sonolência, quando ouvi a voz do homúnculo que habita dentro de mim a declamar um imperativo: devias escrever uma autobiografia! Uma autobiografia, eu? Sim, tu – continuou o desprezível homúnculo – e desceu à explicitação: devias escrever a autobiografia de um centauro. Respondi-lhe que não era um centauro. Um riso cavernoso – riso próprio dos homúnculos desprezíveis que habitam no desvão da minha mente – ressoou nos interstícios do meu ser, caso eu tenha um ser e este possua interstícios. A quem o dizes, retrucou ele. Bem sei, falta-te tudo para seres um centauro. Falta a parte de cavalo e a parte de homem. Não passas de uma aparência destituída de essência, um vazio recoberto por uma pele opaca – mas, por isso mesmo, podes escrever a biografia de um centauro. Quem é nada pode imaginar ser qualquer coisa.» Discordei: uma contradição na lógica do homúnculo. Se sou nada – e isso posso aceitar –, então não tenho experiência de nada. Falta-me a matéria para a biografia, mesmo para inventar uma biografia falsa. Ficou furioso, soprou como um gato assanhado, mas não me amedrontei. Até que, cansado de silêncio, atacou: Tu, que escreves tanto – uma presunção dele, pensei – sem assunto, sem matéria para escrita, estás agora com pruridos? Que diferença há entre escreveres a autobiografia de um centauro e este texto? Deixei o silêncio pairar, enquanto ouvia o tamborilar da chuva no vidro da janela. São insuportáveis – ouvi –, os limites da tua imaginação e a pequenez do teu entendimento. Se escreveres a autobiografia de um centauro, podes tornar-te um. As pessoas que escrevem autobiografias – continuou – fazem-no não porque tenham sido aquilo que narram, mas para virem a sê-lo. Anuí, mas perguntei: Por que raio hei-de eu querer ser um centauro? Aí, voltou o riso cavernoso. Se fosses um centauro, ao menos eu podia deslocar-me a galope, em vez de ir ao ritmo desses teus passos trôpegos. Uma razão como qualquer outra, pensei.
quarta-feira, 2 de abril de 2025
Poesia e prosa
Numa brevíssima introdução à sua obra poética, A uma hora incerta, Primo Levi diz que o impulso para se exprimir em versos está presente em todas as civilizações, mesmo naquelas que não têm escrita. Admite que também ele, a uma hora incerta, cedeu a esse impulso. E acrescenta: ao que parece, está inscrito no nosso património genético. E como outros, reconhece que a poesia nasceu antes da prosa. Somos levados a pensar, então, que a nossa natureza é poética e que a prosa nasce de uma reflexão sobre a poesia. Podemos estabelecer uma analogia com as teorias do contrato e a instauração da sociedade política. O estado de natureza selvagem – impulsivo – e o estado civil como resultante de um contrato reflexivo entre os homens. Contudo, esta interpretação das teorias do contrato é ingénua. As teorias do contrato não estabelecem uma linha histórica, onde, num primeiro momento, viveríamos no estado de natureza – o homem lobo do homem – e, perante a falência da vida humana, chegaria um segundo momento, onde os homens estabeleceram o contrato. Estado de natureza e estado civil são duas possibilidades sempre presentes nas comunidades humanas. Por norma, vivemos no estado civil, mas, se o contrato entre nós falha, caímos no estado de natureza. Voltando a Primo Levi. A ideia de a poesia ser anterior à prosa será falsa. Ambas são possibilidades sempre presentes – e presentes desde sempre – no homem, pois nascem de dois impulsos que estão, por certo, inscritos no seu código genético: o de exprimir-se e o de comunicar. Mais, entre eles não há uma oposição, mas uma linha contínua, onde não existe fronteira clara entre a expressão poética e a comunicação prosaica. Como na organização das comunidades humanas, o estado de natureza e o estado civil estão sempre presentes, o mesmo se passa na linguagem: poesia e prosa são possibilidades sempre presentes. Há, porém, uma diferencia essencial. Passar do estado civil ao estado de natureza é uma queda de funestas consequências, mas transitar da comunicação prosaica para a expressão poética é, não uma queda, mas uma elevação, o sinal de um desejo de ascensão.
terça-feira, 1 de abril de 2025
Do começo
Tinha três começos possíveis para este texto. No primeiro, em louvor da tradição, falaria dos adolescentes que lá em baixo jogam às escondidas, parecendo-me o jogo sem inovações relativamente ao tempo em que eu o jogava. No segundo, em louvor da trivialidade, começaria com o facto de estarmos em Abril, com a referência às águas mil, para prosseguir com o Dia das Mentiras, pois a minha reserva de banalidades e lugares-comuns é inesgotável. No terceiro, em louvor da autocomiseração, descreveria a tentação que tive, ao datar no Word este post, de escrever 1 de Abril de 2024. Sim, preocupou-me a associação entre o mês quatro e o ano de 24. Não creio que seja um acto falhado, explicável pela teoria do Dr. Sigmund Freud, mas de um deslize neuronal que não me agrada, e os motivos do desagrado não são estéticos. Acabei por não começar com nenhum deles, mas pelo anúncio de que os tinha. Comecei com uma afirmação de propriedade. Pelo verbo ter. Melhor, o verbo ter permitiu-me manifestar uma tenência. Há muitas pessoas que têm a angústia do começo. Estão piores do que eu. Também elas têm qualquer coisa, a angústia, mas eu tenho os começos. Um dia, talvez em breve, poderei montar um negócio de venda de começos, criar uma start-up. Venderia começos para cartas de amor, mas já ninguém escreve cartas de amor, nem sequer emails ou SMS. Enviam um emoji, e para isso não tenho começo. Poderia oferecer – no mercado, claro – começos para cartas de condolências. Caíram em desuso, um azar. Comercializaria começos para cartas comerciais, o que estaria adequado. A concorrência, porém, é muito forte. O ChatGPT faz isso melhor do que eu e pro bono. Poderia mercadejar começos para grandes romances ou poemas sublimes. A prospecção de mercado indicou-me que não teria comprador. Ainda pensei em começos para tratados de Física, de Neurologia ou para preâmbulos de decretos-lei. O meu consultor financeiro dissuadiu-me; se for para inícios de horóscopos, talvez se arranje qualquer coisa. Desisti. Resta-me guardar os começos para mim, antes que a angústia me apanhe e não consiga chegar ao fim do texto porque não lhe descobri o começo.
segunda-feira, 31 de março de 2025
Um dia com a Primavera
Saí de casa, de manhã, vestido para enfrentar a Primavera. Não falhei. Estava mesmo na rua, esperava-me. Olhou-me nos olhos e, se nos meus existia uma vontade de guerra, os dela eram habitados pela mais pura benevolência. Isso dissuadiu-me e, de imediato, me dispus a um pacto. Andámos juntos o dia inteiro. Não sei se fui boa companhia, mas ela foi excelente. Custou-me, ao voltar para casa, deixá-la na rua. Convidei-a, mas recusou sem acinte. Que não podia entrar, uma estação de ano, disse-me, habita na rua, é um sem-abrigo, acrescentou, rindo-se. Depois, referiu, como por acaso, que não sabia se ia estar nos próximos dias. Também ela tem afazeres fora de portas e é possível, disse, que vá primaverar para outras paragens. Não comentei, mas, chegado a casa, fui ao site meteorológico. A vida é o que é. Uma boa amizade e logo ela tem de ir dar uma volta sabe Deus para onde. No seu lugar, haverá chuva e mais chuva, numa saudade invernosa. Não se desse o caso de ele estar morto, era com o Inverno que iria conflituar. Assim sendo, resta-me aceitar o que vier, sem protestar nem reivindicar seja o que for. As estações do ano são deusas volúveis e a sua vontade depende de um arbítrio que nem os meteorologistas conhecem.
domingo, 30 de março de 2025
Um domingo mais
Saí depois de almoço. A cidade estava iluminada por um sol dominical. Tudo nela cheirava a um domingo de província. Senti-me em casa, pois é na província que os provincianos se sentem chez-soi. A expressão francesa foi para dar um ar de culto. Uma aparência, é mais exacto do que ar. Movemo-nos no mundo ostentando as aparências que construímos. O que é uma aparência? Eis uma pergunta ontológica. Qual o ser da aparência? Ora, o ser da aparência é aparecer. Aparecemos como uma persona – uma máscara – envolta numa história que não cessamos de contar, de inventar, de alterar. Não fora o caso de eu ser finito, a história que inventaria sobre mim seria infinita. Sempre a contar uma coisa diferente da anterior, a reescrever a biografia, para que ela fosse cada vez mais exacta, isto é, para que ela fosse cada vez mais uma melhor falsificação. Há falsificações tão boas que aparecem aos olhos dos especialistas como verdadeiras. O grande falsificador da sua biografia é aquele que torna a falsificação verdade. Não devia pensar estas coisas num domingo de província, mas o pudor que me devia conter sumiu-se. Uma coisa que acontece muito neste mundo, o sumiço das coisas. Elas estão aí, muito seguras de si, muito exuberantes na sua dimensão ontológico e, como por encanto, evolam-se, perdem o ser. Foi o que aconteceu ao meu pudor. Isto está de acordo com a ordem do mundo. O pudor perdeu a boa imprensa. Quem, nos dias que correm, acha dignidade no pudor? Ninguém. Perdi-o, também, e agora falo de coisas da minha biografia, embora, desconfie que não tenho biografia. Porém, o facto de ter usado a expressão chez-soi e ter-me confessado um provinciano – isto é, um homem sem mundo – poderá ser um indício forte que tenho uma biografia, embora falsa, o que é a mais verdadeira das biografias. Os domingos na província – mas também nas capitais – dão nisto.
sábado, 29 de março de 2025
Ir ao teatro
Mais logo, depois de jantar, irei ao teatro. Confesso que o apetite é nulo. Nem sei o nome da peça. Por vezes, temos obrigações, e as obrigações funcionam como um imperativo: obrigam. É o caso. Não que houvesse qualquer problema em faltar a essa obrigação, mas seria deselegante. Na verdade, trata-se de uma obrigação estética. Evitar ser deselegante com terceiros. Há a possibilidade desses terceiros nem darem por isso, mas é tarde, para mudar de ocupação neste sábado à noite. Sempre podia ficar em casa e dormitar em frente ao computador. Era uma opção razoável, mas menos elegante. Não tenho qualquer conflito com a arte dramática. Pelo contrário. Talvez um sábado de Primavera não seja o mais indicado para assistir a uma peça, ainda por cima a uma peça de que não sei o nome, tão pouco o autor. Não, não é Shakespeare, nem Sófocles ou Eurípides. Nenhum clássico antigo ou moderno. Nenhum clássico contemporâneo. Nenhum contemporâneo que possa tornar-se um clássico. A partir de certa altura da existência, comecei a cortar os laços sociais, o que me trouxe alguns benefícios, como a diminuição do número de eventos a que teria de ir por boa educação. Como se prova pela noite de hoje, esse corte foi apenas parcial. Serei um misantropo? Não. Não alimento qualquer ódio à humanidade, apenas uma consideração realista da sua natureza. Onde a aprendi? No lugar mais indicado para fazer essa aprendizagem: em mim. Em mim, vejo os outros. Nem comigo me desavim, ao contrário do que aconteceu com Sá de Miranda, mas olho-me com condescendência e é esse olhar condescendente que espalho sobre a humanidade em geral, enquanto penso que a realidade é aquilo que é e não aquilo que desejo. Fico sempre espantado quando oiço alguém dizer que não queria ser outra coisa. Penso longo que sofre de um défice acentuado de imaginação. Eu não sou aquilo que desejo, mas apenas o que sou. O meu desejo é infinito e o meu ser é finito. E é por causa dessa finitude que logo vou ao teatro.
sexta-feira, 28 de março de 2025
Cansaço de santo
Caso não se trave o ânimo primaveril, não tarda e estamos em pleno Verão. Já hoje tive calor e pensei que me tinha enganado na roupa. O que me perturba, porém, é S. Pedro. Foi-lhe atribuída a função de regular o clima, mas ele está cansado da tarefa. Constou-me que já se quis reformar, mas foi-lhe recusada a aposentação. O cargo é vitalício, disseram-lhe. E se um santo conquistou a vida eterna, então o seu cargo é para toda a eternidade. Talvez tenha ficado atarantado com a ordem das coisas e começou a descurar a função. Há quantos anos desapareceu aquela idílica regularidade com que as estações coincidiam com o calendário? Há tanto tempo, que nem eu já me lembro dela. Parece, por outro lado, que é imune a preces e procissões para restaurar a velha ordem. Não quer ser acusado de corrupção e participação em negócio ilícito. Não cederá, por mais que o tentem demover através festas e orações. Consta que passa anos e anos a olhar cá para baixo, tentando reconhecer o sítio onde nasceu, onde viveu, onde conheceu o Mestre. Sofre de nostalgia, disseram-me. Não quer saber se o Verão chega na Primavera ou no Inverno. Queria reformar-se e cultivar, sem preocupação, as memórias, antes que desapareçam, pois mesmo para um santo mergulhado na vida eterna, as memória são passageiras.
quinta-feira, 27 de março de 2025
Nada
quarta-feira, 26 de março de 2025
De vício a virtude
Está confirmado. Estamos na Primavera. O tempo hesita entre o frio e o calor. Isso tem repercussão sobre o meu corpo, mas guardo para mim as dores, pois são mais desagradáveis do que dolorosas. Estive a ouvir o antropólogo e historiador francês Emmanuel Todd sobre a relação entre as formas de família e os regimes políticos. Estes são, de alguma maneira, uma emanação do modo como as famílias se organizam. Estas transportam em si valores culturais e políticos, que se manifestam na organização dos Estados. Todd põe em causa a ideia de um regime universal, isto é, idêntico em todos os lados. Quando determinadas potências tentam transferir regimes políticos para outras paragens, por norma não são bem sucedidas, pois não têm em conta aquilo que ele denomina por inércia antropológica. Bastava esta expressão para ter valido a pena ouvir o antropólogo francês. É verdade que temos também uma mobilidade antropológica, mas a inércia talvez seja mais persistente. Quando era lamentavelmente jovem e verde, habitava-me a mobilidade. Na adolescência, esse amor à mobilidade centrava-se nos grandes-prémios de Fórmula 1, nas míticas 24 Horas de Le Mans ou nas 500 milhas de Indianápolis. Era a minha forma de amar a mobilidade, sentado em frente ao televisor ou a ler as reportagens num jornal ou revista da especialidade. Isso, a mobilidade, teve, numa certa altura, uma tradução política, coisa que não vem para o caso. Olhando a partir dos dias de hoje, constato que as corridas de automóveis não me interessam há décadas, nem a tradução política da mobilidade, mas a inércia antropológica foi tomando conta de mim. Não, totalmente. Ainda caminho e, acima de tudo, mexo os dedos para digitar estes textos, mas a palavra inércia soa-me cada vez mais a virtude e cada vez menos a vício.
terça-feira, 25 de março de 2025
Um demónio que é um daimon
Alemão é uma das muitíssimas coisas que ignoro. Não vou, porém, escrever sobre o oceano infinito da minha ignorância, mas da minha possível adicção à compra de livros. Não sei bem a razão, mas tomei conhecimento da existência de um poeta alemão de nome Durs Grünbein. Agradou-me o que soube dele. Faço umas pesquisas e decido comprar – num livraria online de livros usados – cinco das suas obras. Todas em alemão. A minha expectativa é de ir traduzindo os poemas com recurso a essa demónio dos tempos modernos denominado inteligência artificial. A verdade é que a tarefa nem me parece estar a correr mal. Entre mim e o tal demónio estabelece-se um diálogo frutuoso que me permite não apenas compreender os poemas, mas chegar a traduções que me parecem interessantes. O demónio faz apenas uma primeira tradução literal, meramente funcional. A partir daí funciona como uma espécie de dicionário-gramática de largo espectro, com o qual discuto sobre o sentido das palavras e dos versos. O primeiro livro que estou a enfrentar denomina-se, em português, Porcelana. Poema sobre a queda da minha cidade. Os primeiros dois versos do primeiro poema dizem: Para quê lamentar-se por nascer tarde? Há muito desaparecera / A cidade-natal, amigo, quanto a tua pequena pessoa chegou. A cidade é Dresden. A porcelana do título remete de imediato para a fragilidade das coisas belas. A beleza de Dresden desaparecera dezassete anos antes do poeta nascer. Eclipsara-se nos bombardeamentos de 1945. A beleza antiga de Dresden é irrecuperável, como é a de Lisboa anterior ao terramoto de 1755. Contudo, há belezas que estão perdidas em línguas que nos são estranhas, mas os tempos modernos que trouxeram os aviões e os bombardeamentos aéreos também trouxeram esse demónio – melhor, esse daimon (δαίμων) – que nos permite, com paciência e humildade, encontrar a beleza que está enterrada nos escombros de uma língua que desconhecemos, pois qualquer língua desconhecida não passa, para o ser humano, de escombros de uma comunicação que se distorceu.
segunda-feira, 24 de março de 2025
Animal ritual
Somos animais ritualistas. Talvez eu esteja a fazer uma generalização precipitada. Deveria antes afirmar: eu sou um animal ritualista. Dei por mim a cumprir um ritual que alimento há muito. Retiro com todo o cuidado, da contracapa de um livro, a etiqueta com o preço e colo-a no interior da badana da capa dianteira. Caso não exista esse prolongamento da capa e da contracapa, colo-a no verso da capa. Por que razão faço isto? Não faço a mínima ideia. Talvez o tenha feito uma vez por acaso e, sem motivo aparente, repeti o feito até que se tornou um hábito. Irrito-me, se a etiqueta se rasga e fica sem préstimo para a transferência. Poderia dizer que é para memória futura, para um dia poder comparar o preço dos livros, mas isso não faz sentido, pois cada vez será mais curto esse futuro e a comparação exigiria um cálculo da inflação entretanto ocorrida, o que me parece uma tarefa inútil. Se a minha generalização não for precipitada, se, de facto, formos animais dispostos para o ritual, talvez pudéssemos trocar a tradicional definição de homem como animal racional por homem como animal ritual. Somos mais propensos a rituais do que ao uso da razão. Se eu fosse um verdadeiro animal racional, evitaria escrever estes textos, cuja razoabilidade deixa muito a desejar. Mas não, eu sou um animal ritual. Habituei-me a escrevê-los. E todos os dias – ou quase – entrego-me ao rito. Escrevo textos como transfiro etiquetas da contracapa para o interior da badana da capa de um livro. Sem razão. Claro que o dr. Sigmund Freud não estaria de acordo comigo. Diria que sou movido por causas inconscientes. Um trauma de infância que me leva ora a escrever, ora a transferir etiquetas. Talvez ele tenha razão, mas não me ocorre qualquer trauma infantil. Claro, que não, diria o ilustre médico vienense, o trauma reside no fundo do inconsciente, está guardado no mais inacessível que há em si. A prova que o trauma existe, continuaria, são os seus rituais aparentemente sem sentido. Eu, então, olharia para o dr. Freud e no meu olhar haveria piedade e um clarão zombeteiro. E calava-me.
domingo, 23 de março de 2025
Meditações climáticas
Já em casa, olho pela janela e penso que a Primavera chegou hoje. Algumas nuvens pairam no céu, mas a luz solar cai, ainda indecisa, sobre a cidade. É esta indecisão que marca as estações benévolas. O Inverno e o Verão pautam a sua existência por uma dogmática contumaz. São o que são, afirmam. Não quero dizer que sejam sempre fiéis a si mesmos, mas são-no aos dogmas climáticos que os orientam. Isso acontece com todos os dogmáticos. São mais fiéis aos dogmas do que a si mesmos. Não me quero desviar do assunto. A Primavera – também o Outono – são marcados pela indecisão, por uma hesitação estrutural que os faz balançar entre Inverno e Verão. Meditam longamente sobre a sua natureza, mas nunca sabem muito bem o que são. Essa ignorância é benfazeja, uma graça benévola para os seres humanos. É uma douta ignorância. Primavera e Outono sabem que não sabem, enquanto o Inverno e o Verão, apesar de ignorantes, estão convencidos de que são sábios e por isso geram um clima cheio de moléstias. Nos quase quinhentos quilómetros que fiz hoje, apanhei, aqui e ali, Inverno, mas a generalidade da viagem foi feita sob os auspícios da Primavera. Talvez devesse falar de outra coisa, mas não me ocorreu nada. Talvez um protesto contra os gritos que as crianças emitem no parque infantil aqui ao lado, mas isso seria injusto. Se não gritarem agora, movidas por um entusiasmo autêntico, quando o poderão fazer? Nunca? Quanto o seu entusiasmo for já apenas uma encenação? Também elas têm direito a festejar a indecisão da Primavera, neste primeiro dia em que ela chega, ainda um pouco estremunhada. Como eu.
sábado, 22 de março de 2025
Pulgões saltitantes
Quase 500 km debaixo de chuva para ver o neto jogar rugby. Não num jogo importante, pois nada idade dele jogos são jogos, sem classificação de importância, mas naqueles torneios que servem de convívio entre criançada de diversos países. Vindo ontem, hoje vi dois, dos três jogos – o primeiro foi demasiado cedo. As partidas são de 15 ou 20 minutos. A equipa portuguesa a que ele pertence, o CDUL, está a milhas de distâncias das espanholas com que jogaram. Os sub-oito espanhóis são mais altos, possantes e tecnicamente muito evoluídos. Os portugueses pareciam pulgões saltitantes perante miúdos bem mais adultos no jogo. Num dos jogos, a certa altura, o meu neto, nos seus seis anos e meio, é abalroado por um adversário bem mais alto e muito mais pesado. Conseguiu parar a jogada, mas nem percebeu o que lhe aconteceu. Levantou-se, choramingou, foi substituído e passados uns minutos entrava de novo. Pensei que tudo aquilo lhe fazia muito bem. Aprender a lidar com a dor, a resistir às contrariedades. Isto para além do convívio com colegas e adversários, bem como com as regras que qualquer desporto impõe, e que o rugby não é excepção. Pelo contrário. Depois, ele desapareceu com a equipa e os avós e os pais foram tratar da vida sem rugby. S. Pedro foi benévolo com os jogadores. Numa Espanha inundada, não enviou chuva durante toda a competição. Reservou o seu ímpeto lacrimoso para a tarde. Em vez de estar por aí a passear, estou confinado a escrever, enquanto oiço a avó a falar como uma outra neta, indicando-lhe não sei o quê sobre a escola, esse martírio que a espécie humana inventou para massacrar as novas gerações, com a esperança – infundada, diga-se – de as civilizar, como se entre escolaridade e civilidade existisse uma relação de causa-efeito. Não há. Haverá uma correlação, mas talvez nem seja muito forte. Espero que a chuva dê tréguas, pois o que me apetece é deambular por aí, sem destino, ao sabor da gramática da cidade. S. Pedro tem piedade destes portugueses – não são poucos – que vieram atrás dos filhos e dos netos.
sexta-feira, 21 de março de 2025
Intervalo
Chegou o fim-de-semana. Existe neste um problema estrutural. É curto, demasiado curto, uma espécie de intervalo entre as duas partes de um jogo de futebol soporífero, a que o espectador assiste por dever ou devoção clubista. A vida semanal não passa desse jogo, em que uns participam por dever e outros por devoção, ambos movidos pela necessidade. Ora, o problema é que a necessidade é o que se opõe à liberdade. Sempre que alguém se move por necessidade está a negar a sua liberdade. Não há, porém, ser humano que não esteja submetido a um império de necessidades, isto é, que não esteja escravizado à necessidade que o habita. O fim-de-semana é apenas o vestígio de um tempo mítico onde nós, os sapiens sapiens, vivíamos no Éden. Contudo, não descansámos enquanto não arranjamos motivo para cartão vermelho. O árbitro, impávido e implacável, não se fez rogado. Expulsão. Não houve tribunal da relação para apelo. O fim-de-semana é apenas o resultado de um acto de misericórdia desse mesmo árbitro, que se condoeu dos jogadores expulsos, mas não revogou a sentença. Onde me encontro não chove. Vou entrar nesse espaço onde a necessidade se suspende e a liberdade reina por algumas horas. Intervalo.
quinta-feira, 20 de março de 2025
Um grande descoberta
Consta que começou a Primavera, mas o Inverno insiste em continuar vivo. Não se pode recorrer à eutanásia, perguntei. A pobre estação contorce-se de dores, geme e grita como uma perdida. Alguém me disse – não vi quem: há dois problemas para eutanasiar o Inverno. Um de ordem religiosa e outro de ordem jurídica. A eutanásia é um pecado, por um lado; pelo outro, não foi legalizada neste país. Não quis entrar em controvérsia sobre religião ou política com quem não conheço, mas não me coibi de responder, embora sem ver a face do interlocutor, caso existisse algum. Respondi impante: Do ponto de vista religioso, não há qualquer problema. Uma estação do ano é destituída de alma, logo é permissível matá-la. Quanto ao aspecto jurídico, o problema ainda é mais fácil de resolver. Além de não ter alma, o Inverno também não tem corpo. Se for eutanasiado, não haverá qualquer problema com o corpo de delito. O que me espanta em toda esta história é a estação que já devia ter morrido continuar por aí, ainda por cima sem alma e sem corpo. Chegámos ao ponto fundamental desta comunicação, um ponto onde a falta de seriedade do assunto aterra num problema de ontologia fundamental. Tínhamos por um lado os seres corporais, tínhamos por outro os seres espirituais, puras almas, tínhamos, ainda, os seres compostos, aqueles que têm ao mesmo tempo corpo e alma. E isto completava o conjunto de seres possíveis. Ora, acabei de abrir uma brecha na muralha ontológica. Além desses seres que todos conhecemos, temos uma outra classe, a dos seres que não têm corpo e não têm alma, mas existem. A prova é eles manifestam-se. E se se manifestam, logo existem. É o caso do Inverno. Nunca ninguém lhe viu corpo, nunca religião alguma descobriu nele alma, mas mesmo assim ele existe, e, no caso actual, persiste, recusando-se a entrar para o túmulo onde deveria ser sepultado para toda a eternidade.
quarta-feira, 19 de março de 2025
Os abominadores da modernidade
Por motivos que não vêm ao caso, detive-me na leitura de análises sobre duas obras literárias distintas. O livro de poemas Quatro Quartetos, de T. S. Eliot, e o romance A Parede, de Marlen Haushofer. Ora, um dos pontos comuns na leitura analítica dessas obras é representá-las como críticas da modernidade. Esta crítica da modernidade é recorrente na literatura e noutras artes. Pode-se mesmo afirmar que se há um tema que percorre a arte moderna é o da crítica à modernidade. Esta crítica que é um exercício de lucidez, pois torna patente aquilo que os tempos modernos têm de limitado e mesmo de malsão, é ao mesmo tempo um exercício de cegueira. A modernidade é investida com um aura luciferina, que está muito longe de ser ajustada à realidade. O que os artistas e a militância antimoderna não percebem é que sem essa modernidade, esses artistas e esses críticos não seriam nada, não passariam de artesãos e pregadores, segundo uma ordem que jamais dependeria do seu livre-arbítrio. Antes dos tempos modernos, o que existia era a idade média. E aquilo que estamos a começar a descobrir nesta aurora dos tempos pós-modernos parece pior do que as piores visões que foram pintadas sobre esses tempo pré-moderno. É provável que no espírito de todos os abominadores dos tempos modernos exista uma fantasia: os benefícios que usufruem trazidos pela modernidade seriam possíveis sem que se tivesse de pagar por eles. Esta doce fantasia pode ser uma porta aberta – já está a ser, basta olhar com atenção para o perceber – para que se percam os benefícios e no seu lugar não seja posto nada de mais saudável do que a loucura colectiva ateada por incendiários.
terça-feira, 18 de março de 2025
O indivíduo
A certa altura do romance Fuga sem fim, Joseph Roth escreve: Porém, Tunda também a aborrecia – era um homem sem energia, reincidente na ideologia burguesa, facto esse que se evidenciava notoriamente através da sua disponibilidade sempre mais forte para fazer amor. A aborrecida era Natacha, que de seguida partiria para Kiev, onde nascera. Há uma ironia em Roth: essa disponibilidade sempre mais forte para fazer amor é interpretada não como um excesso de energia, mas como falta. Natacha exigia-lhe uma transferência energética do sexo para a transformação social, mas Franz Tunda não se comove com os sonhos revolucionários e centra-se no prazer individual. Daí a acusação de ser reincidente na ideologia burguesa. Ora, esta só em aparência está ligada a uma classe social ou a uma casta, mas antes à afirmação do indivíduo, da sua singularidade. A busca do prazer sexual que fere a pobre Natacha é uma manifestação dessa afirmação do indivíduo sobre o todo. Talvez o melhor exemplo disso seja a obra do Marquês de Sade. A forma hiperbólica que nela toma a sexualidade – o exercício de uma pornografia orientada pela razão como processo de aumento do prazer do indivíduo – é o outro lado, embora muito mais radical, uma espécie de Terror erótico, da afirmação do indivíduo com a vitória do terceiro estado na Revolução Francesa, que não dispensou o exercício da guilhotina. A questão sexual é sempre muito perturbante porque ela representa a afirmação da singularidade radical do prazer do indivíduo em detrimento das construções sociais. O problema, na verdade, não é o sexo. É o indivíduo.
segunda-feira, 17 de março de 2025
Santa ignorância
A ignorância é o mais vasto de todos os oceanos, e, como se sabe, um oceano que se preze é excessivamente vasto. A ignorância que refiro é a minha, e o que desencadeou o seu reconhecimento foi não saber quem é – ou quem foi – Dag Solstad. Já não é, pois morreu na passada sexta-feira. E o que não sabia eu de Dag Solstad? Tudo. Não imaginava que existia alguém com esse nome. Para piorar as coisas, esse alguém foi um escritor norueguês, para tornar ainda pior o que já era mau, consta que é um génio literário, um digno sucessor de Knut Hamsun, talvez um rival Karl Ove Knausgaard. Tudo isso, até hoje, era para mim nada. Vejo-lhe a biografia na peço necrológica e, na verdade, noto alguns pontos de contacto com Hamsun. Uma certa inclinação para regimes políticos pouco dignos de consideração, mas de sinal contrário. Suspeito, porém, que Solstad se foi afastando dos delírios da juventude, coisa que acontece a muita gente boa e honrada, que não evitou certos pecadilhos quando as hormonas estavam carregadas. A nota necrológica aponta para dois autores com os quais partilha a sua forma de escrever. Um é o referido Knut Hamsun; o outro, o austríaco Thomas Bernhard. Ambos pertencem ao meu Olimpo literário. Será que Solstad também merece fazer parte dos olímpicos? Acabei de encomendar um dos seus romance. Eis um caso para resolver no futuro. Talvez não entre no meu Olimpo como um deus efectivo, mas, pelo menos, poderá passar lá algumas temporadas. Refiro-me, agora, ao egípcio Naguib Mahfouz. Em Entre os dois palácios, somos conduzidos numa visita à sociedade do Cairo durante e após a primeira guerra mundial. Mahfouz fixa o olhar numa família da classe média e, com a paixão de um naturalista, mostra-a no seu devir existencial – que expressão mais sem tino – e, a partir dela, leva-nos a suspeitar como será aquele mundo, cujos princípios nos são quase estranhos. Não descodifico aqui o quase, mas recordo que estamos em Portugal. E com este enigma edulcoro a minha ignorância, enquanto deixo que o crepúsculo me invada os olhos para anunciar o reino da Rainha da Noite, cuja área na Flauta Mágica, de Mozart, nunca me cansa.
domingo, 16 de março de 2025
Causas perdidas
O domingo deslizou em silêncio, e eu, sonâmbulo, deixei-me levar sem que uma resistência tenha erguido contra o despudor do tempo. A luta seria inútil, dir-se-á. Sim, é verdade, mas talvez as únicas causas que mereçam a luta são as que estão perdidas. Pode-se fazer um esboço de taxionomia das causa perdidas. Estas podem ser classificadas em duas grandes categorias. As que estão possivelmente perdidas e as que estão necessariamente perdidas. Grandes são os heróis que triunfam nas causas que estão possivelmente perdidas. Mas que maior heroísmo existirá do que combater em causas que estão necessariamente perdidas? Combater o tempo é uma dessas causas necessariamente perdidas. Não se trata sequer de aniquilar esse inimigo, mas de o reter um pouco, atrasá-lo, evitar que o desenlace se aproxime na hora que Cronos lhe destinou. Mesmo este combate está necessariamente perdido. Fosse eu um herói, como o foi Heitor ao defrontar Aquiles, teria acordado do meu sonambulismo e erguido uma muralha contra o tempo, o seu despudor, a sua argúcia inexorável. Contudo, preferi ir caminhar, deixar-me levar pelas fantasias que a corrente de consciência não se detém em trazer-me, para que eu me esqueça desse inimigo mortal que não pára nunca de trabalhar. Não fui talhado no mármore dos heróis. É uma pena, mas também não fui que me talhei ou escolhi a matéria de que sou feito.
sábado, 15 de março de 2025
Bocejos e espirros
Bocejo. O pós-almoço tornou-se um tempo difícil. Também o dia se endificultou. Que pena não existir o verbo endificultar. Dificultar diz-nos que algo se tornou difícil, mas se lhe juntar o prefixo en- dizemos o processo pelo qual uma coisa – neste caso, o dia – se tornou difícil. Quando saí de manhã, o dia não estava difícil, nem para mim nem para ele. Havia luz solar e um suave calor acompanhava os passos perdidos dos transeuntes por ruas, praças e avenidas. Depois de almoço, a disposição mudou e foi aí que o dia começou a endificultar-se, enquanto eu ia bocejando. Céu cinzento, chuva, algum vento frio. Tudo dificuldades desnecessárias. O sábado decretou-se, assim, como tempo de confinamento. Talvez esteja com saudades daquela época, tão longínqua, em que nos confinávamos em casa por causa de um vírus. O melhor é deixar essa memória retida nos arrabaldes da consciência, isto é, no subconsciente. Tê-la aí é útil por dois motivos. Em primeiro lugar, evitamos andar com a consciência viva do que foi uma coisa pouco agradável. Depois, é melhor que essa memória esteja à mão no subconsciente do que recalcada no inconsciente, que era como se não existisse. Se precisarmos dela, com facilidade retiramos de onde está e a trazemos para a consciência, para a usarmos, em caso de necessidade. Continuo a bocejar, os olhos querem fechar-se, nenhuma ideia me ocorre, a não ser coisas sem sentido: invenção de palavras, associações espúrias, memórias avulsas. Quando bocejo, o pensamento torna-se uma assembleia de assuntos avulsos (eis a assonância em exercício), coisas que saltitam na consciência e cuja finalidade não descortino. O melhor é ir dormir uma sesta. Acabei de espirrar. Talvez me tenha constipado. Ou talvez esteja a sonhar que me constipei. Devia evitar o uso de talvez. Há que fingir que se tem certezas e que elas resistem aos assaltos da dúvida, por metódica que seja.
sexta-feira, 14 de março de 2025
O caminho do Golgotá
Antigamente, era às quartas-feiras à tarde. Agora, o ensaio do grupo musical da escola aqui ao lado – parece um conjunto de animação de antigos bailes de província – passou para as tardes de sexta-feira. Um saudosista desfilar de músicas dos anos sessenta e setenta do século passado. A certa altura, comecei a ouvir We don't need no education / We don't need no thought control… Teacher, leave them kids alone / Hey! Teacher! Leave them kids alone! Pensei, levado pela ingenuidade – mas, como uma amiga salientava, ingenuidade depois dos 40 não é ingenuidade é burrice – que não seria a canção mais adequada para estar a ser cantada por professores numa escola. Depois, mudei de opinião. Os professores que formam o grupo têm uma idade tal que só saberão francês. Não sabem o que estão a cantar. Achei a explicação satisfatória – mais uma vez a questão da ingenuidade – e esperei que o ensaio acabasse, para poder abrir a janela e deixar o ar entrar, numa renovação que anuncia a Primavera. Entrou ar e sol, a música dos Pink Floyd foi tragada por coisas mais decisivas. Ontem, morreu Sofia Gubaidolina. Vai acompanhar-me este fim-de-semana. Como estamos na Quaresma, começo pela Paixão segundo S. João. Já há muito que não ouvia a sua música. Numa nota necrológica leio uma frase da compositora russa: a vida reduz o homem a tantas peças que não conheço outra missão mais séria do que ajudar, através da música, a reconstituir a sua integridade espiritual. Muitos são os caminhos da arte, mas nenhum será mais decisivo do que essa ajuda à reconstituição da integridade espiritual do homem. Haverá quem argumente que isso será atribuir à arte uma finalidade estranha a ela própria, um ataque à autonomia da arte. Ora, a arte é uma das manifestações essenciais do espírito humano, e se arte se põe como fim ajudar essa restituição da integridade espiritual, ela está a ajudar-se a si mesma, a procurar a sua integralidade, a enfrentar a fragmentação que a conduz a uma irrelevância no destino dos homens. Os dias estão já bastante grandes. Uma luz amistosa desce sobre a praceta. Adolescentes jogam à bola e eu oiço a Paixão. Um baixo, um barítono e dois coros encenam o caminho de Cristo para o Gólgota.
quinta-feira, 13 de março de 2025
Palavras
Fechei as janelas e a noite ficou a dormir lá fora. Aqui é como se dia fosse, mas de luz temperada, nada de excessos, sóis de brilho cauteloso, não vão os olhos ficar ofuscados e nem capaz seja de ver aquilo que escrevo. E se há coisa conveniente neste mundo – e talvez noutros – é ver bem aquilo que se escreve, não vão as palavras arrastar uma sombra ou mesmo um véu negro, talvez uma mantilha escura como breu. Há uma diferença fundamental entre as palavras ditas e as escritas. As que saem da boca, o vento leva-as. Mesmo se alguém as ouve, elas perdem a solidez, tornam-se vestígios agarrados na memória, e não há coisa menos digna de confiança do que a memória. As palavras escritas, porém, enquanto permanecerem escritas, ficam ali, firmes, sólidas, prontas a ser reactivadas por quem as lê, e até a má literatura encontra quem a leia. A minha descrição da liquidez da oralidade só numa primeira aproximação faz sentido. Se eu estivesse em disputa comigo mesmo, diria: e se as palavras ditas forem gravadas? Não ganham elas a solidez da escrita? E teria de concordar que as palavras podem tornar-se sólidas, mesmo no estado gasoso. Os dispositivos de gravação de sons são, deste modo, formas de solidificação das emissões sonoras e, entre estas, de cada flatus vocis a que se dá o nome de palavra. Moral da história: quando se trata de palavras, todo o cuidado é pouco, mesmo se elas são ditas e não escritas. Não vá alguém estar a gravá-las. Temos de pensar nas múltiplas possibilidades e nas ameaças que se escondem nelas.
quarta-feira, 12 de março de 2025
Falar consigo mesmo
terça-feira, 11 de março de 2025
Os aplausos
Passei há pouco diante da televisão e percebi que estava a decorrer um ritual litúrgico em torno de um qualquer drama nacional. Alguém se levantava, falava e, quando acabava, o grupo de onde se erguera aplaudia. Talvez por rivalidade mimética, de um outro grupo, alguém se levantava, falava e, quando acabava, era o seu grupo que palmejava. Isto fez-me lembrar o que se passava na época de Estaline. Quando ele acabava de discursar, os aplausos irrompiam com estrondo e continuavam... continuavam... continuavam. O problema que se colocava a cada um dos apoiantes era o de não ser o primeiro a parar o aplauso. Suspeitava que a vida se podia enegrecer devido à fraqueza dos braços ou à falta de energia para mover as mãos uma contra a outra. Nisto não estou a entrar no campo minado da política, mas no âmbito da antropologia. Há uma clara superioridade na rivalidade mimética. O importante, para os falantes que vi na televisão, é a quantidade de aplausos que recebem ser maior do que a do seu rival. Para isso, basta que fale em último lugar, depois de ter medido a ovação do outro lado. O grupo prolonga a sua por mais uns segundos e tudo fica resolvido, sem dramas para os braços, tortura para as mãos ou vidas enegrecidas devido a uma constituição débil. É muito mais difícil quando a rivalidade é suprimida. A claque fica com um problema entre mãos, para o qual nenhum cronómetro terá a astúcia suficiente para sugerir uma solução.
segunda-feira, 10 de março de 2025
Um verbo de outros tempos
O que é envelhecer? Talvez seja contar, uma e outra vez, as mesmas histórias, entregar-se à repetição de peripécias, navegar num oceano de iterações. Tudo isto a propósito da história que contei ontem sobre livros e mercearias. Quantas vezes a terei contado nestes textos? Não sei, mas a possibilidade de serem várias funda-se no simples facto de este ser o segundo milésimo ducentésimo décimo nono post. Não vou agora discutir a vexata quaestio da denominação do ordinal 2219.º. Há várias possibilidades, suportadas por especialistas. Como não sou especialista de nada, e muito menos de denominações de números ordinais, uso aquela que mais me agrada: uma questão de gosto e não de rigor na nomenclatura. Com isto, desviei-me do assunto que abriu o escrito: envelhecer. Jacques Brel – enfim, falar de Brel é uma prova de que sou de um outro tempo, que poucos já conhecem – tem uma canção, de 1963, com o título Les Vieux. A canção é belíssima e terrível. Traduzo a primeira metade da primeira estrofe do poema: "Os velhos não falam ou, então, por vezes, fazem-no com o olhar. / Mesmo ricos, são pobres, já não têm ilusões e têm apenas um coração para os dois. / Nas suas casas cheira a tomilho, a limpeza, a alfazema e ao verbo de outros tempos./ Que se viva em Paris, vive-se sempre na província quando se vive demasiado tempo. Os versos são longuíssimos, tão longos como a vida dos velhos de que fala Brel. Em 1977, o cantor belga, pouco antes de morrer (Outubro de 1978), edita um último álbum. Uma das canções, de uma ironia amarga, denomina-se Vieillir. O refrão diz, traduzido para português: "Morrer, isso não é nada. / Morrer, que grande coisa! / Mas envelhecer, oh, oh envelhecer..." Ora, Brel tinha 49 anos quando morreu. A sua casa nunca chegou a ter o cheiro do tomilho e da alfazema, nunca terá contado histórias repetidas ao mesmo auditório. Envelhecer é o processo onde nos repetimos, onde ainda falamos, usamos as palavras e repetimos aquelas que mais amamos. Talvez tudo isto seja apenas uma luta contra o silêncio, quando já ninguém tem paciência para ouvir as nossas histórias ou nós perdemos o interesse de as contar. Quem as perceberá, se o nosso verbo é de outros tempos?
domingo, 9 de março de 2025
Mercearias e livrarias
sábado, 8 de março de 2025
Reprodução sexual das máquinas
Este texto é dedicado ao x e ao y. Não se pense, todavia, que se mobilizará uma bizantina discussão cromossomática sobre esse inusitado acontecimento do sexo feminino ser determinado por um par de cromossomas x, enquanto o masculino se compraz na combinação de x e y. Por certo, seria proveitosa qualquer meditação sobre a diferenciação que os cromossomas insistem em produzir no mundo ou, também, sobre o facto de o sexo se reduzir ao x e ao y, deixando todas as outras letras do alfabeto – e no português, as outras letras são 24 –, o que introduz no caso um princípio de exclusão que qualquer letra digna desse nome deveria afrontar. Como nada sei de genética e haverá coisas que me escapam, o meu x e o meu y pertencem a outro campo. A história é simples. O comando da televisão está decrépito e a entidade proprietária decidiu que ele se aposentasse. Aceitou, não sem contentamento. Na sequência, a dita entidade foi a um daqueles armazéns ou lojas – ou lá o que aquilo é – e pediu a um funcionário que, por estar distraído, foi apanhado pelo cliente. Em que posso ajudá-lo, ouvi. Preciso de um comando para a televisão, pois o que tenho vai ser aposentado, respondi. E qual a marca? A marca é x, disse eu, solícito e convicto. – Muito bem, lá ao fundo – disse, apontando – estão os comandos e encontra o que pretende. Os dessa marca têm uma caixa cor-de-rosa. Lá fui e, depois de uma troca de impressões familiares sobre funções, aplicações e canais, lá se trouxe um dispositivo com caixa cor-de-rosa. Chegado a casa, colocadas as pilhas, o comando recusa-se a fecundar a televisão. Azar. Há que ler as instruções. Vou buscar os óculos. Leio as instruções, sigo-as com rigor, uma, duas, três vezes e nada. No dia seguinte – isto é, hoje – voltámos em excursão familiar ao sítio onde se vendem comandos. Novo funcionário distraído. Ouviu com atenção o desaire e considerou que, sendo assim, perante uma televisão x que não se deixa penetrar por um sinal de um comando x, há que trazer a referência do televisor e programar – nos serviços técnicos – um comando apropriado, que não aquele. – Faça uma foto da referência do aparelho, aconselhou-me. Está na parte de trás do televisor. Chegado a casa, decidi cumprir a sugestão antes que me esquecesse. Fotografo com o telemóvel a referência, amplio e descubro que o televisor, afinal, é da marca y e não da x. Incrédulo, o núcleo familiar ri-se – um riso amarelo – e constata que nunca houve nesta casa um televisor da marca x. A conclusão de tudo isto é extraordinária: uma televisão da marca x não se deixa engravidar por um comando da marca y, o que seria a ordem natural das coisas. Para dar à luz uma imagem, a televisão y necessita de um comando, também ele, y. Não sei se os movimentos conservadores já deram pelo assunto, mas há aqui qualquer coisa de suspeito: a fecundação dos aparelhos só é possível por dispositivos com os mesmos cromossomas. Este texto pode ser visto como o contributo deste narrador – ou será do autor? – para o magno problema da sexualidade das máquinas na era da técnica.
sexta-feira, 7 de março de 2025
O europês
Num discurso pronunciado em 28 de Abril de 1962, aquando da recepção, em Bruxelas, do Prémio Erasmo, o teólogo alemão Romano Guardini faz uma meditação sobre a Europa. Parte da sua experiência pessoal: nascido em Itália, de pais italianos, muito cedo foi para a Alemanha. Em casa, falava italiano, mas toda a sua formação foi feita em alemão. A certa altura do discurso, diz: Pensava em alemão, pois não é em vão que se pensa numa língua. Ora, uma língua não é, em primeiro lugar, um sistema comunicacional, embora também o seja. Uma língua é a estrutura do mundo que habitamos, uma estrutura que preexiste ao falante. Numa linguagem mais filosofante, é uma estrutura a priori. Um transcendental, isto é, uma condição de possibilidade. O mundo de um alemão não é o mesmo de um italiano ou de um português, muito menos o de um árabe ou de um chinês. Isto porque toda a experiência está enformada pela língua em que se pensa. Bernardo Soares, num dos textos mais antipatrióticos da literatura portuguesa – Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente. – escreve: Minha pátria é a língua portuguesa. Pátria significa aqui mundo. Guardini, na sequência do discurso, afasta-se da questão da linguagem. Ora, é aí que reside o drama europeu. Não porque a comunicação seja difícil – é facílima no mundo de hoje. O problema é existirem tantos mundos europeus quantas as línguas faladas pelos habitantes da Europa. Se houvesse apenas uma língua na Europa, o europês, haveria apenas um mundo. A realidade seria mais pobre; mas a vida, mais fácil.
quinta-feira, 6 de março de 2025
Um triunfo
Se viajarmos no mundo das ideias até Platão, temos a possibilidade de descobrir um entrelaçamento sólido entre o bem, a beleza e a justiça. A solidez era forte e resistiu durante muito tempo, até que, a certa altura, a estrutura começou a ruir, com as partes a separarem-se, como se fossem estranhas umas às outras, esquecendo-se da sua antiga unidade. A certa altura desta viagem, o escritor russo León Tolstói ainda tenta salvar, na sua meditação sobre a arte, essa unidade, mas era, há muito, uma causa perdida. No século XX, encontramos artistas cuja grandeza estética não é acompanhada por uma devoção ao bem moral. Por exemplo, Knut Hamsun, o grande romancista norueguês, foi um devoto, durante a Segunda Guerra Mundial, do governo colaboracionista pró-alemão de Vidkun Quisling. São conhecidas as suas loas a Hitler. A beleza estética dos seus romances parece conflituar com a sua dimensão moral. Um outro caso é o do autor do seguinte trecho: "A cabeça é uma espécie de fábrica que não funciona exactamente como nós queremos… Veja só… Milhões e milhões de neurónios… Um mistério absoluto… Você está bem arranjado! Neurónios entregues a si próprios! Ao mínimo ataque, a sua cabeça dispara em todas as direcções, você já não agarra uma ideia!... Sente-se envergonhado… Eu, aqui deitado na cama, gostaria de lhe contar mais coisas… Quadros, brasões, passagens secretas, tapeçarias… Mas perdi-me… Não encontro nada! A minha cabeça anda à roda…" O texto faz parte do primeiro romance, Castelos Perigosos, da Trilogia Alemã. O autor, também um colaboracionista, apoiante do governo de Pétain e um empedernido anti-semita, é Louis-Ferdinand Céline. O século XX foi um campo fértil onde grandes artistas se comprometeram com ideias e práticas pouco conformes ao bem e à justiça. É possível que, já no tempo de Platão, a grande muralha que unia o bem, o belo e o justo estivesse fracturada, e que o seu pensamento fosse um acto de reconstrução de algo que estava sob ameaça. Hoje, porém, nem um Platão renascido teria poder para cerzir essas ideias e devolvê-las à sua unidade originária. Elas são como galáxias num universo em expansão: afastam-se cada vez mais rapidamente umas das outras. Os sofistas, esses inimigos de estimação do platonismo, acabaram por triunfar.
quarta-feira, 5 de março de 2025
As cinzas de quarta-feira
Quarta-Feira de Cinzas. Para lá do significado religioso, o dia simboliza o destino da humanidade – Lembra-te que és pó e ao pó hás de voltar. – e de tudo o que é construção humana. É um dia em que se deveria enfrentar o oblívio da nossa condição. Ora, faz parte dessa mesma condição esquecer-se daquilo que é. Quem se vê como o pó ou as cinzas que, em potência, já é? O dia traz em si tal radicalidade que nem a própria Igreja o seleccionou como fazendo parte daqueles dias que serão feriado. Também eu não quis enfrentar o dia e entreguei-me ao cultivo da realidade. Ora, não há melhor estratégia para nos alienarmos desse espinho cravado na carne do que submeter-se aos ditames do real, às tarefas que o mundo – ou nós, por ele – nos destinou. Não tive de enfrentar a recordação de que sou pó e, se o faço agora, talvez seja porque o grau de alienação em que mergulhei durante todo o dia me tenha anestesiado. Olho os meus livros – que continuo a acumular, sem esperança de ler muitos deles – e vejo-os a arder. Não importa que nunca venham a ser devorados pelo fogo. Mais tarde ou mais cedo, sendo eu pó, poderão ainda resistir juntos por uma geração, mas não mais do que isso. Talvez esteja enganado, mas um dia serão as cinzas de uma quarta-feira.
terça-feira, 4 de março de 2025
Uma querela
A certa altura de uma obra de Edward Grant com o título Os Fundamentos da Ciência Moderna na Idade Média, o autor escreve: Tal como Buridan, Oresme apresentou vários argumentos a favor de uma Terra em rotação, mas são meramente persuasivos e não demonstrativos. Aqui está o drama em que as nossas sociedades vivem. As nossas crenças são sustentadas por argumentos persuasivos, não por demonstrativos. Estão fundadas na emoção ou em valores que não foram escrutinados na sua congruência, mas que persuadem o auditório. Muitas dessas crenças são, se observadas com rigor, completamente inverosímeis, mas não crer nelas seria de tal modo inquietante que acabam por se tornar convicções indiscutíveis. Ora, a partir do século XVII, os europeus – e o prolongamento da Europa noutros continentes – começaram uma viagem estranha. A partida foi dada por um senhor chamado René Descartes, que um dia tomou a decisão insólita de examinar as suas crenças para descobrir se alguma delas merecia o epíteto de verdadeira. Isso abriu uma brecha que, com o tempo, se foi aprofundando. De um lado, aqueles que procuram regular-se pela demonstração e, do outro, os que vivem ancorados na persuasão. Os tumultos que atingem, por estes dias, o mundo ocidental são uma emanação directa desta querela. Ora, o mais plausível é pensar que factos e demonstrações rigorosas sejam impotentes para enfrentar aqueles cujas crenças entram em conflito com os factos, com a lógica e com a demonstração. Esta meditação soturna está de acordo com o dia de Carnaval que nos calhou este ano: frio, cinzento, sombrio. Tão bisonho me encontrava que comecei a escrever o que escrevi. Poder-se-á, com razão, dizer que o fundamento deste escrito é a bisonhice de quem o escreveu. A questão, todavia, é saber se essa ligação pode ser demonstrada ou se não será, afinal, apenas uma crença nascida de um acto persuasivo, proveniente duma qualquer emoção que tomou conta dos dedos que caem, não sem vigor, sobre o teclado, como se fossem dotados de fé.
segunda-feira, 3 de março de 2025
Penas e tristezas
Esta é uma das mais penosas épocas do calendário. Refiro-me ao Carnaval. Não ao acontecimento em geral, mas ao caso particular de Portugal. Apesar dos foliões e das folionas, aquilo dá vontade de chorar. O melhor é não pensar nisso e, se as pessoas se divertem, há que não deitar um véu de tristeza sobre a efeméride. Teria sido mais interessante, muito mais, ter feito evoluir o tradicional Entrudo. Contudo, isso não nos permitiria pensar que é possível imitar o Rio de Janeiro, e nós gostamos muito de imitações. Falando em festejos carnavalescos, li há pouco que o nosso ídolo futebolístico não pode entrar no Irão, pois está condenado a levar 99 chicotadas por ter tido a desfaçatez de dar um beijo na face de uma artista praticamente paralisada. Foi um acto de simpatia e de solidariedade por uma pessoa naquele estado. Parece que isso é um crime terrível. Confesso que tenho tentado, mas ainda não consegui perceber a paranóia que as religiões – pelo menos, algumas delas – têm com o corpo e, em particular, com o sexo. A única explicação que encontro nada tem de religioso, mas estará mais próxima de uma coisa que não há fundamentalismo religioso que não abomine. Talvez essa paranóia seja uma vantagem competitiva no processo de adaptação da espécie ao ambiente- Portanto, uma explicação evolucionista. Não tenho informação, mas poderia enunciar um princípio: quanto mais paranóico se é em relação ao sexo, mais filhos se fazem. A repressão da sexualidade – ou de qualquer coisa que a lembre – é uma estratégia para que os espermatozóides oprimidos encontrem, com maior precisão, o caminho para o óvulo atribulado, para que a espécie se reproduza e não entre em extinção – o que talvez nem fosse má ideia. Onde a sexualidade não é severamente regulada, os espermatozóides andam à vontade, cultivam uma faceta liberal e evitam entrar para um óvulo devorador, o qual, diga-se, também estará mais interessado noutras coisas que não em ser fecundado por um elemento estranho. Não devia falar destas coisas, mas hoje o dia está triste, como o Carnaval ou aqueles que vêm num beijo na face um crime sexual ou coisa que o valha.
domingo, 2 de março de 2025
Um domingo exaltante
Atravessei a cidade – embora a designação de cidade seja, na verdade, um eufemismo destinado a inflar os orgulhos paroquiais, em especial daqueles que ocupam os poderes no município, sempre muito atreitos a estas coisas, não vão ser tomados por vilões, coisa que ninguém aprecia, especialmente aqueles que o são – atravessei a cidade, dizia, com o carro a rolar muito devagar. Não havia trânsito e, nos passeios, não via ninguém. Tudo recolhido em casa, não fosse o frio enregelar-lhes os corpos e petrificar-lhes o cérebro, o que é muito desagradável, pois exige que a pessoa, para descongelar, seja posta em banho-maria – uma perda de tempo. Fui a uma aldeia, aqui perto, comprar laranjas. Um hábito para animar o comércio local. A venda à beira da estrada pode parecer arcaica, mas tudo muda. A vendedora original foi substituída pela filha e já é possível pagar por transferência através do mbway, o que pode ser uma prova de que se vive no melhor dos mundos possíveis. Por um lado, um sabor à tradição; por outro, o fruto da inovação. O resultado é ficar com as mãos limpas, pois não se mexe em dinheiro – coisa que, como se sabe, suja as mãos, embora raramente manche as consciências. Isto tem uma explicação. Científica, claro. A consciência é revestida por uma película protectora que repele a sujidade. É preciso que a película esteja muito corrompida para a consciência se sentir enodoada e corrupta. Esta é a explicação científica. Não se pense, porém, que a película é fruto de um avanço tecnológico recente – não é. É mais antiga, muito mais, do que o hábito de vender e comprar laranjas à beira do caminho. Desviei-me do assunto, mas talvez não tivesse nenhum assunto. Compradas as laranjas, mas também batatas-doces, voltei para casa. Na cidade, as ruas continuavam vazias, a tarde continuava cinzenta e fria. Os domingos de província sempre foram exaltantes.
sábado, 1 de março de 2025
Por três vezes
Por três vezes, senti-me perturbado neste dia que inaugura o mês de Março. De madrugada, acordei dentro de um sonho, onde um certo acontecimento ocorrido há mais de quarenta anos se consumava e, ao mesmo tempo, não se consumava. A perturbação não provinha de nenhum dos pólos da situação paradoxal, mas do facto de estar dilacerado entre ambos. O que piorou as coisas ao acordar foi que essa situação nunca fora problemática, e restava-me dela uma recordação delida, embora agradável. Por estar desde ontem, às 11 horas da manhã, ligado a um aparelho para realizar um holter, senti-me na obrigação de registar a hora a que acordei e o estado de perturbação em que me descobri, referindo um pesadelo – embora o conceito seja excessivo. A meio da manhã, decido ir almoçar fora. Estamos na época do sável frito com açorda de ovas. Descubro que, da última vez que fiz a romaria em demanda deste pequeno santo graal, ainda não tinha ocorrido a pandemia. Um dos restaurantes a que ia então, numa aldeia sobre o Tejo, tinha fechado. O outro não me atendia o telefone para fazer a reserva. O mundo tinha mudado mais do que eu pensava. O facto de ter de substituir o certo pelo incerto perturbou-me, talvez porque ainda não estivesse refeito da perturbação inicial. A escolha mostrou-se um êxito, porém. Durante a refeição, fazem-me notar um casal ainda relativamente jovem. Desde que chegaram, ainda não tinham trocado uma palavra, cada um deles vampirizado pelo respectivo telemóvel. Comentei com uma citação de Borges: é um desses amores ingleses que começam por excluir a confidência e que muito cedo omitem o diálogo. Na verdade, Borges não falava de um caso amoroso, mas de uma amizade. Não usa a palavra amor, mas amizade. E esta, no conto, está completamente fora de qualquer contexto erótico. Quando quis situar a frase, não consegui recordar o conto onde ela surge. Depois de grandes esforços, descobri – e foi isso que me perturbou – que ela pertence a uma das narrativas de Borges que mais gosto e que mais vezes li: Tlön, Uqbar, Orbis Tertius. Consta que ontem, no último dia de Fevereiro, sete planetas do sistema solar estiveram todos alinhados. Todas estas perturbações sofridas relacionam-se com o passado. A conclusão a que cheguei pode parecer inusitada, mas não encontrei outra melhor: os planetas, ao desalinharem-se, estão a interferir na relação do meu presente com o meu passado. Ora não há coisa mais perturbante do que essa interferência, pois o que será de mim, se o meu passado se torna incerto?
sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025
Caos e gravitas geométrica
Hoje é o último dia de Fevereiro, mas foi já um dia de Março, caso se leve em consideração a sabedoria coagulada em ditados, máximas e provérbios ao gosto popular. Na realidade, do dia de hoje poder-se-á dizer: Março, marçagão, manhã de Inverno, tarde de Verão. Falo disto porque fiz a experiência. Saí de manhã, estava frio e chovia. Depois de almoço, tudo mudou. Pouco depois das quatro da tarde, fui fazer a caminhada do dia e estava sol, uma temperatura agradável, anunciadora da Primavera a vir lá mais para a frente. Seja como for, a situação irrita-me. Sofro de um espírito geométrico e detesto ver o mundo desarrumado. Quando falo de mundo, refiro-me, no caso, às divisões do tempo. Choca com a geometria que me habita a alma esta sobreposição de estações. Em linguagem poética, posso dizer que abomina o encavalgamento: que cada verso comece e termine em si mesmo e não estenda a perna para verso do andar de baixo. Quem diz verso, diz estação ou mês do ano. Que o Inverno comece no primeiro dia de Inverno e acabe no último. Que Março não se antecipe e abalroe Fevereiro. Haja ordem. É evidente que estas disfunções, estes tumultos antigeométricos, me ferem o espírito, porque o meu espírito e a minha alma, apesar de geométricos – e muito século XVII – são caóticos. Veja-se, como exemplo, estes textos: começo a escrever sobre uma coisa, logo salto para outra, numa indisciplina que faria horror à gravitas geométrica de um Espinosa ou ao animus matemático de um Descartes. A minha revolta é um caso de compensação, que é o que acontece com todos aqueles que se revoltam, com grande excitação, sobre um qualquer estado do mundo. Fora eu mais geométrico, e aceitaria de bom grado o caos que resulta quando se escande o ano à procura de uma métrica regular e só se encontram versos livres.
quinta-feira, 27 de fevereiro de 2025
Não incomodar o tempo
A certa altura de um poema do ciclo Cinco Canções Lacunares, Herberto Helder escreve: Não faças com que esse mês te procure. Leio o verso e não consigo decidir-me se estou perante um conselho de prudência ou um imperativo. A equivocidade poética está longe de se reduzir ao campo semântico, derrama-se também sobre aquilo que John Searle denominou actos ilocutórios, tornando a intenção presente no verso – e não no autor, que só ele saberia, se o soubesse – completamente ambígua. Se o verso é um conselho prudencial, posso ainda admitir que, tomando as precauções necessárias, conseguirei fazer com que esse mês – que não sei qual é – me procure, negociando a hora da sua chegada. Contudo, se o verso for um imperativo – e, neste caso, um imperativo categórico –, então devo fazer possíveis e impossíveis para que o mês desconhecido não venha no meu encalço. Não porque ele represente uma ameaça para mim, embora o seja, mas porque não se deve interferir na sua existência: temos o dever de resguardar a sua autonomia. Ora, se imaginarmos que mês é uma metonímia, onde a parte está no lugar do todo, percebemos que está em jogo a nossa relação com o tempo. Conselho prudencial ou imperativo categórico, o verso adverte-nos – sem êxito, diga-se – que não devemos incomodar o tempo. Ele vingar-se-á. Isso sabia-o, há muito, o velho Anaximandro, quando escreveu: De onde as coisas têm a sua origem, para aí também devem perecer, segundo a necessidade; pois pagam castigo e reparação umas às outras pela sua injustiça, segundo a ordem do tempo.
quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025
Da repetição
Posso dividir em dois grupos os livros que compro repetidos. Uns compro-os por acaso e contra a minha vontade. Funcionasse a memória, e não os compraria. Por vezes, sou vítima de uma alteração gráfica: compro-o e descubro, depois, que já o tinha. Por norma, são livros que tenho, mas que não li, embora nem sempre isso seja verdade. Outros compro-os por uma decisão genuína, sabendo que os tinha e, por norma, já os lera, mas também aqui isso nem sempre é verdade. Não se trata, como no primeiro caso, dos mesmos livros. O melhor é exemplificar. Ontem, apoiei, numa editora que trabalha com apoio dos leitores, a edição de A Coroa, o primeiro volume da trilogia A Saga de Kristin Lavransdatter, da norueguesa Sigrid Undset. Ora, eu tenho a trilogia. Tenho-a numa velha edição da Portugália. O que tem a nova edição de diferente? Uma coisa simples: a nova é uma tradução a partir do norueguês, feita por João Reis. A outra é uma versão de Maria Franco, provavelmente feita a partir da tradução francesa ou inglesa. Não se trata, na realidade, do mesmo livro. Outro caso é o da minha compra de hoje. Deparei-me com uma edição que desconhecia de O Banquete, de Platão. Tenho uma anterior e respeitável tradução, feita a partir do grego, comprada há muito. Foi nela que li O Banquete, embora há pouco tenha descoberto que não sei onde pára. Esta nova edição, também feita a partir do grego por Maria Mafalda Viana, tem um pequeno, mas curioso, prefácio de José Pacheco Pereira. Dois motivos levaram-me à compra: o prefácio e a inclinação que tenho para apoiar – através da compra – tudo o que disponibilize a obra de Platão. Partilho a opinião do matemático e filósofo Alfred North Whitehead: toda a tradição filosófica consiste em notas de rodapé à obra de Platão. Sou um platónico, talvez não praticante. Platão era um génio. Inventou a filosofia, e fê-lo de um modo que, apesar de algumas tentativas sem especial repercussão, nunca mais ninguém conseguiu seguir: a encarnação dos problemas filosóficos em diálogos, onde várias posições se confrontam. Não se trata de tratados ou ensaios, mas de conversas onde pessoas diferentes trocam palavras e pontos de vista. Há uma encenação que, depois, desapareceu, salvo, como disse, uma ou outra tentativa episódica. Ora, essa encenação não é uma decoração, mas o contexto pragmático que dá sentido àquelas palavras. Perdi-me no que ia escrever. E agora que estou perdido neste louvor a Platão, já não sei o que queria escrever, nem encontro o fio de Ariadne que me leve para fora do labirinto. Talvez esteja condenado a vaguear por ele, deslumbrando-me com a possibilidade de ter encontrado uma saída para, logo depois, suportar a desilusão trazida pelo engano. Se me for permitido dar um conselho, diria que o melhor é evitar labirintos.
terça-feira, 25 de fevereiro de 2025
Da falsidade e da falsificação
Benjamin Constant criticou a ambição de Saint-Simon de levar o mundo de um estado transitório para um estado definitivo. Constant não se esqueceu de sublinhar que nada é definitivo sobre a terra. Uma evidência, mas, como todos os cultores de evidências, esqueceu-se de que o homem é uma máquina desenhada para, em certas ocasiões, desconfiar das evidências, mesmo que não sejam falsas evidências, e de se inclinar repetidamente para aquilo que nega as evidências e a própria factualidade. Saint-Simon era um membro dessa confraria maquinal que preferia a negação da evidência à própria evidência. Seria melhor sonhar um mundo definitivo do que contentar-se com a contínua transitoriedade de tudo. Essas ilusões ou fantasias não são erradicáveis da nossa espécie. A cada momento, aceitamos como verdadeiro o que é falso. Não por odiarmos a verdade, mas porque a falsidade – vinda em forma de ilusão, fantasia, devaneio, utopia ou mera mentira factual – nos faz falta. Precisamos de nos auto-iludir, para além de iludir os outros. Caso se aceite o evolucionismo darwiniano – e este narrador aceita-o –, teremos de nos perguntar por que razão o longo processo evolutivo pelo qual tem passado a nossa espécie não eliminou a propensão da humanidade para a falsificação. Ora, a resposta talvez seja simples: porque essa inclinação é uma vantagem competitiva da espécie no processo de adaptação ao meio. Com isto, não se afirma que este narrador despreza a verdade e a troca pela mentira. Diz uma coisa mais simples: a humanidade precisa de ambas e, provavelmente, sem qualquer delas, sucumbiria e entraria no extenso rol das espécies desaparecidas. Erradicar o falso é uma empresa tão inútil como erradicar o verdadeiro. O que será preciso é aprender a lidar com ambos e perceber qual é o papel da falsificação na vida dos homens. De há uns anos a esta parte, no espaço público, tem-se observado uma enorme batalha contra as denominadas fake news. A batalha parece perdida, pois não se percebe por que razão são produzidas – embora os combatentes das fake news estejam convencidíssimos de que conhecem muito bem essa razão – e percebe-se ainda menos por que motivo são não apenas acolhidas com agrado, mas intensamente desejadas. Se se quer lidar com as fake news, então há que perguntar pelas razões que levam as pessoas a revoltar-se contra a realidade e contra a verdade que descreve essa realidade. Por isso, muitas das afirmações que se fazem nestes textos são meramente ficcionais – um eufemismo para adoçar o facto de serem puras falsidades.
segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025
Inquietações
Os dias andam inquietos, e a sua inquietação contamina o mundo, as nações, cada um dos homens que habitam o planeta. Alguém dirá que os dias são indiferentes tanto à inquietação como à quietude: são apenas a emanação de um certo arranjo cósmico. A minha observação não passa de uma antropomorfização sem nexo. Aquiesço, apenas porque me falta a vontade de começar essa conversa que não foi iniciada, com um interlocutor que não existe. E continuo a pensar, enquanto escrevo e a noite toma conta da cidade, que os dias andam inquietos, e a sua inquietação atinge a vida dos homens. A inquietação dos dias é uma manifestação de uma inquietação cósmica. Na verdade, é o universo que está a passar por uma fase de grande desassossego, de uma turbulência cuja causa desconhecemos e cujo sentido nos escapa. Isto tem uma vantagem para o que se passa no mundo dos homens: dá uma raiz cósmica à perturbação por que passa. Sim, os homens andam perturbados: uns, sonâmbulos; outros, hiperactivos, todos sem saber o lugar que é o seu. Contudo, mais do que actores desse alvoroço em que vivem, são pacientes que sofrem o poder de forças que não controlam. Esta é a minha contribuição – por certo, estimável – para a compreensão daquilo que se passa neste planeta. Amanhã, caso me ocorra, poderei dar outra, muito diferente desta, se não mesmo contraditória. Sempre se pode afirmar que o próprio narrador é vítima das perturbações cósmicas de que fala. Talvez, mas o mais certo é que este seja um exercício do raciocínio abdutivo, cuja finalidade é criar hipóteses explicativas de fenómenos inesperados ou surpreendentes. E, neste mundo, não nos faltam fenómenos inesperados e surpreendentes. Quanto à qualidade da hipótese proposta hoje, não me cabe ser juiz em causa própria, ou mesmo em causa imprópria.