O primeiro terço do mês de Maio está consumado. Eis um começo trivial. Poderia ter começado assim: hoje aconteceu-me uma aventura invulgar. Seria, porém, mentir e plagiar. Mentiria, porque não me aconteceu nenhuma aventura invulgar. Plagiaria, porque a frase é de Nikolai Gógol, no início do seu conto Diário de um Louco. Há, por outro lado, uma vantagem específica em não usar esse começo: evito transformar estes textos no diário de um louco. São diários, mas, se o autor ou o narrador — ou ambos — enlouqueceram, isso está por provar. É verdade que gostaria de ser um herói como D. Quixote, mas as minhas aventuras de hoje foram tão triviais que deveria ter vergonha de falar delas. Não consigo, todavia, calá-las, pois são a marca da minha grandeza. Saí de casa e fui ao café. Dali, segui até à farmácia. Desta, rumei à padaria. Por fim, dirigi-me ao hipermercado. Em todos estes sítios, fiz o que é suposto fazer: tomei café, comprei medicamentos, trouxe o pão encomendado e abasteci-me de coisas como rúcula, uma garrafa de alvarinho e mais uma série de mercadorias que já não recordo. Dantes, os meus sábados começavam, ao sair de casa, com a compra dos jornais — sim, no plural —, e ia lê-los para alguma esplanada, enquanto tomava café. Tornei-me, porém, um homem moderno. Deixei de comprar jornais. Agora, assino-os e leio-os em plataformas digitais. Tem a vantagem de não ficar com as mãos sujas de tinta e de passar menos tempo no café. Dir-se-á que estou reduzido à mais pura domesticidade. É um ponto de vista, talvez demasiado literal, mas não é esse o destino de qualquer grande aventureiro que teve o azar de nascer no mundo moderno? Que teriam sido o Cid e mesmo o Quixote, se tivessem visto a luz do dia no século XX? Aventureiros de hipermercado, combatentes de padaria, heróis reformados a caminha da farmácia, antes mesmo de entrarem em acção. Sou como eles. Antes isso do que um louco a escrever diários.
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