terça-feira, 13 de maio de 2025

Memorial

Louise Glück, poetisa e Prémio Nobel de 2020, começa o poema Paraíso com a seguinte constatação: “Cresci numa aldeia: agora / é praticamente uma cidade.” Também eu cresci numa aldeia, mas não terei aí crescido durante muito tempo. Desertei, fui crescer para outro lado, que é agora uma cidade. A aldeia continua aldeia, sem pretensão a cidade, mas, durante esta minha longa ausência, tornou-se freguesia. Não sei que glória traz essa elevação, mas imagino que os aldeãos, meus conterrâneos, devem ter ficado felizes por se terem tornado fregueses de si mesmos. Por vezes passo por lá, só para ver os sítios onde, há muito, aprendi a ler e a escrever, onde nasci, onde morei, onde moraram muitos que me eram queridos. Sempre que lá vou, olho para a face das pessoas, mas não encontro a da minha avó, nem a de um tio-avô, ou de um tio ou tia. Raramente avisto a de um primo ou prima. Daqueles que aprenderam a ler comigo, já não reconheço a face, nem — para vergonha minha — lhes sei o nome. Porém, tudo isso ainda vive em mim. Quando me dedico à arqueologia — arqueologia pessoal, entenda-se — é para escavar nesse território memorial, para descobrir os cabelos brancos da minha avó, o nome de algum colega, uma história do tempo da guerra que a minha mãe contava. São visitas às fundações. Talvez por isso estou grato pela aldeia onde, em parte, cresci não ter tido o destino da aldeia de Louise Glück. É um exercício egoísta, claro: um desejo de preservação de um tempo arcaico que me permitiu ser o que sou. Mas não sinto o dever de benevolência, o dever de imolar a minha memória às fantasias urbanas. O que nos resta quando perdemos a memória?

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