quarta-feira, 7 de maio de 2025

Mas pontual

Um dos pontos habituais destes textos é o protesto contra a difícil relação dos médicos com o horário das consultas. Hoje, todavia, não tenho motivo para isso: consulta às 15:30 e estava a entrar para o consultório às 15:30. Com este médico sempre foi assim. Meditei, depois de sair do consultório, sobre o motivo que o levará a estar reconciliado com o andar dos ponteiros do relógio. Depois de pensar em diversas hipóteses, deparei-me com aquela que é mais óbvia: a sua especialidade. Um arritmologista. O seu trabalho é sobre o ritmo do coração. Como poderia ele cuidar do ritmo cardíaco dos pacientes se, por acaso, tivesse um conflito com a natureza rítmica do tempo? Isto ensina-nos uma coisa fundamental: a necessidade é a mãe da pontualidade. Talvez eu seja pontual apenas por necessidade. Não uma necessidade exterior, uma imposição social, mas por uma inclinação pessoal: detesto chegar tarde. Por norma, chego antes, a não ser que isso seja um inconveniente. Há uma série de pequenas coisas que fazem parte daquilo que detesto: perder seja o que for, partir um objecto, o descuido naquilo que se faz. Isto, porém, não significa que me manifeste quando uma dessas coisas sucede. Sofro-a com paciência. Aliás, a reacção tem dois momentos: no primeiro, sinto a irritação; no segundo, encolho os ombros e rio-me da minha irritação. Qual o significado disto? Significa que tenho uma propensão para um certo dogmatismo acerca da ordem do mundo, o qual é temperado pela compreensão da inutilidade dessa ordem. Vivo o dogma e a desconstrução. Habito entre uma coisa e outra. Sou esse meio. Isto é: não sou uma coisa nem outra. Em resumo: sou nada. Mas pontual.

Sem comentários:

Enviar um comentário