Observemos
os seguintes começos de romances: “Eu andava, aquele Inverno, sacudido por
abstractos furores.”; “Erica chegou à grande cidade no final duma guerra. Era
Inverno, fazia frio e as fontes das praças estavam geladas.”; “O Inverno de 44,
em Milão, foi o mais calmo que tinha havido desde um quarto de século...”. O
primeiro começo pertence a Gente da Sicília; o segundo, a Erica e os
Irmãos; o terceiro, a Os Homens e os Outros. Estes começos têm duas
coisas em comum: pertencem a romances escritos por Elio Vittorini e, como se
terá reparado, referem, todos eles, o Inverno. Disto nasce um enigma: o Inverno
será uma estação universalmente propensa a figurar no início de um romance ou
será apenas uma idiossincrasia de Vittorini? Contudo, o enigma não me motivou
para qualquer investigação. Preferi levantar-me e ir comer uns quadrados, em
forma rectangular, de chocolate preto com amêndoas. E esta é a minha lição
moral de hoje: sempre que um enigma se ponha à porta da consciência, o melhor a
fazer, para não desvendar os segredos que nascem no inconsciente, é comer
chocolate. É uma modalidade prática e quase sem custos para manter os enigmas
no seu estado enigmático. Não há nada de mais infeliz do que ver um enigma
deixar de o ser; não apenas aquilo que é enigmático se trivializa, como essa
trivialização contamina aqueles que viam o enigma como tal. Devia ter feito
vida — penso-o agora que é demasiado tarde — de moralista. Percorreria o país,
talvez o mundo, a dar lições de moral, distribuindo injunções, mandamentos,
preceitos, prescrições e imperativos. Seria, estou certo, um moralista
completo, e quem me escutasse haveria de tornar-se num ser moral. Das coisas
mais triviais ou das mais absurdas haveria de extrair uma lição e mesmo uma
máxima. Não me ocorreu, enquanto era tempo, a possibilidade. Talvez tenha
falhado a existência, mas também não é todos os dias que se encontram três
romances do mesmo autor com o Inverno dentro do começo. E o Inverno é uma
óptima estação para moralizar. Ou talvez não, quem sabe.
segunda-feira, 29 de dezembro de 2025
Um moralista falhado
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