A humanidade divide-se em três categorias. Os sagazes, os
estultos e os outros. Não me coube nem o estatuto dos outros nem o dos sagazes.
Restou-me entrar no clube dos que cultivam a estultícia. Como todos os
estultos, sou um praticante assíduo. Nunca falto a um treino e compito nos melhores
campeonatos de estultícia para seniores. Hoje entrei numa livraria para ver os
livros. Realizei plenamente o meu desígnio. Cumpri os objectivos, como agora se
diz. Cheguei lá, olhei para as estantes e vi que tinham umas coisas vagamente
parecidas com livros. Foi uma contemplação pura. Só um estulto entra numa
livraria sem óculos. Os sagazes são precavidos e, caso necessitem, terão sempre
uns à mão. Os outros nem precisam desses benévolos dispositivos pois não entram
em livrarias, espaços que são apenas frequentados por sagazes e estultos que se
pensam sagazes. Um funcionário perguntou-me se eu precisava de ajuda. Que não,
respondi e agradeci o empenho solícito. Não lhe ia pedir uns óculos emprestados
nem que me lesse as lombadas dos livros. Ainda não cheguei a essa fase. Como
todos os estultos insisti em comprar livros. Quando cheguei a casa descobri que,
caso tivesse óculos, não teria comprados dois dos que comprei. Sempre posso ir
trocá-los, mas está tanto calor e nada me garante que leve óculos e não acabe
por trazer os mesmos que teria devolvido. O que me valeu para disfarçar, aos
meus olhos, a estupidez natural foi uma cliente que estava em muito pior estado
de conservação do que eu. Ia conversando com os empregados e o dono da livraria
e acabou, entre pagamentos, considerações literárias e pedidos para guardar a
encomenda, a oferecer-lhes croquetes. Óptimos, asseverou, e como comprei seis e
sou só uma. Eles agradeceram. Ela saiu e eu fiquei a pensar quando será o dia
que entro numa livraria e, mesmo com óculos, acabo a oferecer croquetes ou
pastéis de nata à menina da caixa. Nunca se sabe para o que estamos guardados.
sexta-feira, 17 de julho de 2020
quinta-feira, 16 de julho de 2020
Falta de concorrência
Tudo se paga nesta vida. As coisas irritantes que não fiz
ontem fi-las hoje. Ao sair de casa, a atmosfera purgava grossas bagas de calor,
inundando ruas e avenidas com um ar tão quente que logo se imagina o dia
propício a um grande desvario. Pôr o carro a lavar, passar pela oficina e pagar
a bateria que ontem vieram colocar quase ao anoitecer, passar pelo seguro para
levantar a carta verde. Faltou-me apenas abastecer o depósito. Uma manhã
dedicada ao automóvel, ainda assim sem completar todas as tarefas. Tirando a
adolescência, que pela sua natureza não conta nestas considerações, a minha
relação com carros sempre foi enviesada. São coisas que me cansam, embora me
dêem algum jeito. Aquilo que eu gostaria mesmo era de teletransporte, mas ainda
não está disponível na gama de mercado a que posso aceder. Uma pessoa
fechava os olhos, concentrava-se no destino para onde queria ir e, passados
segundos, encontrava-se lá de carne e osso. Era uma grande vantagem. Perdia-se
menos tempo, a poluição baixava drasticamente e os milhões de empregos ligados
aos transportes seriam alocados – meu Deus, como é possível deixares-me escrever
esta palavra? – a coisas mais filantrópicas, cuja natureza agora não me ocorre.
De facto, o mundo foi muito mal construído. O arquitecto deveria ter um
espírito aberto e democrático e escutar a freguesia. Um amigo economista
confidenciou-me que isso se deve à falta de concorrência. Se os clientes
pudessem escolher entre vários mundos possíveis, os arquitectos em competição
preocupar-se-iam com os interesses dos consumidores. Sendo assim, é o que se vê. Um
mundo cheio de vírus e sem teletransporte. Uma pepineira.
quarta-feira, 15 de julho de 2020
Da perfeição
Tenho coisas irritantes a tratar na rua, mas o calor e toda
a coreografia implicada no sair de casa, descer à garagem, abrir e fechar
portas, carregar em botões e digitar códigos, tudo isso espalha em mim um véu
de cansaço. Protelo e espero por melhor altura. Antes de almoço peguei nas
obras completas de Mário Cesariny. O problema é que não tinha óculos. Na capa
ainda distinguia as palavras, mas os poemas não passavam de manchas. Em vez de
ir à procura dos óculos fiquei a ver a configuração espacial dos poemas, a
espreitar como a cinza textual se destacava da superfície bege do papel. Não se
deve desprezar na apreciação de um poema a forma como ele ocupa o espaço. Há
muitos anos, talvez há mais de vinte, mas não sei precisar, uma galeria local
organizou uma sessão com alguns membros do grupo surrealista português. Ia
jurar que o Cesariny esteve presente. Tudo aquilo pareceu-me anacrónico e
penoso, mas achei graça à apresentação que o organizador desta edição da poesia
de Cesariny, também presente, fez de si. Perfecto E. Cuadrado, uma redundância,
acrescentou, pois se se é quadrado já se é perfeito. Para além da sensação de
anacronismo, foi o que retive do evento. Se alguém, porém, me afiançar que tudo
isso é invenção, não serei eu que o hei-de contraditar. Bocejo, pego nos óculos
e entrego-me ao expediente. Também eu procuro a salvação.
terça-feira, 14 de julho de 2020
La Dernière Valse
Há uma eternidade ofereceram-me, trazido de Paris, um pequeno
caderno para anotações. Talvez tivesse sido uma agenda, já não consigo precisar.
Não sei se alguma vez escrevi nele ou nela alguma coisa, mas não o esqueci por
completo. Tinha na capa uma fotografia de 1949 da autoria de Robert Doisneau, La Dernière
Valse du 14 juillet. É uma fotografia extraordinária. Um par solitário
dança na rua. A noite caíra sobre os prédios. Só sombras silenciosas, inumanas,
vindas da caverna onde dorme a noite, assistiam ao espectáculo. Quem olha a
fotografia não vê apenas o que está nela, um homem e mulher fixados eternamente
numa posição imutável. Vê-os fluir, adivinha-lhes os passos de dança, ouve a valsa,
envolve-se na performance, sente
vontade de aplaudir. Há em tudo isto uma ironia. Como é que um acontecimento
irado e terrível com o passar dos anos se transforma numa valsa? Talvez todos
nós, enquanto vivos, valsemos sobre o cadáver de milhões de mortos e a valsa
seja um exercício de purificação da memória. Ou talvez a vida seja outra coisa,
como a bateria do carro que se apagou, a necessidade de ligar algum dispositivo que
arrefeça a casa, aquilo que não se pode esquecer quando se vai às compras. O
braço dele cinge-a pela cintura, a saia abre-se como uma flor e a noite não pára de cair sobre aquele par solitário que valsa há 71 anos.
segunda-feira, 13 de julho de 2020
Viver sitiado
Fecho-me em casa, escondo-me do calor como quem se esconde de
um vírus. Cerro as persianas e preparo-me para os dias de cerco que tenho pela
frente. Aqui, o sol é um inimigo implacável. Dardeja sem parar raios cheios de
rancor, desejoso de incendiar as cidades por ele sitiadas. Há nele uma sanha
incompreensível para pobres mortais como eu. É possível que a sua aversão tenha
nascido de algum despropósito nosso, de lhe termos negado a divindade ou,
terminadas as colheitas, de não lhe rendermos culto. Desconheço o que lhe move
o ódio. A serra, com os seus muros de calcário, impede o vento marítimo de vir
em socorro dos que são mártires da desmesurada ambição do astro. Não vale a
pena acusar-me de tratar o Sol como se fosse um ser dotado de razão, agindo por
motivos demasiado humanos. À falta de personagens reais, humanizo aquilo que me
vem à mão. O Sol, a Lua, uma pedra, até a mim, que não passo de um pensamento
no pensamento de outro que não sou eu. O telemóvel informa-me a hora e o dia.
Vejo que num dia 13 de Julho, Charlotte Corday assassinou Marat. Vejo retratos
de ambos e o dela parece-me de longe mais benevolente. Sempre achei o quadro de
David, La Mort de Marat, um exercício
de canonização do mal, mas sobre isso é melhor não me pronunciar e remeter-me
ao meu papel de simples narrador tiranizado pelo despotismo do autor, talvez um
discípulo de Marat. O calor não me faz bem. A 13 de Julho nasceu Júlio César,
reparo agora. Decididamente, é um dia que tem demasiado sangue nas mãos. Talvez
seja da temperatura. Nunca sabemos realmente a causa das coisas, admito.
domingo, 12 de julho de 2020
Do uso da máscara
As
coisas que se encontram sem serem procuradas. Não falo de objectos perdidos,
curiosidades da natureza, uma nota de cinco euros ou artefactos do engenho
humano. Caminha-se, caminha-se, e súbitas revelações explodem na consciência. Está
a tornar-se uma moda as pessoas usarem a máscara debaixo do queixo e no
pescoço. Qual a razão? Não se compreende, mas ao andarilhar mundo fora a mente
desprende-se de uma visão excessivamente racional e, subitamente, tem um insight que a faz perceber a verdade. As
pessoas protegem-se do vírus da papeira ou tentam evitar, à outrance, um resfriado na garganta e, para isso, não há melhor
defesa do que uma máscara. Descobri também, num caminhante inovador, que estes novos
dispositivos de protecção contra aerossóis se podem usar no braço para evitar a
dor de cotovelo. São muito eficazes, amortecem o impacto e poupam ao mundo a
dor daqueles que nunca deixam de se queixar da imoralidade do universo ou da
maldade humana. São estas pequenas iluminações que evitam o desespero com este
domingo. Promete uns refrescantes 38 graus. Talvez nos queira fazer lembrar que
por muito que os nossos antepassado tenham fugido de África, será a ela que
todos teremos de retornar. Espero que o autor não me censure este devaneio
meditativo. O calor justifica os maiores disparates e antes estes do que outros
ofensivos do decoro da sociedade.
sábado, 11 de julho de 2020
Uma ida ao café
Havia alguns clientes na esplanada, mas no interior o café
estava vazio. Sentei-me lá dentro rodeado pelo sossego da província, tirei a
máscara e arrumei-a longe da vista. A rapariga atendeu-me, e eu desmascarado
passei os olhos pela imprensa. Um estranho hábito. Julgo que o bebi na
infância. Café, pedia o meu pai, e abria os jornais que comprara. Sempre um de
informação geral e outro desportivo. Naqueles tempos havia matutinos e
vespertinos. Eu comia um pastel de nata à colher, embora não recorde a razão para
evitar a parte folhada. Uma das minhas idiossincrasias relativas a comida, a
qual era para mim, até aos dez anos, um poderoso inimigo e motivo de grandes
dissídios com a minha mãe. Odiava comer, coisa que me passou. Dispensava até
que tivesse sofrido uma transformação tão radical. Quando comecei a ler tinha
direito a um livro de aventuras, uma banda desenhada quase sempre centrada no
longínquo oeste. Sempre vivi rodeado de jornais, mas há muito que deixei de
comprar os desportivos. O assunto deixou de me interessar e aquilo tornou-se
uma leitura tóxica. Não é que a imprensa de referência não esteja cheia de
toxinas. Está, mas desenvolvi resistências e aquilo não me faz mal. Julgo,
todavia, que o país não desenvolveu imunidade de grupo. Um dos cafés a que o
meu pai me levava tinha umas cestinhas de figos secos em exposição e, se não
estou enganado, penduradas nas paredes. Os figos eram cobertos por um folha de
celofane amarelo, mas posso esta a inventar. Esse café desapareceu há décadas,
também o meu pai foi para um lugar onde não existe imprensa e onde não se
vendem livros de aventuras, e eu como pastéis de natas à mão e nem a parte
folhada deixo de lado. O sábado progride vagaroso, o silêncio do café
mistura-se com um artigo de opinião. Se gostasse, haveria de ir à praia. Deixei
de gostar. Para não incorrer numa falácia, não infira que não irei, embora eu
não vá.
sexta-feira, 10 de julho de 2020
O oblívio dos pontos cardio
Cobre-me o dia uma pouca vontade para que nele inscreva
qualquer coisa. Respiro fundo e sou invadido pela sensação de que sempre é
assim. Dias cobertos de vontades poucas. A manhã começou com uma caminhada.
Depois, entreguei-me com zelo a trivialidades, mas a existência é feita de
coisas triviais. Ninguém suportaria uma vida inteira preenchida, momento a
momento, de grandes acontecimentos, mesmo que fossem apenas privados. As manhãs
parecem-me sempre tecidas com o fio da inocência, que uma alma cândida terá
fiado durante a noite. O estado virginal, porém, vai-se maculando com o passar
das horas e o tecido do dia, de início tão branco e resplandecendo, encarde-se
e perde o fulgor. Quando caminho, levo o telemóvel para que este supervisione o
meu andamento e que me informe quantos pontos cardio acumulei. Aqui entre nós, confesso que não faço ideia do que
sejam pontos cardio, mas gosto do
nome, de uma certa musicalidade que há nele. Hoje nas deambulações matinais não
encontrei ninguém conhecido. Por vezes, algum outro caminhante passava por mim,
mas era uma sombra que se desvanecia, a caminho doutro santuário que não o meu.
A palavra oblívio começou a retinir em mim. É mais bela que cardio e não há melhor remédio para
muitos males do mundo que o oblívio. Pudera eu, até me obliviaria de mim.
quinta-feira, 9 de julho de 2020
Um buraco negro
Pela primeira vez, em meses, ouvi um bando de
pós-adolescentes algazarrear junto ao centro de línguas, na praceta aqui em
baixo. Não faço ideia se o centro reabriu ou se eles se juntaram ali para
descontrair de algum exame feito ou a fazer na escola ao lado. Estavam de
máscara, pareceu-me, mas as vozes elevavam-se com a força que só a inocência
lhes dá, mesmo que seja uma inocência que se julga culposa, crente de que uns
quantos desvios às regras lhes dá uma experiência mundana que porá todos os
velhos de boca à banda. Para aquelas idades, alguém com pouco mais de trinta
anos é um velho irremediável. Quando tiverem sessenta descobrirão que ainda não
são velhos. Continuam a florir os arbustos da escola. Ando há meses a tentar
recordar o nome daquelas plantas, mas ainda não o consegui. Talvez nunca o
tivesse sabido. Na casa de uma das minhas avós havia uma paliçada coberta por
umas trepadeiras que davam umas flores roxas que, abertas, tinham uma forma de
campânula ou sino. Que nome teriam elas? A Botânica não é o meu forte. Ontem o
meu neto veio visitar-me. Mal me vê puxa-me o dedo para vir para a secretária
onde não se cansa de bater no teclado. Depois, quer que eu o empurre na cadeira
do escritório. Estas viagens de cadeira de escritório já vão na terceira série.
Os dias deslizam para o buraco negro de onde, devido à intensidade do campo
gravitacional, nunca conseguem regressar. E com isto resolvi um dos grande
enigmas da humanidade. Por que razão não conseguimos viajar para o passado? A
resposta é simples. O passado não é um país estrangeiro onde as coisas se
fazem de forma diferente, como pensava o senhor Hartley, mas um buraco negro
onde tudo o que nele cai desaparece para sempre. Exausto por esta descoberta,
calo-me para não a estragar.
quarta-feira, 8 de julho de 2020
Carnaval eterno
Acordei ainda não eram sete da manhã. A temperatura na rua
tinha descido bastante, apressei-me a
abrir janelas e a pôr a casa sob o efeito de correntes de ar. Estava uma manhã
esplêndida. Cinzenta, fria. Um vento suave lavava o rosto da cidade encardido
pelo calor. As ruas pareciam transitáveis e dos prédios começavam a sair as
primeiras pessoas em direcção aos carros estacionados sob árvores, de onde se
desprende um fluido viscoso que se pega aos vidros. Um atleta paroquial,
equipado a rigor, passou na sua bicicleta de corredor, um homem de máscara
trazia um cão pequeno à tela, a vida mascarava-se de normalidade. Quando saí, o
feitiço tinha desaparecido. O Sol rompera as muralhas e tornara-se ameaçador.
Na esplanada do café da praceta, havia clientes nas três mesas que agora flutuam
distanciadas no estrado. Numa delas, a Marília conversava com o Zé Tó. Afinal
quem estava no outro dia a sambar para ela não era o Esteves nem o Lopes, mas o
Zé Tó, que, enquanto geólogo, andou por meio mundo à procura de petróleo. Esse
deambular é toda a metafísica que lhe coube, mas ninguém quer saber de
metafísica para coisa alguma. Os olhos já tiveram melhores dias, foi o que me
ocorreu, quando percebi o troca que fizera da outra vez. Passei por eles, olá,
olá, e continuei em direcção ao meu destino, pois hoje tinha um. Entrei nele
mascarado, estive por lá mascarado e saí mascarado. Embora a criatividade nos
disfarces ainda seja incipiente, o Carnaval está a tornar-se eterno. Não tarda
e todos sentiremos falta da Quarta-Feira de Cinzas.
terça-feira, 7 de julho de 2020
Perdido na floresta de calor
Almocei, depois de uma manhã entregue ao que o dever me
impõe. Agora, antes de continuar a dar atenção ao que me diz o imperativo
categórico, dou uma vista de olhos pela imprensa. Isto não vai acabar bem, foi
a ideia que se formou na minha mente. Não interessa o que é o isto. Seja o que for tem grandes
possibilidades de acabar mal. A temperatura está nos 38o e vai
continuar a subir. Lembrei-me da história do pastor e do lobo. Andamos desde
finais do XIX a gritar lobo, lobo, sem que se avistasse, talvez por cegueira ou
por não se gostar de abrir os olhos, lobo algum. O lobo guardou a sua visita
para estes dias. Está no meio do rabanho e ninguém acredita. Com este calor não
me ocorre nada mais edificante para partilhar ou, então, estou naquela fase da
existência em que as minhas referências existenciais são Esopo e os irmãos
Grimm. Há quem tenha opinião diferente. Um livro que tenho à minha frente, ao
abri-lo, enviou-me a seguinte mensagem: Acolhe-te
o paraíso dos loucos. Não devemos desdenhar os sinais. Se toda a gente
desse atenção aos sinais, talvez o lobo não andasse por aí e o rebanho pudesse
dormir mais descansado. As duas vezes que usei a palavra rebanho escrevi
rebalho. Isto preocupa-me. O que me levará a trocar o n pelo l? Desconfio que
há qualquer coisa a correr mal no convívio entre os meus neurónios. Talvez o
lobo já por lá ande e eu não tenha dado por isso. Tomo consciência do que me
espera nas próximas horas e enrolo-me no lençol da paciência e no cobertor da
piedade. É nestas alturas que perco a vergonha de ter pena até de mim mesmo.
Uma voz soletra age de tal maneira que
possas querer que a máxima da tua acção se torne em lei universal. Será a
autopiedade uma lei universal? Bocejo. Vou trabalhar.
segunda-feira, 6 de julho de 2020
Arrasto-me
Neste momento estão 38 graus, mas há a promessa de se chegar
aos 40. Não faço ideia como alguém consegue fazer alguma coisa que tenha
sentido, por pouco que seja. Se observo a minha mente, o que vejo é uma névoa
turva onde os parcos neurónios que não desertaram bóiam, mantendo uma distância
de segurança suficiente para cumprir as regras do combate à pandemia, sem
tentações de fazerem sinapses, conexões, de se entregarem a amplexos dos quais
haveria de nascer um sentido. O que me vale é não ser dado a fúrias
mediterrânicas e as minhas relações com a tragédia grega serem apenas as de um
leitor distante. O calor não fomenta em mim a inclinação para o crime, como
acontece com outros, mas o mérito que tenho nisso é nulo. Aconteceu ser assim.
Fico tolhido, olho o mundo com condescendência e arrasto-me na existência como
o mais impotentes dos seres que a vida se lembrou de retirar do nada para que
soubesse o que era uma tarde quente e seca. Toda esta conversa serve para dizer
que não tenho nada para contar, ao contrário de alguém que conversa no café da
praceta aqui ao lado. Não se cala e o som indistinto das palavras chega até a
mim. Uma outra voz, a espaços, corta-lhe interrompe e fala. Talvez seja a isto
que se chama conversar, mas não tenho a certeza. É em dias como o de hoje que
me lembro das sábias palavras, já aqui citadas, de Afonso X Se eu houvesse podido aconselhar Deus na
criação – atreveu-se ele a dizer – muitas
coisas teriam sido mais bem ordenadas. Queixo-me do mesmo, de Deus ter
criado as coisas sem me pedir opinião, ainda por cima com evidente propensão
para o igualitarismo mais prosaico, para não dizer rasteiro. Amemos ou odiemos o
calor tórrido, Ele envia-o em doses iguais para todos os que aportaram a esta cidade
esquecida pelo Céu. Consta que não fez o mesmo com o frio, pois a voz do povo
diz que Deus dá o frio conforme o
cobertor. Deveria evitar este recurso à cultura popular. Não abona a meu
favor. Só deveria ter grandes e nobres palavras, como pretendiam os gregos
antigos, que me elevassem e comigo ao leitor. Chega-me um vídeo. O meu neto de
braçadeiras amarelas dentro de água. Quase o invejo, mas tenho de acabar o
texto aqui.
domingo, 5 de julho de 2020
Expelir opiniões que ninguém pediu
Este parece-me um domingo dos antigos, daqueles que só
existiam no tempo imaginado da infância. O calor lança a tenaz sobre os seres
humanos e, enquanto estes esbracejam espavoridos, aperta-os lentamente até
sufocarem. Com a minha inclinação para a hipérbole, estou a dramatizar. As
pessoas, talvez a maioria, folgam com a chegada do tempo abrasador e usam-no
para poder partilhar um pouco dos seus corpos com os espectadores ocasionais. Afinal,
não fui a Lisboa. O alemão amigo do padre Lodo acabou por não vir, retido por
afazeres da mulher, uma espanhola. Não tardará, porém. Fiquei aliviado, pois
ainda não me apetece a capital. Tenho uma série de afazeres que guardei para este
domingo, contrariando o sábio conselho de não guardar para amanhã o que se pode
fazer hoje, dada por um astuto advogado a um camponês, num dos textos do livro
da segunda classe, talvez da terceira. Os livros dessa antiquíssima instrução
primária eram curiosos e deixaram uma legião de saudosos, que vão comprando as sucessivas reedições. Eram de tal maneira
verrumantes da consciência que, aí pela terceira ou quarta classes, pensava que
todos os nossos reis, rainhas e heróis nacionais eram não apenas seres dotados
de uma coragem superior, como de uma sabedoria sem fim e, acima de tudo,
juro-o, autênticos santos, todos com passaporte directo para o céu, sem terem
de passar num controlo de fronteiras nem fazer teste à COVID-19. Portanto, não
havia nenhuma ideologia nem condicionamento das consciência naqueles tempos,
mas estou impedido, enquanto simples narrador, de me meter em assuntos políticos,
e suspeitar que alguns daqueles heróis, se não a maioria, eram pouco dados à
santidade é um assunto perigoso nos dias de hoje. Só o calor teria poder para
destruir as minhas defesas e fazer com que eu me pusesse a expelir opiniões
que, a bem da verdade, ninguém me pediu nem quer saber. Passa do meio-dia, sombras
raquíticas escondem-se debaixo das árvores. Na Sá Carneiro, o trânsito é de um
domingo de Verão anterior ao surto epidémico. Tremo só de pensar que um dia se
dirá no ano vinte antes da pandemia ou o ano cinquenta e seis depois da
pandemia. Hoje o almoço será mais tarde. Tenho tempo para meditar na santidade
de todos aqueles heróis que foram morrer a Alcácer-Quibir, todos tão castos,
mas talvez a castidade ajude pouco em certos assuntos terrenos.
sábado, 4 de julho de 2020
Faltar à verdade
Entrei no café e depois de me sentar tirei a máscara. De
seguida, folheei a imprensa que tinha comprado. Uma columbina trouxe-me café e
o mais que omito para evitar comentários desassisados. Duas mulheres entram,
também elas convidadas de um baile de Carnaval, mas mal se sentam retiram o
disfarce. Fizeram bem, não precisam dele e o estarem a bater à porta dos trinta
apenas sublinha a sorte que a lotaria genética lhes decidiu conceder.
Embrenho-me na leitura das crónicas de uma plumitiva e depois de um plumitivo.
Ambos muito opiniosos, mas será para isso que lhes pagam as avenças. Cumprem o
contrato com palavras perfurantes e ademanes voluntariosos. Se o mundo a eles
tivesse sido entregue viveríamos todos no paraíso, concluo da leitura. De
súbito, percebi o erro que cometo quando evito frequentar espaços públicos. Uma
das minhas vizinhas bafejadas pela hereditariedade diz, numa ira contida, quase
sussurrada, ainda audível, que se ele mentisse ainda era perdoável, agora
faltar à verdade é inadmissível. Não sei quem é o ele, mas fico-lhe grato e a
dever-lhe a revelação mais importante da minha existência. A verdade é um
acontecimento. Uma pessoa pode faltar à verdade como falta ao trabalho, a uma
aula, à missa, a um jogo, ao jantar para que foi convidado, à festa de
aniversário a que não deve faltar. Elas continuam a conversa conspirativa, mas
eu penso sobre o que é mentir, esse mero desacordo entre o que se diz e o que
acontece, e faltar à verdade, uma falta de comparência, não estar no sítio em que
ela marca encontro. Olho a minha vizinha com atenção e achei-a ainda mais bela
e desejável, na roupa leve que a veste e na ira branda que lhe toca o rosto. Ela
levantou uma mão e com os dedos esguios compôs o cabelo, disfarcei o olhar,
fechei o jornal, coloquei a máscara, paguei e saí. Havia gratidão no meu andar
e até ao sol violento que me acolheu saudei como se fora um velho amigo, a quem
se perdoa uma travessura. Tenho de me apressar, a verdade espera-me em casa.
sexta-feira, 3 de julho de 2020
Caminhadas e caminhantes
Tenho de beber água. Foi o primeiro pensamento que me
ocorreu quando me sentei para escrever. Já fiz 6 quilómetros e não bebi
qualquer líquido. Sinto a boca seca e a energia esvai-se, envolvendo-me numa
nuvem sonolenta que, como uma ave de rapina, cai sobre o meu depauperado corpo.
Levantei-me cedo e aprontei-me rapidamente para ir caminhar. Os caminhantes,
uma espécie de penitentes que se flagelam por pecados triviais, diferenciam-se
pelas horas que escolhem para a penitência. Os da manhã querem lavar a alma das
aventuras oníricas que o sono lhes proporcionou. Os do entardecer são
trabalhadores esforçados que, ao mexer as pernas, se aliviam do peso das
responsabilidades. Os da noite são mais secretos e não são evidentes as razões
que os põem a caminho. Evito especular sobre aquilo que os move. Na caminhada
matinal encontrei a Lu. Sempre foi assim que foi conhecida a Lúcia, a irmã mais
velha da Marília do Dirceu. Olá, disse-me ela. Olá, respondi. Temos que lutar
contra o tempo, acrescentou e eu digo que sim, embora sem saber como se luta
contra tempo. Isto foi no instante de nos cruzarmos, depois ainda oiço uma voz
feminina a dizer bom-dia doutora e a voz da Lu a responder bom-dia, mas não
olho para trás e se a conversa continuou não dei por isso. A Lu, quando a
família foi para Brasil, decidiu ficar por cá, estava a acabar os estudos, como
se dizia, e participava com esmero na nova ordem, da qual o resto da família
fugia. Quando li a primeira vez a Antígona, foi sobre ela que construí a imagem
da desventurada heroína grega, só que o Creonte tinha sido deposto e ela não
tinha irmãos para pelejarem por bandos inimigos. A realidade nem sempre acompanha
a perfeição da arte, o que mostra o erro de certo filósofo que derramava
certezas sobre este ser o melhor dos mundos possíveis. Acima escrevi pecados
triviais. Como pude fazer uma coisa dessas? Não há pecados triviais. Podem ser
veniais, aqueles que merecem perdão, mas todos os pecados são extraordinários,
rompem com a ordem, embora uns desordenem mais que outros. Os mais amigos do
caos são pecados capitais aos quais se aplica pena também ela capital, embora a
relação entre uma coisa e outra não seja linear. Continuo com sede e a teologia
não é o meu forte, apesar de a minha rua – uma estranha rua em semicírculo com
nome de jornal local – ser habitada por não poucos anjos, mas também a eles não
lhes interessa a teologia e, por isso, se falam comigo não é sobre esse tipo de
assuntos, embora não deixem de ter uma certa curiosidade por palavras como
lascívia, luxúria, concupiscência, voluptuosidade. Eu tento desviar o assunto,
falo-lhes em pecados capitais como a ira, a avareza, a preguiça, mas elas dizem
que não querem saber disso para nada. Que lhes descreva uma mulher voluptuosa,
uma cena lasciva. Um dia, se a voltar a encontrar, hei-de perguntar à Lu como
se luta contra o tempo. Enquanto isso vou pensar como posso satisfazer o pedido
dos anjos meus vizinhos.
quinta-feira, 2 de julho de 2020
Desaguisados e protozoários
Não sei o que me deu hoje de manhã para pisar a balança. Irritou-se
e devolveu-me o peso em tom de ameaça. Saí de cima dela e ouvi-a rosnar. Se
tornas a pisar-me em dia útil, faço pior. Vai fazer alguma coisa pela vida.
Tentei serená-la com desculpas e promessas de que nada farei para estragar a
bela amizade que nos dias de confinamento – e restaurantes fechados – tinha
nascido entre nós. Não é a melhor coisa do mundo começar o dia com um
desaguisado. Quando me sentei à secretária, entreguei-me a escrever umas
patetices, mas agora estou livre delas e sinto-me aliviado do fígado. Oiço o
som insistente de uma sirene, mas não faço ideia se é fogo, desastre ou crime.
Talvez seja apenas alguém doente que urge levar para o hospital. Talvez seja
outra coisa qualquer, pois desconheço todas as razões que permitem ligar uma
sirene e encher a atmosfera com a angústia implorativa daqueles gritos mecânicos.
No outro dia fiquei a observar um carreiro de formigas, não das pequenas, mas
das outras que se encontram nos campos, mais encorpadas e apessoadas. Marchavam
com disciplina, como se tivessem uma alma militar. Nunca sabemos, na verdade,
que tipo de alma têm seres como os insectos, os pássaros e os protozoários. Não
tenho a certeza, mas julgo que a palavra protozoário foi a única coisa que
retive das lições de ciências naturais. Mesmo a palavra célula tenho dúvidas se
foi lá que a aprendi. Tenho de ir beber café e comer qualquer coisa, de
preferência sem calorias, sem sabor, sem odor, sem prazer.
quarta-feira, 1 de julho de 2020
Bocejo
Bocejo, não porque a realidade seja um tédio, mas porque
tenho sono. Às seis da manhã acordei com sede, o que me tirou da cama. Bebida
água, fiquei a ler, mas já não me lembro o quê. Quando voltei a adormecer fui
acordado pelo despertador. A manhã estava esplêndida, no céu não se prometia
uma invasão de calor e um vento suave refrescava a paisagem, fazendo tremer as
folhas que, mal ele se recolhia, ficavam em sossego, à espera da reverberação
matinal. Ainda não saí de casa, mas também ninguém espera por mim. O telemóvel
está sempre a dar-me informação. Chega ao cúmulo de partilhar comigo quais são
as aplicações que lhe estão a gastar bateria. Se eu quero que ele as feche,
pergunta-me. Ora, ora, se eu fosse fechar as aplicações que me gastam a bateria,
o que seria de mim? Tornei a bocejar, no exacto momento em que se ouviu uma
buzina agastada. O que quererá dizer esta coincidência? Abro a boca na mesma
hora que alguém carrega na buzina. Um acaso, diz-me o anjo benfazejo, não quer
dizer nada. Falso, grita irritado o amigo do capeta. Não há acasos, tudo está
milimetricamente determinado. Encolho os ombros e deixo os anjos a
digladiarem-se sobre questões metafísicas. Estão no território deles e o mais
avisado é não me meter. Vou dormir a sesta.
terça-feira, 30 de junho de 2020
Nada de sedições
Ir às compras é um filme, como agora oiço dizer, talvez
porque se suspeita no acto todo um enredo do qual se espera um desenlace feliz.
Noutros tempos talvez se dissesse é um romance, mas as pessoas só lêem livros
de auto-ajuda, como se quisessem descobrir em si o poder de uma graça que as
salvasse. Os compradores deambulam pela superfície comercial mascarados, mantêm
distâncias, tentam descobrir quem se esconde por detrás de uma máscara, se é
alguém conhecido, um Pierrot ou uma Columbina, se àqueles olhos
corresponderá um rosto adequado, se saberá usá-la, aumentando em muito as
possibilidades especulativas de quem por ali é obrigado a andar. A chegada a
casa também é um filme, mas tão cansativo que ninguém o quererá ver. Hoje
passarei a tarde em videoconferências. A necessidade é uma deusa cruel, à qual
nunca podemos furtar-nos a pagar o tributo. Recebi um email do padre Lodo,
aquele jesuíta de que falei ontem. Padre Lodo é assim que ele é conhecido na
Companhia e entre amigos, mesmo os que são pouco dados ao catolicismo, amigos esses
que ele cultiva com esmero, não sei se com a esperança de os converter. Sempre
é um jesuíta. Quer jantar comigo em Lisboa, para que eu conheça um antigo aluno
dele, um alemão de nome Hans Castorp. Não o esperava tão cedo em Portugal,
ainda ontem não sabia que ele vinha, escreve como se se desculpasse. Que não me
preocupe, ele fala muito bem espanhol e entre português e espanhol haveremos de
nos entender. Eu não me preocupo, mas não me apetece ir a Lisboa, não me
apetece todos estes rituais concebidos por um génio maligno. Pensarei no
assunto. Não vejo as netas há semanas e talvez deva aproveitar a ocasião. Logo
hei-de responder. Os termómetros começam a subir por estes lados. O calor
penetra na pele e sinto-a rasgar, abrir pequenas fendas que se vão dilatando,
para que o corpo se torne uma chaga viva. Se as pessoas não fogem daqui, não
tarda haverá procissões de ulcerados. Recuso-me a fazer de calendário, quero lá
saber que dia da semana ou do mês é hoje. O tempo é um contínuo sem fim e todas
as divisões que lhe inventamos são uma sedição contra a ordem natural do mundo,
a qual, pelo menos hoje, prezo muito. Amanhã, se verá.
segunda-feira, 29 de junho de 2020
Evitar a mentira
Ontem menti quando disse que me sentara à varanda e via
pássaros e anjos a voarem entre telhados. Não que seja infundada a ideia de
haver serafins e querubins pousados no topo dos edifícios da rua onde habito.
Qualquer um dos meus vizinhos, e não são poucos, corroborará o que digo. Anjos,
há-os e não poucas vezes vejo-os a conferenciar ou a deslocarem-se pelos ares
de um edifício para outro. A minha falta à verdade refere-se a estar sentado à
varanda, pois nem sequer estive em casa. Deambulava junto ao mar e foi aí,
quando passeava pela ilha do Baleal, como tantas vezes tenho feito, que
encontrei perto da casa dos jesuítas, um edifício sobre a falésia, excessivo
para o lugar, mas de onde se pode contemplar em sossego o Atlântico, que
encontrei, dizia, alguém que não via há muito, o velho Lodovico Settembrini,
que tantas vezes veio a minha casa. Como o conheci, graças a um padre jesuíta
que foi meu professor na Faculdade de Letras, e de como ele, na juventude um
inflamado iluminista e maçon, se converteu e entrou para a Companhia de Jesus,
talvez fale noutro dia. O mundo está cheio de metamorfoses e aquelas que se
passam no espírito dos homens não são as mais pequenas. Basta enumerar as
transfigurações do meu pensamento, se é que se pode chamar pensamento ao
arrebanhar de meia dúzia de ideias obscuras e mal cosidas, sem lastro
conceptual e esqueleto lógico. Há porém quem prefira dizer que não se trata de
mudanças no pensar, mas a prova de que possuo um carácter volúvel e a
volubilidade não dá boa fama a ninguém. Hoje não falarei do meu amigo jesuíta.
Tenho não poucas coisas práticas para resolver e foi-me dado, apesar da
volubilidade, uma inclinação para levar o dever a sério, como se tivesse sido
educado por pais pietistas, daqueles de extremo rigor como só os havia em
Conisberga, o que não foi o caso. Uma mensagem no telemóvel recorda-me que
esperam um texto que ainda hei-de inventar. Escrever um diário cansa, mais
valia que me dedicasse a apanhar borboletas. Hoje é segunda-feira, dia 29 de
Junho. A Terra continua a ser um planeta do sistema solar. Não faço ideia das
consequências desse facto, mas sinto-me mais tranquilo e conformado com a
realidade tal como é, fazendo a mim próprio a promessa de evitar mentir nestes
textos, mesmo que eles não passem de ficções de um narrador sem nada para
narrar.
domingo, 28 de junho de 2020
Nem uma epopeia para narrar
Cheguei a meio da tarde sem nada para narrar. Sou um
narrador digno de compaixão. Se tivesse competência, mesmo a um domingo
encontraria uma gesta para descrever, uma situação épica para partilhar, uma
tragédia para contar. Bem me esforcei. Saí de casa, caminhei, fui a um café,
depois fui trocar um candeeiro que tinha comprado, mas que não funcionava. Este
episódio não seria destituído de mérito, pois acabei por não o trocar, já que
funcionava na perfeição, só que, motivado por não ter os óculos ou pela
estupidez natural que me saiu em sorte, não li a inscrição ON/OFF. O vendedor e
eu rimo-nos, ele com vontade de me chamar idiota, eu com vontade de corroborar
o pensamento dele, mas o comércio é uma coisa civilizada. Ele não perderá nada
em evitar dizer o que pensa e eu lá hei-de voltar para comprar outro candeeiro,
só para mostrar que, apesar de idiota, sou um aprendiz esforçado e que à
segunda tentativa consigo pô-lo a acender e a apagar, mesmo sem óculos, mesmo que
lá esteja escrito ON/OFF. Isto, porém, não dá uma epopeia, nem uma tragédia e
para comédia o enredo é curto. Também é verdade que cheguei muito tarde ao
mundo. Tudo o que era digno de ser narrado já o foi. Resta sentar-me na
varanda, acender um cigarro, apesar de não fumar, deixar o fumo enovelar-se e
subir aos céus como se fosse incenso, enquanto pássaros e anjos voam de um
telhado para o outro. Na praceta passa alguém que conheço bem, mas fico grato
por estar onde estou e de não ser visto. Hoje é domingo, dia 28 de Junho.
Celebram-se 182 anos que Vitória foi coroada rainha de Inglaterra, ela que se
chamava Alexandrina Vitória. Há 106 o arquiduque Francisco Fernando, príncipe herdeiro
do império Austo-Húngaro, foi assassinado, o que contribuiu para o início de
uma ampla carnificina a que, posteriormente, se deu o nome de primeira guerra
mundial. Ainda no dia de hoje se celebram os 101 anos da assinatura do Tratado
de Versalhes, que pôs fim à carnificina e lançou os alicerces de onde emergiu a
segunda. Não me tornei um divulgador de efemérides, mas estas informações
servem para mostrar que se não escrevo uma epopeia, o problema não estará no
assunto, mas no talento do autor, que se recusa a pôr-me a escrever sobre tão
elevados temas.
sábado, 27 de junho de 2020
Complemento oblíquo
Acordei cedo e acabei por ir caminhar pelas ruas. Fiz seis
quilómetros para ir de casa e chegar a casa. Sou dado a coisas inúteis como
deslocar-me para chegar ao mesmo sítio. Fora eu bafejado pela lotaria genética
e evitaria humilhações destas. Quem se desloca quer ir de um sítio para o
outro. Como nunca soube a onde queria chegar acabo sempre, por mais que me
esforce a andar, por ir dar ao sítio preciso em que me encontrava. Nisto
sinto-me próximo dos pilotos e fórmula 1. Andam ali às voltas no circuito, a
velocidades estonteantes, a vida em risco, para chegarem à meta de onde
partiram. Eu sou como eles, mas não uso carro e ando devagar, pois se é para
chegar ao mesmo sítio, ao menos que demore mais tempo possível. O jornal que
costumo ler substituiu o ranking do
coronavírus pelo ranking das escolas.
Em ambos se faz notar o desejo de uma vacina que trate as viroses que por aí
proliferam. Estou ensonado. Por desfastio abro uma gramática de língua
portuguesa e deparo com a belíssima denominação complemento oblíquo. De todos os complementos, o que mais amo é
este. O que são, ao pé do oblíquo, os complementos directos, indirectos e
agente da passiva? Nada. Só o oblíquo me faz pensar na chuva oblíqua e leva a
minha mente, como se entrasse em transe místico, a recitar arrebatada Atravessa esta paisagem o meu sonho dum
porto infinito / E a cor das flores é transparente de as velas de grandes
navios / Que largam do cais arrastando nas águas por sombra / Os vultos ao sol
daquelas árvores antigas... E aqui está o problema que é o meu. Se em vez
de andar a pé viajasse num navio, num veleiro, num grande transatlântico,
haveria de sair de um porto e ir dar a outro e tudo faria sentido, mas a água
não é o meu elemento e assim sou coagido a viajar por terra para chegar ao
lugar onde estava. Dias como os de hoje parecem-me funestos para a sanidade
mental. A semana foi terrível e, na verdade, fartei-me de trabalhar para fazer
aquilo que tinha feito. O que me salva os dias é o complemento oblíquo, mas
perde-me o olhar oblíquo que me deitam por não ter vergonha de escrever inanidades
e publicá-las. São o retrato da minha vida, a minha verdade, o que mais posso
fazer? Hoje é sábado, dia 27 de Junho. Os dias estão a encolher e ninguém
protesta. Oiço um galo a anunciar a aproximação da derradeira etapa do dia. É
inverosímil, mas mesmo numa cidade se podem ouvir galos. A gramática mostra-me
uma frase monstruosa e começo a temer se não encontrarei nela um exemplo
extraído destes textos. Tenho de ir comprar um candeeiro para ligar à ficha USB
do computador e uma extensão para me ligar à realidade.
sexta-feira, 26 de junho de 2020
O que se avista de uma varanda
Fui à varanda que dá para a Sá Carneiro. De passagem
espreitei o friso das orquídeas. Ao contrário do que acontece comigo, estão
luxuriantes. Deveria ser proibido usar palavras como esta. Recuperaram dos três
dias a que foram votadas ao abandono. São muito sensíveis. Um fim-de-semana
fora e há logo amuos, chiliques, fanicos e outras cenas avulsas. Chegado à
varanda olhei o castelo. O maldito pinheiro continua a crescer, a alcaidaria é
agora uma nesga branca e uma das duas torres que avisto está quase a
desaparecer por detrás da ramagem verde. Do bar saiu alguém. Parece o Esteves,
aquele que não tem metafísica. Vejo-o a abrir um maço de cigarros e penso que
faz sentido. Outrora, havia tabacarias, agora compram-se cigarros num bar, num
café, onde calha. O Esteves deixa a esplanada do bar, o cigarro aceso, o fumo a
subir aos céus, e aproxima-se do meu prédio. Afinal não é o Esteves, mas o
Lopes, um rapaz do meu tempo. Também sem metafísica, mas ainda vai bem, todo pimpão.
Passou mesmo diante da varanda. Talvez nem seja o Lopes. Pode ser que já tenha
morrido. É muito parecido com ele, talvez um irmão. Era uma família grande.
Encontrou uma rapariga também do nosso tempo, a Marília, debaixo duma sombra,
mesmo diante daquilo que foi um banco. Era a ela que o Gonzaga queria, mas
ficou sempre presa ao Dirceu. Não devia falar destas coisas conhecidas de todos
aqui na terra. Eles hesitam, não sabem bem o que fazer, mas lá se decidiram a
trocar uns beijos. Quase o oiço dizer isto a nós não nos ataca, somos da velha
guarda. A Marília foi para o Brasil, umas coisas políticas do pai e, ela que
antes hesitava entre um estilo neoclássico e um romântico, voltou de lá cheia
de samba. O Gonzaga, coitado, é que nunca casou. O pior aconteceu ao Dirceu,
foi desta para melhor há uns anos. Agora é o Lopes, ou será o Correia?, que
está com ademanes sambados e a Marília viúva, esquecida do Gonzaga e do Dirceu,
os carros a passar e o céu cheio de nuvens, uma luz toldada, e eu sem saber se
ainda há um frémito no coração da brasileira, que afinal é bem portuguesa, aqui
da terra, andámos todos na escola. Quem diria, o pimpão do Lopes, ou será o Correia?
É difícil ver os traços de um rosto quando se está num quinto andar. Hoje é
sexta-feira, dia 26 de Junho. Tenho de ir dar uma vista de olhos aos jornais,
para ver se o mundo ainda existe, se uma epidemia não anda por aí à solta que
impeça o Lopes, ou será o Correia?, de cortejar o samba da Marília. Preferia-a
quando ela era uma musa arcádica, mas há gostos para tudo.
quinta-feira, 25 de junho de 2020
O zimbório zumbe
Depois de almoço, quase frugal e quase abstémio, fui
assaltado por uma palavra. Entrou-me na consciência e não me tem largado. A
quem devo apresentar queixa por esta violação da liberdade de pensamento? Não
faço ideia por que razão zimbório canta dentro de mim. Não avisto nenhum e não
me deu um súbito interesse pela arquitectura, por cúpulas e dispositivos afins.
Há na palavra uma sonoridade exuberante e talvez seja isso que me tem prendido
a ela. Não deveria escrever tudo o que me passa pela cabeça, não contribui nem
para a minha sanidade mental nem para a reputação, ambas já muito desgastadas.
Observo ao longe uma rapariga absorta, não há como o eufemismo para suavizar a
marcha do tempo. Conheci-a numa outra encarnação ou talvez apenas imagino que a
tenha conhecido. Abre os olhos, mas a realidade escapa-lhe, como a beleza se
lhe escapou, como os sonhos se finaram na blusa de seda em que nenhum olhar,
excepto o meu, pousa. Um cão pára junto a uma árvore e, alçando a perna, marca
o território, num assomo de proprietário. O zimbório, porém, não deixa de
zumbir em mim. Descubro que uma nova tradução de A Montanha Mágica foi colocada no mercado. Li o romance de Mann na
tradução de Herberto Caro, para os Livros do Brasil. Depois, comprei a da D.
Quixote e ofereci a que lera. Perante o encómio da nova tradução, já decidi que
a vou comprar, depois alinho-as lado a lado na estante. Quando me der a vontade
de reler a obra, pego nelas e vou pesá-las. Lerei a mais leve. O critério é
mau? Eventualmente, mas mais vale ter um critério mau do que nenhum. Ou será ao
contrário? Hoje é quinta-feira, dia 25 de Junho. As palavras associam-se dentro
de mim. O zimbório zumbe na cúpula ou na cópula, ou apenas na consciência vazia
que para evitar o naufrágio se entrega às leviandades que a assaltam. O dever
chama-me.
quarta-feira, 24 de junho de 2020
O pior é a Kryptonite
Chega-se a uma janela ou a uma varanda, aspira-se o ar, em
lentos haustos, e percebe-se uma contaminação geral da atmosfera. Perplexidade,
ignorância sobre o que fazer, apreensão pelo que está para chegar. Nada disto é
novo, era apenas um problema individual ou de grupos restritos. Uma doença
aqui, um acidente acolá, uma morte noutro lado. Também havia catástrofes de médias
ou grandes dimensões, mas eram catalogadas na etiqueta – acho que deveria dizer
hashtag, o que acrescentaria
modernidade a este escrito – de acidentes, dos quais se haveria de procurar
responsáveis para nos tranquilizar e assegurar que estamos não apenas no melhor
dos mundos possíveis, mas também no dos impossíveis. Vale-nos o canto dos
pássaros e o ramalhar do arvoredo empurrado por um zéfiro benevolente. Na
avenida, passam carros. Nalguns, o solitário condutor vai de máscara, talvez
com medo de se contaminar a si próprio. Pode ser apenas uma reminiscência
genética de algum avô que, emigrado para o longínquo Far-West, se tenha entregado ao comando de uma bando de ladrões de
gado, ou então de uma longínqua avó educada no rigor do Islão. Nunca sabemos o
que se esconde no enxame genético que fez de nós colmeia para viver uns tempos.
Desde que se descobriu a existência do código genético, convencemo-nos que possuímos
um, mas a realidade é outra. O código genético é que nos possui e nos dobra às suas
deambulações combinatórias e fantasias químicas. Espero que não venha ninguém
acusar-me de não crer no livre-arbítrio. Eu acredito piamente e todos os dias lhe
acendo uma vela, para ver se ele olha por mim, tornando-me um sujeito autónomo,
cheio de iniciativa e pronto a dobrar à sua vontade qualquer obstáculo. O pior
é a Kryptonite. Hoje é quarta-feira, dia 24 de Junho. Na Sá Carneiro, um casal
caminha desgarrado, ele à frente e ela atrás, segundo uma ordem ancestral
combinada com o cansaço de um prolongado convívio. Saltitam de sombra em
sombra, ela afogueada, ele decidido, como se tivesse pressa de chegar a algum
lado ou de fugir dela.
terça-feira, 23 de junho de 2020
Um narrador sem assunto
A barafunda veio para ficar, foi o que ouvi quando, hoje de
manhã, caminhei pelas ruas. Não foi um grande passeio, mas um pequeno giro de
desentorpecimento mental. Chegado a casa fui informado de que a orquídea branca
está completamente desaustinada. Uma qualquer euforia tomou-lhe a vida e ela continua
a desfazer-se em flores. Está nisto há bem mais de um ano e não tem aspecto de
querer parar. As folhas, todavia, estão a trocar o verde pelo amarelo. A vida
corre-me num torvelinho, os neurónios estão em turbilhão e o tempo está cada
vez mais quente. Dedilho as tarefas que tenho pela frente e não me parece que
os próximos dias sejam promissores. A tarde avança com os seus pelotões
sombrios. Marcham em cadência militar, batem as botas cardadas no chão, olham
impantes sem nada ver. Nas janelas, os mortais observam-nos com temor, não vão
eles apontar-lhes o lança-chamas e deitar fogo à casa, à vida, a sabe-se lá o
quê. O que achas disto tudo, perguntaram-me no outro dia. Encolhi os ombros e
disse que não achava nada. Já são poucas as coisas sobre as quais tenho opinião
e a minha esperança é a de deixar de ter opinião seja sobre o que for. Na
passadeira, afogueada e vestida de Verão, uma mulher jovem deixa que os olhos
repousem sobre ela, fingindo que não sabe, mas a passadeira é curta e no
passeio a luz e as sombras mesclam-se num tecido que turva os olhares. Hoje é
terça-feira, dia 23 de Junho. Há 192 anos Miguel de Bragança foi
aclamado rei de Portugal. Eis uma informação que não serve para nada, a não ser
para dar um matiz histórico ao fim desta narrativa de um narrador sem assunto
nem personagens.
segunda-feira, 22 de junho de 2020
A loucura normal
É o senhor? Sim, sou eu. Está em casa? Estou, estou. É que
eu tenho uma encomenda para lhe entregar. O andar é… Não posso subir por causa
desta coisa, tem o senhor de descer… Está bem, se é por causa dessa coisa, eu
desço. Espere, vou ver se cabe na caixa do correio. É uma ideia. Olhe, cabe
mesmo. Óptimo, muito obrigado. Está então a encomenda lá em baixo, ainda por
cima vinda da China para me deixar ler noite dentro, e eu aqui em cima. Bem
tenho de me despir e vestir para ir à rua. Não posso esquecer de levar máscara
para viajar no elevador. Abro a porta, chamo com a ponta da chave o elevador.
Ele vem e eu digo ao diabo, abro-o com as mãos e desço. Também escancaro a
porta da entrada com as mãos. Vou ao correio, resgato a encomenda e
correspondência avulsa e, sem nunca tirar a máscara, entro no elevador, saio,
reentro em casa já descalço, fecho a porta, desinfecto as mãos e tiro a máscara,
depois de pousar em lugar seguro o que tirei da caixa do correio, dispo-me,
penduro a roupa de ir à rua, visto-me, desinfecto as mãos, abro a encomenda,
deito o plástico envolvente para reciclagem, em lugar seguro. Abro a caixa,
deito-a no sítio para reciclagem e penso que o dispositivo, que já deve andar
em viagem há umas três semanas, ainda por cima protegido por plástico
hermeticamente fechado, não precisa de ser desinfectado, mas desinfecto-o, não
vá o diabo tecê-las e ele é muito dado a tecelagens. Ainda por cima uma coisa
vinda da China, sabe-se lá por onde andou. Depois, desinfecto-me a mim. A
seguir deveria marcar consulta num psi qualquer. Não o faço, mas lembro-me do
título de um filme de Marco Ferreri, baseada num livro de Charles Bukowsi, Contos da Loucura Normal, a Ornella Muti
ia muito bem no filme, mas já não me lembro de nada. Isto é um filme, anoto,
feito de contos de gente enlouquecida, e a loucura está a tornar-se normal, embora
a Ornella Muti já não tenha 25 anos, nem eu. Sim, estamos todos a enlouquecer,
tanto os que se cuidam, como os que se descuidam e os que acham que umas festas
dionisíacas vêm mesmo a calhar, pois Apolo anda distraído, também de máscara e venda
nos olhos. Hoje é segunda-feira, dia 22 de Junho. A temperatura está a subir e
a vida tornou-se uma trapalhada sem fim. Se não tivesse a tarde ocupada iria
rever o filme do Ferreri. Sendo assim, enlouqueço mesmo sem filme.
domingo, 21 de junho de 2020
Começa o conflito
Hoje é o primeiro dia de Verão e a temperatura já ousa
passar os 30 graus, prometendo escalar o conflito nos próximos dias. Tenho de
imaginar estratégias de autodefesa, mas ando demasiado ocupado e não tenho
tempo para frequentar o von Clausewitz e o Sun-Tzu. Comecei a trabalhar ainda
antes das nove da manhã e tenho uma tarde e noite dedicadas ao culto das
necessidades. Ontem fiz uma caminhada à noite. A cidade e o movimento eram
iguais aos de outros tempos. Uma pessoa caminha furtiva entre sombras, deixa-se
guiar pelo hábito e vai olhando para o que acontece. Uma vez por outra, lá
passa um viandante ou então alguém que ainda não tem vergonha de correr em
público. Um grupo de jovens em quase pós-adolescência faz umas acrobacias de
bicicleta, fendendo a noite com o seu gargalhar cheio de incertezas. Depois, as
trevas tomaram conta do mundo. Hoje ainda não espreitei a avenida, desconfio
que as pessoas se preparam para os almoços em família, caso a tenham. De resto,
o vento eriça as folhas das árvores, fá-las tremer e ondular, enquanto as
sombras se escondem debaixo das copas e a luz dá uma coloração de antimónio ao
verde cinza das oliveiras. A minha mente parece um depósito vazio, mas não vale
a pena enchê-la, de tão esburacada que está. Hoje é domingo, dia 21 de Junho.
Leio nos jornais que a polícia tem agora uma nova função, a de dispersar as
pessoas que se juntam às centenas talvez com a esperança de se infectarem e de
lançar o país no caos. Não há nada como medo, pensei. Estás pouco iluminista
hoje, disse-me o daimon que vive em mim. Pois estou, talvez nunca tivesse
acreditado muito no progresso da razão e da moralidade humana. Calo-me, antes
que me torne um reaccionário adepto do absolutismo e o texto comece a tornar-se
desmesurado.
sábado, 20 de junho de 2020
Divagações por territórios inóspitos
Avanço com pouca diligência por um lugarejo perdido no
Tennessee. Nesses anos, os que ligaram uma guerra mundial a outra, a lei seca
criou uma coorte de bootleggers,
perseguida com afinco pelas autoridades, o que prova que é a lei que faz o
criminoso. Falo do primeiro romance de Cormac McCarthy, O Guarda do Pomar. Aquele é um universo estranho para um europeu e
essa não será a menor das virtudes da literatura, colocar-nos em mundos excêntricos,
fazer a imaginação raptar-nos da nossa instalação sedentária e obrigar-nos a
territórios inóspitos e vidas extravagantes. Também um leitor americano poderia
pensar o mesmo se confrontado com uma narrativa passada nas terras em que os
homens teimam, não se sabe bem porquê, a pegar touros bravos de caras, touro e
homem a olharem-se nos olhos, a espreitarem-se, a estudar como se hão-de
encaixar e acabar com aquela incerteza, para que haja aplausos e a banda
filarmónica se desfaça em música. Eu sei que o universo das touradas é um
território minado, pronto a explodir numa paróquia desejosa de pegar fogo por
tudo e por nada. Não sou dado a verónicas e a chicuelinas, nem uso palavras como faena ou tenho especial predilecção
pelo paso-doble, mas grandeza, mesmo
se inútil, haverá no homem que enfrenta sem nada nas mãos um animal daqueles, ainda
que cansado e sangrado, grandeza, mesmo que tinta de loucura, haverá no matador
que joga a sua vida contra a de um miura. De resto, a tauromaquia não me
interessa para nada, mas isso não a distingue de milhares de outras coisas que
também não me interessam. Há pouco, ao espreitar, a Sá Carneiro, o movimento
dos carros parecia a de um sábado pré-pandémico. As pessoas na rua conversam, enquanto
o Sol sobe no céu e as sombras vão minguando na Terra. Uma mosca pousou na
parte exterior do vidro da janela, mas logo partiu. O fim-de-semana desdobra-se
diante de mim, tem ainda as mãos limpas, sem sombras nos dedos ou sangue nas
unhas. A inocência todavia é coisa que se perde com facilidade e, com o passar
das horas, a exaltante candura inicial dará lugar à cínica condescendência de
quem vive com o que tem de ser, antes de chegar a melancolia elegíaca com que
os ombros se encolhem perante o que está a chegar, descobrindo no fim-de-semana
as mãos pretas de sujidade e as unhas tintas de sangue. Talvez tenha acordado
com a velha disposição para a hipérbole. Hoje é sábado, dia 20 de Junho. O
solstício de Verão está marcado para as 22h e 44m e os dias começarão a
declinar. O Tennessee naqueles dias escolhidos por McCarthy para o seu primeiro
romance era um lugar difícil, mas também, chegados os calores, o abrigo da
Serra de Aire, com o seu sistema de grutas e acontecimentos inusitados, não é
fácil.
sexta-feira, 19 de junho de 2020
Diferenças ontológicas
Devias paragrafar estes textos, mudas de assunto a torto e a
direito e vai tudo de seguida, as pessoas cansam-se. Uma das coisas que há para
aprender na vida é que não se deve dar atenção ao que diz aquele daimon, como se translitera o raio da
palavra?, que vive dentro de nós para expelir, a torto e a direito, opiniões
que não lhe pedimos. Sim, não foi apenas Sócrates que teve um daimon, eu também tenho um e conheço
pessoas que têm vários. Esta será aliás a melhor explicação para a heteronímia de
Fernando Pessoa, embora me abstenha de dar opinião sobre tal assunto. Respondi-lhe,
ao daimon, que sou dado a monoblocos,
portanto fazer parágrafos nestes textos está fora das minhas cogitações. Ainda
bem que não te dá para escreveres romances, atirou ele, pois teríamos
oitocentas páginas com um único parágrafo. Olhei-o de soslaio, ameaçador, e ele
desapareceu para as caves da minha consciência. Quando não temos nada para
dizer sobre o mundo, como é o meu caso, inventamos coisas sem nexo, só para
preencher o espaço em branco. Ontem o meu neto esteve aqui e confirmei que
existe uma diferença ontológica entre rapazes e raparigas. Quando as minhas
netas tinham a idade dele, mesmo a mais azougada, e azougue e autoridade não
lhe faltavam, se sentadas comigo à secretária, ficavam a ver em sossego A Galinha Pintadinha no computador,
negociando apenas o episódio que se seguiria. Ele, ao fim de uns minutos de
ambientação, achou que o programa não seria ver a Masha e o Urso mas trepar para cima da secretária e mexer nos
monitores, nos teclados, no rato e no mais que houvesse à disposição do dedo em
riste. À minha frente tenho uns livros, na verdade são apenas dois, de um
filósofo norte-americano sobre a construção da realidade social. Talvez ele me
explique por que razão um aglomerado de electrões e protões fica quieto a ver a
galinha pintadinha e o pintinho (é assim mesmo) amarelinho e outro julgue que a
sua função é cabriolar em cima de secretárias. Hoje é sexta-feira, dia 19 de
Junho. A semana desliza para o momento em que entregará a alma ao criador. Num
poema de Eugénio de Andrade leio Toda a
manhã procurei uma sílaba, mas noutro de Luís Quintais depara-mo com uma
resposta extravagante Cruéis miragens, / pânico
de moribundos. Evito a discussão e fecho ambos os livros. Consta que a
epidemia continua e os infectados se multiplicam. Acho que vou almoçar. Eis uma
coisa que me devolve a humanidade.
quinta-feira, 18 de junho de 2020
A blasfémia do Rei Afonso X
Ao levantar-me fui espreitar a rua para ver a máscara com
que o dia se apresenta. Como se fora vítima de um sortilégio, fiquei a olhar a
luz, as sombras e as folhas batidas pelo vento. Transportado para o mundo
arcaico da infância, reconheci aquela tonalidade da luz da manhã, o ramalhar
das árvores e o alongamento disforme das sombras, lembrando fantasmas e
monstros. O fascínio não nasceu da evocação do passado nem da saudade desses
tempos, mas da constância que se esconde por debaixo do turbilhão do mundo.
Eram a mesma luz, o mesmo vento, as mesmas sombras. Também Parménides e Platão
ficaram fascinados pela permanência e pela imobilidade, esses quase milagres
num mundo que parece ser uma máquina de produzir metamorfoses e inconstâncias.
A meditação logo se interrompeu. O canto de um pássaro, o grito de uma criança,
o barulho rugoso de uma máquina e o mundo desassisado de Heraclito retomou o
seu lugar. De imediato, as coisas começaram a transformar-se, o telemóvel a
disparar avisos e as corveias quotidianas a chamarem-me. Mandei-as calar, mas
recusaram-se e não tive outro remédio senão começar a fazer pela vida. Agora
escrevo e observo o mundo a partir da minha secretária e não sei o que fazer
com ele. Talvez não fosse ociosa a discussão sobre se este é ou não o melhor
dos mundos possíveis. Se a resposta for sim, nem quero imaginar como seriam
todos os outros. Seja como for, muito eu gosto de usar bordões e frases feitas,
o melhor é não me aventurar em blasfémias como aquela que perdeu o sábio rei Afonso
X de Castela. Se eu houvesse podido
aconselhar Deus na criação – atreveu-se ele a dizer – muitas coisas teriam sido mais bem ordenadas. Nunca se sabe se os
pombos que por aqui volteiam nos ares são ou não anjos e sendo, não sabemos se
eles são dos caídos ou dos fiéis. Todo o cuidado é pouco e mesmo para lidar com
pombos ou anjos é recomendável que se use máscara. Muitas coisas haveria para
discorrer, mas o melhor é não maçar o leitor. Hoje é quinta-feira, dia 18 de
Junho. Uma sirene anuncia a chegada das treze horas. Suponho que é tempo de
pensar em almoçar, em vez de estar a carregar nas teclas para escrever um
punhado de tolices. Não me conformo porém com o desprezo de Sancho, filho e sucessor
de Afonso, pela última vontade do pai, a quem traíra. Pedira este que o coração
fosse enterrado no Monte Calvário, talvez para se fazer perdoar da blasfémia,
mas o filho deixou-o a apodrecer em Sevilha e, como se sabe, as coisas em
Sevilha apodrecem muito depressa.
quarta-feira, 17 de junho de 2020
Preservativos faciais na meia-estação
Fui obrigado a retroceder. Já me tinha estivalado, já olhava
com desconforto para o termostato, pensando que ele só serve para dar ordens de
aquecimento e não de arrefecimento, quando a impância, e esta é a segunda
palavra acabada de inventar, do Verão antecipado foi quebrada, a soberba da
estação que se aproxima calcada na praça pública e eu tive me vestir à
meia-estação, seja lá onde for que há uma estação que é apenas meia. O mundo
está cheio de designações cujo sentido é obscuro, o que é uma vantagem para
certos filósofos que à falta de melhor corrigem a linguagem. Isso talvez não
seja pior que corrigir o mundo, como pretendem outros. Eu também gostaria muito
de possuir um ânimo corrector, do género que habita a alma não dos filósofos
mas dos correctores ortográficos. Quando algo em mim fosse sublinhado a
vermelho, clicava no botão direito do rato e mandava substituir. Se não
houvesse substituição disponível, mandava adicionar à minha natureza. Seria um defeito
mas pela sua singularidade talvez se transformasse em virtude. Não está a ser
um mês fácil, este Junho. Na esplanada do café aqui ao lado, estão as mesas
dispostas com intervalos de segurança, à espera que pessoas com máscaras se
sentem nelas, para depois tirar esse novo preservativo facial. Ninguém aparece,
mas ao escrever preservativo facial tive uma epifania e percebi a natureza
erótica de tudo o que se passa. Não entrarei em detalhes, mas a junção de face,
boca e o que mais se deve mascarar por uma questão de segurança não terá
deixado de dar ideias estranhas ao deus Cupido, isto para nos mantermos no
nível da alta cultura clássica. Descobri ontem que há uma nova tradução da
Eneida, de Virgílio, ao que consta muito boa. Vou encomendá-la, mesmo que
alguém tenha dito em voz alevantada Cessem
do sábio Grego e do Troiano / as navegações grandes que fizeram. Hoje é
quarta-feira, diz 17 de Junho. Leio no jornal que a China parece estar a
reconfinar e que as faculdades de medicina portugueses recusam abrir mais vagas
para candidatos a senhores doutores. Fora eu um sábio como aqueles que existiam
no Antigo Testamento, ou mesmo na Grécia antes desta se ter entregado nos
braços dos filósofos, e diria nada de novo sob o Sol, mas não digo, pois
propus-me, quando acordei, a evitar lugares comuns.
terça-feira, 16 de junho de 2020
Deu-lhes um tranglimango
Pobres orquídeas, deu-lhes o trangolomango. Não, o que lhes
deu foi mesmo o tanglomanglo. Para não faltar à verdade aquilo que muitas vezes
ouvi foi coitado, deu-lhe um tranglimango e foi-se desta para melhor. Aliás, é
a forma sonora mais agradável, mas nenhum dicionarista, nem o Houaiss, se
dignou vir aqui, a este nobre rincão, para registar o uso da corruptela. Seja
como for, alguém deitou um feitiço às orquídeas e elas perderam a cabeça.
Começam a despir-se, em sessões de strip-tease,
como se o friso onde habitam fosse um cabaret.
Já as intimei a comportarem-se, mas elas olham-me com olímpico desprezo e
deixam cair, com ademanes desapropriados, mais uma flor. Isto levanta um problema
filosófico dos mais difíceis, o da relação entre o mal moral e o mal natural.
Muito se discutiu sobre a ligação entre os desmandos da natureza, terramotos,
furacões, epidemias e outros, com a maldade humana, a imoralidade com que os homens
conduzem as suas vidas. Chegou a supor-se que a maldade da natureza era um
castigo da maldade dos homens, mas ao olhar o desaforo das orquídeas percebe-se
que o problema é mais complexo e que a própria natureza possui uma propensão
para a imoralidade que convém castigar, embora não se saiba quem aplicará tal
punição. Ao olhar para o que está escrito perguntei-me se o acentuado arrefecimento
nocturno terá alguma influência no meu estado mental, na decomposição de que o
texto é um sintoma a não desprezar. Ando há dias para me lembrar do nome de uns
arbustos de jardim que dão umas flores assalmonadas e viscosas, é o que me
parece, e que polvilham a escola aqui ao lado. Não consigo. Presumo, ao olhar
para a minha agenda, que o dia não vai ser fácil. Na secretária estão
umas moedas que, esquecidas num bolso, foram à máquina de lavar. Das
sete, apenas três são portuguesas. Um euro alemão e outro espanhol, vinte
cêntimos franceses e dez cêntimos holandeses. Talvez a União Europeia seja
isto, a possibilidade de andar com moedas vindas sabe Deus de onde e de as lavarmos
na máquina, para as purificarmos e evitarmos que se transformem em orquídeas
dadas ao strip-tease. Hoje é terça-feira,
dia 16 de Junho. O sol desce vagaroso sobre os telhados do casario, tomado por
uma anemia que nos protege dos seus furores. Na rua, há gente a conversar e no
telhado do prédio em frente dois pombos imitam anjos prontos para se
precipitarem na balbúrdia humana. Como sempre, nada de novo sob o Sol.
segunda-feira, 15 de junho de 2020
Aproximação ao solstício
Hoje é um dia de difícil gestão, como o vão ser os próximos.
Ainda por cima a herança genética recusou-me a inclinação para gestor, de tal
maneira foi veemente a recusa que nem inveja sinto por quem é CEO – consta que
significa chief executive officer e é
uma das novas fontes de poluição da linguagem – quanto mais por quem não passa
de simples gestor de produto. Não tenho alma de pastor nem de pai dos povos. Eu
sei que todas estas metáforas vêm de lugares diferentes, mas no fundo
assemelham-se, apenas as cores originais as distinguem, mas cor é coisa que
facilmente se muda. Ainda não pus um pé na rua. O dia está melancólico, talvez
pela aproximação do solstício. A Primavera exausta caminha em direcção ao Verão
e, não tarda, os dias começarão a declinar, dando lugar a noites cada vez
maiores, mais negras, mais opacas. Ontem, quando cheguei, havia uma grande
confusão no friso das orquídeas. Flores tombadas, folhas cobertas de uma
viscosidade doentia, um ar de abandono. Uma, completamente despida, parece que
não resistirá. Oiço vozes na rua, vozes como antigamente se ouviam. Não percebo
o que dizem, mas pela toada trata-se de conversa pacífica, algumas asserções sobre
a vida, uma experiência que se narra para edificação de quem escuta, talvez um
desfiar de velhas máximas entrecortadas por comentários. Apesar do vírus não se
entregar, as coisas do mundo vão voltando com os seus dramas e as suas
comédias, sendo uns o reverso das outras. Deveria dormir uma sesta para
compensar as horas em que durante a noite o sono me abandonou. Hoje é
segunda-feira, dia 15 de Junho. À meia-noite, o mês terá completado metade da
sua existência, mas não encontro préstimo para esta informação, como não o encontro
para quase todas as outras. As pálpebras, pesadas, podem-me que as deixe
fecharem-se, mas eu pergunto-lhes se me julgam espanhol. Elas recuam no pedido
e atarantadas deixam-se ficar entreabertas, para que os olhos vejam o que está
diante deles, mesmo que eu não perceba o que é.
domingo, 14 de junho de 2020
Não fora astigmático...
Hoje o meu pai faria anos, noventa e três, mas há muito que
deixou de os fazer, ao tomar o comboio para aquele mundo que tem porta de
entrada mas não de saída. A última vez que ele fez anos eu já sabia que seria a
última, mas não me recordo desse dia, nem do que falámos. Minto como é
habitual. Almoçou em minha casa, um almoço em família em que se comeu um prato
de que ele gostava particularmente. Já não me recordo como se combinava em mim
a alegria e a tristeza ou como nele se manifestava o saber da escassez do
tempo. A memória é uma rameira fantasiosa, devemos olhá-la com desconfiança e
não lhe dar crédito. Passo os olhos pelas primeiras páginas dos jornais.
Descubro que após a quarentena o número de divórcios dispara. Consigo imaginar
o número a empunhar um revólver e a disparar divórcios como se fossem balas para
um alvo a 100 metros de distância. Só espero que o número seja melhor atirador
do que eu. Um dia, no serviço militar, fomos à carreira de tiro que havia para
os lados de Espinho. Foram-nos dadas 5 balas de G3 que tínhamos de disparar
para um alvo longínquo. Cada tiro no centro valia dez pontos. Deixei o meu alvo
imaculado e cheguei aos zero pontos em cinquenta possíveis. Em contrapartida, o
disparador do lado, rapaz exímio no manejo de armas e filho de um famoso, na
época, inspector da judiciária, alcançou a proeza de obter oitenta pontos em
cinquenta. Depois de se conferenciar naquela linguagem que só existe no serviço
militar pensou-se que eu teria disparado no alvo errado. Deve ser do
astigmatismo, informei. Esta é uma boa explicação para o facto de na vida errar
continuamente o alvo. Não fora eu astigmático e toda a minha existência seria
outra. As pessoas nem imaginam como coisas sem importância, pequenos defeitos
do cristalino ou da córnea, as desviam do alvo que seria o delas e da glória a
que ascenderiam caso o defeito não lhes desviasse os tiros. No sítio onde
estou, mas de onde me irei embora não tarda, as pessoas entregam-se à
existência como se tivessem sido submetidas a uma longa provação. De todos os
casais que avistei na caminhada matinal não sei quantos se divorciarão nem se
neles há astigmáticos, prontos a falhar o próximo casamento ou divórcio. Hoje é
domingo, dia 14 de Junho. A manhã levantou-se ensolarada, mas um manto de
nuvens estende os seus tentáculos no céu e ameaça os que gostam de pisar a areia
como se uma praia fosse o paraíso. Os pássaros não se calam e também eles foram
vítimas do castigo imposto aos que se atreveram a erguer a torre de Babel.
sábado, 13 de junho de 2020
Citações apócrifas
Junho aproxima-se rapidamente daquele ponto em que começará
a declinar. Tem sido uma árdua ascensão ao cume, mas cumprida a etapa a
velocidade da descida irá crescendo paulatinamente até que o mês se despenhe no
abismo negro de onde não há retorno. Deveria ter começado este texto de outra
maneira. Um pássaro canta e eu oiço-lhe o linguajar sem que dele perceba a
mensagem. Outros respondem-lhe numa conversa secreta sobre o rumo do mundo.
Para as aves, o mundo é diferente do nosso. Preocupam-se com os ares e a sua
atenção à terra é, por certo, menor que aquela que lhe damos. Consta que a
espécie humana anda muito preocupada com a questão das estátuas. Uns erguem,
outros derrubam e quando os que derrubam erguem as suas, haverá outros que as
derrubarão. Imagino que estes tempos de pandemia tenham diminuído as
possibilidades de ocupação humana e, sem que fazer, a humanidade preocupa-se com
estátuas. Faz sentido, pois elas são como espelhos que nos reproduzem e, como
os malditos espelhos que multiplicam a humanidade, isto é a citação de uma
citação apócrifa, elas mostram-nos a nossa horrível carantonha. Para me
disfarçar, saí à rua não de máscara mas de panamá, se é que aquilo que pus na
cabeça pode receber tal nome. Comprei-o o ano passado à porta de uma praia do
Algarve. Vendiam-nos a dez euros. Todos iguais, fabricados numa república
popular asiática e todos de papel. Pensei que no fim daquele dia teria de o mandar
reciclar junto com os jornais e o cartão. Enganei-me. Usei-o hoje e tem ar de
que ainda resistirá a mais uma dúzia de usos. O almoço será mais tarde, uma
honra concedida ao Santo António por injunção das minhas netas. Já enfeitaram o
lugar do repasto e cheira a sardinha assada. Leio o boletim epidemiológico como
se lesse o meteorológico. Apesar do sol, o tempo está longe de ser benevolente.
Continuam os raios e os coriscos. Hoje é sábado, dia 13 de Junho. O mundo
caminha desatinado, mas isso não é uma novidade. Sento-me e olho o espectáculo
sem presunção de compreendê-lo. Fui educado na terrível tradição daqueles que
vão ao estádio não para competir nem para fazer negócio, mas apenas para ver.
Também esta frase é o resultado de uma citação apócrifa, tal como eu.
sexta-feira, 12 de junho de 2020
Ó meu santo antoninho
Estão incertos os dias de Junho, um humor volúvel, euforia e
depressão. Onde me encontro neste momento, chove. Os pingos de chuva batem nos
vidros da janela, fazem pequenas bolhas para depois deslizarem, enchendo o
vidro de pequenos regatos que, ao confundirem-se, transformam-se em lago. O
mundo está cheio destas metamorfoses, um conjunto de coisas que ao juntarem-se
forma uma outra. Estava a ler o jornal e vejo a palavra palimpsesto. É uma bela
palavra, dotada de musicalidade, embora eu não a recomendasse para uso poético.
Todos nós somos textos que se escrevem no lugar onde outros textos foram
escritos e logo apagados. Queria eu dizer que também as nossas vidas fazem
parte de um palimpsesto de que não sabemos a origem nem temos a mais leve
desconfiança como ele, um dia muito depois do nosso texto ter sido apagado,
acabará. Talvez nas mãos de algum antiquário cósmico contrabandista de
velharias. De manhã, caminhei durante seis quilómetros, o corpo começou a etapa
muito exuberante, mas a partir de certa altura a energia começou a definhar e o
ritmo da passada abrandou, deixando-me longe do record pessoal, que já de si é miserável. Cães ladram na rua e um
buraco nas nuvens deixa ver um céu anil. Avisto duas torres altas, antigas
chaminés industriais feitas em tijolo, por onde a fumaça negra se elevava aos
céus, desenhando círculos, espirais, nuvens densas e tóxicas. São agora
pacíficos adornos de memórias que, com o passar dos dias, mudaram de infelizes
para o seu contrário, como acontece sempre. O meu email continua sob fogo
inimigo. Como bombas, caem nele mensagens, ainda por cima já nem se pode matar
o mensageiro que fica no resguardo do lar a disparar setas envenenadas como
Cupido lançava as de amor, não menos venenosas, claro. O melhor é cessar por
aqui, para que a deriva não me leve a mostrar a loucura que há muito disfarço,
não sem algum êxito. Hoje é sexta-feira, dia 12 de Junho. Um tempo de santos
populares – ó meu rico santo antoninho – pouco aberto a comemorações. As
adolescentes da casa querem uns santos caseiros, com sardinhas e bandeiras de
uma certa marca que se promove nestas ocasiões em Lisboa. Não digo qual, porque
isto não é uma agência de publicidade. Antes fora, grita-me a consciência.
Olho-a com desprezo e encolho os ombros. Sardinhas, então, mas no dia do santo.
Sentença lida.
quinta-feira, 11 de junho de 2020
O génio maligno e o canto do galo
Um aguaceiro não previsto encurtou a minha caminhada de hoje
em mais de dois quilómetros. Estava eu tão docilmente disposto a acumular
pontos cardio, que segundo a app que me monitoriza as deambulações,
são recomendados pela Organização Mundial de Saúde, e os elementos decidiram
conspirar contra a minha saúde, a minha vontade de me roubar à inércia do ser
sedentário que vive dentro do meu corpo. Conforme os anos passam e a experiência
do mundo aumenta, mais convencido estou que a realidade é um tecido perverso
que um génio maligno, mais poderoso do que aquele que assombrou as meditações
melancólicas do senhor Descartes, vai tecendo para se rir dos mortais,
estragando-lhes os projectos, baldando-lhe as expectativas, transformando a
esperança na indiferença ou mesmo no mais profundo desespero. É possível,
penso, que o desespero não tenha profundidade, que seja apenas um ser
bidimensional, uma superfície, e que seja ilegítimo dizer profundo desespero.
Tudo é possível neste mundo, mesmo as coisas mais dignas de descrédito. É
inverosímil, mas a verdade é que estou a ouvir um galo a cantar, se é que se pode
chamar canto à propensão vocal dos galarotes para o exibicionismo. Ele insiste,
insiste, levado por uma estranha necessidade de manifestar a sua existência.
Fora ele humano e seria caso de lhe recomendar uma terapia psicanalítica,
deitá-lo no divã, para que rememorasse o acontecimento traumático passado na
infância que o leva a este exibicionismo vocálico. Ele haveria de falar de
sonhos e entregar-se à associação livre, enquanto o psicanalista tomaria notas
num caderno de capas azuis. Sempre se trataria de um galarote e convinha não desmoralizá-lo
com um caderno de capas cor-de-rosa. Desconfio que estas últimas palavras não
serão particularmente apreciadas e adaptadas ao tempo em que vivemos, mas eu já
não pertenço a este tempo. Seja como for, a linguagem sempre foi uma coisa
perigosa e agora está cheia de vigilantes, não vá ela incendiar-se e atear um
fogo maior que o grande incêndio de Roma. Hoje é quinta-feira, dia 11 de Junho.
Feriado religioso do Corpo de Deus que há uns anos foi abolido, mas depois
restaurado, colocando o corpo divino no seu devido lugar, com gratidão geral de
crentes, agnósticos e ateus, e desespero daqueles que julgam que o ócio dos
outros é vicioso e que só o trabalho liberta. Será esta frase uma versão da
falácia reductio ad Hitlerum?
quarta-feira, 10 de junho de 2020
A vida assim
São precisas umas coisas do supermercado. Muito bem. Entra-se no carro e vai-se direito ao templo onde o necessário é vendido como se de uma simonia se tratasse. Quando se chega, descobre-se que são muitos os que tiveram a mesma precisão, uma fila enorme de fiéis que tenta manter a distância e aguarda que o acólito lhes dê entrada. O carro nem pára. O melhor é ir a outra paróquia. Constata-se que a nova igreja tem menos fiéis. Onde está a máscara? Põe-se a máscara, entra-se, higieniza-se as mãos e lá se descobrem as coisas de que havia precisão. Não me agradam os vinhos que por aqui há, digo. Sai-se, tira-se a máscara e sorve-se o ar lentamente. Uma esplanada à espera. Quero ver o que há para comer. Onde pus o raio da máscara, pergunto-me. Lá a descubro. Ponho-a, entro, higienizo as mãos e escolho. Saio, sento-me e tiro a máscara. Torno a sorver o ar com lentidão. Uma chamuça, ainda antes do almoço, oiço. Haveria de ser um rissol, um croquete? É o que há. Também quero avô. São duas, então. Temos de tornar a higienizar as mãos, pergunta a mais nova, para logo querer saber se há bolos. Não há. A vida agora é isto, já nem sei onde pôr as mãos, os olhos, a boca, o nariz. Vale-me a chamuça, que me há-de aumentar o colesterol, mesmo se higienizo as mãos. Chegado a casa ligo o computador depois de higienizar as mãos e mudar de roupa. A máquina informa-me que está actualizar, só mais um momento, mas este dilata-se, dilata-se num nunca mais acabar. Pego num livro de poemas e num verso vejo a palavra inconsútil. Franzo o sobrolho. Não seria melhor usar sem costura, interrogo-me. As actualizações continuam. Só um momento, não desligue o computador. Não desligo e agradeço por ele não me tratar por tu, ao menos ele, dou-lhe os momentos todos e até me actualizava a mim se pudesse, só para lhe agradar. Leio desci pela imponente escada da juventude e fico perplexo, o que fará ali o adjectivo? Os pneus das bicicletas estão vazios, retine nos meus ouvidos. Eu sei, já trato disso, respondo. Hoje é quarta-feira, dia 10 de Junho. A pátria celebra-se na voz do presidente. O cardeal poeta assevera que Camões desconfinou Portugal e eu penso na chamuça, nos meses que passaram sem ter ido a Lisboa, que não ponho um pé num restaurante indiano ou goês, que não deixa de ser indiano, mas tem um travo do desconfinamento camoniano. Tenho de procurar a bomba das bicicletas das crianças.
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