terça-feira, 13 de outubro de 2020

Tudo tem consequências

Por que razão gostamos daquilo que gostamos? Enquanto me entrego a uma corveia composta por gráficos, tabelas, análises de resultados e uma panóplia de coisas que, espero, me sejam averbadas no registo celeste para desconto dos meus insignificantes pecados, tenho estado a ouvir o que se chama música minimalista. Philip Glass, Steve Reich, John Adams, Terry Riley. Há quem deteste, mas sobre mim o movimento repetitivo de pequenos trechos musicais durante longo tempo tem um efeito encantatório. Quase que vejo nascerem mitos de dentro dessa música, histórias que irão ser contadas de geração em geração, os feitos de deuses ou as travessuras maldosas de seres gerados pela imaginação. É por isso que gosto dessa música. Não o sabia antes de o ter inventado para o escrever aqui. Não são poucas as coisas que só as sabemos na hora em que as escrevemos. Um sol outonal brilha sobre o pequeno bosque da escola ao lado, enquanto as folhas das acácias vão e vêm batidas por um vento que, parece-me, corre de norte. Daqui a pouco irei falar sobre a verdade e o cepticismo. Com tantas coisas cintilantes debaixo do sol, logo me haveria de calhar essa floração das trevas. Estou há horas para entrar na minha conta de homebanking. A cada tentativa, sou informado que é um erro, a página não existe. Algum deus desavindo com os mortais, nascido da música repetitiva que tenho estado a ouvir, terá feito desaparecer o banco. O meu amigo Rogélio bem me avisa. Cuidado, tudo o que se faça tem consequências. Nunca imaginei que o meu mau gosto musical fosse a causa de desaparecimento de um banco, mas é o que constato. Só espero que não seja preciso sacrificar nenhuma Ifigénia, para que o deus o devolva.

segunda-feira, 12 de outubro de 2020

Um Zé Ninguém em dia de S. Nunca

Quanto tempo faltará para estarmos outra vez todos confinados? Esta pergunta não me pertence. Escutei-a por acaso na rua, ao passar por duas pessoas que, sem máscara, trocavam palavras, preocupações, temores e, certamente, gotículas, como agora, de uma forma com ademanes de erudição, se chamam os populares perdigotos. Recebo uma mensagem a dizer urgente. Olho para ela e digo-me que bem pode esperar. Se fosse dar urgência a tudo o que se diz urgente, acabaria por morrer de exaustão. A maior parte das coisas urgentes bem se podem tratar no dia de S. Nunca à tarde. Este dia do calendário litúrgico tem um correspondente em personagem teatral. Quando perguntado quem é, o Romeiro diz Ninguém. Não se pense, todavia, que o senhor Ninguém se finou nas páginas do Frei Luís de Sousa. Os tradutores portugueses amam-no verdadeiramente, desde que se chame Zé. Escuta, Zé Ninguém, uma diatribe de Wilhelm Reich, e E Agora, Zé Ninguém?, um romance de Hans Fallada. Como o leitor compreenderá ser um Zé Ninguém é uma chatice. Ou se está a receber ordens ou a ser interrogado. Todavia a pergunta com que se abriu este texto merece uma resposta metafísica. Estamos confinados desde sempre. Essa é a condição humana, a história da caverna de Platão. O confinamento decretado é apenas um reconhecimento de direito daquilo que acontece de facto. O mais sensato será acabar o escrito por aqui. Ninguém vai perceber o que acabou de ser dito, nem sequer o narrador ou, em especial esse, o autor. Por mim, corrigiria o Garrett e quando o Romeiro, esmagado pela realidade do confinamento, escutasse a pergunta sacramental, diria Zé Ninguém, sou um Zé Ninguém. E isto estaria muito mais de acordo com a sua condição. Pena o Garrett ter-se esquecido de me telefonar.

domingo, 11 de outubro de 2020

Paramedicamento

Os domingos são dias propícios a uma sentimentalidade espúria, a qual deveria ser ferozmente erradicada. Umas vezes, é a melancolia do domingo à tarde, quando a sombra negra da segunda-feira, com a sua penosa corveia, se ergue no horizonte. Outras, é uma nostalgia pelo que passou, e os domingos são construídos na memória como dias em que se passavam coisas. Na verdade, pouco se passava ou, mesmo que se passasse muito, tudo isso era tão irrisório que dá vontade de sorrir. Há pouco, fiquei a ver o triunfo de um ciclista português numa etapa da Volta a Itália, do Giro, como dizem entendidos e aficionados. Nada sei de ciclismo, mas gosto. Isto deve-se a uma influência paterna que me levava a ver a passagem dos ciclistas da Volta a Portugal. Era um espectáculo veloz. O tempo que eles levavam a passar era assombrosamente pequeno comparado com aquele que se esvaía na espera, mas tratava-se sempre de um acontecimento colorido, e eu gostava imenso. Um dia o meu pai levou-me a ver ciclismo em pista, em Alpiarça. Estávamos em Santarém e fomos lá. O que se passou, quem ganhou e quem perdeu, já o esqueci há muito. Saí de casa ainda não tinha chegado o meio-dia. Estava calor. Fui a uma parafarmácia comprar um paramedicamento. Um paramedicamento é uma daquelas coisas que não servem para nada, mas que convém ter em casa. Nunca se sabe quando são precisos. O facto de as ter tranquiliza o espírito. Quando a menina me perguntou o que desejava, estive quase a responder queria um placebo para a urticária. Não respondi, pois tive medo que ela me dissesse que não sabia o que era um placebo e que eu tivesse de informar que também não fazia a mínima ideia do que fosse a urticária. Das velhas colunas da minha aparelhagem sai o som de Lontano, uma peça do compositor György Ligeti. Reconcilia-me com o domingo e com a menina que não saberia o que era um placebo. Chega-me um vídeo do meu neto a andar de trotineta. Ainda não tem idade, penso, mas quem não tem idade para isso sou eu.

sábado, 10 de outubro de 2020

Um ser imponderável

Hoje, lamento, mas nada tenho para contar. Levantei-me nem cedo nem tarde, a balança dos sábados esteve amena e devolveu-me um peso dentro do que houvera sido acordado. Minto. Como pode um narrador ter peso? Sou um ser imponderável, apenas um conjunto de caracteres no monitor. Seres virtuais não têm peso nem sofrem dos efeitos da gravidade. São como os anjos destituídos de corpo. O autor, esse tem peso. Talvez mais do que devia. Também tem corpo, mas sobre isso não faço comentários. Sou um narrador prudente. Hoje está de mau humor. Ouvi-o resmonear contra as calças. Por que raio continuava a comprar calças com botões em vez de fechos. Não faço ideia o que tem contra os botões, mas isto mostra o nível intelectual das suas preocupações. Tive de ir ao supermercado. Encontrei a Lu. Estava abatida. Apesar da máscara percebi que não era a velha Antígona pronta para desafiar a ordem de um qualquer Creonte. Nos seus olhos, havia uma sombra e não fogo. Estou preocupada com a minha irmã. A irmã é a Marília, a que era do Dirceu. Não anda nada bem, agora que parecia feliz. Fiz silêncio e ela especulou sobre o destino. Eu ouvi até que nos despedimos. Fui ainda comprar duas garrafas de vinho e dirigi-me para a caixa para pagar. A menina não me pareceu nenhuma Antígona, nem Ismene e muito menos uma Electra. Era apenas a menina da caixa e nisso estava toda a sua grandeza. Quando voltei o autor continuava a barafustar pelos cantos da casa contra a ordem do mundo e a desordem que ia na sua cabeça, digo eu.

sexta-feira, 9 de outubro de 2020

Fora eu uma árvore

Cheguei cansado ao entardecer desta sexta-feira, mas também a semana está tão pouco vigorosa quanto eu. A correria a que ela se entrega mal nasce só pode ter como consequência chegar ao fim com a língua de fora. Tenho pena das pobres semanas ajoujadas a um ritmo que não escolheram. Alguém me disse que não deveria antropomorfizar os seres não humanos. Respondi apenas que seria redundante a antropomorfizar os humanos, além de não me parecer boa ideia tornar os humanos ainda mais humanos. Basta ver o rol interminável de maldades e patifarias a que eles se entregam sem esse reforço de humanidade. Apesar das ameaças que pesam no horizonte, os tempos parecem ter voltado à normalidade. Da praceta chegam gritos verrumantes que ferem o estado de estupor em que me encontro. A criançada anda por ali, corre, grita, berra, enquanto as acácias, sem um grito, se deixam embalar pelo vento, balançando os ramos para cima e para baixo. Com o passar dos anos aumenta a minha admiração pela sábia indiferença com que as árvores olham para as coisas que as envolvem. Agora, umas funções do meu teclado decidiram declarar greve. Disse-lhes que era uma greve selvagem. Não se comoveram. Fora eu uma árvore e não teria problemas com teclados.

quinta-feira, 8 de outubro de 2020

Contributos para a história do Rogélio

Perguntaram-me quem era o Rogélio que por aqui aparece. É sempre uma pergunta difícil de responder. Se me perguntarem quem sou eu, ver-me-ei em apuros para dar uma resposta com um módico de coerência, quanto mais quando se trata de uma terceira pessoa, e que pessoa. Conheci-o nos primeiros tempos da faculdade. Numa aula, fumava ele uma cigarrilha Café Creme, uma das suas imagens de marca, fez uma pergunta ao professor. Este perguntou-lhe o nome, ele debitou-o com tranquilidade, Rogélio. O professor então continuou dizendo ora veja Rogério… Aí o Rogélio interrompeu-o. Peço desculpa, professor, mas chamo-me Rogélio e não Rogério. Não me obrigue a contar a história do meu nome. O professor não obrigou, mas ele causou furor na turma com a lata da sua intervenção. Ficámos amigos. Ele é um autêntico coleccionador de ditos, máximas, apotegmas, aforismos e outras sentenças para uso diário e em situações extraordinárias. Os mais interessantes são da sua autoria. Acaba de ser anunciado a Nobel da literatura. Nunca li nada da senhora, mas a minha ignorância é infinita. O facto de muitos dos meus escritores favoritos, como Borges ou Kafka, não terem merecido a distinção deixa-me sempre de pé atrás. O remédio será pô-lo à frente, dir-me-ia o Rogélio, enquanto expelia uma baforada da sua inevitável cigarrilha. Não sem razão

quarta-feira, 7 de outubro de 2020

Os limites do magnésio

Outubro perfaz hoje uma semana. Não sei o que possa fazer com esta constatação. Há pessoas que de qualquer coisa retiram utilidade, prazer, fortuna. A minha natureza não se acorda com préstimos e serventias e até da mais útil das coisas fabrico uma inutilidade. Sou um inutilitarista, para além de um improficiente. Há quem venda Platão para infelizes e Aristóteles para competitivos, eu prefiro ir comer uma fartura ali ao lado. Também tomo magnésio para as cãibras. Muito gostava eu de ser um realista ingénuo, de olhar para aquelas acácias, ainda esplendorosas, e crer que aquilo que vejo é mesmo acácias, mas temo que aquelas imagens a que chamo realidade não sejam mais do que um feixe de impressões na minha mente, ou, pior, que eu não passe de um cérebro numa cuba, que está a ser estimulado por um supercomputador para imaginar que está a ver acácias. Estes pensamentos demonstram, todavia, uma coisa. Se o magnésio combate as cãibras, não me ajuda no pensamento. Fica turvo e eu ainda não comprei um purificador de pensamentos. A realidade continua a ser minha inimiga. Os dias estão difíceis e Outubro ainda só tem uma semana.

terça-feira, 6 de outubro de 2020

Questões de mérito

Um pouco antes do crepúsculo irei caminhar. Não sei se será um exercício saudável, pois os trajectos disponíveis são partilhados com os escapes fumarentos de carros que precisam, também eles, de fazer exercício e libertar-se das toxinas que lhes enxameiam os motores. Mais do que libertar a toxidade que há no meu corpo, preciso de libertar a que me invade o espírito. Cada visita à realidade é um exercício penoso, mais penoso do que dar de comer a quem não tem fome. Encho-me de toxinas e o pensamento enviesa-se para a malevolência. Penso coisas que até eu me julgaria capaz de pensar. Cada um tem o que merece, diz nestas ocasiões o meu amigo Rogélio. Eu acabo por anuir. Um dia talvez explique como o conheci e, caso me recorde, poderei mesmo explicar o motivo de tão inusitado nome. Um acaso, posso adiantar. Fui levantar uma encomenda nada literária e acabei a comprar a minha quarta versão em português da Eneida de Vergílio, a segunda em poucos meses. Depois de uma traduzida por um professor de clássicas de Coimbra, agora uma traduzida por professores de clássicas Lisboa. Talvez seja isto a concorrência ou uma luta pela sobrevivência. Olho para o início do poema e deixo-me tocar não pelas dores do troiano, mas por expressões como praia de Lavínio ou violência dos deuses supernos. Estes deuses não cultivariam em excesso o amor e a misericórdia. Cobravam as ofensas, e como eles se ofendiam por coisa pouca, a um preço que dificilmente seria de saldo. Talvez também para estes heróis o destino não fosse mais do que a retribuição do seu mérito.

segunda-feira, 5 de outubro de 2020

Dores de crescimento

Acordei com algumas dores nas pernas. Nada que me causasse mais do que um pequeno incómodo, se deitado. Era uma injunção a que me levantasse. Cumpri a ordem. Tenho estas dores desde que me lembro de existir. Vão e vêm, umas vezes mais violentes, outras menos. Durante a infância e a adolescência, os médicos diziam que eram dores de crescimento. Seriam. Quando chegou a altura de parar de crescer, elas continuaram. Por volta dos cinquenta pedi ao médico que me seguia que pesquisasse a origem do mal. Fiz exames a isto e àquilo. Nada. O mal continuaria a ser um mistério. Ele, porém, não se atreveu a dizer que eram dores de crescimento. Enganou-se. Redondamente. Quando se passou dos velhos bilhetes de identidade, em que a menina do registo civil nos batia com a craveira na cabeça para determinar a altura, para os cartões de cidadão, onde toda a medida é electrónica, cresci três centímetros. Prova feita em dois registos diferentes. Grande é o desalento quando penso em tudo isto em que estou a pensar. Hoje, um dia em que deveria ter pensamentos elevados e patrióticos, penso em dores de crescimento. Seja como for, posso adiantar que sempre fui republicano, embora ache isso uma miserável cobardia. Deveria ser monárquico. Republicano, apenas se vivesse numa monarquia. Não tenho, porém, coração de talassa, nem a minha origem plebeia o aconselharia. Contento-me com o ir crescendo sempre que se muda o método de determinar a altura do cidadão. Com a evolução contínua da tecnologia, não admira que as dores de crescimento não me passem.

domingo, 4 de outubro de 2020

Pura banalidade

Quando há pouco peguei num certo livro que tinha posto de lado tempos atrás verifiquei que havia nele vários marcadores. Não daqueles tradicionais, mas cartões e etiquetas que vou juntando para lhes fazer a vez. O cartão de uma churrasqueira take away, outro de um desentupidor de canos com o calendário de 2018, um terceiro de um restaurante nepalês em Lisboa, ainda outro que anuncia Charming rooms em Bilbau e, por fim, a etiqueta cartonada de uma marca de pólos, que ainda ostenta o tamanho, o preço e a loja onde o comprei. Por coisas como estas pode-se reconstruir uma vida e, como se vê, a minha é das mais banais que possam existir. Aliás, não se esperaria outra coisa. Há nos homens uma propensão para a distinção, mesmo o mais limitado se pretende distinto, diferenciado, pura singularidade. Ergue-se em heroísmos e a sua vida é repleta de feitos e façanhas. A imaginação não tem limites. Eu, pouco dotado de imaginação, não tenho proezas para apresentar no currículo, por isso colecciono numa caixa preta, ao lado de pilhas para comandos, tubos de cola seca, carregadores de telemóvel para mandar reciclar, colecciono, dizia, cartões com que marco os livros que outros escreveram. Hoje é domingo e as horas vão com tristeza pela avenida fora, cobertas de nuvens, atiçadas pelo vento, redemoinhando à volta das tílias, das acácias, dos jacarandás e de outras árvores cujo nome não me ocorre. Também elas, horas e árvores, fazem parte da banalidade que me envolve, e eu amo-as por isso.

sábado, 3 de outubro de 2020

Vestir o ânimo

Estou há longos minutos a observar as árvores dos espaços envolventes. Quase imóveis, parecem estátuas que um divino escultor terá esculpido como símbolo de tudo o que há de misterioso no mundo. Há no arvoredo uma dignidade que escapa ao mundo animal. Neste, a inquietação da morte e a necessidade cruel tornam a vida uma manta onde se cosem truques e armadilhas para matar e sobreviver, um circo romano onde todos são à vez feras e cristãos. Contrariamente à volubilidade da vida animal, a existência das árvores é marcada pela constância, por uma fidelidade ao lugar, por uma elevação contínua, pelo silêncio com que deixam passar por elas os anos e as peripécias, sem que se lhes oiço um grito, um queixume, uma imprecação. Morrem de pé, como é dito na peça do asturiano Alejandro Casona, ou são traiçoeiramente abatidas pelos homens. Este prolongado fim de semana começa neste registo de melancolia, não porque esteja melancólico, mas porque é a tonalidade de espírito que melhor se adequa ao dia. Há muitos anos, numa conversa que nunca esqueci, alguém disse que deveríamos revestir o ânimo com o mesmo cuidado com que vestimos o corpo. O essencial é ter em atenção o tempo e, desse modo, há dias que devemos estar alegres, outros tristes. Em alguns devemos vestir a farda da ira, outras vezes o mais indicado é uma capa de nostalgia. Com o passar dos anos, fui descobrindo a sabedoria do conselho. São muito desavisadas as pessoas que se preocupam com o que lhes veste o corpo, mas andam pelas ruas com o ânimo nu, como se fossem indigentes e não houvesse lá por casa uma camisa de angústia ou um casaco de júbilo. Daqui a pouco ponho a gravata da melancolia e vou às compras. Logo terei cá o meu neto, e isso é o mais importante.

sexta-feira, 2 de outubro de 2020

Uma tarde entre parêntesis

Mais e menos, abrir e fechar parêntesis, unidades e fracções. A mais de cem quilómetros de distância a minha neta mais velha está ser submetida a uma provação. Em videoconferência a avó soma avisos e injunções, dita-lhe exercícios, subtrai-lhe umas horas de brincadeira. Ela vai-se submetendo ao mundo do cálculo, à estratégia de aplicação de algoritmos, enquanto a cabeça devaneia lá por aqueles sítios onde, às sextas-feiras à tarde, se reúnem os espíritos adolescentes. Não sei se todo este admirável mundo novo será coisa boa. Está um maravilhoso dia de Outono. Ora chove, ora faz sol. O vento sopra agreste, enrola-se nos ramos das árvores, nos cabelos e saias das mulheres, grasna e cochicha por tudo o que é canto. As folhas secas desenham espirais no ar, enquanto as fracções se multiplicam e os números negativos tentam anular os positivos. Não, não é King que estão a jogar. Quando chegarão as raízes quadradas, pergunto-me. Agora fez-se silêncio, talvez todos os parêntesis abertos tenham sido fechados e as fracções somadas sejam unidades puras, inteiras, imaculadas, virginais. Talvez seja apenas o descanso antes da segunda vaga. O sol reverbera no telhado do pavilhão da escola ao lado, o ramalhar das árvores prende-me a atenção, o dia escorrega para a noite e a minha vida desliza para o nada, que é o sítio aonde tudo vai dar, mais soma menos subtracção, mais número inteiro menos fracção.

quinta-feira, 1 de outubro de 2020

Um dia octúbrico

Hoje está um dia verdadeiramente octúbrico, pensei enquanto uma chuva miúda descia sobre mim. Pena é que ainda não tenham inventado a palavra octúbrico, mas não vejo outra que possa designar a presença de Outubro neste primeiro dia do mês. Talvez alguém a tenha pronunciado ou mesmo escrito e eu não saiba. Muito vasta é a minha ignorância. Digo isto apenas para parecer humilde e não atrair sobre mim os maus espíritos que andam por aí a esvoaçar. Estive a oficiar durante duas horas ao ar livre. A máscara interpõe-se entre a minha voz e o mundo. Fico com a garganta arrasada. Chegado a casa, fui a uma das janelas para ver o que se passava na rua. Não se passava nada a não ser gente a passar, uns a pé e outros de carro. Olhei para os telhados dos prédios envolventes. Fiquei preocupado. Há uns dias que não vejo por lá os anjos que costumam poisar naqueles sítios. Talvez tenham ido em missão a algum sítio em dificuldade ou foram hospitalizados com o novo vírus. Nunca se sabe. Também é possível que se tenham disfarçado de pombos e andem por aí a esvoaçar, arrulhando por aqui e por ali. À saída do lugar de frutas e legumes onde entrei para comprar feijão-verde encontrei a Lu, a irmã da Marília do Dirceu. Estava risonha. Que a chuva a tinha impedido de acabar a caminhada. Disse isto com aquele seu ar de heroína grega, de Antígona que escapou às garras de Creonte, o que lhe diminui a faceta trágica, mas permitiu-lhe deixar um rasto de fogo no mundo. Tenho de me despachar e deixar de escrever idiotices. Esperam-me. Ainda tenho duas homilias para proferir. O pior é garganta.

quarta-feira, 30 de setembro de 2020

Também eu sou competitivo

Leio que uma universidade católica pátria vai ministrar um curso de filosofia aos quadros superiores de um grupo empresarial francês dedicado à construção civil. O objectivo é aumentar a competitividade. Os sacerdotes são pessoas admiráveis e além de admiráveis são muito competitivos, e ainda mais o são se caíram no caldeirão da poção mágica a que vulgarmente se dá o nome de filosofia. Nada de ócios meditabundos e contemplativos. Coisa de gregos dados às filosofices. Há que ajudar o produto interno bruto, há que pôr Platão a render, Aristóteles a negociar e Descartes a trautear se compito, logo existo. Ponham também Tomás de Aquino a meditar sobre o papel das casas de banho na maximização dos lucros e Agostinho a fazer confissões sobre o problema do tempo no fracasso das vendas. Como o leitor pode constatar tenho uma grande inclinação para pecar, mas o dia não começou da melhor maneira. A manhã ocupei-a a ler pornografia. Sim, leu bem. Uma pornografia muito especial, onde não existem cenas de sexo, mas um conjunto de ideias malucas de pessoas que gostavam de ter o talento dos padres católicos que vendem filosofia a gestores da construção. Não têm, não passaram os olhos sobre aqueles textos difíceis e que geram ideias muito mais interessantes do que aquela pornografia a que sou instado a ler por um diabrete malévolo, sobrinho do deus enganador do senhor Descartes. Caro leitor, esqueça tudo o que leu e finja que este narrador não narrou aquilo que narrou. Se houver aí uns pedreiros, ou mesmo uns ajudantes, disponíveis, eu faço também um seminário sobre a metafísica do tijolo e a ética da argamassa. Também eu sou competitivo.

terça-feira, 29 de setembro de 2020

Sniff Game

Numa fotografia de Alfred Eisenstadt vêem-se vários de pares de jovens à saída da adolescência entregues a um Sniff Game. A ideia é fazer transitar um Kleenex de nariz para nariz, dando uma volta ao grupo sem que o lenço caia. O que vale é que a foto é de 1948 e ainda estavam longe as restrições à partilha de snifadelas. O que se passaria depois do jogo não me perguntem, pois nessa altura nem tinha nascido e falece-me a imaginação. A seguir ao almoço, para não ficar a aboborar numa cadeira diante de uns gráficos coloridos com que entretenho nestes dias a existência, fui à farmácia comprar máscaras para poder oficiar no sítio onde prego aos peixes. Eu sei que nestes dias de inovação, um tempo em que uma pessoa dá um pontapé numa pedra e saltam de lá meia dúzia de inovadores, fica mal alguém andar a sermonar, tal como se faz há séculos. Paciência, sou um velho conservador. Um acontecimento estranho ocorreu esta manhã na varanda e nos canteiros que circundam as janelas do escritório. Os muros estavam cheios de jovens pássaros – se não os ofendesse com a minha ignorância, diria que eram andorinhas – que, tanto quanto consegui perceber, estavam na sua primeira lição de voo. Atiravam-se, sob a supervisão de uns maiores, para o abismo e começavam a bater as asas. Já é a segunda vez que este ano assisto a um acontecimento destes. Talvez esta actividade seja mais perigosa do que um Sniff Game, mas não tenho a certeza.

segunda-feira, 28 de setembro de 2020

Uma metafísica ociosa

Por vezes, num momento de alheamento, as coisas parecem iguais ao que eram, mas mal se olha para o lado descobre-se que não é assim. Mascarados, vindos de todos os lados, irrompem no campo visual e por ali ficam a apascentar as horas, arrostando na face o escudo que talvez os salve. Consta que é um problema para os vendedores de bâtons e negócios correlativos. Tudo se paga nesta vida, exclamou ontem o meu amigo Rogélio, com aquele seu ar de profeta folgazão, enquanto acendia uma nova cigarrilha Café Creme. A natureza cansou-se do narcisismo humano e, para nos humilhar, obriga toda a gente a tapar o rosto. Não foi rosto que ele disse, mas as fuças. O que não deixa de ter as suas vantagens, acrescentou, com o ar mais sério que se pode pôr neste mundo. Depois de tecer múltiplas considerações sobre a vantagem estética da ocultação da face, rematou o ditirambo em louvor da máscara dizendo que não a usamos porque existe um vírus ameaçador, mas existe um vírus ameaçador para que a usemos. Eis a verdade. Esta inversão da ordem das causas e dos efeitos foi sempre uma característica sua. Isso foi ontem à tarde, hoje, porém, não posso entregar-me a esta metafísica ociosa, pois muitos são os deveres cuja realização aguarda o beneplácito da minha vontade. Alguém perguntou-me por que razão não escrevo sobre coisas importantes. Respondi-lhe que se eu escrevesse sobre elas, deixariam de imediato de o ser. Fui feito para discorrer sobre bagatelas e nulidades. Deixo aos outros a preservação dos bons costumes e a salvação do mundo. A cada um a sua especialidade.

domingo, 27 de setembro de 2020

Um começo inusitado

Ainda não eram onze da manhã e recebo uma chamada da Emilia Bazán, a mulher de Hans Castorp, o antigo discípulo alemão do padre Lodovico. Que estavam outra vez em Portugal. Se nos poderíamos juntar. Pensei que ela ainda se regulava pelas horas de Madrid. Uma hora ao domingo faz muita diferença. Depois, perguntou-me se já tinha acabado de ler as Sonatas, do Valle-Inclán. Respondi-lhe que sim. Muito bem. E comentários? Disse-lhe que o autor era bastante inteligente e que conseguiu produzir verdadeiras obras-primas quase como se escrevesse novelas cor-de-rosa, embora o rosa fosse ao mesmo tempo jocoso e sombrio. Ela riu-se. Ele era louco e genial. Até perdeu um braço numa briga com um amigo, acrescentou. Muitos idiotas – a expressão é dela – ficam decepcionados com estes romances, pois confundem entretenimento com literatura e, ainda por cima, falta-lhes a inteligência para compreender o autor. Ri-me. Desta vez safei-me, foi o que me acudiu ao espírito. Deste modo inusitado, entrei verdadeiramente no domingo. Ainda não sei bem o que fazer com ele, mas julgo que vou pagar pelas compras que não fiz e por outras coisas que deveria ter feito durante a semana e que adiei, não pela sua dificuldade, não por um ataque de preguiça, apenas porque me fazem bocejar. Uma náusea. Os dias têm estado ventosos e hoje não é diferente. Nos loendros da escola ao lado são já poucas as flores que resistem. As acácias da praceta, porém, estão majestosas, toucadas a verde cerrado que o vento, ao levantar-lhe as folhas, faz parecer quase cinzento e prata. Tenho de me fazer à vida. Quando era adolescente, era hora de ir à missa, agora é tempo de ir fazer compras. Troca-se sempre uma religião por outra. Não passamos de uns pobres conversos.

sábado, 26 de setembro de 2020

Comigo me desavim

Comecei o sábado com uma desavença com a balança. Deu-me mais setecentos gramas do que aquilo que lhe tinha pedido. Disse-lhe que não os queria. Ela replicou que não me preocupasse, eram oferta dela, não tinha de pagar mais. Respondi-lhe que não queria ficar a dever favores a ninguém. Ela que desse os setecentos gramas a outro. Não chegámos a entendimento e acabei por trazer os gramas comigo. Depois, passei diante do friso das orquídeas e descobri que a branca ainda tem duas flores, mas caindo estas entrará em hibernação floral, como todas as outras. Que tenha estado florida mais de ano e meio é um enigma, pelo menos para mim que nunca tive qualquer inclinação para a botânica. Descobri ainda outra coisa. O livro que estava a ler foi mal montado e a partir de certa altura começa a repetir as páginas anteriores. Nem posso reclamar com o vendedor, pois nem sei bem quando e a quem o comprei. Vai para a reciclagem. Também eu me poria na reciclagem se viesse de lá transformado noutra coisa, mesmo que fosse ainda pior do que já sou. Nunca deixo de louvar quem não se cansa de si mesmo, pois recebeu uma graça invejável. A mim foi dado o funesto destino de ter de viver comigo cansado de mim. Bem percebo o Sá de Miranda. Comigo me desavim, Sou posto em todo perigo; / Não posso viver comigo / Nem posso fugir de mim. Talvez ele, como eu, fosse dado ao exagero. Lá em baixo, uma criança exerce os seus poderes fácticos gritando até dobrar a cerviz da mãe, orgulhosa dos pulmões do príncipe. O mundo está a tornar-se-me incompreensível.

sexta-feira, 25 de setembro de 2020

Onanismo respiratório

No sítio onde pela mais estrita necessidade oficio, para um rebanho de fiéis sem fé, uma liturgia espúria, como se fora um sacerdote cujos rituais tivessem sido determinados por um colégio cardinalício ignoto e malévolo, ao serviço de um deus galhofeiro e abscôndito, é parte obrigatória do paramento a máscara. É um exercício terrível proferir homilia atrás de homilia, sermão após sermão, com aquela coisa diante da boca e do nariz. Quando tenho oportunidade, escapo-me para o ar livre e procuro um sítio onde não esteja ninguém. Aí retiro o adorno e snifo, não encontro outra expressão, em longas inspirações, ar puro, um ar que não esteja contaminado pela minha própria respiração. Usar a máscara é um exercício de onanismo respiratório. Respiro o meu ar, respiro-me. Eu sei que há coisas bem piores e que elas acontecem sem que para elas seja preciso aduzir explicações. Isso não invalida tudo o que há de tenebroso neste entrudo chocarreiro que nos caiu em cima, neste carnaval que mais parece uma quarta-feira de cinzas ou o dia dos fiéis defuntos. Descarregado o fel, aliviada a bílis, olho para a sexta-feira e peço-lhe que suspenda o seu rápido curso para sábado, que retenha este sol outonal que brilha sobre a copa das árvores e aquece o vento que sopra de norte. Ela olha para mim divertida, volta-me as costas e continua impávida a sua viagem em direcção ao crepúsculo. Omito a palavra que me ficou retida na cercadura dos dentes. Também nesta frase há algum plágio.

quinta-feira, 24 de setembro de 2020

Da memória

Hoje, ao passar pela avenida marginal, descobri que os castanheiros estão, muitos deles, sem folhas, e os outros apresentam uma roupagem envelhecida, encarquilhada, prestes a despenhar-se no calcário dos passeios, para que o sopro do vento a enovele e a empurre para dentro do nosso esquecimento. Não há maior sabedoria do que ser capaz de impelir as coisas para o lugar onde a memória perdeu os seus parcos poderes. Há pessoas que têm memórias fabulosas, vivem numa casa atafulhada de folhas mortas. Parecem ter nisso um grande prazer, embora o rancor nunca deixe de borbulhar se a recordação é adversa. Poderia escrever uma diatribe contra a memória e, ao mesmo tempo, uma apologia em seu louvor. Esta possibilidade de fazer uma coisa e o seu contrário deveria ser estimada e desenvolvida com afinco. Nunca se sabe de onde sopra o vento e aquilo que a vida exige de nós. Ainda no Natal nos parecia risível andar mascarados como se o ano fosse todo ele um contínuo Carnaval, agora é o que se vê. Também eu uso máscara, mas ponho-a sobre aquela que usava todos os dias, embora ninguém se apercebesse. Vou equipar-me e pôr-me a caminho para ver se chego a horas ao sítio onde estou.

quarta-feira, 23 de setembro de 2020

Misantropia

O dia ensarilhou-se logo de manhã por causa de uma encomenda. Por vezes, uma pequena perturbação na agenda imaginada é o suficiente para me turvar o humor. Talvez seja mentira, e o que me indispõe é ter vindo tarde de Lisboa e uma noite mal dormida. Também é possível que não seja nada disso e me tenha transformado num misantropo. Esta palavra que me deve ter chegado aos ouvidos devido à peça de Molière fez-me lembrar aqueles dias em que perorava sobre a misologia, esse ódio visceral à razão. Como a generalidade das coisas que faço, também essas perorações foram inúteis, como se pode ver por tudo quanto é sítio. Uma sirene rasga o tecido cru do silêncio e anuncia a aproximação das treze horas. Não tenho por hábito ler teatro, mas há muitas décadas, ainda mal barbado, li, em transe, Sófocles e o Sartre teatral. Na província, precisa-se de pouco para ficar extasiado. O que isso terá contribuído para a minha inutilidade está por apurar, mas não terá sido pouco. Pego no jarro e verto vagarosamente a água no copo. Oiço com atenção o som do líquido contra o vidro. Há muito tempo tive uma gata siamesa que, como todas dessa espécie, tinha umas manias muito peculiares. Só bebia água em recipientes de vidro. Sobre mim teve a vantagem de nunca ter lido Sófocles, nem Sartre, nem Ésquilo. Talvez tenha lido Shakespeare. Kant, tenho a certeza que o fez, naquelas horas em que eu tinha a Crítica da Razão Pura aberta defronte de mim e ela se empoleirava no meu ombro para ver o que eu estava a ler. Como nunca me censurou, imagino que terá gostado.

terça-feira, 22 de setembro de 2020

Folhas mortas

Alegro-me. Chegou o Outono com o seu cortejo de folhas mortas. Oiço Yves Montand a dizer Les Feuilles Mortes e depois a cantar o poema de Jacques Prevert. De seguida, passo para a Edit Piaf a cantar em inglês e francês Autumn Leaves e concluo com a Ute Lemper, também a cantar o poema de Prevert. Foram as minhas boas-vindas à mais bela estação do ano. Olho para os cantores escolhidos e, com a excepção de Ute Lemper que é mais nova do que eu, pertencem a gerações bem anteriores à minha. Também eu já entrei no Outono. Estão mortas todas as folhas que caem de mim, mas sinto prazer em ouvi-las bater no chão e serem arrastadas pelo vento. Hoje a minha neta mais velha faz anos. Mal sabe ainda o que é a Primavera, mas os traços da adolescência já são motivo de comentários irónicos a que ela responde com um sorriso ou um olhar enviesado e um franzir de sobrancelhas. Está a entrar naquela fase em que as raparigas se riem por tudo e por nada, o que deixa sempre os rapazes desconcertados. Talvez não exista nada de novo sob o sol, mas estas eternas repetições nunca deixam de ser uma grande novidade, seja a vinda do Outono, seja a entrada na adolescência.

segunda-feira, 21 de setembro de 2020

Marinheiras

A segunda-feira resvala entristecida em direcção ao crepúsculo. Os dias estão muito mais pequenos e as noites alongam-se, espreguiçando-se vagarosamente sobre a cama de nuvens, onde um sol pávido também vai adormecendo. Quando começo com frases tão infelizes como as anteriores, sei que estou completamente vazio. Hoje oficiei durante algumas horas. Falei, falei. Muitas vezes as pessoas falam para ocupar os silêncios, pelo facto de os outros não terem nada para dizer ou não quererem fazê-lo. Sei, porém, que nada tenho a dizer. A cada dia que passa, sinto que deveria ter entrado há muito para a Cartuxa. Deixar o silêncio reverberar. Nada dizer e nada escutar, mover-me nesse confronto com o imponderável, nessa sombra que o absoluto projecta sobre os corpos. Diante de mim estão três bolachas marinheiras que deveria ter comido a meio da manhã, para ganhar alguma energia para suportar a outra metade. Envolto na minha álacre e pesarosa verborreia, esqueci-me por completo. Confesso que até há pouco tempo não fazia ideia de que existiam tais bolachas. A minha incultura geral é enorme, mas as minhas netas introduziram-me neste tipo de consumo. Têm uma vantagem. Não são doces. O meu problema não é com o açúcar é mesmo com os sabores adocicados. Um gato cose-se com a parede da escola ao lado. Vai sorrateiro, imerso na sombra da tarde. Depois, pára e coça-se. Por fim, corre e desaparece do meu campo de visão. Vou comer as marinheiras, talvez assim tenha energia para chegar à noite.

domingo, 20 de setembro de 2020

O desconsolo de domingo

Hoje é o primeiro domingo, de há muito para cá, que traz consigo o desconsolo da semana que se avizinha. Nunca soube se essa triste melancolia era parte inteira deste dia de ócio e que se projectava para os dias úteis ou, pelo contrário, ele a recebia vinda do futuro. É possível que muitas das coisas que sentimos no presente sejam apenas reflexos daquilo que existe na casa do futuro e que este envia para o presente como um sinal do que espera os mortais. Sentado numa esplanada na ilha do Baleal fiquei a olhar o mar pejado de surfistas que se entregavam ao difícil equilíbrio sobre a prancha. Estava nesta contemplação distraída quando oiço a voz do padre Lodovico. Se fosse novo, disse, aprenderia a fazer surf, agora é tarde. Quando se sentou à nossa mesa, acrescentou, os Settembrini nunca foram particularmente dados ao desporto. Os seus interesses sempre foram outros, talvez piores. Ainda por aqui, perguntei-lhe. Com a minha idade, respondeu, tenho uma maior liberdade e vim passar o fim-de-semana à casa da Companhia. Seja como for, já disse Missa, embora não tivesse assistência. Eu ri-me. Tem uma vantagem, continuou, não proferi a homilia. Já não tenho paciência para pregar a mim mesmo. Compreendo, respondi. Vamos almoçar à Areia Branca? Conheço lá um bar sobre a praia onde podemos comer e conversar descansadamente. Anuí. Então encontramo-nos lá às duas e meia. Pensei que era um horário pouco católico para um velho jesuíta, mas não disse nada. Ele levantou-se e eu fiquei sem assunto. Temos de nos despachar para o não fazer esperar.

sábado, 19 de setembro de 2020

Equívocos

No seu muito famoso livro Psychologie des Foules, de 1895, Gustave Le Bon cita um estranho caso narrado pelo diário L’Éclair em Abril desse mesmo ano. Tendo aparecido em Paris o cadáver de um rapaz em idade escolar, um outro identificou-o como sendo um seu colega de escola desaparecido há meses. Esta identificação foi corroborada pelos companheiros, pelo professor, pelos vizinhos, pelo tio da criança e pela própria mãe. O problema é que, passadas seis semanas, a polícia estabeleceu a identidade da criança, sem sombra para dúvida, e ela nada tinha a ver com aquela que as sucessivas identificações lhe atribuíram. Tratava-se de um rapaz de Bordéus, aí assassinado e despachado para Paris. A vida é assim feita de equívocos, que se multiplicam sem cessar. Também eu hoje julguei entrever sob uma máscara o rosto de alguém conhecido. Ainda me aproximei, mas valeu-me uma súbita mudança de posição da pessoa, para que vista de outra perspectiva se revelasse não ser quem eu supunha. Fiquei grato ao destino por evitar fazer uma triste figura, mas depois pensei que vivemos uma época interessante. Um terrível equívoco pode ser sempre o início de uma bela amizade. Aviso já que estas últimas palavras são uma citação sem aspas do diálogo final de um certo filme cujo nome omito. São plágio, pois, por falência de imaginação, não encontrei melhor saída do que esta. Agora vou cortar o cabelo. Será que me reconhecerei de seguida?

sexta-feira, 18 de setembro de 2020

Grandes causas

Ontem descobri que a mãe da visceral Natália Correia publicou dois romances, na década de quarenta do século passado, sob o singelo pseudónimo de Ana Maria. Quando percebi a ligação não pude evitar a comparação da visceralidade de uma com a singeleza pseudonímica de outra. Acabo de ser informado que alguém chegou primeiro do que eu a uns livros que há muito pensara em comprar. Terei de fazer novas investigações. O dia está buliçoso. O vento, irritadiço, sopra ao deus-dará, rajada para aqui, lufada para acolá, descarrega a sua ira sobre as copas das árvores que, medrosas, tremem, abanam, entregam-se, em coreografia frívola, a uma dança lamentável. Por vezes, chove. O Outono triunfou sobre o despotismo estival. Tenho ocupado os dias com a preparação de um longo relatório. Estou a tornar-me um especialista em tabelas e gráficos. Nasci com uma propensão para as coisas inúteis e elas não se fazem rogadas, vêm ter comigo para que lhes dê atenção. Muito admiro aquelas pessoas que têm sempre grandes causas e muito se agitam para tornar o mundo melhor, embora o mundo se recuse perpetuamente em fazer-lhe a vontade, quando não, devido à sua agitação, se torna um sítio bem mais infrequentável. Também eu gostaria de ter grandes causas, mas se me dessem uma, por maior que ela fosse, logo eu haveria de a apequenar e torná-la, pela minha mera adesão, em coisa risível. Grandes causas, mesmo ali ao entrar da Modernidade, tinha D. Quixote. A partir daí, e cada vez mais e mais rapidamente, toda a gente passou a ver gigantes onde estavam moinhos. O mais sensato seria evitar estas considerações, pois toda a gente precisa do consolo de uma grande causa. Até eu tenho a grande causa de não ter grandes causas.

quinta-feira, 17 de setembro de 2020

A palavra que não tenho

Perco-me na procura de uma palavra. A que tenho não me serve. Nisso não me distingo dos outros e quase sinto com eles uma fraternidade nesse nunca servir aquilo que se tem. A uns é o carro que não serve, a outros é a mulher ou o marido, a alguns será o destino, a número incerto de pessoas não lhe servirá a hora de nascimento, talvez pela disposição desfavorável dos astros, a mim são apenas as palavras que me não servem. Há quem tenha palavras dignas de inveja e eu, confesso-o sem contrição, não me faço rogado na cobiça. Talvez existam pessoas capazes de roubar ou matar por uma palavra. Apesar de dado à hipérbole, não vou tão longe. Não por mérito meu, mas porque a natureza não me deu inclinação para o crime. Enquanto escrevo oiço Anouar Brahem, um tunisino tocador de oud, um belíssimo instrumento de cordas parecido com o alaúde. A música combina-se com o tamborilar das persianas e o silvar do vento numa fresta da janela, e eu esqueço-me da palavra que não tenho. O pequeno bosque da escola ao lado resistiu bem à estiagem. Também as acácias da rua estão vigorosas. O Verão curva-se para o Outono e isso é tudo aquilo que agora desejo, mais do que a palavra que não tenho. Recobro o ânimo com o minguar dos dias. Talvez tenha nascido com a lua em quarto-minguante.

quarta-feira, 16 de setembro de 2020

Perder o rosto

Quando saí de casa havia um charivari de cuja natureza me tinha esquecido. Junto à escola primária amontoavam-se pais e crianças. Destas saíam sons agudos, verdadeiros estiletes a enterrarem-se pelos tímpanos. Se os pais tinham rosto, foi coisa que não descobri. Estavam de máscara e nunca sabemos o que se esconde por detrás de uma coisa dessas. Quando a uso começo por sentir uma ligeira irritação devido à circulação do ar, mais tarde sou acometido pelo temor de ter perdido o rosto. Alguém me diz que mais vale perder o rosto do que a face. É um caso a considerar, embora os nossos tempos não tenham qualquer interesse por questões de honra. Ainda no século XIX o duelo era recorrente. O último que aconteceu em Portugal foi em 1925 e aquele que o perdeu acabou por morrer de síncope cardíaca, o que não deixa de ser trágico. Ao menos que tivesse sucumbido a uma estocada do adversário. O instituto do duelo servia para as pessoas lavarem a honra, as que a tinham, pois nem toda a gente tinha dinheiro para comprar e usar uma peça de vestuário tão cara. Como não havia máquinas de lavar e a honra não fosse coisa que se desse para a mão de qualquer lavadeira, era preciso lavá-la em sangue. Era um tempo de grandes susceptibilidades. Não se pense, todavia, que era assunto apenas de aristocratas e monárquicos. Os republicanos também tinham uma inclinação especial para as cerimónias no campo de honra. Isto interessa a quem? A ninguém, claro, mas serve para mostrar que escrever é como as cerejas. Começa-se num assunto e acaba-se num outro completamente diferente. Há quem chame a isso volubilidade do narrador, mas pode ficar descansado que não o vou desafiar para um duelo.

terça-feira, 15 de setembro de 2020

O risco

Chegámos a meio de Setembro. Os dias deveriam agora inclinar-se para a melancolia. Um vento fresco, um ou outra folha caída, um sol menos dado à facúndia, a essa eloquência feita de brilho e raios a transbordar calor por todos os poros. Pára, oiço, os raios não têm poros. É pena, podiam ter. Ontem voltei-me para o cardiologista e perguntei-lhe qual o grau de risco caso seja contaminado pelo COVID. Intermédio, respondeu de imediato. E para me tranquilizar acrescentou que pelo coração não haverá problema, está como novo. O risco vem do grupo etário a que pertence. Não corro riscos pelo coração. Ainda bem, pensei. Já começo a não ter idade para os ademanes e volteios do órgão bombeador de sangue. Agora mesmo, ao abrir um livro vi uma afirmação feita há mais de 70 anos em género de previsão. Apesar do tom ser assertivo – uma das palavras odiosas em voga, tal como resiliência e a expressão inteligência emocional – a realidade decidiu contrariá-lo e fazer exactamente o contrário do que fora previsto. Não sei se isto foi um aviso, mas o melhor, ao contrário do que se tornou moda, é não confiar no coração, mesmo que esteja como novo ou por causa disso.

segunda-feira, 14 de setembro de 2020

Crenças delirantes

A dado passo da Teoria da Loucura de Massas, o escritor austríaco Hermann Broch faz a pergunta: Quem era louco, as bruxas ou aqueles que as queimavam? Talvez, responde, ambos, pelo menos o mais das vezes. Umas e outros viviam mergulhados em crenças delirantes. Apesar de hoje em dia já não ser de bom tom andar por aí a queimar bruxas, um progresso civilizacional digno de nota, as crenças delirantes não acabaram. Parecem ter-se expandido e mal se olha para o mundo ou se dá alguma atenção à imprensa e às redes sociais, fica-se com a impressão de que se vive mergulhado num mundo de delírios. Nesses momentos, desconfio que os meus pensamentos e as minhas crenças são todos eles também delirantes e como tal perigosos. O melhor é abster-me de ter pensamentos e crenças. Espreito pela janela e vejo as torres do castelo, depois passo com os olhos pelo friso das orquídeas, por fim respiro fundo. As torres não têm crenças e as orquídeas não pensam, o que quer dizer que nem tudo estará perdido.

domingo, 13 de setembro de 2020

Um outro calendário

Um almoço tardio de domingo. Depois, como em outros tempos, a refeição prolongou-se entre conversas de ocasião. Não tarda e todos terão de voltar para os sítios por onde conduzem as suas existências. Em tudo isto há uma espécie de recapitulação, mas com personagens diferentes e os que se mantêm ocupam outros lugares na pirâmide etária. Lembro-me muito bem desses domingos em que eu actuava no palco dos mais novos. Cabe-me, agora, o lugar oposto. Só se percebe o que isso significa quando se chega aí, quando os carros começam a sair e de lá de dentro há mãos a acenar, se trocam despedidas e em vez de escutar diz-se boa-viagem e se ouve obrigado, obrigada, adeus avô. Estes são os calendários mais autênticos e os mais terríveis. Neles não se rasgam as folhas dos meses até que estes voltem, numa dança que parece sem fim, como se nada tivesse acontecido. Neste outro apenas se muda de lugar até que o nosso seja suprimido e a outros caiba dizer boa-viagem. Será para isto que um dia se terá inventado a palavra tradição, para que alguém diga boa-viagem e outros acenem de dentro de um carro. Não é a nostalgia que invade a consciência em domingos destes, mas a certeza de que o tempo é um cavalo sem freio e que não há nada mais evidente sobre este mundo do que a nossa finitude, do que a nossa transitoriedade. E estas fazem parte da velha justiça que regula o cosmos que nos foi dado para viver.

sábado, 12 de setembro de 2020

Sábado à tarde

A tarde de sábado vai a meio. Oiço o rumorejar dos carros, oiço vozes entretidas com pequenos dramas domésticos, oiço pássaros presos a disputas eternas. De todos os romances publicados por Carlos de Oliveira, há um que nunca tinha lido, Alcateia. Publicado nos anos quarenta do século passado, nunca mais foi reeditado. Consegui um exemplar num alfarrabista. O talento do autor é excessivo para os universos sociais e psicológicos que escolhe para situar as suas narrativas. Uma insónia esta noite permitiu-me ler um quinto da obra. Lá fora as pessoas enfrentam a canícula, avançam destemidas pela avenida, escondem-se nas sombras. Um jacarandá ainda tem algumas flores, pequenas manchas roxas num oceano de folhas verdes. Há dias que oiço a música de uma freira medieval, Hildegard von Bingen. Gosto de pronunciar o seu nome devagar, como se ele contivesse um mistério e uma promessa de salvação. Teria sido uma mulher extremamente dotada. Além da música ela tinha também um talento enorme para a medicina. Fecho os olhos e dentro de mim funde-se o canto medieval com o uivo da alcateia. O meu neto que hoje conseguiu levar-me à praia já acordou da sesta. Tenho de o ajudar a andar de triciclo.

sexta-feira, 11 de setembro de 2020

O que se merece

Acabei de receber uma mensagem de que a minha encomenda já está disponível na loja. A encomenda é as traduções das Geórgicas e das Bucólicas, de Vergílio, editadas, o ano passado, pela Cotovia, a moribunda editora. Não tinha dado por elas e foi um acaso que me as fez descobrir. Desconheço o motivo, por certo um conflito teórico ou de tradição universitária, que leva o tradutor destas duas obras a grafar o nome do autor como Vergílio, enquanto o tradutor da Eneida o denomina Virgílio. O mundo tem muitos mistérios. Hoje levantei-me cedo, pois tinha uma tele-reunião às 8:30. Lá videoconferenciei o melhor que fui capaz. É nestas alturas que penso coisas terríveis. Quando cheguei às funções que me ajudam a pagar as contas e a suprir a maldita necessidade, ninguém com a minha idade actual se arrastava por aqueles lugares inóspitos. Já tinha saído pelo menos há quatro anos e dedicava-se a passear ou a fazer o que lhe dava na real gana. O melhor é não me deixar tomar por sentimentos negativos, pensei, pois se para mim é desagradável este degradar-me perante os olhos atentos de terceiros, bem pior é para aqueles que têm de suportar as minhas idiossincrasias, o desacerto que tenho da realidade, as minhas ideias abomináveis sobre o que deveria ser a ordem do mundo. Vou comer qualquer coisa e tomar café, pois não tarda terei de revideoconferenciar. Um dos homúnculos que vive na caverna do meu inconsciente tomou o elevador e parou mesmo à entrada da porta da consciência e atirou-me de chofre: cada um tem o que merece, ninguém te mandou ser idiota e não me teres dado ouvidos. Não dei. De facto, o mundo tem muitos mistérios.

quinta-feira, 10 de setembro de 2020

Meus pobres enganos

Levantei-me cedo para ir fazer análises. Isto não demora, pensei. É só atravessar a avenida. Assim fiz. Chegado ao local de colheita dos materiais a analisar, descubro que está fechado. Foi transformado em posto dedicado ao COVID-19. Tenho de ir ao centro da cidade. Omito aquilo que me saiu da boca. O que seria uma história de meia dúzia de minutos transformou-se num processo que demorou mais de uma hora. Os planos da manhã foram todos estilhaçados. Isto fez-me lembrar uma canção de Chico Buarque. Uma certa Rita Levou os meus planos / Meus pobres enganos. Aqui não foi nenhuma Rita, mas a verdade é que todos os meus planos não passam de pobres enganos que uma qualquer conspiração logo trata de desfazer. Para ser honesto, tenho de dizer que vivo num mundo cheio de planos, planeamentos, planificações. Nesse estranho país pensa-se que tudo se subordina a objectivos, os quais ao longo do tempo vão mudando de designação, e que estes devem ser perseguidos através do achatamento da realidade. Nesse país, a maior parte do esforço das pessoas é andar com martelo ou maça a bater na realidade para a tornar plana. É uma pátria muito ruidosa. Pego nos livros que as minhas netas me ofereceram. Omito a referência bibliográfica, pois estou impedido pelo autor destes textos de me meter em política, e eu sou um narrador obediente. Só conto aquilo que ele deixa. Seja como for, sempre posso dizer que um trata de pestes e pragas, e o outro faz o retrato de três personagens importantes neste jardim à beira-mar plantado, todas elas endeusados pelos seus e vistas como pestes e pragas pelos outros. Esperam-me uns planos e outros enganos. Já estou de martelo na mão.

quarta-feira, 9 de setembro de 2020

Um profeta falhado

Esta é a fase do ano em que começo o dia com a consulta das previsões meteorológicas. Cada um ilude-se como quer. Olho para as do dia, as da semana e as dos próximos catorze dias. Estas são um bálsamo, ao prometerem-me temperaturas sensatas, embora com grau de probabilidade quase nulo. Sempre achei as previsões económicas uma coisa ainda mais extraordinária do que as do tempo. Mais tarde descobri que nem depois dos factos ocorridos se consegue acertar no que se prevê a posteriori. Se eu fosse meteorologista ou economista, faria as previsões na linguagem obscura de um Nostradamo. Escreveria quadras decassilábicas, onde em código faria o prognóstico do raio que cairia ali, da nuvem que passaria acolá, ou, caso se tratasse de Economia, não haveria de falhar uma compra no índice do consumo ou um investimento em esferográficas e papel higiénico de uma empresa, pequena que fosse. Tudo estaria cifrado nos meus escritos e quem quisesse conhecer a realidade, bastaria passar a vida a decifrá-los. Não quis, porém, a natureza dotar-me do talento de profeta. Uma pena, pois não há coisa mais emocionante do que uma terrível profecia, cheia de provações, anjos e trombetas. Que eu saiba, não existe nenhuma que seja anunciada pela música de piano, mas nunca se sabe. A previsão indica-me que estão trinta graus. Respiro fundo, bebo água e volto para as coisas sérias que pautam a minha risível existência.

terça-feira, 8 de setembro de 2020

Fé e falta de fé

Uma longa cadeia de comando. Da mãe para a avó, desta para mim. Tive de ir abrir a janela e obrigar as minhas netas a saltarem da cama. Imagino que sejam exercícios de preparação para o ano lectivo, um corte ritual com o tempo de ócio. Houve tempos mais felizes. Na Grécia antiga o ócio e a aprendizagem andavam de mãos dadas. Hoje em dia são inimigos ferozes, combatem-se sem tréguas. Quando eu tinha a idade delas, Setembro era ainda um mês sem preocupações. A escola não passava de uma nuvem difusa, que chegaria quando o tempo estivesse mais temperado. Havia nisso um saber arcaico que tinha em consideração a inutilidade de tentar ensinar seja o que for nos meses de Verão. Agora faz-se da escola um local para aprender a viver quando a península for um imenso e irrevogável deserto. O ruído de máquinas em manobra ameaça o meu equilíbrio mental. Olho para a lista de coisas que tenho para fazer e bocejo. Não é sono, apenas falta de fé. Os crentes, aqueles que o são verdadeiramente, devem ter menos sono do que as outras pessoas, pois a crença mantém-nos em vigília. Os que são tímidos e mornos no crer – ou que descrêem por completo – sentem mais propensão para dormir. E não há, na lista dos meus afazeres, uma única coisa em que tenha fé, embora também eu tenha algumas crenças. Por exemplo, tenho uma fé profunda no Império Austro-Húngaro. Pena a História não ter tido fé nele, mas a quantidade de grandes escritores que produziu só pode ser motivo de adoração. Tudo isto vem a propósito de Leo Perutz, de quem estou a ler O Cavaleiro Sueco. O autor, um judeu sefardita nascido no Império, foi, além de escritor, matemático, trabalhando sobre o cálculo de probabilidades. Trabalhou na mesma companhia de seguros e ao mesmo tempo que Franz Kafka, de quem terá sido amigo. As minhas netas já estão bem acordadas, pelo que oiço, e entre as suas actividades e as minhas crenças parece não existir qualquer ligação. Felizmente.

segunda-feira, 7 de setembro de 2020

Chegou a realidade

A realidade chegou pela manhã desta segunda-feira. Como todos sabemos ela é uma senhora muito elusiva, embora haja também quem a ache uma marafona, uma daquelas raparigas viciosas dadas ao desfrute, sempre pronta para pôr alguém em apuros. Quando começo a falar por enigmas é porque a coisa não está bem. As sombras já não são suficientes para suster o ataque desferido pelo Sol. Homens e mulheres arrastam-se pelos passeios, param sob a copa das árvores. Os carros passam devagar, revérberos ambulantes, movidos pelo desejo de alguém chegar ao destino. Os loendros da escola ao lado continuam pujantes e eu deixo-me levar pelo desvario da corrente de consciência, saltitando de assunto em assunto. Vejo o correio electrónico e sinto uma inesperada saudade do tempo em que chegavam cartas em papel, onde um envelope selado ocultava segredos e mistérios. Hoje em dia, pensei, já ninguém tem nada a velar e logo não é necessário esse ritual de desenhar as palavras em folhas de papel, aquelas palavras decisivas que mudam uma vida e que são escritas vezes sem conta, enquanto as folhas são rasgadas, e se pega noutra para recomeçar com mais precisão aquilo que se quer escrever. Muitos romances tomaram uma forma epistolográfica, mas é inverosímil que haja arte na redacção de emails e nada de decisivo pode por eles ser anunciado. A realidade chama por mim. Tenho de lhe dar alguma atenção, pois ela é um moscardo zumbidor que não se cala. Sensato seria comprar um insecticida.

domingo, 6 de setembro de 2020

O exsudar oleoso do tempo

Estou cansado, embora ainda não tenha feito nada. Basta o acinte do calor para me exaurir. Já vamos no sexto dia de Setembro, e este ainda não se mostrou uma única vez piedoso. É um mês violento, irascível, raivoso. Até os pássaros meus vizinhos andam calados. Talvez se tenham mudado para um lugar mais fresco. Fecho os olhos e deixo a música deslizar sobre mim. Oiço um CD, comprado há muito, de Reiko Kimura, Music for Koto. Há na música tradicional japonesa um grande poder para nos subtrair à marcha vexatória do tempo e dos acontecimentos e conduzir-nos a territórios nos quais as palavras não conseguem penetrar. Há que ouvir e esquecer-se de si. Ontem esteve cá o meu neto. Vimos a Masha e o Urso e brincámos com CD. Ele tirava-os do lugar e eu arrumava-os. Tenho já um longo treino nesse papel. Vai na terceira edição e ainda não percebi o fascínio que as crianças têm em desarrumar os CD. Sinto os neurónios a curvarem-se sobre si, como se se enroscassem na posição fetal para dormir. Eu bem lhes exijo sinapses, mas eles olham-me com desprezo. Bocejam e voltam-me as costas. Pudesse eu encontrar-me com Eliot e dir-lhe-ia o quanto estava enganado. Não, não é Abril o mais cruel dos meses. Setembro sim, pois nele nem há lugar para a crueldade de confundir memória e desejo, apenas o exsudar oleoso do tempo, apenas o punhal afilado da realidade cravado na garganta, apenas o uivo esfomeado do lobo perdido na floresta.

sábado, 5 de setembro de 2020

Como ser perfeito

Há um poema, How To Be Perfect, de Ron Padgett, um poeta americano, que se prolonga por nove páginas. Cada verso é um imperativo, embora não haja recurso ao ponto de exclamação. O primeiro diz apenas Dorme. Um imperativo categórico, ordena-nos absolutamente que durmamos. O último é um imperativo hipotético, pois aquilo que ele determina depende de uma condição. Transcrevo: Quando há tiros na rua, não vás para ao pé da janela. Quem quiser ser perfeito tem no poema um roteiro. Há vários imperativos interessantes. Por exemplo: Sê gentil com os objectos. Ou: Pergunta ‘Onde é a casa de banho?’ e não ‘Onde posso urinar?’. De todos os mandamentos – e são dezenas – necessários para chegarmos à perfeição aquele de que mais gosto é do segundo: Não dês conselhos. Há outra coisa que me agrada no poeta. Nasceu em Tulsa, no Oklahoma. Eu não faço ideia o que, enquanto lugar para nascer, seja Tulsa, nem nunca pus os pés no Oklahoma, mas a sonoridade de ambas as palavras fazem-me imaginar de imediato uma terrível intriga, que se desenvolve em torno do imperativo com que se encerra a primeira página do poema: Cuida primeiro das coisas que te são próximas. Arruma o quarto antes de salvares o mundo. Depois salva o mundo. Também eu posso oferecer um imperativo. Caso haja tiros na rua, não te ponhas a salvar o mundo, mesmo que já tenhas arrumado o quarto. A perfeição é um caminho difícil, pensei após ler o poema. O mais sensato é deixar-se afogar em imperfeições. Se for sábado e estiver um calor dos diabos, não te ponhas a escrever idiotices. Este foi o melhor imperativo que produzi para mim mesmo, mas nem a ele consigo dar cumprimento.

sexta-feira, 4 de setembro de 2020

O desaparecimento dos rituais

Os olhos secam, tal o calor que está por aqui. Bebo água para me hidratar, mas ninguém consegue usar os neurónios seja no que for com estas temperaturas. Já pensei em recorrer ao ar condicionado, mas aí tudo se complica. A garganta protesta, a voz enrouquece e o espírito começa a duvidar sobre se o corpo não se terá contaminado com o novo vírus que anima a realidade pelo mundo fora. Fui levantar umas encomendas a um posto dos CTT incrustado numa loja que vende livros e materiais escolares. Toda a gente de máscara, o que terá vantagens estéticas e sociais assinaláveis. A continuar assim, chegaremos ao dia em que teremos pudor em mostrar o rosto, mesmo os praticantes de nudismo hão-de fazê-lo de máscara. Uma das minhas leituras actuais é a de um filósofo de língua alemã, de origem sul-coreana, com o inusitado nome de Byung-Chul Han. A obra é Do Desaparecimento dos Rituais. Uma leitura suave e que não há-de agradar nem a gregos nem a troianos, os bandos rivais que enxameiam a praça da filosofia. Nem aqueles que vêem nela um cálculo lógico e transparente como o cristal, nem os que a julgam um exercício esotérico de linguagem indecifrável, que quer sempre dizer outra coisa. Isto, todavia, não interessa a ninguém e a verdade é que os rituais, com o seu jogo de repetições, estão mesmo a retirar-se do mundo. As encomendas que fui levantar eram sapatos que comprei online. O ritual de ir a uma sapataria, com o calça e descalça, o experimenta este e o outro, o abre e fecha caixas, foi substituído pelo relação digital e anónima de espreitar num monitor e de tratar tudo sentado numa secretária. A minha comodidade é um punhal cravado na garganta de um mundo decente. Como se sabe, tenho uma certa propensão para a hipérbole, a que convirá dar o devido desconto.

quinta-feira, 3 de setembro de 2020

Aparência e realidade

Na demanda da caderneta militar, afinal chamada carta de identificação militar, acabei por descobrir um conjunto de velhos cartões que medeiam entre os doze e os vinte e quatro anos. Ao olhar as fotografias, não pude deixar de recorrer ao lugar-comum as aparências iludem. Entre aquilo que pareço naquelas que vão dos dezassete em diante e aquilo que era e fazia há uma tal incongruência que até eu tenho dificuldade em perceber. Talvez a vida de toda a gente não passe de um monte de desacertos e desconchavos entre o que a sua imagem diz e aquilo que se é e faz. Descoberto o documento militar, tive direito a mais duas descobertas. A primeira diz-me que ele não serve para nada. A segunda informa-me que aquilo de que preciso me vai dar um trabalho sem fim para saber aonde me devo dirigir para o obter. Portugal é um exercício difícil, um interminável quebra-cabeças feito de esquecimentos, omissões e segredos. Comecei a ler uma obra de Hermann Broch cujo título original é Die Schuldlosen. Os franceses traduziram como Les Irresponsables, os espanhóis como Los Inocentes. Os portugueses não traduziram. Optei pelo castelhano, o título francês parece-me demasiado interpretativo. A obra começa com a parábola da voz. Os discípulos do rabino Leví bar Chemjo, perguntaram-lhe, tendo em conta que nada existia que antes de ser criado por Deus, por que razão – não havendo quem O escutasse – o Senhor ergueu a voz ao começar a criação. A questão não deixa de ser astuciosa. O rabino, contrariado, respondeu: A linguagem do Senhor, gloriosa como o Seu Nome, é uma linguagem silenciosa e o Seu silêncio é a Sua linguagem. O Seu ver é cegueira e a Sua cegueira é ver. O Seu fazer é não-fazer e o Seu não-fazer é fazer. Voltai para vossas terras e meditai sobre isto. Também eu que não sou seu discípulo devo meditar por que razão a minha realidade e a minha aparência se desacertam, pois talvez a minha realidade seja apenas a minha aparência, e a minha aparência seja a minha realidade. Este calor enlouquece-me e tenho de sair para ir buscar a prescrição das análises que esqueci no consultório.

quarta-feira, 2 de setembro de 2020

Efeito Föhn

Hoje é o primeiro dia de oito em que as temperaturas estarão entre os 35 e os 38 graus. Há dias vi uma explicação sobre a razão de aqui estar um tempo quente e seco e do outro lado da serra ser mais fresco e húmido. A causa seria o efeito Föhn resultante da existência de uma cortina montanhosa – serras da Sintra, Lousã, Montejunto, Candeeiros e Aire – que se interpõe nos caminhos dos ventos vindos do mar, gerando o tempo típico do Oeste, de um dos lados, e a aproximação ao deserto deste lado. Como é assunto que me escapa e não tendo vocação para ser especialista em tudo, ou mesmo numa única coisa, acho a teoria esteticamente aprazível e tomo-a por verdadeira, mesmo que o não seja. Depois, sempre me permitiria escrever palavras como barlavento e sotavento, embora o não tenha feito para as poupar para um próximo texto. Setembro começa ao ataque. É um mês cruel, com instintos homicidas. Há nele um rancor que seria dispensável. Olha para nós e ri-se, enquanto arquitecta estratégias para nos submeter às suas humilhações. Reparo que tenho uma gaveta da secretária aberta e lembro-me que deveria procurar a minha caderneta militar. É verdade, apesar de não passar de um narrador sem narrativa, também possuo o documento que comprova que servi a pátria. Foi um mau serviço, a avaliar pela fotografia que lá se encontra. Um tipo ridículo, posso assegurar, sem o garbo de cavaleiro andante ou o aspecto feroz e implacável de um soldado de elite. Se eu fosse a pátria, ter-me-ia posto do lado de fora do quartel a pontapé. A pátria, porém, foi condescendente e disse-me vem, aqui também há lugar para gente grotesca, irrisória, caricata. Não te importas de endireitar a boina ou também tu sofres do efeito Föhn? Deveria evitar o recurso à prosopopeia, mas é o que se arranja. O que eu gostaria mesmo de saber era onde meti o raio da caderneta. Deve estar na outra gaveta.

terça-feira, 1 de setembro de 2020

Um Janus bifronte

Se Setembro fosse apenas a anunciação de um Outono benévolo, se não passasse de um declinar lento do Estio mergulhado na fragilidade da velhice, hoje seria um belo dia. Foi com este pensamento que me levantei e me preparei para enfrentar o inevitável, que como um Janus bifronte, se estende inexplicavelmente para o passado e para o futuro, a tudo contaminando com o ranço da necessidade. Na comunicação social, devotos de várias confissões defrontam-se sobre festividades, rituais e liturgias, como se alguma coisa de decisivo se tratasse. Há nos seres humanos uma tendência inultrapassável para a hipérbole, esquecendo que a morte a tudo acaba por tornar igual. Aquilo que inflama os corações hoje, não merecerá mais do que um encolher de ombros amanhã e, daqui a umas semanas, só será lembrado por exaltados que ainda não descobriram toda a caridade que existe num tranquilizante. Hoje espreitei as torres do castelo, depois olhei para o friso das orquídeas, já quase todas sem flor. Exceptua-se a branca que está em floração contínua há mais de ano e meio. Na avenida, passa um casal. Vão presos na indiferença que os consome, fiéis ao destino com que a vida, escrava do imperativo da multiplicação, os enganou. O sol dispara raios de aço sobre as paredes da escola aqui ao lado, elas abrem gretas e sangram lentamente, cobrindo com o véu do silêncio a dor que as dilacera.

segunda-feira, 31 de agosto de 2020

Um país lento

Hoje percorri parte da cidade. Havia nela uma estranha combinação de tristeza e calor, como se uma coisa e outra se intensificassem mutuamente. Nas ruas, muita gente cobria essa tristeza com máscaras, muitas delas com cores que escapavam ao padrão cirúrgico. Os corpos incapazes de ocultações passavam devagar, esmagados pela atmosfera, fechados sobre si mesmos, como se o ar envolvente fosse pestilento. Prédios em ruínas, casario que o tempo submeteu ao seu juízo impiedoso. Tudo isto gera uma cultura de nostalgias, cheia de pequenos mitos, tentativas frustes de reencantar aquilo que só foi encantado pela inocência do olhar infantil ou pela ingenuidade dos primeiros amores. Chegado a casa, pensei que deveria evitar estas deambulações. Ir aonde tenho de ir, olhar o menos possível para a realidade e voltar pelo mais curto caminho que houver. Agosto encerra hoje a sua actividade. Está cansado e deixou cair a sua fadiga sobre tudo o que existe. Não é fácil viver num país que tem quase novecentos anos, que já viu coisas demais, que se saturou de Agostos tórridos, que sabe que qualquer inflamação acabará por passar, mesmo que os anti-inflamatórios não sejam grande coisa. É um país lento. Na passada segunda-feira, fiz duas encomendas. Uma em empresa portuguesa e outra numa sediada em Espanha. A enviada pelos nossos vizinhos já a recebi há vários dias, a outra talvez seja hoje que chegue. E tudo isto me maravilha, pois há uma sabedoria que fora daqui não existe e não se percebe. Há muito, muito tempo, numa loja de ferragens de uma outra cidade de província, no início da tarde, talvez porque eu tivesse dado sinais de alguma impaciência, a pessoa que me iria atender esclareceu-me sobre a essência da pátria: não tenha pressa, que eu só saio daqui quando forem sete horas.

domingo, 30 de agosto de 2020

Uma gota no oceano

É tão breve o tempo de suspensão entre o prazer e a realidade que acabo por não saber o que fazer com este domingo. Talvez por antecipar que estão a chegar os dias do ruído, descobri um álbum do Coro da Rádio da Letónia com o magnífico título O Fruto do Silêncio. É composto por sete peças de outros tantos compositores letões. De todos apenas conhecia Pēteris Vasks, cuja peça dá título ao álbum. É uma experiência desconcertante escutar música produzida por compositores dos países bálticos. Há neles uma profundidade espiritual, de coloração religiosa, que praticamente desapareceu da música erudita ocidental. A composição de Martins Vilums denomina-se O Tempo Cintila, a de Ēriks Ešenvalds, Uma Gota no Oceano. E isto diz tudo o que, neste momento de suspensão, posso dizer de mim, miserável narrador sem narrativa. Enquanto o tempo cintila, fruto do silêncio, não passo de uma gota no oceano, ou nem isso.

sábado, 29 de agosto de 2020

Vida de provinciano

O meu idílio com a balança não apenas se mantém, como se intensifica. Hoje, primeiro dia pós-férias, confidenciou-me que eu tinha menos dois quilos do que antes de as começar. Olhei-a embevecido, jurei-lhe amor eterno, que teria sempre muito cuidado quando a pisasse. Enquanto me desfazia nesta conversa pateta, como o são todas as conversas de amor, pensava com alívio que iria evitar o olhar reprovador do médico, o qual, como todos os médicos, fazem da saúde do paciente um exercício de virtude moral, à qual, muitos deles, se julgam no dever de se furtar. Hoje a empresa de jardinagem que tem por hábito, aos sábados de manhã, vir cortar a relva nas pracetas circundantes esqueceu-se da sua cruzada contra a preguiça e a eventual lascívia matinal dos moradores. Foi, porém, substituída por um cão da vizinhança que, talvez espantado por não ouvir os corta-relvas, decidiu ladrar até me acordar. A isto se resume a vida de um provinciano, pensei. Pendências com médicos, férias acabadas, preocupações com barulhos vindos do exterior. O que me está a valer é o romance do Tomás de Noronha, passado na capital, que ainda era do Império, em ambientes sublimes, onde há condessas e marquesas. Fiquei rendido quando, ao referir-se à técnica de selecção social de uma certa marquesa, escreveu: Quem lhe orientava o protocolo era a sua filha, uma trintona nevrotica, destrambelhada, que sabia como ninguém disfarçar o estonteante desejo de se franquear sob a apparencia artificial de ser dificil. Basta o estonteante desejo de se franquear para que a leitura não seja pura perda. Se o tempo fosse feminino, pensei então e sem ligação com o que pensara antes, seria uma górgona, que avançaria com o seu olhar petrificante e a cabeça envolta em serpentes. Sendo masculino, dá-se aparências menos teatrais, e em vez de nos transformar em pedra, desfaz-nos e às nossas vis pretensões em pó. A manhã vai alta, calo-me, para que o alarme de um carro possa ecoar no fundo do meu ser.

sexta-feira, 28 de agosto de 2020

A gestão do dia

O dia nasceu sombrio, e eu hesito em avaliar o fenómeno. Vestiu-se de luto pelo meu último dia de férias? Decidiu poupar-me aos transtornos físicos – e metafísicos, já agora – da canícula? Sinto no centro do peito uma estranha opressão vinda do futuro, mas entretenho-me com a gestão do dia. Um amigo enviou-me um conto publicado pela mulher, vou lê-lo. Outra pergunta-me se quero ir jantar com eles, o clã familiar. O padre Lodovico quer saber quando vou a Lisboa. Uma transportadora deixa-me à porta uma encomenda com o triciclo que comprei para o meu neto. Anoto que, quando for à capital, não posso esquecer-me de levar os hoverboards das netas. Continuo com a minha investigação sobre quem terá sido o T. Noronha que escreveu Volupia que Salva. Graças ao cruzamento dos catálogos de duas bibliotecas municipais cheguei a uma tese verosímil. Trata-se de D. Tomás de Noronha (1870-1934), autor de umas memórias com o título De capa e Batina sobre a estúrdia coimbrã do seu tempo. O fidalgo cursou letras e, depois, teologia, tendo-se formado em ambas. Para teólogo não estava mal. Consta que, juntamente com um tal Pad-Zé e um Vicente Arnoso, foi um dos grandes animadores, em Coimbra, da boémia estudantil. Também escreveu, entre outras coisas sem relevo, um livro de versos com o título Tempos Perdidos. Talvez um sinal de arrependimento. Acabados os cursos foi para o Oriente, para exercer como professor de inglês e alemão no Liceu Nova Goa. A fidalguia já andava, naqueles tempos, pelas ruas da amargura. Na biografia que descobri – um texto hagiográfico da personagem – não consta a referência ao romance que narra os amores de Octavia e Valeria, mas verifiquei que é publicado pela mesma editora – a J. Rodrigues & Cª, sediada no 186 da Rua do Ouro, em Lisboa – que dá à estampa, como se dizia, as tais memórias de estudante. Posso ainda informar que em 1906, ao voltar das Índias, foi recebido e louvado pelo rei D. Carlos e pela rainha D. Amélia, devido a uma iniciativa sobre a Assistência Escolar aos indígenas (a palavra não é minha). Uma coisa é certa, contínuo a ser um repositório de informações inúteis, mas a verdade é que, com a idade, a fronteira entre o útil e o inútil se diluiu. Vou fechar as persianas que o sol voltou a ameaçar.

quinta-feira, 27 de agosto de 2020

A volúpia das coincidências

Um aviso ao eventual leitor: estou sem assunto. Como não sofro da angústia da página em branco, talvez escreva sobre o magno problema das coincidências. Entre uma pilha de livros comprados, há uns anos, em segunda mão, ou terceira, sabe-se lá, encontro um romance com o título Volupia que Salva, obra de um tal T. Noronha. Quem é o autor ou por que razão possuo o romance não faço qualquer ideia. O livro chegou-me encadernado, em bom estado para a idade avançada. Folheio-o e deparo-me logo à entrada com duas citações de Safo e uma de Anacreonte. Leio as primeiras páginas e fico a saber que a Octavia Rodrigues Saavedra e a Valeria Prado têm um caso. Vejo que o livro tem quase cem anos e tento descobrir quem é o autor. Com esforço sou informado que o T. significa Tomás, portanto Tomás Noronha. Faço uma pesquisa por este nome e descubro que um conhecido locutor de televisão e escritor afamado tem como herói das aventuras com que ilumina o universo um Tomás Noronha. Bem, não será esse. Uma outra pesquisa diz-me que no século XVII houve um escritor, fiel escudeiro de D. Sebastião, com esse nome. Tanta fidelidade a D. Sebastião não lhe permitiria por certo tratar do affaire – estou mesmo velho – da Octavia e da Valeria, ainda por cima mulheres modernas. Coincidências, penso, mas quem no início do segundo quartel do século XX teria a ousadia de escrever um romance sobre os delíquios amorosos da Octavia e da Valeria? O que é espantoso, por falar em coincidências, é a seguinte informação, inscrita na última página impressa, que nos diz: Este livro acabou de se imprimir no dia 28 de Maio de 1926. No dia em que Portugal entrava naquele período em que qualquer volúpia, fosse de que cor fosse, deveria ser banida, e caso tivesse mesmo que ser, então que passasse à clandestinidade ou se desse no recôndito do leito matrimonial, com as excepções que todos sabemos, publicava-se um romance que proclamava a volúpia como salvação, talvez da alma, mas não posso assegurar. Independentemente de todas estas dramáticas coincidências, há uma coisa que me agrada em Tomás Noronha. Escreve crystal, condessa de Nellas, d’uma, etc. Portanto, um autêntico insurgente contra a pouco voluptuosa simplificação ortográfica de 1911. Um monárquico libertino.

quarta-feira, 26 de agosto de 2020

A bailarina alemã

Depois da minha tarefa matinal de abrir e fechar persianas para conter os raios enviados pelos cacarejos do Sol, um exercício militar que executo com afinco, a primeira coisa com que me deparei, ao sentar-me à secretária e dar um giro pelos sites abertos no browser, foi com uma fotografia de uma bailarina alemã. Segundo a investigação que fiz, ela teria, no momento em que foi fotografada, no ano de 1910, dezoito anos. Tinha uma daquelas belezas que deixam o espírito perplexo e tomado por uma profunda dúvida. É um ser enviado do céu ou uma agente dos poderes infernais? Só uma mente ingénua – e ser ingénuo depois dos quarenta não é ingenuidade, mas burrice, como não se cansava de repetir há muitos anos uma amiga – poderia conceber a tortuosa ideia de que o belo e o bem são a mesma coisa. Independentemente daquela bailarina ter descido do céu para nossa salvação ou subido do inferno para a nossa perdição, a verdade é que uma beleza como a dela não merece o castigo que o passar dos anos impõe. Quando uma mulher é bela, a sua beleza, no momento em que atinge o zénite, deveria ser preservada dos efeitos do tempo, mesmo que vivesse cem anos. Chegada a hora da morte, seria arrebatada da vida ainda esplendorosa. Entre os vários homúnculos que habitam na caverna da minha consciência, há um com propensões igualitárias que, mal formulei o meu pensamento sobre o destino das mulheres belas, começa uma cantilena onde me acusa de injustiça, de ser um agente da discriminação, um racista estético. E por que razão os homens ou as outras mulheres, as que não receberam a graça da tua bailarinazinha, não deveriam ter a mesma sorte, interrogou-me. Não são todos iguais perante a lei ou, se quiseres, não são todos filhos de Deus, continuou ele. Respondi-lhe que não me interessava discutir as consequências da revolução francesa nem enredar-me em estéreis discussões teológicas. Que fosse para o fundo da caverna e se mantivesse invisível e inaudível. E, para o calar de vez, acrescentei que a verdadeira justiça é tratar como excepção aquilo que é excepcional. Ele lá se recolheu a murmurar slogans igualitários, enquanto eu dava uma última vista de olhos pela bailarina alemã e passava para o site da meteorologia.

terça-feira, 25 de agosto de 2020

Redução vocabular


São poucos os dias que Agosto ainda tem, antes que a sua folha morta caia da árvore do calendário. Por vezes, a retórica que uso dá-me vómitos. Dedilho-os, aos dias, como se não soubera contar e franzo o sobrolho. Por vezes, escrevo de noite recados para que faça alguma coisa quando a próxima manhã chegar, com a luz que for a dela. Raramente, olho para eles. Chega-me um vídeo do meu neto. Há duas palavras que ele domina na perfeição. Não e pára. Parecem-me óptimas e as mais adequadas ao tempo que vivemos. Também, caso pudesse ou tivesse coragem para tanto, resumiria o meu vocabulário ao advérbio não e ao verbo parar. A primeira utilidade seria a que deixaria de escrever estes textos, as outras, e não seriam poucas, revelar-se-iam com o tempo. Há uns anos, um amigo contou-me que uma pessoa da sua família foi encurtando, pouco-a-pouco, o vocabulário que usava, até que chegou o momento em que se recusou a pronunciar qualquer palavra. Ouvia os clientes do seu estabelecimento, mas nunca usava a voz para lhes dizer fosse o que fosse. Gestos de mãos, expressões de rosto, meneios corporais. Os clientes habituaram-se, não o abandonaram, e talvez um ou outro lhe tenha seguido o exemplo. Como dizia esse meu amigo, os bons exemplos devem frutificar. Por agora, seria menos radical, usaria ainda o advérbio não e o verbo parar. Voltar-me-ia para este Agosto prestes a render-se a Setembro e dir-lhe-ia: Não. Pára! Ele responder-me-ia na mesma moeda: Não paro. É o que faz a falta de assunto numa tarde de Agosto.

segunda-feira, 24 de agosto de 2020

Um sonho cinematográfico

Em 1955, o fotógrafo francês Henri Cartier-Bresson visitou Portugal e fez um conjunto de fotografias que tem tido ao longo dos anos uma enorme fortuna. Hoje deparei-me com uma delas, extraordinária como as demais. Nos Jerónimos, junto a uma coluna, um confessionário minimalista, apenas um tabique de madeira, certamente com uma abertura velada por um gradeado que permitia falar e escutar e, ao mesmo tempo, manter secreta, ou quase, a identidade das confessadas. Sob essa abertura havia de ambos os lados apoios para os braços. Sentado de pernas abertas, o sacerdote, de cabelos brancos e trajado com a respectiva batina, escutava a longa confidência de uma mulher ajoelhada, vestida de preto até aos pés, véu negro sobre a cabeça. Olho a fotografia demoradamente e imagino o que poderia fazer a partir dela caso fosse realizador de cinema. Filmaria a mulher a levantar-se do confessionário, haveria por certo um zoom que permitisse apreender a elegância dela e acabasse por se centrar na beleza do rosto, acompanhá-la-ia no trajecto em direcção a um altar para cumprir a penitência, enquanto mostrava, em fundo, o sacerdote a erguer-se da cadeira e espreitar a mulher, tomado por uma curiosidade invencível. Nesse momento, ela voltava-se sorridente para ele que, ao sentir os olhos dela nos dele, estremecia e deixava aflorar um esgar de terror no rosto. A mulher que confessara, descobria então, era a sua própria morte. Portugal, naqueles tempos, era um país escuro, muito escuro, pensei, enquanto ouvia o correr da água que alguém num andar próximo deixava cair sobre umas plantas exaustas pelo calor. Uma sirene lembrou-me que deveria ir almoçar, pois o cinema não é coisa que me diga respeito.

domingo, 23 de agosto de 2020

Uma aventura ao domingo de manhã

Uma corrente de ar, uma porta que se fecha e não se abre, alguma coisa se terá desconsertado no trinco que o desligou do puxador. De súbito uma pessoa vê-se metida num sarilho. Preso num quarto, sem ninguém em casa nos próximos dias que, do outro lado da porta, a pudesse abrir ou pedir auxílio, sem telemóvel, com a vizinhança em registo de férias, sem qualquer ferramenta para enfrentar o delíquio da fechadura, sem talento para a mecânica, sem ter sequer tomado o pequeno almoço, sem poder sair por uma janela, pois não será agradável saltar de um quinto andar, e, talvez o pior, sem óculos. Foi assim que começou a meu dia. Como saí do imbróglio, ainda estou para perceber. Consegui tirar um parafuso com as mãos e depois de manipular o puxador para trás e para a frente, completamente ao acaso, ele lá se ligou ao trinco e, milagre, vejo-me fora do quarto. A realidade está cheia de surpresas, foi o que pensei quando me sentei a tomar o pequeno almoço, aliviado por estar livre, sem ter de recorrer a medidas drásticas de partir a porta ou coisa que o valha. É em momentos destes que considero que deveria ter treinado mais as minhas competências mecânicas, que são tendencialmente nulas. Lembro-me bem do martírio que foi, aquando do exame da quarta classe, ter de apresentar um trabalho manual. Era uma construção de um moinho que se tinha de recortar de uma cartolina e depois montar, fazendo dobras e colagens. Já o corte foi um suplício. Quando chegou à altura de colar, a coisa ficou negra. Colava de um lado, descolava de outro. Queixo-me à professora de que não era capaz de colar, ele pede-me para ver a cola. A cola é muito boa, diz-me, e dá-me de imediato três estalos na cara. Literalmente. O problema só podia ser meu. Era meu. Como consegui acabar aquilo não faço ideia. Deve ter sido como hoje consegui sair do quarto onde o destino me quis encerrar. Ao acaso. O que me vale é que hoje em dia as professoras já não batem nos alunos.

sábado, 22 de agosto de 2020

Inimigos de sábado

Quando acordei, eram oito horas, nem queria crer que hoje é sábado. Uma fúria sonora entrava-me pelo quarto, vinda da praceta em baixo. A empresa responsável pelos espaços públicos acha que o dia adequado para cortar relva é o sábado. Talvez as lâminas deslizem melhor, as folhas estejam mais aptas para o corte ou, uma hipótese, considere imoral as pessoas, no início do fim-de-semana, prolongarem o sono pela manhã. Não é que me levante mais tarde, mas acordar ao som da metralha dos corta-relvas não faz parte do melhor dos mundos possíveis. Levantado, comecei a barricar-me dentro de casa, fechando todas as janelas por onde outro inimigo, o sol, possa entrar. O combate com o astro, pensei enquanto descia as persianas, ainda não saiu da idade média. Há que construir muralhas e evitar que o inimigo possa passar por elas. Entretanto, o afã ruidoso suspendeu o massacre dos inocentes moradores, mas a manhã apresta-se para pôr fim à sua curta existência. Oiço vozes na rua, talvez pessoas na esplanada, enquanto me envolvo no manto sombrio da escuridão. Não tarda terei de ir à rua. Reparo que o word me assinala uma incorrecção gramatical, mas o domínio da gramática é uma competência que o word ainda está longe de ter adquirido com sucesso. Talvez um efeito da pandemia. Necessitará de aulas de recuperação, suponho.

sexta-feira, 21 de agosto de 2020

De volta ao habitat natural

Retornei ao meu habitat natural. A cidade parece estar exactamente como a deixei. O calor, de momento, não será tão avassalador, os carros deslizam na Sá Carneiro como antes da pandemia e, nos passeios, os transeuntes, com ou sem máscara, procuram as sombras que as copas das árvores projectam no chão. Há em tudo isto uma reminiscência mourisca, pensei, uma espécie de pertença climática àquele mundo que se inicia no norte de África. O computador informa-me que o adobe acrobat reader foi actualizado com êxito, eu fico agradecido pela melhoria do programa, mas não consigo evitar um ataque surdo de inveja. Também eu poderia ser actualizado com êxito, mas não. Cada actualização que sofro é para pior e quanto mais êxito elas têm pior fico. O hardware está caduco, um modelo descontinuado há muito, sopra-me alguém que vive dentro de mim e que tem por hábito dar opiniões que ninguém lhe pediu. Hoje não fui à esplanada perto do mar ler o jornal, a mulher que em silêncio olhava o horizonte desapareceu para sempre, resta-me pôr a vida nos carris onde estava antes de ter saído daqui. Leio que se está perante uma aceleração do tempo histórico. Talvez esteja já em excesso de velocidade e seria justo que a História fosse multada, por não respeitar as regras de trânsito. As cevadilhas da escola ao lado continuam a florir, as acácias da praceta estão pujantes, vestidas de verde escuro, e o parque infantil permanece interdito às crianças. Tudo isto enquanto a história acelera e o meu hardware obsoleto é incapaz de receber um programa que o actualize e rejuvenesça. Hoje ainda não avistei nenhum dos anjos que moram nos telhados da rua onde entardeço.

quinta-feira, 20 de agosto de 2020

Uma velha pendência

Olho para as previsões meteorológicas e calculo perdas e ganhos, projecto cenários de dor e prazer, arquitecto estratégias de defesa, pois as de ataque não estão disponíveis no mercado da meteorologia. O clima tornou-se uma guerra, pensei, uma guerra em que apenas podemos implorar por abrigo. Hoje tem chovido e parece que vai continuar durante todo o dia. Isso contenta-me, sinal de que já me satisfaço com pouco. Recebi há pouco um email de Lodovico Settembrini, o padre Lodo, como todos os amigos o tratam. Disse-me estar preocupado com uma coisa que escrevi aqui sobre o príncipe Saurau. Fê-lo lembrar o Leo Naphta, e Deus me perdoe – escreveu o padre – apesar de ter, como ele, dado em jesuíta, não suporto a personagem e as suas malditas ideias, sopradas pelo demónio. Eu que me cuide, escreve, pois há muito que desconfia existir em mim uma certa inclinação para o cepticismo. É preciso ter fé, continuou, seja no for, nem precisa de ser em Deus. Eu rio-me da velha pendência dos dois padres e penso que talvez não devesse escrever isto, mas nem sempre consigo resistir às tentações. Talvez seja do meu cepticismo ou da minha falta de fé, seja no que for. Oiço os pássaros e o seu canto mistura-se com o rumor do trânsito. A vida é um exercício de paciência, penso.

quarta-feira, 19 de agosto de 2020

Triste sorte ser cliente

Sejam públicos ou privados, os serviços neste país conspiram contra a sanidade mental dos clientes, como se ser cliente fosse um acto execrável, uma maldade que apenas merece, como resposta, um tratamento ineficiente e, se for possível, punitivo. Foi isto o que me ocorreu depois de passar parte da manhã a tentar resolver assuntos através daquelas linhas de apoio ao cliente, um eufemismo para esconder uma má vontade acintosa e contumaz. Lembrei-me, então, de uma impressão antiga, quando ainda não havia as grandes superfícies, e era local o comércio que animava as terras. Havia comerciantes que pareciam fazer um favor muito especial em atender os clientes, vender-lhes aquilo que eles precisavam, como se a sua vida estivesse acima daquele acto miserável de trocar mercadoria por dinheiro. As razões que movem as pessoas são sempre secretas e, o mais das vezes, um enigma para os próprios. Agora que consegui resolver tudo, já não tenho como recuperar a manhã perdida, e isto é o que há de mais cruel na vida. Nada nela é recuperável. As boas horas pela sua bondade, as más para sua correcção, tudo isso deveria poder ser recuperado. Eu sei que estou a mentir. A vida seria muito pior, se se pudesse recuperar o tempo que se perdeu. Os homens estariam sempre a retroceder à infância e à adolescência para tentar consertar o que nelas sempre se desarranja, e isso seria o pior que poderia acontecer à espécie. O calor não me faz muito bem e conduz-me sempre por caminhos meditativos que não levam a lado nenhum. Sempre preferi ao jardim dos caminhos que se bifurcam, les chemins qui ne mènent nulle part. Desta preferência, porém, não há qualquer ilação a extrair, note-se. O melhor mesmo teria sido ter-me dedicado ao comércio e transformar-me num daqueles respeitabilíssimos comerciantes de vila de província que faziam o especial favor de atender os seus patéticos clientes. O problema é que nunca descobri o ramo que mais se coadunava com os meus talentos. Não por falta de ramos, claro.

terça-feira, 18 de agosto de 2020

O terrível que há no belo

Os loendros, com as suas flores rosas e brancas, estão exuberantes. Quem se deixar prender apenas pela extrema beleza que estes arbustos exibem não faz ideia de quão mortais podem ser. Talvez seja isso o que há de mais enigmático no que é belo, a sua capacidade homicida. Terá sido por isso que, na primeira elegia de Duíno, Rilke usou o adjectivo terrível para qualificar os anjos. Não todos, por certo, pois aqueles que vivem na minha rua sendo belos não o são em excesso. As pessoas pensam que são pombos, mas aqueles pombos não voam nem poisam nos telhados como pombos, mas como anjos. E se um pombo voa como um anjo, poisa como um anjo, canta como um anjo, só pode ser um anjo. Talvez estes anjos sejam também terrivelmente belos, mas disfarçam-se para esconderem essa beleza e poderem assim ser suportados pelos mortais. Hoje vi de novo a mulher que olha o horizonte. Lá estava ela na esplanada, fechada na sua dor de olhar horizontes, a beber o café, a pôr a máscara, a sair e a caminhar em direcção ao horizonte. Nas mesas ao lado, alguns casais deixavam cair para o chão a tristeza que havia dentro de cada uma daquelas mulheres. Eles liam o jornal, olhavam para o telemóvel, elas desfaziam-se num óleo desconsolado e viscoso, que alastrava como um pântano por um chão manchado de desespero e silêncio. Muitos casamentos são uma radiosa lástima, pensei.

segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Atravessar o horrível

As férias não deixam de ser um tempo de encontros inusitados. Passeava eu, como um animal perdido, fora do meu habitat natural, quando oiço uma voz a chamar-me e a perguntar-me se não me lembrava dela. Claro que lembro, como poderia esquecer, retorqui. Não nos vemos desde quando, perguntou. Não sei, há mais de trinta e cinco anos, por certo. Perguntei-lhe o que lhe acontecera. Quando acabámos a faculdade, saí para o estrangeiro e instalei-me por lá. Um exílio, disse eu. Não propriamente. Tornei-me pintora e esqueci o que aprendera naqueles anos, disse e riu-se. Confessei que não sabia. Contou-me o acidente, como lhe chama, disse-me as colecções onde estava representada, mostrou-me fotos de quadros seus. Como sabes, disse-me, a beleza e a harmonia pouco interesse têm. Ou talvez não seja assim, disse. A arte, o artista tem de rasgar o véu ilusório que os olhos apreendem como beleza e mergulhar no horrível. O horrível é uma camada da realidade muito densa e funda, diz-me ela enquanto acende um cigarro, mas não posso evitá-la. Não pinto para decorar salas, pinto à procura da verdade, os olhos brilham-lhe. Não digo que os meus quadros sejam a verdade, são apenas ensaios em busca da verdade. É preciso descer mais fundo, atravessar a camada horrível e tentar chegar ao outro lado. E o que esperas encontrar, perguntei. Não sei, sou apenas pintora, a filosofia não me interessa. Talvez encontre a beleza, a verdadeira beleza, mas não sei sequer se existe uma beleza verdadeira e outra falsa, talvez só exista o que está aquém do horrível. Fiquei a pensar no tempo em que nos demos e naquilo que o tempo lhe tinha feito, mas não tocámos nessas memórias. Falámos de famílias, de exposições, comparámos países e oportunidades e combinámos um novo encontro, que ambos sabemos que nunca irá acontecer. Agosto começa a escorregar pela folha do calendário. Vejo nuvens no céu e dois cães ladram quando passo por eles, como se eu fosse o horrível que eles têm de atravessar.

domingo, 16 de agosto de 2020

Um sapo perturbado

É nos dias de Agosto que mais vezes frequento cafés ou esplanadas. Imagino que seja uma forma de me alienar e de esquecer toda a ambiguidade que se oculta no coração deste mês, o mais cruel dos meses, ao contrário do que pensava Eliot, que via essa crueldade excessiva e inultrapassável em Abril. Nesses espaços públicos que frequento para fugir à maldade de Agosto, ponho-me a observar a humanidade que se expõe diante dos meus olhos. É então que recordo o príncipe Saurau e digo para mim que não há, em toda a literatura ocidental, personagem que melhor retrate a nossa humanidade que o príncipe. Pobre e ricos, famosos e ignorados, corajosos e cobardes, inteligentes e estúpidos, nómadas e sedentários, qualquer que seja a categoria em que se acolha um ser humano, ele não deixa de ser uma emanação do príncipe Saurau, uma exalação lamentável da sua perturbante perturbação. Há qualquer coisa de errado em todos nós, em mim como em todos os outros, um erro que se foi acumulando ao longo dos séculos. Pensei isto quando estava na esplanada e não me apetecia ler o jornal. Thomas Bernhard, o criador do príncipe Saurau, é um dos maiores escritores do século XX, leio num artigo americano, mas o autor sublinha que nunca será muito lido no mundo anglo-saxónico, habituado a uma literatura fundada numa intriga claramente desenhada. Em Bernhard não existe nada disso, apenas a perturbação da nossa espécie exposta de forma cruel, de uma forma encantatória. O monólogo do príncipe, no romance Perturbação, ocupa talvez umas cem páginas, que começando a ser lidas ou rapidamente se põem de lado, ou se fica preso nelas e se percebe, então, que Saurau é mais que uma personagem, é um arquétipo do homem perturbado que se manifesta em cada um. Tanto nos que são alienados, como naqueles que são conscientes e cheios de causas, estes são ainda piores que os outros, porque ter uma causa é fingir que não se é uma emanação de Saurau, mas talvez seja a pior das emanações. Não devia escrever estas coisas. As pessoas não gostam que se digam coisas como estas, pois esperam metáforas para pôr na jarra ou uma causa que lhes realce a moralidade e as faça esquecer que vão morrer. Só não digo que a única emanação de Saurau sou eu, porque ainda haveriam de pensar que me acharia um príncipe, enquanto eu penso que não passo de um sapo perturbado, uma cópia degradada da degradação de Saurau. Pelo menos foi isso que, à socapa, ouvi dizer, quando o autor destas palavras falava de mim, o seu narrador, com os seus amigos mais próximos.