quinta-feira, 7 de julho de 2022

Memórias

A primeira semana de Julho está concluída. O calor instalou-se sem piedade. Até ao fim-de-semana que vem estão previstas temperaturas sempre na casa dos 40 graus, havendo dois dias que chegarão aos quarenta e quatro. Nestas alturas, os neurónios entregam-se a sinapses vagarosas e entediadas. Tudo na minha mente se processa como se fosse um filme em câmara lenta. Ainda mais lenta do que habitualmente, alguém mo recordará. É verdade que não tenho neurónios de piloto de Fórmula 1. Tenho estado a ouvir um CD do pianista de Jazz Marc Copland. Há muitas anos, assisti a um concerto dele, de que gostei bastante. Os anos passaram e esqueci o nome. Queria reavê-lo, mas a memória não cooperava. Sabia que havia um compositor de música erudita com o mesmo apelido – Aaron Copland – mas trocava-o sempre por um outro e a procura era sempre baldada. Encontrava um músico de Jazz, mas não um pianista. Antes um saxofonista. Há uns tempos, porém, fez-se luz e através de Aaron Copland cheguei a Marc Copland. Qual o preço disto? Como se sabe, tudo tem um preço ou, como se usa no calão político, não há almoços grátis. O preço foi esquecer o nome do saxofonista e do compositor erudito que tinha um apelido igual. Não há coisa em que os homens mais confiem do que na sua memória e não há faculdade mais frágil do que essa mesma memória. Presumo que no dia em que me lembrar daqueles que agora esqueci, um outro esquecimento encontrará ocasião para se manifestar. O esquecimento é a manifestação pela não manifestação. Não tarda, terei de sair e enfrentar o dragão do calor. Fora eu S. Jorge, e haveria de o trespassar com uma lança verrumante e impiedosa, mas não o sou.

quarta-feira, 6 de julho de 2022

Uma sesta

Em dias como o de hoje, com um calor proibitivo, tenho não apenas compreensão, mas uma súbita inveja da tradição espanhola da sesta. Há nela toda uma sabedoria que, nem sei bem por que razão, não passou a fronteira para o lado de cá. Claro que há pessoas que se dedicam a essa actividade no pós-almoço, mas isso não significa a existência de uma tradição. Com tudo isto, quero dizer que estou a cair de sono. Resisto, como um herói em tempo de guerra, pois tenho coisas para fazer, mas o mais sensato seria protelar e dormir. Num livro recebido ontem, logo no segundo parágrafo, dou com a seguinte prosa: Uma nebrina espessa, veloz que nem caruje de Inverno, descera dos cabeços, enovelara-se nos pinhais e rondava já nas ourelas da várzea que à raiz dos montes ia alargando, vale em fora, verdinha de pomares, uveiras altas e milheirais ramalhudos, luzidios de viços. Posto que se não measse inda Setembro, turvara-se o tempo após uns dias trovejados. O ar transpirava relentos mornos, pesavam abafuras enervantes, e por trás da barragem das névoas, bojavam, ameaçando subir e descondensar-se, negras carregações de nuvens, grossas como odres repletos. O texto pertence a um romancista quase desconhecido, Manuel Ribeiro, e ao romance Vínculos Eternos, publicado em 1929. O autor não pertencia a elite social do seu tempo. Nunca o li e não sei ajuizar se o seu esquecimento é justo ou injusto, mas pela amostra há uma coisa certa. Teria um belo poder descritivo. Quase se vê a paisagem que descreve. Isto não é pequena virtude. Manuel Ribeiro tem uma história de vida curiosa, mas que, por hoje, omito, para que se possa ficar com a nebrina e o caruje de Inverno, o measse inda Setembro e os dias trovejados, as barragens de névoas e as nuvens, grossas como odres repletos. Nada disto diz alguma coisa a um citadino, mesmo aos que pertencem àquelas cidades que não passam de pequenas vilas. Há ali uma funda experiência da terra e dos campos, nesses campos em que talvez ainda seja possível dormir uma sesta.

terça-feira, 5 de julho de 2022

Ler legendas

Chego a casa e vejo as minhas netas deitadas no sofá, de olhos postos naqueles dispositivos que parecem ser o horizonte dos adolescentes. O que fizeram, pergunto. A mais velha, ergue o indicador e o médio de cada mão num V – de vitória, presumo – e responde: nada! Decido, desgraçadamente, ter uma atitude pedagógica e informo que o avô na idade delas, em tardes assim, onde não dá para sair de casa, lia e lia. Também lemos, avô. Depois de fazer um silêncio, acrescenta: as legendas. Ri-me e pensei que mais vale ler as legendas de séries e filmes do que só verem coisas dobradas. Lá chegaremos. Perguntei-lhe, à mais velha, se já tinha lido a Alice no País das Maravilhas. Já vi ou filme, respondeu. E que tal ler o livro? É um bocado infantil, avô. Optei pelo silêncio. Tomei consciência de que está a ser reeditada a obra discográfica de José Afonso. Pus-me a ouvir os primeiros álbuns, aqueles de que mais gosto, os que vão de uma combinação da tradição popular com a poesia erudita do início da nacionalidade até ao mais surrealista de todos, Venham Mais Cinco. Há muita gente que resume José Afonso a cantor de intervenção. Ele foi-o, claro, mas a sua música e muita da poesia que seleccionou para cantar estão muito para além disso. Quando penso na música que traduz o espírito de Portugal, seja lá isso o que for, penso sempre em José Afonso e Carlos Paredes. Então a Amália ou os Madredeus? Sim, cada um a seu modo, são uma representação do espírito português, mas há qualquer coisa indefinível dessa portugalidade que só encontro na música de José Afonso, nos primeiros álbuns, e na de Carlos Paredes. E isso nada tem a ver com a política. Agora, volto para a tarefa que tenho entre mãos, literalmente. Não sei como me meti nisso, mas hoje tenho um trabalho manual para realizar. Não vai correr bem. Talvez mais valesse ir ler legendas.

segunda-feira, 4 de julho de 2022

Efemérides

Por vezes, quando não me ocorre nada para escrever ou não tenho um desses acontecimentos do quotidiano que se inscrevem numa verdadeira gesta, consulto um certo blogue que escreve longos, informativos e ajuizados textos sobre as efemérides do dia. Hoje, quatro de Julho, é bastante rico, a começar com o dia da independência dos Estados Unidos, passando pela tomada de Jerusalém por Saladino, pela morte da Rainha Santa Isabel, de Portugal, pelo nascimento de Giuseppe Garibaldi. Não nego que todos esses eventos sejam importantes, aqui ou ali. Contudo, não poderia deixar de registar que foi a 4 de Julho de 1865 que foi publicado Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carrol. Suspeito, porém, que apesar do meu entusiasmo, não conseguirei convencer as minhas netas a lê-lo. Bem me poderia levantar e ir propor-lhes a aventura, mas temo que, deitadas no sofá, entretidas com os gadgets que invadiram a existência dos mortais, me olhem como se eu fosse um extraterrestre. Outro acontecimento digno de nota passou-se também a 4 de Julho, mas de 1811, o nascimento de Antónia Adelaide Ferreira, a Ferreirinha, essa mulher que traçou novos caminhos para o vinho em Portugal. Não declarou nenhuma independência, não transformou pão em rosas, não unificou um país, não conquistou nenhuma cidade, nem escreveu um livro, mas abriu caminho para que muitos encontrem um secreto prazer nesse produto que só gente civilizada pode compreender e amar, o vinho. Lembro-me, embora com pouca precisão, de que há um poema romano, presumo, traduzido por Jorge de Sena (disto, estou certo) em que o poeta afirma, com inteira razão, que o vinho é de gente civilizada e a cerveja, de gente bárbara. A Ferreirinha contribui para o crescimento da civilização por estes lados. O dia, por aqui, nasceu fresco e nublado, mas está a desnublar-se e promete chegar aos trinta e três graus. Há uma coisa que me está a irritar. Tenho ali o romance Lusitânia, de Almeida Faria. Isolado. Comprei-o há dias, via internet, num alfarrabista. Está pejado de furinhos, que não impedem a leitura, mas anunciam a traça do papel. Vou ter de o deitar fora, mas ainda não ganhei coragem. Tem boa aparência, mas quem vê caras, não vê corações.

domingo, 3 de julho de 2022

Inércias e domingos

Como eu sabia, o compromisso de ontem foi agradável. O problema é que me obrigou a fazer uma deslocação – aliás, pequena – que me retirou do estado de espírito em que me encontrava e que era marcado, fisicamente (sic), por não fazer rigorosamente nada. Estando em estado de repouso, o corpo pedia-me que assim ficasse. Tendo-me posto em movimento, logo o mesmo corpo pediu que assim permanecesse. Além de ser muito volúvel, ele sofre de inércia. Sublinho que é o corpo e não eu. A palavra inércia, para além das aplicações conceptuais em Física, tem múltiplos sentidos. Um deles é o de resistência passiva à inovação. Esta significação deve ter sido dada pelos adeptos furiosos da inovação. As pessoas que resistem à inovação permanecem num estado de repouso que é a tradição. Contudo, se esses hooligans inovadores tivessem compreendido o conceito físico de inércia, descobririam que também eles sofrem de inércia, já que não conseguem alterar o estado de movimento em que se encontram constantemente, sempre a deslocar-se daqui para ali, pois é sempre ali que se encontra o novo. Deveria proibir-me de escrever coisas destas ao domingo, embora os domingos de hoje já não sejam como os de outrora, em que as pessoas se endomingavam para ir à missa, as que iam, e as outras porque, irmanadas num espírito igualitário, partiam do princípio de que se uns se endomingavam, também os outros se deveriam endomingar. Agora ninguém se endominga e poucos vão à missa. Toda a gente quer dar o ar mais displicente possível, para que os outros imaginem que eles são pessoas do mundo, gente cosmopolita que não tergiversa perante os dias de descansos. Agora, tenho de ir saber a que horas chega o meu neto, que não se preocupa com inércias nem domingos. Por enquanto.

sábado, 2 de julho de 2022

Pagar a dízima

Acabaram de me perguntar o que eram sezões. Respondi são febres. Há palavras que abandonam o quotidiano das pessoas e que ficam presas no tempo, a dormitar na literatura. Hoje em dia ninguém sofre de sezões e cada vez se sofrerá menos de febres. Estas são sintomas e não doenças. Com o aumento da escolaridade, a linguagem médica penetra no senso comum e as pessoas designam as doenças pelos seus nomes. Parece que a vida da linguagem aponta para, a cada dia que passa, uma maior especialização e um aumento da capacidade de dizer a realidade, caso esta possa ser dita. Hoje já fiz a minha caminhada de seis quilómetros, em que um quinto – estou de uma grande precisão – é feita dentro do mar, percorrendo para um lado e para o outro os seiscentos metros de um molhe. Isto é uma suspensão da realidade. Uma temperatura que não passa os 21 graus. Amanhã, retornarei a esse lugar para onde se prevêem, daqui a dias, quarenta e dois. Quando se diz que o deserto avança, imagino que seja a isto que se estão a referir. Com a aproximação das férias, nasce a preocupação com a literatura adequada a essa queda na fantasia. Pensei que não seria mau ler as aventuras de Arsène Lupin, de Maurice Leblanc, ou as de Fantômas, de Pierre Souvestre e Marcel Allain, uma literatura com que entretive algumas horas da adolescência. Não seria má ideia voltar a ler Georges Simenon, tanto os policiais de Maigret, como os outros romances. Simenon era um óptimo escritor. Talvez fosse melhor dar alguma atenção a Walter Scott e a Victor Hugo. Nada de coisas sérias. Também há coisas pouco sérias que me aborrecem. Estou a ler um romance – cujo autor omito – que, por vezes, me aborrece. As personagens são tão cultas e tão cheias de dilemas morais que, confesso, não consigo suspender a descrença, tal como ordena o imperativo de Coleridge. Os problemas que lá encontro são os do autor e não os das personagens. Há autor a mais e personagens a menos. Logo à tarde tenho um compromisso, que eu trocava de bom grado por ficar a preguiçar longamente. A realidade, porém, é o que é e há que lhe pagar a dízima.

sexta-feira, 1 de julho de 2022

Uma estranha nostalgia

Envelhecer não significa apenas que o tempo de vida encolhe e a morte se torna cada vez mais iminente. Ao encolhimento do tempo de vida corresponde um outro encolhimento, o dos interesses. Durante toda a minha vida fui um consumidor de jornais. Um diário e múltiplos semanários. Há anos que acabei com a compra de jornais em papel, tendo acumulado três assinaturas digitais. Hoje, assino apenas um diário. Será que o leio? Comecei a explorar as minhas fidelidades e tomai consciência de que há muito só sou fiel a dois articulistas. Eram três, mas um morreu há dois anos. Mantenho a minha assinatura apenas para ler um artigo às sextas-feiras e outro ao sábado. Por vezes, leio um ou outro artigo de outros autores, mas sem fidelidade. Notícias, nunca as leio no jornal que assino. Elas estão de tal maneira disponíveis que se tornaram dispensáveis na imprensa. Imaginemos que um ministro troca as mãos pelos pés. Essa miraculosa operação é anunciada por tudo o que é sítio, não vale a pena ir ao jornal ler. Há uma coisa, porém, que faz falta em Portugal. Uma imprensa que tenha artigos que não sejam nem textos académicos, nem artigos de opinião. Esse meio termo existe em alguma imprensa internacional de qualidade, mas não entre nós. São pequenos ensaios que ajudam o público a entender a realidade. Por cá, o que interessa a quem escreve opinião é a espuma do dia, os terríveis dramas de que ninguém se lembrará daqui a meia dúzia de meses. Não faço ideia por que razão escrevi sobre isto. Terei sido assaltado pelas saudades de um tempo em que ainda se acreditava na frase de Hegel: a leitura dos jornais é a oração matinal do homem moderno. Talvez tenha deixado de ser um homem moderno e sofra, por isso, de uma estranha nostalgia.

quinta-feira, 30 de junho de 2022

Não ter história

Ontem disse que a Arminda casou com o Gustavo, mas o casamento não foi ontem. Foi há mais de um século, em pleno século XIX. Para ser mais exacto, eles não casaram efectivamente, mas o romancista Teixeira de Queirós casou-os no romance os Noivos, obra publicada em 1879. Ontem estava a ler a descrição do casamento, um retrato da Lisboa burguesa, melhor da Lisboa onde uma certa aristocracia se cruza com a emergente burguesia nacional, ainda em fase de brunidura. Segundo alguns especialistas nas coisas literárias (Óscar Lopes e António José Saraiva), Teixeira de Queirós tinha um talento literário semelhante ao de Eça de Queirós. Apesar dos apelidos, julgo que entre eles não haveria qualquer relação familiar, mas estas coisas nunca se sabem. Junho acaba ventoso, com as temperaturas por aqui domesticadas. A partir de amanhã, porém, chegam aos trinta graus, lá para o fim da próxima semana batem à porta dos quarenta. A vida não passa desde perpétuo desequilíbrio. Estava tudo a ir tão bem, tão civilizado, e logo o tempo tem uma crise, um gosto desmesurado pela hipérbole, uma cultura do excesso, que tenho de suportar como posso. Não me perguntem se o casamento de Arminda e Gustavo foi feliz. Não faço ideia, ainda não cheguei lá, mas desconfio que não. Dos amores felizes não há literatura, pois não têm história. Caso exista um paraíso e uma vida eterna nele, também nada disso terá história, pois a história só começa com o mal. É ele que é preciso narrar, talvez, imagino, para esconjurá-lo. Felizes, as pessoas que não têm história, embora todos queiram ter uma. Os desejos pagam-se caro.

quarta-feira, 29 de junho de 2022

Sem narrativa

Há dias como o de hoje em que até um cavaleiro andante se sente no desemprego. Sem tortos para endireitar, sem mundos para pôr nos eixos, logo sem aventuras para delas dar notícia ao mundo. Fui à capital de distrito, que é um lugar aonde gosto de ir, mas nem aí se apresentou caso digno de menção. Diante de mim, acumulam-se as tarefas a que a minha diligência há-de pôr fim, embora esteja pouco inclinado para ser diligente. Está vento, sei-o porque vejo o ramalhar das árvores. As cevadilhas da escola aqui ao lado já perderam as flores. Estavam, ainda há dias, tão exuberantes, mas não suportaram a vinda do Verão. Não estou só no mundo. Na avenida, os carros passam devagar, não vá algum peão intrometer-se no reino dos automobilizados. Também devagar, vão os transeuntes. Algumas mulheres preocupam-se com as saias. O vento tem súbitos atrevimentos, mas ninguém estará interessado em ver aquilo que as saias deixam de tapar. O que me preocupa, neste momento, é o friso das orquídeas. Este ano, as coisas não correram pelo melhor. Umas ainda não floriram, outras deixaram as flores murchar rapidamente. Tivesse eu tempo, e falaria com Nero Wolfe. Ele, entre a resolução de dois crimes e três jantares, haveria de me dar uma solução para as pobres orquídeas. Não tenho tempo, infelizmente. Ah… a Arminda casou com o Gustavo. Estavam noivos e casaram. Isto vem a propósito de quê? De nada, mas talvez amanhã explique, caso deseje tornar-me um émulo do folhetinista Cerdeira.

terça-feira, 28 de junho de 2022

Precipitações no juízo

Por certo, devido ao livre-arbítrio, precipito-me muitas vezes nos juízos que faço e promovo como verdadeiras crenças, que uma análise mais atenta revelará, ao menos dotado dos observadores, a sua falsidade. Imagino, embora seja uma presunção da minha parte, que haverá observadores ainda menos dotados do que eu. Entrei numa livraria. Bem, esta afirmação é falsa. Entrei numa superfície comercial que também vende livros. Dirigi-me às estantes onde está a literatura de ficção, em geral romances e contos, e deixei correr os olhos pelas lombadas dos livros. Passei por de Javier Marías para Amin Malouf e, antes de chegar a José Luís Mendonça, deparo, com grande surpresa minha, com o Manifesto do Partido Comunista, de Karl Marx e Friedrich Engels. Mas isto não é literatura, mas política, quanto muito filosofia política, disse de mim para mim. Devido ao meu livre-arbítrio, conjecturei de imediato que a pessoa que tem a função de arrumar os livros nas prateleiras não faz a mínima ideia dos géneros pelos quais os livros se podem dividir e arrumar. Em abono dessa pessoa desconhecida, tive também um pensamento benévolo. Pelo menos sabe que Marx vem antes de Mendonça e depois de Malouf, o que já não será mau. No entanto, aquela ideia de que a pessoa arrumadora não sabia distinguir os géneros poderá ter sido um juízo precipitado e falso. Ela pode ter pegado no livro, feito uma leitura rápida e achou que tudo o que lá se encontrava era pura ficção. Afinal, penso agora, as pessoas que arrumam livros não estão tão mal preparadas quanto pensei de início. Um leitor atento de Borges teria percebido de imediato o que estava em jogo. Há muito, porém, que não leio Borges e perdi o treino. Não se pense que há, no que escrevo, algum acinte para com a dupla Marx e Engels. Acontece com o que escreveram aquilo que acontece com todos os que escrevem sobre ideias. Políticas, morais, metafísicas, estéticas, religiosas, científicas. As suas obras chegam ao mundo com a pretensão de dizerem a verdade e, com o passar dos anos, transformam-se em literatura, pura ficção, romances, novelas, contos, disfarçados de ensaios, tratados, artigos especializados, sei lá. Veja-se o exemplo dos diálogos platónicos. Literatura e da melhor; o que se pode dizer de Platão, pode afirmar-se de Aristóteles e de todos os que se entregaram à ensaística. O destino de qualquer livro é tornar-se ficção, mesmo os mais ferozmente científicos. Foi isto que aprendi com a sábia decisão de quem arrumou Marx e Engels e o seu popular Manifesto entre a literatura de ficção. Terei de me precaver para evitar, no futuro, a precipitação ao formular juízos. 

segunda-feira, 27 de junho de 2022

D. Taresia

Começámos mal, e o que nasce torto, tarde ou nunca se endireita. Descubro que tenho uma autêntica colecção de provérbios ao gosto popular. Isso mostra que o meu pensamento, caso tenha um, é puro senso comum. Este mal começar refere-se a Portugal, este país soalheiro, inclinado para o Atlântico, onde se comem farturas e se acompanham as imperiais com pires de tremoços. Como a minha ignorância é muito vasta, não sabia uma coisa que só hoje descobri. A Bula Fratrum Nostrum, de 18 de Junho de 1116, do Papa Pascoal II, reconhece D. Teresa de Leão, a mãe de Afonso Henriques, como Rainha de Portugal. Mais, ela foi reconhecida como Rainha também por Urraca de Galiza, Leão e Castela, sua irmã, e, posteriormente, pelo filho desta, Afonso VII de Galiza, Leão e Castela. Depois, as coisas entornaram-se entre as irmãs e, como costuma acontecer, houve guerra. Afinal, o primeiro rei de Portugal foi uma rainha – assinava: Ego regina Taresia de Portugal regis Ildefonssis filia – o que não deixa de ser particularmente perturbador para nós, homens portugueses, os mais másculos neste mundo e mesmo no outro. Em vez de um patriarca, um macho alfa autêntico, temos uma matriarca originária. O que nasceu torto, porém, não foi o facto de ser uma rainha e não um rei que inauguraram esta aventura, mas aquela história da batalha de S. Mamede. Um acto de sedição. Mal a coisa tinha começado, tivemos logo direito a um golpe de Estado. Ainda por cima, a revolta de um filho contra a mãe, o que dá uma tonalidade psicanalítica, embora invertida, à nossa nacionalidade. Não sei como se poderão sentir todos os varonis aficionados deste meu Ribatejo, educados numa tradição monárquica que remonta a Afonso I, sempre prontos à camaradagem máscula para defrontarem os toiros, quando souberem isto, que afinal foi uma mulher quem, pela primeira vez, pegou o toiro pelos cornos, isto é, o governo de Portugal. Por mim, não me importo que o primeiro rei tenha sido uma rainha, já vi no mundo muitas coisas, mas que se lhe dê o nome pelo qual assinava. Ter uma D. Taresia por rainha é muito diferente de ter uma qualquer Teresa. Começou a semana, e a utilidade desta não faz bem a ninguém.

domingo, 26 de junho de 2022

Um pecado capital

Na sexta-feira, passei o dia a julgar que estava no sábado. Ontem, não foram poucas as vezes que pensei ser domingo. Hoje, porém, não acho que seja segunda-feira, mas também não acho que seja domingo ou outro qualquer dia da semana. Há dias assim, dias que não estão azados para serem seja o que for. São dias sem qualidades. Tanto podem ocorrer ao fim-de-semana, como durante a semana, naqueles dias a que se deu, pela sua inutilidade, o nome de dias úteis. Não se pense que venho aqui, como o fez o genro do senhor Marx, fazer o elogio da preguiça. Ela não precisa de elogios. O pior é que é um pecado capital. Começou por ser designado acédia, mas alguém achou por bem mudar-lhe o nome. Estava, porém, a falar dos dias sem qualidades. O que distingue as coisas e lhes dá a sua individualidade é as qualidades, ou, melhor, a combinação destas. Portanto, hoje vivo um dia indistinguível, pura substância sem acidentes. Imagino que estas ideias só me ocorreram depois de almoço, o que pode ser um sinal de que não bebi água à refeição. É uma possibilidade, mas não confirmo nem desminto. Seja como for, quem me falou de acédia foi o padre Lodo, na chamada dominical. Costuma dizer que ao domingo tem de dizer missa e falar com os amigos. Desconheço a ordem pela qual cumpre a tarefa. Seja como for, disse-me que estava a sofrer de acédia. Temia estar estuporado e não se interessar nem por ele nem pelo que se passa no mundo. Ando há dias assim, vociferou. Sugeri-lhe um psicanalista. Ele riu-se. Não sabe que sou jesuíta, perguntou-me. Sei, sei bem, mas talvez ajudasse. Um jesuíta não se psicanalisa. Confessa-se. Respondi que no foro da consciência de outrem eu não me intrometia. A cada um a sua fé. Ele riu-se e perguntou-me quando iria a Lisboa. É que tinha descoberto um pequeno restaurante que merece bem uma visita demorada. Eu pensei que a acédia era sol de pouca dura.

sábado, 25 de junho de 2022

A invenção do tempo

Talvez seja uma doença, uma adicção. Logo de manhã, recebi um, ou será uma?, sms indicando que o livro que tinha encomendado já estava na pequena fnac que há nesta pequena cidade. Não me precipitei. Deixei passar a manhã e quando, nas torres das igrejas, batia a uma da tarde entrei pela superfície comercial, mas não me dirigi logo ao balcão para fazer o levantamento. Havia que ver os livros. Estava a olhar para as estantes quando me lembrei que um amigo me tinha dito que o último romance do Houellebecq, Aniquilação, é bastante bom. Procuro-o e lá estava ele com os seus 4 centímetros de lombada e 640 páginas. Ao lado estava Serotonina, o penúltimo do mesmo autor e que não tinha comprado. Este é mais comedido. A lombada não chega aos 2 centímetros e as páginas não alcanças as 280. Já podia dirigir-me ao balcão para levantar o que tinha comprado online, o romance de Almeida Faria, Cortes. Quando me desloco da estante para o balcão passo por um outo móvel pejado de livros. Fico a olhar. Peguei num pequeno livro de Ludmila Ulitskaya, um romance denominado Sonechka, com uma miserável lombada de 1 centímetro e que não chega às 120 páginas. Mais centímetro, menos centímetro, peguei também nele. Podem achar que interessar-se pelos centímetros das lombadas é coisa de gente que enlouqueceu. Não os desminto, mas o problema é que cada 10 centímetros de lombadas exigem 10 centímetros de estante. O que me levou a comprar o livro da Ulitskaya foi o que dizia numa das badanas: Para Sonechka, a leitura tornara-se uma forma ligeira de loucura, que não a abandonava nem durante o sono: dormia como se estivesse a ler os seus sonhos. Sonhava com romances históricos cativantes e, pela natureza da acção, adivinhava o tipo de letra e, estranhamente, sentia os parágrafos e a pontuação. Isto convenceu-me. Nunca tive inclinação para o romance histórico, mas, agora que não tenho pouca idade, descobri que isso era um erro. Eles são uma espécie de ficção científica ao contrário. Esta, muitas vezes, inventa mundos futuros. Os romances históricos inventam mundos passados. Que diferença há entre eles e os romances que se presumem num presente? Nenhuma, pois todos fazem o mesmo. Inventam um tempo. Agostinho de Hipona, um converso ao cristianismo, num arrebatamento confessional escreveu: Que é, pois, o tempo? Se ninguém me pergunta, eu sei; se quero explicá-lo a quem me pede, não sei. Estas palavras têm sido citadas milhares e milhares de vezes, como introdução ao enigma do tempo. Talvez não exista enigma nenhum. Porquê? Porque não existe tempo. Então por que razão temos a sensação de que ele existe? Porque contamos histórias. O tempo é aquilo que as nossas histórias – os romances, por exemplo – inventam. Uma curiosidade. A Ludmila Ulitskaya e o Almeida Faria nasceram ambos em 1943. Ela nos Urais e ele no Alentejo. Não se pode dizer que sejam sítios fáceis para nascer.

sexta-feira, 24 de junho de 2022

Com papas e bolos

Por razões que não vêm ao caso, tenho estado a ler um romance de Luís Augusto Rebelo da Silva, Lágrimas e Tesouros: Fragmentos de uma História Verdadeira, publicado no ano de 1863. O título não é particularmente prometedor. A acção passa-se no tempo de D. Maria I e centra-se na figura de William Beckford e da sua viagem ao mosteiro de Alcobaça. A descrição da recepção do aristocrata inglês e dos priores – de Aviz e de S. Vicente – que o acompanhavam é um exercício de ironia que nos retrata muito bem. Não deixa de ser interessante que, desde o século XVIII, se democratizou aquele estilo pomposo e provinciano de recepção de gente reputada como importante, tão bem descrito por Rebelo da Silva. Encontramo-lo numa câmara municipal se lá vai um ministro, numa instituição pública se um superior na hierarquia burocrática a visita, provavelmente numa paróquia, se o bispo ali se desloca. Não se trata, todavia, de uma mera saloiice, mas de um acto de fina manhosice com que os que estão em baixo tentam, e muitas vezes conseguem, enganar quem está acima. O ridículo em que facilmente se cai é menos ridículo do que parece, é um exercício gongórico para apaziguar e, se possível, cegar as potestades que têm um poder despótico, mesmo num regime democrático. Penso muitas vezes que os portugueses cultuam os que estão acima apenas porque não os podem matar. Como não se pode democratizar o homicídio, democratizou-se esta arte de bem receber que assenta no provérbio com papas e bolos se enganam os tolos. De resto, somos um povo pacífico, apesar de no século passado termos assassinado um Rei, um príncipe herdeiro, um Presidente da República e de termos falhado por um triz o homicídio de um Presidente do Conselho. Nem sempre os homicidas são competentes.

quinta-feira, 23 de junho de 2022

Mouras encantadas

O meu apaziguamento com S. Pedro é total. Está um magnífico dia de Outono. Temperatura amena, o sol escondido por nuvens não ameaçadoras, um vento moderado. Talvez a chuva faça uma visita, mas sem excessos. O dia está de tal modo que comecei a imaginar que não faltaria muito para o Advento e logo chegaria o Natal. Eu sei que este tempo é sol (ou antes falta de sol) de pouca dura. Estou sem assunto. Enquanto este – o assunto – me vai faltando, oiço a música do tunisino Dhafer Youssef. Veio de outro mundo, mas a sua estranheza não é inquietante. Pelo contrário, há nela qualquer coisa que estabelece uma relação com um ouvinte ocidental. Talvez acorde imagens vindas da infância, de um tempo em que se ouviam histórias sobre mouras encantadas. É possível que já não se contem histórias de mouras encantadas. Não as contei aos meus filhos nem aos meus netos. Talvez devesse sentir remorsos por o não ter feito, mas nunca me ocorreram. É assim que se quebram tradições. As coisas entram no reino do esquecimento e desaparecem. Este desaparecimento, todavia, não significa uma dissolução dessas coisas no nada. De súbito, elas reaparecem e saudamo-las com o coração aberta, como se fossem um velho amigo que há muito não víamos. Aqui, nesta cidade onde enfrento o duro peso da realidade, também viveram, há muito, mouros e, por certo, mouras. Imagino que algumas possam ter sido encantadas, outras foram apenas encantadoras. A estas, a morte levou-as. As outras estão por aí invisíveis à espera da hora em que possam manifestar-se numa qualquer história que um pai conta a um filho. O Outono benfazejo progride por dentro deste Verão. Quando se não tem assunto, fala-se do tempo. Eu sigo à risca o adágio.

quarta-feira, 22 de junho de 2022

Aristocratas falhados

No ano de 1883, Alberto Pimentel publica um romance com o título Aventuras dum Pretendente Pretendido. Os dois primeiros curtos parágrafos são um retrato do país. Cito-os, mas como se fossem apenas um: Portugal é um país de pretendentes e de ministros. Começa-se por pretender qualquer coisa e acaba-se por pretender qualquer pasta. Estas coisas vêm de longe e, provavelmente, irão para longe. Somos um país cheio de pessoas com pretensões. Estas, aliás, alimentam uma boa parte da nossa literatura e não apenas a de segunda classe. Talvez sejamos todos aristocratas falhados. Pode haver mesmo uma causa genética para tamanho desgosto com aquilo que se é e tanta azáfama para se ser o que não se é. Há tempos, embora não me lembre quando, li que um especialista em genealogia, dos mais reputadas, asseverava que todos os portugueses são descendentes de Afonso Henriques. Não serei eu que o vou desmentir, mas sendo assim já se percebe de onde vem este vício da pretensão, que se terá tornado em virtude. Também Afonso Henriques, um dia, pretendeu ser Rei. Daí, por via genética, através de uma rede de trocas de genes, umas legais outras nem por isso, a pretensão fez caminho e aninhou-se no coração de cada português, neto longínquo daquele que, entre nós, mais pretensão albergou. Aliás, isso explica por que razão vivemos numa República. Seriam tantos os pretendentes à coroa, que o melhor é que nenhum a use e que se pretenda outra coisa, nem que seja a pasta de ministro.

terça-feira, 21 de junho de 2022

Princípio de incerteza

Chega a ser penoso. Pobre S. Pedro. O santo orientador do bom andamento das coisas meteorológicas perdeu a tramontana. Presumo que antigamente (pois antigamente tudo correria pelo melhor, desde que não estivéssemos lá) ele geria com zelo e eficácia os humores do clima. Agora, a idade tornou-se uma fonte de contínua desorientação. Troca constantemente os pés pelas mãos. Hoje, segundo se sabe, é o primeiro dia de Verão. Fui presenteado (é um presente e uma bênção celestial) com um dia de Inverno. Chuva, vento e frio. Mesmo que este desconcerto tenha, para mim, em dias como o de hoje, uma vantagem, não posso deixar de ficar perturbado com o que se está a passar. Cada vez mais o clima parece retirar-se de uma pacífica e tranquilizadora cadeia de causalidade para entrar no inferno da aleatoriedade. Dantes, pensava-se que os meteorologistas falhavam as previsões porque não estavam na posse de todos os dados e de todas as leis que regulariam a evolução do estado do tempo. Hoje, começamos a desconfiar que não existe qualquer lei, que tudo se passa ao acaso. Um dia de Inverno tanto pode suceder no Inverno, como no Verão. Talvez S. Pedro decida as coisas fazendo rolar um dado onde estão inscritas as estações do ano, havendo duas faces onde está escrito: tempo sem estação adequada. Em cada dia ele faz rolar o dado e assim determina o estado do tempo que nos cabe aqui. Talvez se tenha tornado, em segredo, adepto do Princípio da Incerteza de Heisenberg, que pode ser formulado do seguinte modo: quanto menor for a incerteza do Santo na administração das chaves do céu, maior será a incerteza na gestão do clima. Consta que Einstein – e Einstein é uma autoridade – terá afirmado que Deus não joga aos dados. É um facto. Deus não tem corpo, logo não tem mãos. Sendo assim, não tem como agarrar num dado e fazê-lo rolar sobre uma mesa. Mas se Deus não joga aos dados, em lugar nenhum está escrito que um santo não o possa fazer. Perante o enigma de o primeiro dia de Verão ser um dia de Inverno, apresentei um argumento para a melhor explicação, que não deixará de convencer o mais céptico dos leitores. É aquilo a que se poderia chamar uma argumentação a que não falta cogência. E anátema seja quem discordar.

segunda-feira, 20 de junho de 2022

Serões de província

Diante de mim, um livro publicado em 1940. Tem uma assinatura e, como data, apenas o ano de 1942. Isto na parte superior da terceira página. Na parte inferior, todavia, existe uma dedicatória e uma assinatura. Existe também a data de 16-XI-59. Percebe-se que, apesar de diferenças assinaláveis, é a mesma assinatura. A de uma mulher, embora não se consiga decifrar o nome. Terá comprado o livro em 1942 e ofereceu-o à filha e ao genro dezassete anos depois. Aliás, tenho outro livro da mesma autora com a assinatura da filha com a data de 21 de Fevereiro de 1942. Parecia haver aqui uma tradição familiar na compra de livros, mas chegou o dia em que essa tradição desapareceu e a biblioteca familiar – se é que havia uma biblioteca – foi vendida a alfarrabistas, o que me permitiu muitas décadas depois comprar ambos os livros. Que pessoas seriam aquelas? Teriam alguma posição social. A filha era tratada por um diminutivo que só ocorreria em classes socais com algum estatuto. A mãe sabia escrever e tinha uma letra que denotava não possuir apenas uma educação básica. Além disso, lia. O que lia ela e a filha? Sarah Beirão. Portanto, uma família culta, mas esteticamente ancorada no passado. As senhoras deviam ler, faria parte da educação, talvez mesmo da educação sentimental. Aliás a colecção onde os livros de Sarah Beirão se inserem, Colecção Portuguesa de Domingos Barreira – Editor, afinam pelo mesmo diapasão. A maior parte dos autores são desconhecidos, mas os títulos não enganam. Perguntar-se-á como sei eu que uma das mulheres é a mãe e a outra, a filha? Porque antes da assinatura da oferta se encontra a expressão da mãe mt amiga. Está uma segunda-feira melancólica. A temperatura, por aqui, não chegou sequer aos 24 graus. Felizmente, mas o dia está coberto com um véu – uma mantilha – de nostalgia. Quase que sinto uma funda simpatia por estas senhoras de boa sociedade provinciana. Como é que eu sei que eram da província. No livro da filha, está lá o nome do local onde vivia, uma cidade, nos dias de hoje, da Beira. As coisas que se descobrem com pequenos vestígios. Ou pelo menos imaginamos descobrir, para virmos aqui narrar como se estivéssemos num serão de província.

domingo, 19 de junho de 2022

Da obesidade do tempo

Há qualquer coisa errada nas apreciações correntes sobre a passagem do tempo. Não são poucas as pessoas, onde se inclui este narrador, que têm a impressão – ou mesmo a certeza – de que o tempo passa cada vez mais depressa. Ora, tive a prova irrefutável de que não é assim. Pelo contrário, o tempo está a passar mais devagar. Ontem falei da súbita manifestação no meu horizonte sonoro de um amola-tesouras e referi – ou pensei fazê-lo – a decepção de não ter chovido. Cheguei mesmo ousar escrever que há alguma coisa a funcionar mal no mundo, o que, em boa verdade, é uma impossibilidade, pois, como todos sabem, vivemos no melhor dos mundos possíveis. Ontem não choveu, mas hoje sim. O som da flauta de pã do amola-tesouras sempre é anunciador de chuva, só que esta atrasou-se. Melhor, o tempo passou mais devagar, como se os segundos tivessem sofrido uma dilatação. Isto traz um importante problema sobre a relação entre o tempo e o mundo. Se o tempo pertence ao mundo e este é o melhor dos mundos possíveis, então temos aqui um sarilho qualquer. A minha intuição é que o tempo não pertence ao mundo e, por isso, a sua obesidade, não afecta o facto de este ser o melhor dos mundos. Os atrasos que há nele não se devem a ele, mas a um factor estranho – o tempo – que não deve ser tido em consideração quando se julga a bondade deste mundo. Isto tem aplicações extraordinárias. Por exemplo, por que razão os transportes públicos andam sempre atrasados? Não por eles, que são os melhores transportes públicos possíveis, mas porque o tempo, por falta de ginásio, se dilatou. Esta também é uma excelente explicação – que nunca me tinha ocorrido – para um problema que me atormenta com alguma regularidade, o do atraso das consultas médicas em relação ao horário acordado. Os médicos não se atrasam, o tempo, que é um factor estranho à medicina, é que se dilata. Penso que para um domingo, uma descoberta como esta é razão suficiente para me sentir realizado, dilatadamente realizado.

sábado, 18 de junho de 2022

Amola-tesouras

Acabei de ouvir o som inconfundível da flauta de pã tocada por um amola-tesouras. Deu-me, de imediato, vontade de ir perscrutar o horizonte e descortinar se ali havia nuvens negras. Contive-me e consultei a aplicação no telemóvel. Sou informado de que a possibilidade de ocorrer chuva é nula. Há qualquer coisa que está a funcionar mal no mundo. Se chega um amola-tesouras, então vai chover. Se fosse dado à lógica, coisa que não sou como se pode ver por estes textos, diria que estamos perante uma proposição condicional. Sendo a proposição antecedente – chega um amola tesouras – verdadeira e a consequente – vai chover – falsa, fica provado que, por menos neste caso, a velha sabedoria ao gosto popular, saber que tanto me anima a alma de narrador de nulidades, tem graves problemas. Abri a janela e chegou até mim alguma esperança. Avisto nuvens, talvez elas se apiedem dos velhos saberes e façam o favor de deixar correr alguma água, só para aquela proposição condicional passar a ser verdadeira e evitar que as tradições morram desmentidas pela experiência. Falando mais seriamente (ainda), sempre achei estranho o modo como esses agentes económicos – um amola-tesouras é um agente económico – surgem inopinadamente no meio de um lugar. Nunca acreditei que eles viessem de um outro sítio, que percorressem um caminho para chegar ali e tomassem outro para se irem embora. A experiência é interessante pois está ligada à audição. De súbito, ouve-se a flauta de pã, a qual é tocada uma meia-dúzia de vezes, e depois, também subitamente, deixa-se de ouvir. Isto prova que os amolas-tesouras são seres fisicamente inexistentes, mas que se materializam e desmaterializam. Como prova adicional, para quem queira dizer que isto infringe a inferência da melhor justificação, que seria mais sensato crer que eles chegam e partem como qualquer mortal, posso aduzir com o problema da sua própria existência. Como podem existir amola-tesouras se não há quem tenha tesouras ou facas para amolar, ou mesmo chapéus de chuva para consertar? Se uma tesoura ou uma faca ficam rombas ou um chapéu de chuva se estraga, vai tudo para o lixo e compram-se novos instrumentos. Não é sensato crer na existência económica de amola-tesouras, logo, pois a economia é a condição de possibilidade da existência no mundo actual, não existem amola-tesouras, por muito que oiçamos flautas de pã a anunciá-los. 

sexta-feira, 17 de junho de 2022

Water-closet

Imagino que por falta de assunto ou por ser sexta-feira à tarde, hoje começo (ou quase) com uma citação, encontrada na internet (vazadouro onde se encontra de tudo) de Fialho de Almeida sobre o distinto grupo Os Vencidos da Vida: Dúzia e meia de ratões que, quando juntos, o que pretendem é jantar; depois de jantar, o que intentam é digerir; e digestão finda, se alguma coisa ao longe miram, tanto pode ser um ideal, como um water-closet. Concebo que naqueles dias a expressão water-closet ainda não se tinha resumido a WC, mas talvez esteja a tornar manifesta a minha ignorância. Haverá, por certo, quem aprecie a ironia na referência aos ratões ou às suas actividades pantagruélicas. Porém, o mais subversivo está nesse dilema posto naquilo que esses folgazões miram. Ou o ideal, ou o water-closet, isto quer dizer que, em boa verdade, o ideal está em concorrência com a casa de banho. A partir desta aproximação, deixo à venturosa imaginação do leitor o que pensar do idealismo. Não me comprometo. Seja como for, a agremiação recreativa Os Vencidos da Vida sempre me foi simpática. E é nestas coisas que nós, portugueses, nos mostramos como um povo vetusto e, por isso, sábio. Algum americano poderia reconhecer-se como um loser? A designação, porém, é demasiado ambígua. Aparentemente, é negativa. Aqueles intelectuais reconhecem-se como derrotados. No entanto, a expressão pode ser lida de outro modo. A vida é de tal modo exuberante que submerge as pretensões do intelecto. Uma leitura mais nietzschiana. Assim, não estariam a lamentar as derrotas pessoais, mas a celebrar a vitória da vida sobre as suas ilusões. O grupo gerou, no meio literário lisboeta, escárnio, maldizer e, principalmente, inveja, coisa de que a nossa velha sabedoria ainda não nos curou. Abel Botelho escreveu uma peça de teatro que tinha por título Os Vencidos da Vida. A polícia decidiu proibir a representação porque, segunda consta, continha um elevado grau de violência satírica pessoal. Não sei se a peça foi publicada. Não consegui encontrar-lhe rasto. Sei que tanto os vencidos da vida como os que, com mal disfarçada pena, não pertenciam ao grupo estão mortos, vencidos pela morte, mesmo aqueles cujo nome ainda se celebra. Uma coisa é a vida e outra o nome. Ou será que a vida de uma pessoa não passa do nome que ostenta? Ou, ainda, tanto uma coisa como a outra, no water-closet, têm por destino ir cano abaixo? 

quinta-feira, 16 de junho de 2022

Eros, esse deus caprichoso

Para um feriado, saí cedo de casa. Umas compras a fazer, coisa para despachar rapidamente, e poder dedicar-me a uma das minhas actividades preferidas, isto é, não fazer nada. Eram nove da manhã quando estou a passar por um sítio onde lavam carros. Espreito para ver se estava aberto. Estava, havia dois empregados e apenas dois carros para lavar. É hoje, pensei. E não vai demorar, disse para comigo. Entrei. Era o terceiro, coloquei o carro na fila e aguardei sentado num banco de madeira. A organização empresarial foi benévola para mim e ofereceu-me duas horas e meia para estar ali sem fazer nada, enquanto os funcionários aspiravam e lavavam as viaturas com ademanes de amantes apaixonados e carinhosos. Acariciavam e massajavam os carros, tudo sem pressa, pois o amor é coisa para saborear com lentidão. Por mim, e apesar de gostar de não fazer nada, preferia que a lavagem fosse menos erótica, mais veloz, que o amplexo entre os funcionários e as viaturas, caso fosse mesmo necessário, não ultrapassasse a amplitude de uma rapidinha, e não se tornasse aos olhos de todos uma ménage poliamorosa com requintes de filme erótico para ocupar três horas as salas de cinema. Perdida a manhã, decidi ir pôr gasolina. Aqui, além da manhã, perdi o dinheiro. Perdido por cem, perdido por mil, vou ver a pressão dos pneus. Indescritível. Estava miseravelmente baixa. De tal modo que num deles a máquina se recusou a trabalhar várias vezes. Prometi a mim mesmo que cada vez que for trocar euros por gasolina hei-de ver a pressão dos pneus. Entre mim e os carros não há qualquer mediação de Eros. O investimento do meu desejo não recai sobre eles. Por mais curvas ondulantes que tenham, não me acendem a libido. Portanto, carro meu tem todas as razões para me ser infiel. O tempo aqui continua tempestuoso. Chove e troveja. A tensão existente não é minha amiga. Rouba-me o prazer de não fazer nada. Vou ocupar-me de alguma coisa.

quarta-feira, 15 de junho de 2022

Um imenso borbulhar

Um concerto de corta-relva. O solista esforça-se, mas a orquestra não o ajuda. Talvez o compositor não tenha tido em consideração a potência sonora do instrumento mecânico e a sua possível incompatibilidade com os diversos naipes instrumentais. Por isso, o cortador de relva parece perdido no próprio relvado que tem para cortar. Quando, por instantes, suspende a actividade, consegue-se ouvir os carros, o vento e até um coro de adolescentes. Talvez tudo isto não passe de um ensaio. Tenho particular pouca sorte. Este tipo de espectáculo acontece sempre que estou em casa. Também podia fechar as janelas, é verdade. Ia escrever que a mente humana é muito volúvel, mas corrijo. A minha mente é muito volúvel, a dos outros não faço ideia. Iria cometer uma generalização precipitada e, porventura, injusta. Mesmo agora a volubilidade da minha me deu uma prova irrefutável, mais uma. Não sei porquê, mas passou de um argumento sobre a existência de Deus da autoria de Anselmo de Cantuária para as 24 Horas de Le Mans, do ano de 1972. Por mais que procure em mim, não encontro razão para qualquer um destes pensamentos me ter vindo, nem um motivo para saltar de um para o outro. Não têm ligação entre si. Poderia explorar este estranho encontro para dizer que a mente é um lugar onde borbulham pensamentos sem que para esse borbulhar haja razões. Serão de geração espontânea. Eu sei que haverá logo quem afirme que pelo facto de eu não saber a razão desses pensamentos não significa que ela não exista. Concedo que poderá ser assim, mas, com a temperatura que está, hoje adopto a teoria da geração espontânea. A ideia de que o que acontece tem causa e que está determinado é uma ilusão fundada na necessidade humana de encontrar explicações para acalmar os medos que o incausado provoca. A realidade, tal como este texto, não passa de um imenso borbulhar sem causa nem sentido, o conjunto de irrupções súbitas sem que nada as provoque ou produza. Julgo que com este calor, nem o santo de Cantuária me vale. Cada vez tenho piores ideias, mas são as que me ocorrem, isto é, as que borbulham ao acaso na minha mente, se é que tenho uma.

terça-feira, 14 de junho de 2022

O princípio de farsa

Quando as coisas são vistas de fora, tudo o que parece decisivo mostra-se como risível, objecto possível de um sorriso malicioso ou de uma boa gargalhada, mesmo se ingénua. Se há coisa que acalora ainda hoje apoiantes e adversários – por motivos contrários, claro – é o 25 de Abril de 74. Sobre a data fazem-se juras de amor eterno ou proclama-se um rancor que nem no inferno será apaziguado. Contudo, a leitura da meia-dúzia de páginas que Alexander Kluge dedica ao acontecimento, no volume II da sua Crónica dos Sentimentos, acaba por tornar todo este excesso de sentimentalidade não apenas anacrónico como ridículo. Não terá sido por acaso que essas considerações são feitas no volume com o título A Queda para Fora da Realidade. Nisto não há uma crítica – favorável ou desfavorável – ao acontecimento português, mas ao entusiasmo que, na época, os jovens estudantes alemães – ainda grávidos das ideias de 68 – dedicaram ao assunto, onde viram a possibilidade de conjugar a revolução e o romantismo, antes de se fazerem à vida. Um desses jovens – a vítima do texto de Kluge – escreve: Durante muito tempo [Portugal] fica imune aos conflitos do resto do mundo. Explora os recursos das suas colónias com uma crueldade indolente, mediana. Contudo, é o próprio Kluge que afirma: Depois, a revolução de 1974 empurra Portugal para a realidade do século XX. A princípio com traços de conto de fadas: um Presidente de monóculo, claramente vindo de outro tempo, une o Norte e o Sul do país, sociedades inconciliáveis. Um conto de fadas com um Presidente de monóculo. Como, perante esta leitura cruel, os sentimentos ainda poderão encontrar combustível para se incendiar? Não se pense, porém, que o caso português é excepcional. Não, todos os grandes, e os pequenos, acontecimentos são habitados, de forma mais clara ou mais obscura, por um princípio de farsa. Por trágicos e grandiosos que eles sejam, contêm sempre uma farsa. Isto dever-se-á ao facto de todos nós, seres humanos, sermos, na realidade, uns farsantes. E é essa qualidade que transportamos para tudo o que fazemos. Um dos talentos de Kluge – que não será menos atreito à farsa – é, em poucas palavras, mostrar a farsa onde os outros vêem coisas que lhes incendeiam as paixões. E aqui temos uma revelação: o conúbio entre a paixão e a farsa. Sobre este casamento, todavia, resguardo a minha opinião. Por hoje.

segunda-feira, 13 de junho de 2022

Santo António

Está a ser um ano péssimo para as orquídeas aqui de casa. À exuberância de outros tempos sucedeu um desalento inexplicável. Uma parte não floresceu ainda – algumas prometem mesmo não dar flor – e as que floresceram fazem-no de um modo triste, melancólico, deixando as folhas murcharem rapidamente. O friso das orquídeas já teve melhores dias. Em Lisboa, é dia de feriado municipal, dia de Santo António. Ainda não compreendi a falta de previsão política dos sucessivos regimes que nos têm pastoreado. Perante a tensa disputa sobre se o santo é de Lisboa ou de Pádua, coisa que chega a envolver académicos, tê-lo como patrono de um feriado nacional seria um argumento convincente a favor da tese lisboeta. Promovê-lo a santo nacional para dar uma dura machadada nas pretensões dos paduanos e favorecer as dos lisboetas. Depois, todos os portugueses poderiam ir à praia ou a banhos noutros locais e não apenas os lisboninos. Onde me encontro, aa pequena cidade que me vê arrojar o peso da existência, estão previstos 40 graus lá para as três da tarde. Uma realidade excessiva para a minha capacidade de a suportar. Encerro-me dentro de casa, corro persianas e espero não ter de pôr um pé fora de casa, mas não sei se tenho sorte. Umas crianças em transição para o momentoso período da adolescência esganiçam-se na praceta. O sol não lhes afecta o corpo nem os neurónios. Talvez eu já tivesse sido assim, mas não juro. Movido a insónias progrido na leitura de A Consciência de Zeno, de Italo Svevo. Alguns aspectos mais risíveis da personagem Zeno lembraram-me uma outra personagem, Giovaninno, do romance À Descoberta de Milão, de Giovanni Guareschi, o autor dos épicos romances cujas personagens principais são o padre D. Camilo e o líder comunista Peppone. Fui verificar as datas de edição e o livro de Svevo – aliás, Aron Hector Schmitz – antecedeu o de Guareschi em 18 anos. Talvez este tenha sido influenciado, de algum modo, por aquele. Agora tenho mesmo de sair e encarar o dragão do calor. Uma aventura que enfrento, mesmo sem lanças nem flechas.

domingo, 12 de junho de 2022

Num limbo

Não tarda e terei de regressar a casa. Segundo sou informado, as temperaturas na pequena cidade onde levo a existência quotidiana terá chegado perto, demasiado perto, dos 40 graus. Nem sei bem o que dizer, pois só de pensar no caso sinto uma vertigem. Por aqui o tempo está espantoso, 21 graus, apesar de haver sol. O meu neto veio passar parte do dia comigo. Nos seus três anos e meio conseguiu arrastar-me à praia, um sítio que evito. Há qualquer coisa que os netos possuem que contamina os avós e os leva a fazerem coisas que, noutras circunstâncias, se recusariam a fazer. Depois, os netos vão-se embora e os avós ficam sozinhos, entregues a si num mundo que começa a não ser o deles. Nunca foi, claro, mas havia a ilusão de se pertencer a uma certa realidade, onde se reconheciam sem questionamento regras e hábitos. Agora, tudo começa a estranhar-se. Nessa estranheza emerge uma inquietação, e esta sublinha a distância, cada vez maior, entre o mundo a que se pertence e o mundo que existe. O mundo a que se pertence já não existe. O mundo que existe não tem lugar para nós. A partir de certa altura da vida entramos num limbo. Nem estamos no paraíso nem no inferno. Estamos em nenhures e quem vive em nenhures por certo não será coisa alguma. Há domingos que deveriam ser substituídos por outra coisa, talvez por um sábado. Seriam mais tranquilos, imagino.

sábado, 11 de junho de 2022

Do cultivo das aparências

Este sábado está a decorrer de modo anómalo. Comecei por fazer uma caminhada, a meio da manhã. Onde estou, a temperatura é muito moderada e o céu matinal estava coberto de nuvens. Os seis quilómetros de exercício renderam-me 72 pontos cardio. A OMS recomenda um mínimo de 150 por semana. Aceito a recomendação, embora não saiba muito bem para que serve. Quero parecer obediente. É um facto que apenas quero parecer e não ser, mas se todos cultivássemos as aparências o mundo seria um lugar muito melhor. Imagine-se um exemplo. Os dirigentes de um país estão cheios de vontade de invadir outro e destruí-lo. Contudo, prezam muito as aparências e evitam fazê-lo para não passar por belicistas e selvagens que, na verdade, são. Como se pode inferir, o cultivo das aparências é a salvação do mundo. Não há coisa pior do que essa ideia atoleimada de alguém querer mostrar o que é. Que guarde para si o que é e mostre aos outros um comportamento benévolo e afável. Estou a desviar-me do assunto. Estava a falar da anomalia do dia. Ora, para além dessa epopeia de caminhar seis quilómetros, tenho estado a descarregar uma série de romances, caídos no domínio público, de autores portugueses nascidos no século XIX e que escreveram nesse século ou no início do seguinte. Descobri uma coisa espantosa e anómala (daí a anomalia, que nada tem a ver com o conceito daquele autor que trouxe o conceito de paradigma para a ribalta, de tal modo que não há cão nem gato que não fale de paradigma). As universidades americanas e canadianas compravam a literatura portuguesa – e de muitos outros países, imagino – desse tempo para enriquecerem as suas bibliotecas. Não se pense que eram apenas os grandes nomes como Garrett, Herculano, Camilo, Júlio Dinis, Eça ou Antero. Por exemplo, Guilherme Centazzi, Manuel Pinheiro Chagas, Faustino da Fonseca, Arnaldo Gama, Joaquim Leitão e muitos outros. Fiz uma recolha interessante, num certo site americano, coisa de gente boa, interessada em partilhar o que está esquecido. Mesmo que quem o faça seja para manter as aparências, o benefício geral é imenso. Eu estou grato, a eles e às aparências.

sexta-feira, 10 de junho de 2022

A questão do dia de Portugal

Talvez seja um mau patriota. Enquanto, os portugueses celebravam o dia de Portugal, de Camões e das Comunidades – que raio de nome – eu dediquei-me, em parte, ao trabalho. Aqui que ninguém nos ouve, sempre achei este dia uma estopada, não por ser o dia nacional, mas por comparação com o 4 de Julho, dia da Independência nos EUA, e o 14 de Julho, a comemoração francesa da tomada da Bastilha. Grandes festas nacionais. O nosso pobre 10 de Junho não mobiliza ninguém. Minto. Provoca uma enorme mobilização em direcção às praias. Ninguém quer saber, neste dia, nem de Portugal, nem de Camões, nem das Comunidades. Não há festividades populares, nenhuma relação de afecto entre os portugueses e o dia. Em resumo, falhámos em ter o nosso 4 de Julho ou o nosso 14 de Julho. Com o espírito construtivo que é o meu, proponho que este feriado passe para 24 de Julho, não por ser nome de avenida, mas porque nesse dia as tropas fiéis a D. Pedro e aos liberais entraram em Lisboa e puseram os miguelistas em fuga. Foi a nossa tomada da Bastilha, o reforço da nossa independência. E como seria em Julho não destoaria desses marcos liberais do mundo moderno. Contudo, para ser exacto, o dia de Portugal deveria mesmo ser o 5 de Outubro. Nesse dia, Afonso Henrique e Afonso VII assinaram o Tratado de Zamora, que reconhece o primeiro como Rei de Portugal. A Monarquia e a República portuguesas partilham a mesma data para se comemorarem. Seria o dia ideal. Podiam manter o 10 de Junho como feriado, declarando-o como Dia Nacional da Ida à Praia. Tenho sempre óptimas soluções para os magnos problemas que nos afectam, o pior é que ninguém quer saber delas. Depois, queixam-se que o país está como está.

quinta-feira, 9 de junho de 2022

Olhar de esguelha

Gostaria de falar sobre o mundo, mas ainda não saí de casa e tenho as persianas corridas para que as ondas de calor batam nelas e recuem, perdendo-se sabe lá Deus onde. O mundo que me coube até ao momento, neste dia, chegou em forma de videoconferência e o que se acerca desse modo não é um mundo, mas um simulacro, o exercício de potências inferiores que conspiram, em plataformas virtuais, para nos enganar. Um leitor ocasional deste escrito pode perguntar-se pelo estatuto de verdade das afirmações feitas mais acima. Serão verdadeiras ou serão falsas? A questão, todavia, será irrelevante. Que diferença fará o facto de eu ter, no dia de hoje, saído e as persianas estarem levantadas? Aceitamos sem questionar que a verdade será a adequação do que é dito com a realidade. Contudo, não me parece possível estabelecer qualquer adequação entre um conjunto de palavras e factos físicos. A distância entre representante e representado é desmedida. Há um verso de Herberto Helder que talvez diga o essencial: A fantasia minuciosa. A oblíqua inovação. As palavras seriam essa fantasia minuciosa, uma inovação oblíqua. Por isso, não devemos crer que elas tenham o poder de dizer a verdade, pois estão constantemente perdidas em fantasias, com olhares oblíquos. As palavras olham de esguelha. Como se pode comprovar pelo que se escreveu acima, as videoconferências não contribuem para a sanidade mental de ninguém. Vá lá, contudo, as coisas poderiam ser piores. Em vez de ter citado um poeta reconhecido e um verso existente, bem poderia ter mobilizado como autoridade um poeta inexistente e um verso apócrifo, tão apócrifo quanto este narrador perdido na narrativa.

quarta-feira, 8 de junho de 2022

Contra o silêncio

No início de um ensaio, Carlo Ginzburg cita o dito do arquitecto Mies van der Rohe: menos é mais. Transporta-o para a sua área de estudo – a micro-história – e conclui que ao conhecer menos, ao estreitar o horizonte da investigação, acaba-se por ter a esperança de entender mais. Em tudo isto, a palavra mais sensata será esperança. A especialização contínua da ciência – seja em que área for – traz essa esperança de saber mais. Contudo, talvez se aplique a inversão da máxima de Rohe: mais é menos. Sabemos cada vez mais, mas compreendemos cada vez menos. O dramático disto reside no facto do homo sapiens sapiens necessitar, para se orientar na existência, de compreender. Não pequenas migalhas do mundo, mas do mundo como totalidade. O ‘entender mais’ fundado na redução do horizonte não mata a sede de compreender tudo, pois só dentro dessa compreensão globalizante a vida encontra um sentido. A religião e, depois, as ideologias foram estratégias encontradas para fornecer uma compreensão dessa totalidade. Ambas têm, nos dias que correm, má fama e pior imprensa. Em certas épocas, pensou-se na Filosofia como um dispositivo para fornecer uma compreensão da totalidade, mas também ela se especializou e adoptou como ideia orientadora o lema de Rohe: menos é mais. Os seres humanos encontram-se, assim, nessa singular circunstância de saberem cada vez mais coisas e de compreenderem cada vez menos para que serve esse saber e a sua própria existência. Imagino, por momentos, que deveria inventar uma máquina para fabricar cosmovisões, mas falta-me o talento não tanto para inventar máquinas, mas para tornar as cosmovisões convincentes. Talvez a única coisa que nos reste seja esperar – isto é, ter esperança – que nesse menos se manifeste um mais e, neste, se revele o todo. Tudo isto foi pensado por Francis Mute, numa das suas obras mais conhecidas, The Word of Muteness. O facto de o ter trazido para aqui não significa um acordo com a posição de Mute, mas a compulsão de não ficar calado.

terça-feira, 7 de junho de 2022

Ítaca

Há um poema de Konstantinus Kavafis denominado Ítaca. Jorge de Sena traduziu-o. Trata não tanto de Ítaca, mas da viagem que se faz para sair dela e a ela retornar. O poeta grego, na tradução do poeta português, recomenda: Mas não te apresses nunca na viagem. É um belo conselho ao arrepio do tempo, que exige que se tenha cada vez mais pressa. A recomendação de Kavafis prolonga-se: É melhor que ela dure muitos anos, / que sejas velho já ao ancorar na ilha, rico do que foi teu pelo caminho. A viagem é uma metáfora da própria vida. E Ítaca? O poema acaba assim: Sábio como és agora, / senhor de tanta experiência, terás compreendido o sentido de Ítaca. Há um tom pessimista no belíssimo poema. Se a viagem é a vida, então Ítaca é a morte, esse lugar de onde se parte e a onde se chega. Dir-se-á que é absurdo o desejo de uma longa viagem, se o fim é a morte. Contudo, o que sabemos nós da morte de onde partimos e daquela a onde chegaremos? Esse pessimismo disfarça um optimismo que será, a meus olhos, inexplicável. O da esperança de que a experiência nos torne sábios e nos dê a compreensão dessa morte. Dar-nos-á, quando dá, a indulgência para com o destino, mas isso não nos traz qualquer compreensão, mas apenas a resignação.

segunda-feira, 6 de junho de 2022

Actos falhados

Deveria escrever sobre o sono que me atormenta depois de almoço. Não se tratou de um lauto almoço. Pelo contrário, foi um almoço frugal, mas mesmo assim sou visitado por essa inclinação para fechar os olhos e entrar nesse lugar onde a realidade é trocada pelos sonhos. Para mim, contudo, essa viagem é um desperdício de tempo, pois raramente me lembro dos sonhos ou mesmo que sonhei. Tudo o que é viagem é um desperdício. Lembras-te de estarmos aqui e ali, de termos ido a…? A resposta nem sempre é a mesma. Umas vezes respondo que não, outras que sim, mas na verdade raramente me lembro. Tenho para certas coisas uma memória difusa, uma espécie de nuvem composta por gotas de águas indistinguíveis. Para outras coisas continuo com memória viva. Para sonhos, não tenho memória. Caso me desse à psicanálise, não sei como é que poderia ser levado à interpretação dos sonhos. Se o psicanalista quisesse avançar, teria de recorrer à associação livre e aos actos falhados. Estes não me faltam. Aliás, desconfio que tudo o que faço é um acto falhado. Quero eu dizer que aquilo que faço – esta narrativa, por exemplo – deve o seu insucesso não ao acaso ou à falta de atenção, mas à realização de um desejo inconsciente. O meu inconsciente determina-me a falhar. O sono é um acto falhado. Que bela desculpa o dr. Freud inventou.

domingo, 5 de junho de 2022

Questões de interpretação

Há semanas que não falava com o padre Lodovico. Ligou-me esta manhã para me dizer que iria uns dias para o Baleal, para a casa de férias que a Companhia lá tem. Se eu quiser dar uma saltada até lá, poderíamos conversar e, porque não, ir jantar a um dos lugares interessantes que existem por essa zona. Combinámos para o próximo fim-de-semana. Depois, contou-me a sua ida a Itália. Ainda lá tenho família, acrescentou. Até tenho sobrinhos bisnetos. Eu sabia, mas tomei a informação como uma novidade. O que me apoquenta não é a morte, disse, mas a incerteza sobre se haverá um futuro para essa geração. Tudo parece tão incerto, como se o sentido com que as coisas foram investidas se estivesse a retirar delas. Olho para as coisas – comentou – e começo a não conseguir compreendê-las. É como se elas fossem apenas simples coisas e nada as envolvesse de uma aura que lhes desse, para o coração e a razão dos homens, significância. Respondi-lhe, rindo, que não era boa ideia ler tantas vezes o Apocalipse. Não brinque com coisas sérias. Às vezes, chego a pensar que aquilo que nos pode acontecer é bem pior do que uma distopia baseada numa interpretação literal do Apocalipse de S. João. O que nos vale – atrevi-me – é que não se devem ler os textos bíblicos de modo literal. Não é verdade, respondeu. Não basta interpretar esses textos de modo figurado ou de modo simbólico. O modo literal é essencial. A literalidade é uma dimensão que nunca deve ser esquecida, acrescentou. Não discuto, respondi, a teologia não é assunto que, como sabe, me interesse, e a hermenêutica é coisa para a qual não tenho inclinação. Ele riu-se e disse que tinha de se preparar para dizer Missa. A cada um as suas ocupações, pensei ao despedir-me. Pareceu-me mais animado do que da última vez que tínhamos falado, ainda abalado com a guerra, depois deste tempo de pandemia.

sábado, 4 de junho de 2022

Contra o papel

Vejo a informação de que ler um livro em formato digital é três vezes menos danoso para o ambiente do que fazê-lo em papel. Há muito que sou um entusiasta dos eReaders. Para vergonha minha, tenho três. As razões para isso – para além do meu desvario – são defensáveis, mas não vou argui-las por aqui. Há pessoas que dizem que livros são em papel, um livro digital não é um livro. É como se no início da imprensa alguém dissesse: livros são em pergaminho. Em papel não são livros. Como tenho prazer em andar com um rolo debaixo do braço e sentir nos dedos a rugosidade e no nariz o odor do pergaminho, só leio livros nesse suporte. Ora, como o pergaminho desapareceu e os livros continuaram, também é expectável que o papel desapareça e os livros continuem. As árvores – e por consequência as florestas – agradecerão comovidas. Há, contudo, razões económicas, para além das ecológicas. Imagine que tem disponíveis todos os clássicos – e não clássicos – que caíram no domínio público. Mesmo os livros que têm direitos de autor são mais baratos em formato digital do que em papel. Depois, há uma outra vantagem. Os livros digitais não necessitam de estantes, nem se empilham no espaço, em caso de falta de estantes. Por fim, uma vantagem não despicienda, quando o proprietário dos livros morrer, os descendentes não têm de se perguntar: o que vamos fazer com estes montes de papel? Toda esta história apologética – se não mesmo catequética – veio na sequência de ter estado a descarregar de um site francês uma série de romances caídos no domínio público. Entre eles estão dois romances italianos de Italo Svevo, La Conscience de Zeno e Senilità, ambos em francês. Por acaso, possuo-os em papel, na tradução portuguesa, mas estou a desaprender a ler em papel.  Por aqui onde estou, está sol, mas a temperatura não ultrapassará os 22 graus. Seria uma óptima tarde de leitura, caso não houvesse uma festa de aniversário. O aniversariante – entrado agora na denominação de septuagenário – merece a festa. Além disso, as minhas netas estão a chegar e quero estar com elas e não com a consciência de Zeno, na sua rocambolesca psicanálise.

sexta-feira, 3 de junho de 2022

Prelúdios e interlúdios

Depois de um dia com alguma agitação, tentei ler alguns artigos de opinião dos jornais de hoje. Começava e, passada meia dúzia de linhas, dava o salto para outro. Talvez a razão estivesse em mim, na minha pouca disponibilidade para ler os outros. Pode acontecer, porém, que a questão estivesse mesmo na opinião. Emitir opinião é um exercício fútil – eu sei do que falo, pois também emito opinião, embora a minha seja emitida paroquialmente – e que, sob a capa de alimentar a esfera pública, não passa de uma diversão com pouco sentido. Em tempo li cronistas com grande entusiasmo, como o Eduardo Prado Coelho ou o Vasco Pulido Valente, mas ambos já morreram. Parece – mas talvez esteja a inventar – que tinham um pelo o outro um ódio de estimação, mas escreviam muito bem. Creio que os artigos de opinião não passam daquilo que os franceses chamam bavardage. Pura tagarelice, mesmo quando – ou principalmente aí – o opinante se esmera na tentativa de convencimento do público sobre a sua douta visão do mundo. Está fresco no sítio onde me encontro neste momento e isso é um bom prelúdio para o fim-de-semana, mas um prelúdio não é uma previsão ou uma profecia. A palavra prelúdio recordou-me uma outra: interlúdio. A televisão da minha infância era um acontecimento notável. Os programas eram interrompidos vezes sem conta por falhas técnicas. Assim que isso acontecia, era exibido um texto que dizia: pedimos desculpa por esta interrupção, o programa segue dentro de momentos. Se os momentos se acumulavam para além do aceitável, tinha-se direito a um interlúdio musical. Naquele tempo, eu adorava futebol. Raramente a televisão transmitia um jogo, a não ser a final da Taça de Portugal e os jogos no estrangeiro das equipas portugueses. Era uma festa, embora muitas vezes em vez do futebol se tivesse direito a longos interlúdios musicais. Imagino, agora, que seriam os prelúdios de Chopin. Vou caminhar. Talvez isso me disponha para ler a opinião dos outros.

quinta-feira, 2 de junho de 2022

Compras

Talvez precise de trocar de carro, pensei. Pus-me a fazer consultas na internet, fui acumulando páginas abertas. Resultado? Fechei-as e acabei por fazer a assinatura da revista Electra. Saiu-me bastante mais barato e dar-me-á muito mais prazer. Tirando o desvario da adolescência e do culto das corridas de automóveis, estes nunca me interessaram. Não gosto, inclusive, de conduzir. Por outro lado, o carro que pensei trocar não faz mais de 2 mil quilómetros por ano. A revista Electra, de que acabei de comprar o número 16, é pertença da Fundação EDP. Apresenta-se do seguinte modo: “Electra é uma revista internacional de crítica e reflexão cultural, social e política, dedicada às diversas áreas da cultura, promovendo diálogos e oscilações de fronteiras entre disciplinas artísticas, saberes humanísticos e ciência, entre teorias e práticas culturais.” Independentemente destas intenções – na verdade, não me comovem – a revista é um belíssimo objecto. Textos e imagens são, por norma, excelentes. O papel é de grande qualidade. Vale bem os 27 euros por quatro números anuais. O número da Primavera deste ano trata da questão da identidade. Tem um diário de Almeida Faria e um portfolio de trabalhos de Jorge Queiroz, além de muitas outras coisas, nas suas mais de 250 páginas. Um dos meus escritores de culto é o austríaco Thomas Bernhard, não tanto pelo seu teatro, que desconheço, mas pela narrativa. Pensava que tinha tudo o que estava publicado em Portugal. Há dias, numa das minhas vagabundagens pelos alfarrabistas online, deparei-me com um título que desconhecia, Betão. Certifiquei-me de que não era uma peça de teatro e comprei-o. Fora publicado em 1990, na excelente colecção Caligrafias, das Edições 70, anos antes de eu ter descoberto o autor e de me ter tornado um seu leitor fiel. Bernhard chegou a viver em Portugal devido à doença pulmonar de que sofria. A Áustria não teria ares amenos para a sua situação. Acabou por morrer cedo, tinha acabado de completar 58 anos. Uma vez recomendei-o a uma amiga brasileira. Odiou. Ela precisava de visões optimistas para certificarem a sua visão optimista do mundo e do futuro. Em Bernhard não há, felizmente, nada disso. Dos autores descobertos já na fase da vida madura, apenas dois me tocaram. Ambos de língua alemão. Bernhard e W. G. Sebald, que também morreu cedo, com 57 anos, num desastre de automóvel. Agora vou ler diário do Almeida Faria, antes que me venham buscar para ir comprar – imagine-se – vinho para uma festa de alguém que se tornou septuagenário. Fiquei responsável por essa incumbência. Ainda gostava de saber a razão.

quarta-feira, 1 de junho de 2022

Das coisas facultativas

Apesar de estar em contínua mudança, o mundo muda menos do que se pensa. Oiço gritos na praceta. Um bando de adolescentes dá pontapés numa bola. Estão entusiasmadíssimos a jogar na rua. Fiquei a olhar para eles e vi-me a mim a fazer exactamente o mesmo, há muitas décadas. Espantam-me apenas os decibéis. Também eu e os meus companheiros de então gritávamos assim? Brincar na rua era, naqueles dias e numa vila provinciana, um exercício democraticamente distribuído. Todos brincavam na rua, a não ser um ou outro infeliz subjugado por uma tirania maternal. Estes que jogam à bola aqui em baixo, porém, são uma elite de felizardos. O que não muda é o entusiasmo dos rapazes atrás de uma bola. Ao reler o texto de ontem lembrei-me que tinha quebrado uma promessa feita a 27 de Maio. Não tornar a olhar para uma página de Eça de Queirós enquanto me lembrasse de que ele preferia, para acompanhar o célebre Bife à Marrare, capilé. Daqui podem-se extrair duas conclusões diferentes. A primeira afirma que este narrador é muito volúvel e muda rapidamente de opinião. A segundo sublinha que o mesmo narrador tem fraca memória. Cada um que escolha a conclusão que mais lhe agradar, havendo a possibilidade, ainda, das duas serem verdadeiras ou das duas serem falsas. Outra coisa em que sou obrigado a mudar de opinião é o cumprimento do horário da consulta pelos médicos. Hoje, fui consultado na hora marcada. O problema é que isto poderá ser apenas uma idiossincrasia daquele médico, um electrofisiologista cardíaco (tradução: electricista do coração), que, descobri, fez o curso enquanto aluno da Academia Militar. Ninguém pode chegar tarde à guerra e isso entranha-se na vida civil. Obrigar a todos os futuros médicos a fazer o curso ao mesmo tempo que frequentam uma academia militar seria um contributo decisivo para a pandemia do atraso com que os facultativos (estive quase a chamar-lhes esculápios) chegam às consultas. Ocorre-me, agora, que talvez por serem facultativos a presença a horas também seja facultativa.

terça-feira, 31 de maio de 2022

Demolições

Sem glória nem proveito, Maio fina-se hoje. Várias pessoas da minha família escolherem este mês para nascer. Não se queixam nem protestam por ele, em certos anos, não ostentar a aura que o nome anuncia. Talvez todos nós sejamos seres resignados com o mês em que nascemos. Habituamo-nos a ele e até chegamos a pensar que seria impossível nascer num outro. Por desfastio, triste pelo destino de Maio, pus-me a ler A Tragédia da Rua das Flores. No primeiro capítulo, Eça de Queirós, linha a linha, demole a boa sociedade da época. Não fica pedra sobre pedra. Usou não o florete da ironia, mas o camartelo. O segundo acto terminava. O regente, aos pulinhos, brandia a batuta; os arcos das rabecas subiam, desciam, com o movimento de serras apressadas; agudezas de flautins sibilavam; e o bombo, de pé, de óculos, com o lenço tabaqueiro deitado sobre o ombro, atirava baquetadas à pele do tambor, com uma mansidão sonolenta. Sobre o palco, Carlota, muito escangalhada, arrastando aos sacões através da corte a sua cauda enxovalhada, gania. Temo, contudo, que um dia destes seja posto no índex, por escrever coisas como esta: E o episódio aristocrático da sua carreira sentimental fora em Sintra, quando o social Padilhão o surpreendeu nos Capuchos com a Condessa de Aguiar. A Condessa era, é ainda, como um prato de mesa redonda: o que a recebe do seu vizinho da direita, serve-se e passa-a ao seu vizinho da esquerda. Desde então Dâmaso fitava as mulheres de frente, torcendo o buço. Sempre me pareceu que os sociólogos desperdiçam um vasto campo para o seu trabalho. Uma sociologia da literatura não com o fim de compreender as condições sociais onde foram produzidas as obras literárias, mas a investigação da sociedade que essas obras constroem. Isto não teria por finalidade perceber a sociedade do tempo de Eça de Queirós, por exemplo, mas a sociedade que Eça cria para nos levar a pensar que está a demolir a sociedade do seu tempo. E eu, ingénuo, suspendo a descrença e acredito mesmo que ele estava a demoli-la. Não estava, claro. O mundo social onde os homens habitam e o mundo social das obras literárias são como duas rectas paralelas, mas que nem no infinito se encontram.

segunda-feira, 30 de maio de 2022

Da regulação

Há que ser reconhecido ao santo regulador dos desvarios do clima. Por hoje, S. Pedro merece a nossa gratidão. Uma máxima de 24 graus é caso para romaria. Se nós olharmos para os reguladores existentes na terra, percebemos as suas dificuldades. Por exemplo, os reguladores financeiros são especialistas a não regular coisa nenhuma. Mal se olha para o lado e estamos todos metidos numa alhada dos diabos, pois os reguladores desregularam ou foram fazer outra coisa qualquer. Se regular as finanças é o que é, imagine-se o trabalho de regular o clima, os humores deste, as altas e as baixas pressões, os ciclones e os anticiclones. Chegaram-me hoje uns livros comprado online num alfarrabista. Quatro livros, para ser exacto. Abro-os para ver se neles me chega alguma comunicação de outro tempo, uma dedicatória a um amigo, um papel esquecido com uma lista de compras, alguma carta de amor por ali deixada. Nada. O passado está mudo e resiste em alimentar-me estes textos. Um desses livros é um romance de um antigo crítico literário, uma autoridade na matéria há umas boas dezenas de anos. Consta que, enquanto escritor, a sua sorte e o seu talento nunca impressionaram ninguém. Não o posso dizer, pois nunca o li. Tenho agora oportunidade. Um dos outros livros foi publicado por uma editora já desaparecida, a Sociedade de Expansão Cultural. Esta era o resultado de um trabalho quase de militância editorial de um escritor hoje completamente desconhecido, Domingos Monteiro. Naqueles tempos, era visto como um dos grandes novelistas nacionais. As cevadilhas da escola aqui ao lado estão exuberantes, cobertas por uma floração rósea. A tarde está cor de cinza e isso refresca-me a alma.

domingo, 29 de maio de 2022

Pequeno-burgueses

Diante de mim jaz o romance de Carlos de Oliveira, Pequenos Burgueses. Aguarda que a realidade se desanuvie para que eu prossiga na sua releitura. Ler é reler, alguém terá dito, mas não me ocorre quem. Voltando ao romance de Oliveira, o título levou-me a uma associação com um poema de Mário Cesariny. Aquela que começa e acaba com a seguinte quadra: Burgueses somos nós todos / ou ainda menos. / Burgueses somos nós todos / desde pequenos. Quando tinha escassa idade, mas já a suficiente para me interessar por coisas que talvez não me devessem interessar, a vexata quaestio da pequena-burguesia, com hífen, estava muito na moda. Havia debates e vitupérios em torno dessa inconsolável e inconsolada classe social, bem como da definição e extensão do conceito que a deveria definir. O poema do Cesariny mostrou-me a solução do enigma dos pequeno-burgueses. São aqueles que são burgueses desde pequenos. Por pequeno pode-se pensar aqueles que são crianças, aqueles que são pequenos de altura, aqueles que o são de carácter, aqueles que o são de rendimentos. A poesia abre as palavras à polissemia e essa salva a alma de quem a lê, ou a relê, mesmo que a finalidade seja tresler. Hoje é domingo, já cumpri um conjunto diversificado de tarefas, mas ainda tenho mais algumas para realizar. Hoje, por hoje, sigo aquele sábio conselho – de claro teor pequeno-burguês – não guardes para amanhã o que podes fazer hoje. Nada de procrastinar.

sábado, 28 de maio de 2022

Imprevistos

São grandes os dias e as tardes prolongam-se numa doce rêverie como se tivesse retornado, por instantes, aos Verões da longínqua infância. Uma quase desadequação à realidade. Ainda não se está no Verão, falta quase um mês para a sua chegada oficial, embora a infância esteja cada vez mais longínqua. O almoço não me predispôs a qualquer actividade nas horas que se lhe seguiram. Há coisas simples que parecem tocadas pela eternidade, como carapaus fritos – pequenos, mas não mínimos – e arroz de tomate. A culpada foi a minha neta que fez um pedido formal para este almoço. O resultado não foi venturoso. Sentei-me em frente da televisão, para ver o que se passava no Giro de Itália e adormeci, embora acordasse a tempo de ver o fim da história, isto é, da etapa. Eu não sou um adepto contumaz do ciclismo, mas acho-lhe alguma graça, se visto na televisão. Por norma, as paisagens são magníficas, vêem-se coisas que nem indo lá se conseguem ver. Quem ganha ou perde, quem dá à perna com mais ou menos vigor, isso pouco interessa. Havia um português nos primeiros lugares, mas parece que foi apanhado pela COVID e foi obrigado a desistir. São estes imprevistos que nos impedem de ser uma grande nação. Há sempre um vírus ao virar da esquina à nossa espera. E esquinas são coisas que não faltam neste país. Somos um pobre país rico em esquinas. Um país esquinado. Quando fui ver a minha mãe, neste 28 de Maio em que faz 89 anos, estava, na cidade, um calor insuportável. Ela reconheceu os filhos, mas dos netos e bisnetos não se lembrava, como de quase nada. A vida parece apagar-se do fim para o princípio. Tem vislumbres, conseguiu acertar na idade, mas não fazia ideia que era dia do seu aniversário. Por vezes, parecia fazer recapitulações perguntando a cada se era aquele que ela pensava ser. Depois, entrava numa outra dimensão que só ela saberá qual é. Uma fuga para uma realidade paralela ou perpendicular, mas por certo melhor que esta.

sexta-feira, 27 de maio de 2022

Uma nódoa de capilé

Trinta e sete. Não, este número não representa a idade de ninguém, nem é uma chave para qualquer arcano da numerologia. Não faço ideia se arcano e numerologia combinam. Ele representa a temperatura máxima sentida por aqui. Na rua, mesmo à sombra, a pele parece estalar. Recolho-me em casa e bebo água. Devia ter comprado umas cápsulas de descafeinado para fazer mazagran. A ausência da cafeína deve-se à presença da minha neta mais velha que chegou há pouco para ser massacrada com umas lições de Matemática a cargo da avó. Telefonou anteontem esbaforida. Irá ter um teste com toda a matéria do oitavo ano. Acho que lhe chamou teste global. É o que faz a globalização, dá cabo da sensatez dos professores e põe as crianças de rastos. O Word, sempre solícito, decidiu, ali em cima, marcar como erro mazagran, propondo para substituição mazagrã. Não aceito. Perde-se a referência a um local na Argélia denominado Mazagran. Esta palavra, segundo a rápida investigação que fiz, deriva de uma expressão berbere ma (água) e zagran (abundância). Talvez fosse um oásis. A bebida faz jus ao nome, pois tem água em abundância. Recordei-me também das groselhas, o refresco, e do capilé. Por causa deste, tive uma decepção com um dos maiores génios da nossa literatura. Li que Eça de Queirós preferia capilé a qualquer outra bebida (leia-se vinho) para acompanhar o Bife à Marrare. Enquanto me lembrar desta revelação não lerei uma página dele. Pode ter composto Os Maias, O Primo Basílio, A Ilustre Casa de Ramires e até As Cidades e as Serras, esse romance proto-ecologista, que não apaga a nódoa do capilé. E o Arroz de Favas, aquele prato que o Jacinto cantava, era acompanhado com quê? Limonada? Por amor de Deus.

quinta-feira, 26 de maio de 2022

Espiga

Uma espiga. Até 1952, a Quinta-Feira de Ascensão, em versão católica, ou o Dia da Espiga, em versão pagã, era feriado nacional. O governo de então não resistiu aos cantos de sereia da produção, da necessidade de trabalhar, e acabou com essa interrupção da realidade que permitia às pessoas da cidade irem ao campo lavar a alma, encherem-se de poeira e colherem espigas e flores silvestres, com as quais compunham um belo ramo, para pendurar à entrada de casa ou colocarem atrás da porta da despensa. Não seria um belo ramalhete rubro de papoulas, coisas do Cesário Verde, mas este também não se punha à porta de casa. Se eu tivesse uma alma de político e entretivesse a vida em luta pelo poder, faria de imediato a promessa de restauração nacional do feriado da Quinta-Feira de Ascensão. Seria um acto restaurador, quase tão importante como aquele que correu com os Filipes e nos trouxe os Braganças. Isto apenas por solidariedade com parte dos portugueses, pois vivo num dos concelhos – e são em número interessante – que elegeu o dia de hoje como feriado municipal. Como não tenho propensão política, lá fica a maioria dos portugueses sem possibilidade de ir apanhar a espiga. Para dizer a verdade, acho que apenas uma vez fui apanhar a espiga, mas tanto quanto me lembro não era a espiga que me interessava, embora já não saiba o que era. Talvez um ramalhete rubro de papoulas. Dá sempre jeito, desde que não venha acompanhado de imposturas tolas.

quarta-feira, 25 de maio de 2022

As quatro estações

Quando volto para casa, depois de uma manhã de múltiplos afazeres, fico especado em frente à porta. Revolvo os bolsos em busca da chave. Nada. Devo ter feito uma cara de estúpido, mas ninguém teve o prazer de a ver. Talvez a porta, mas essa é muda. Toquei à campainha. A porta abriu-se e fui olhado com ironia. Com que então a chave abandonada na porta durante quase cinco horas. Anuí e não disse mais nada para não engrandecer a heróica aventura de que tinha sido sujeito ou a que fora sujeito. Certamente, não foi uma aventura galante, como aquelas que preencheram a vida do Marquês de Bradomín, o mais admirável Don Juan, pois segunda uma tia, era feio, sentimental e católico. Contudo, pode haver não pouca galanteria num esquecimento, mas não foi o caso. O Marquês de Bradomín é uma personagem de Ramón del Valle Inclán, de uma série de romances dedicada às quatros estações. Estas, as quatro estações, têm um enorme sucesso no mundo da arte. Os concertos de Vivaldi, os romances de Inclán, os filmes de Éric Rohmer. É a estes que estou a dedicar os meus tempos livres. Já vi os filmes referentes à Primavera, ao Inverno e ao Verão (esta é a ordem). Falta-me o Outono, a minha estação preferida. Sou uma pessoa outonal e outonada, talvez mais do que o necessário. Estes filmes giram, como é hábito no realizador francês, à volta da equivocidade do amor ou, melhor, dos amantes. A minha homenagem de hoje, porém, não é para o amor, mesmo o galante, mas para as quatro estações, até porque vivo num lugar que ainda não as aboliu de jure, mas extinguiu-as de facto. Aqui só há duas. Ora é Inverno, ora é Verão. Isto é péssimo para a arte. Uma coisa são As Quatro Estações, de Vivaldi, que, aliás, fazem parte de doze concertos para violino, cordas e baixo contínuo, com o nome de Il cimento dell'armonia e dell'inventione. Outra, bem mais rasteira, seria As Duas Estações, sem os galanteios da Primavera, sem a prudente sabedoria do Outono. Ninguém me perguntou, mas eu informo. Prefiro o Marquês de Bradomín ao Marquês de Sade.

terça-feira, 24 de maio de 2022

Indícios

Acontecem coisas estranhas na vida das pessoas. Anda-se embrulhado numa incerteza sem fim sobre determinado assunto. Deve-se fazer isto ou aquilo? De um momento para o outro, um acontecimento inopinado fornece um indício e este torna-se a chave que conduz à decisão. Talvez isto contrarie a ideia aristotélica de raciocínio prático, desse processo de deliberação que conduzirá à melhor das opções. Ou, será uma hipótese mais interessante, existam duas formas de tomar decisão, não incompatíveis, apenas diferentes. Numa a razão delibera para escolher aquela que é a melhor das opções possíveis. Noutra, aguarda-se que um sinal fortuito forneça a indicação do caminho a seguir. Este último método não parece lá muito razoável, mas a vida tem muitas coisas irrazoáveis, havendo mesmo a possibilidade de ela ser também irrazoável. Seja como for, o assunto que me trazia na incerteza recebeu a solução graças a um indício fortuito. Curiosamente, sinto-me mais tranquilo e certo de ter feito a melhor escolha. Releio Pequenos Burgueses, um dos romances de Carlos de Oliveira. Este é um dos autores que mereceria mais atenção do público. Tanto na poesia como na prosa. Há nele uma contenção extrema e um desejo infinito de perfeição. O que mais impressiona nos seus romances é o modo como, limitando-se a um universo paroquial, fechado e sombrio, consegue uma escrita luminosa que está muito para além da paroquialidade. Por exemplo, este excerto de uma carta nunca enviada, como todas as outras que a antecederam, pela sua autora: Responda e deixe a carta dez metros para a esquerda do portão, entre as duas pedras do muro marcadas com uma cruz, mas ao responder ponha óculos escuros para o seu olhar não vir no papel e não tente escrever uma carta bonita, só em português, use a misturangada com que costuma falar, português e espanhol. Dá-lhe um ar de aventureiro viajado, que veio de longe. Se puder, ponha também o tom da voz, áspero mas agradável. É ele que não me deixa parar o coração quando esses olhos horríveis me gelam… Não faço ideia se hoje em dia, nas escolas, se lê Carlos de Oliveira, mas a leitura desta carta deveria ser obrigatória, não para ser esquartejada num exame, mas para os alunos aprenderem o prazer do texto, e ao aprender o prazer do texto descobrissem as forças subtis, cheias de indícios, que sustentam o jogo do amor. Acho que já escrevi demais. É preciso não abusar da paciência de quem, por acaso, lê estes textos.

segunda-feira, 23 de maio de 2022

Encanar a perna à rã

Queixamo-nos muito dos atrasos, mas talvez isso faça parte de uma longa tradição que remonta ao início da nacionalidade. Por certo que todos sabemos que a 5 de Outubro de 1143, pelo Tratado de Zamora, Afonso VII, rei da Galiza, Castela e Leão, reconheceu o primo, Afonso Henriques, como Rei de Portugal. Ora, o reconhecimento papal, contudo, só chegou a 23 de Maio (faz hoje 843 anos) de 1179. Tivemos de esperar quase 36 anos. Isto é mais demorado do que um processo num tribunal português. Esta longa espera, este atraso entre os factos e o direito, tornou-se em nós, portugueses, um hábito e um hábito é uma segunda natureza, na opinião de Aristóteles. Nascemos atrasados e não é claro que queiramos recuperar esse atraso. Andamos há seculos com 36 anos de atraso. A culpa, porém, não foi nossa, mas do Vaticano, que andou a encanar a perna à rã. Isto prova que encanar a perna de uma rã é um exercício demoradíssimo, que pode levar dezenas de anos. Por falar em rãs, os pássaros meus vizinhos decidiram fazer um concerto. Mais harmonioso do que se fosse um composto pelo coaxar das rãs. Os sapos também coaxam, mas imagino que o coaxar destes seja mais grave, enquanto o daquelas mais agudo, uma variação entre barítono e soprano. As segundas-feiras são sempre dias difíceis. A realidade atira-se a nós e gruda-se na pele. Para a descolar é necessário um esforço hercúleo. A energia fica toda aí, não sobrando nada para ajudar a criatividade deste texto. Paciência. O concerto acabou.

domingo, 22 de maio de 2022

Das coisas efémeras

Um dos jacarandás de uma das pracetas está já em adiantado estado de floração. Julgo que a norma, por aqui, era a floração estar exuberante em Junho. Agora, as coisas adiantam-se. O espanto que provocam os jacarandás em flor provém não apenas da beleza da árvore, mas de estarem em conjunto. Um exemplar florido perde muito do impacto, como se a espécie tivesse por divisa a união faz a beleza. O domingo passou-se sem que uma nova aventura se possa adicionar à gesta gloriosa que vou narrando por aqui. Ao comprar uns croissants recordei-me da moda que assolou este país há umas décadas. Não havia lugar que não tivesse uma croissanterie.  Não me recordo se era assim que grafavam o nome do estabelecimento ou se aportuguesavam para croissanteria. Talvez existissem as duas modalidades. Foi um fenómeno galopante, tanto a espalhar-se como a desaparecer. Tudo o que deve permanecer necessita de uma longa incubação, caso contrário não passará de uma curiosa efemeridade. Também é verdade que vivemos numa era em que não há tempo para demoras. As coisas precisam de emergir rapidamente e rapidamente devem tornar-se obsoletas. A ideia de moda espalhou-se, como um vírus contagioso, por todos os aspectos da vida. Também o belo jacarandá terá uma glória efémera, embora para o ano ela possa voltar. Uma vantagem das árvores sobre os homens.