Estou à espera do meu neto, mas não vou poder pegar-lhe ao
colo. Não que ele queira, pois isso impedi-lo-á de mexer onde não deve, não o
deixará fazer uma sementeira de CD e livros pelo chão. A culpa deste
impedimento é das netas e do malfadado jogo de badminton a que fui sujeito, como se tivesse de cumprir uma pena ou
de pagar uma promessa. Com o passar das horas, as dores lombares parecem
expandir-se e o voltaren, uma espécie
de santo, está renitente em operar um dos seus milagres. Lá em baixo, com o
retorno do tempo mais seco, as crianças invadiram o parque infantil e as suas
vozes afiadas chegam até mim. Quando se calam, faz-se um grande silêncio. No
horizonte, a serra é um vulto imóvel e cinzento, uma fronteira que separa dois
mundos. O sábado progride em direcção à noite. Leva com ele a ilusão do
fim-de-semana e ostenta orgulhoso no dorso o título de último sábado do ano.
Está um sol convidativo e o mais assisado será levantar-me daqui e ir dar uma
volta a apanhar sol. Não me posso afastar, pois não faltará muito para que o rapaz
chegue.
sábado, 28 de dezembro de 2019
sexta-feira, 27 de dezembro de 2019
Aproximação à realidade
Ao acordar senti-me confuso, mais do que o habitual. Que dia é hoje? Sentei-me na cama a rememorar o calendário e lá consegui descobrir que era sexta-feira. Não se pense que este descolamento da realidade temporal se deve a alguma coisa que não à ocupação de parte destes dias com as actividades próprias à quadra. Descobrir a quanto estávamos na semana devolveu-me um sentido cruel de realidade. Como um punhal, esta atravessou-me o coração e não sem azedume lá me levantei. Um sol faceto e pirraceiro olhou para mim quando abri a janela. Observei-o de soslaio, com cara de pouco amigos, enquanto ele deitava de fora uma língua de fogo que lambia a serra, dando-me a ver uma paleta de cores que me recordaram que o Inverno já havia começado. O astro ainda tentou entabular conversa comigo, mas voltei-lhe as costas. Talvez mais logo me reconcilie com ele e lhe conte como vão as coisas aqui na Terra, o que não será da minha parte um gesto de boa vontade. O dia parece cheio de glória. A natureza nunca se poupa a estratagemas para enganar os incautos. Acabo de receber uma mensagem, mas não era para mim. O mundo está cheio destes equívocos. Pessoas a enviarem mensagens para quem não deviam e outras à espera da mensagem que ninguém lhe destina.
quinta-feira, 26 de dezembro de 2019
Uma tarde de badminton
Por uma estranha e não sei se malévola inspiração as minhas netas e uma prima acharam que eu era o parceiro indicado para completar um quarteto e assim poderem jogar badminton a pares. Ingénuo e desconhecedor do terreno, aceitei pegar na raquete e tentar acertar no volante. Não imaginava que naquele sítio a força da gravidade fosse muito maior do que nos lugares que costumo frequentar. Bem dava impulso ao corpo para saltar, mas os pés teimavam em não se despegar do chão, enquanto o cesto de penas que faz a vez de uma bola se obstinava a passar na estratosfera para logo cair atrás de mim. Argumentei que não estava habituado a enfrentar uma força da gravidade daquela dimensão, mas olharam para mim com condescendência e lá continuei a fazer par com uma delas, sem perder a esperança de conseguir acertar naquela coisa com inveja de ser pássaro. Agora que fui libertado do exercício estou com umas dores na lombar, tantas as vezes que tive de me curvar para apanhar o volante do chão. Há coisas que não deviam passar pela cabeça de pré-adolescentes ou, não sendo possível evitar esses devaneios, o melhor seria não ter ouvidos para este tipo de pedidos, mas ainda não sofro de surdez. Enquanto escrevo, elas teimam em mostrar que possuem uma reserva considerável de energia que nem o badminton da tarde consumiu.
quarta-feira, 25 de dezembro de 2019
A coisa prossegue
Não tarda e esta parte das festividades estará consumada. Haverá o tardio almoço de Natal e, devido à natureza arborescente das famílias modernas, decorrerá ainda o jantar do dia de Natal. Há que contentar o máximo das partes e a partir de certa altura o jogo de ponderados equilíbrios torna-se num quebra-cabeças de difícil resolução. É nestas alturas que se percebe a importância da diplomacia. Compreendo bem que o Menino Jesus se interrogue se terá valido a pena as dores da encarnação e que suspire não sem desdém se alguém se atreve a responder-lhe tudo vale a pena se a alma não é pequena. Mais tarde ainda tentou reparar a situação ao dizer dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus. Entrevia já – ou talvez fosse a sua omnisciência a operar – que por causa do seu nascimento muita política e diplomacia deveria correr entre as margens escarpadas das famílias. O sol por aqui está raquítico. Na televisão o presidente da república continua a sua azáfama e as casas de apostas puseram em jogo o tempo que demorará sua excelência a tirar uma selfie com todos os portugueses. Estamos no Natal e há que evitar politiquices, pois as famílias tornaram-se tão plurais que nem em desacordarem conseguem estar de acordo. Aqui por casa alguém diz que tem de tomar um gurosan, oiço também falar em ben-u-ron. A mim não me dói nada nem estou indisposto, mas o melhor é fazer um ataque preventivo e tomar qualquer coisa, nem que seja um placebo, talvez me consiga enganar a mim mesmo.
terça-feira, 24 de dezembro de 2019
Em contagem decrescente
Terei ainda de fazer uma ou outra compra, mas as coisas estão já encomendadas e espero que o dia e a noite deslizem com bonomia. Em tudo isto há um cansaço e ninguém consegue disfarçá-lo. Também é verdade que, com aquela mania de fazerem recenseamentos todos os anos, a Virgem e José, o carpinteiro, sofrem continuamente as peripécias de não encontrarem alojamento. É sempre a mesma coisa, diz o pai adoptivo do Menino. O mais sensato, passou-me pela cabeça, seria recorrerem, nos dias de hoje, a uma agência de viagens ou, em último caso, ao Booking. Marcavam hotel perto de uma maternidade e não corriam o risco de o Menino ser contaminado pelo bafo da vaca e do burro. Não pense o leitor que me tornei um jacobino pronto para fazer uma diatribe contra o Natal. Pelo contrário, eu gosto do Natal, do presépio, dos doces, até da Missa do Galo, apesar de nunca ter ido a nenhuma, mas imagino-a de uma grandeza exaltante, onde coros humanos e angélicos entoam um oratório de Bach. Talvez seja com medo de me defraudar que a evito, sabendo que Bach era protestante e que em vez da sua música tenha de ouvir sabe-se lá o quê. Os dias de Natal de antigamente eram de uma grande tristeza, pois não havia sítio onde se pudesse beber café. Hoje em dia, graças à Nespresso e às suas belas cápsulas de alumínio, toda a gente tem café em casa e as senhoras, enquanto bebericam, sempre podem imaginar que é o próprio George Clooney que as serve, mesmo que seja o burro do presépio ou o marido, cujo ressonar já não podem ouvir. A imaginação é a mãe de todas as coisas.
segunda-feira, 23 de dezembro de 2019
Fim de aboboramento
Nunca consegui justificar perante mim o facto de ter uma
conta na plataforma LinkedIn. O certo
é que um dia qualquer, por um desvario que já não consigo recordar, abri conta
e por lá fiquei a aboborar. Esta palavra decepciona-me profundamente. Por
impulso semântico, eu diria que significa tornar-se abóbora, mas não. É uma
espécie de corruptela de abeberar. Seja como for fiquei por lá a aboborar, imóvel
e desinteressado, respondendo com bonomia e a melhor vontade às solicitações de
conexão, embora nunca tenha percebido a razão por que há pessoas que hão-de
querer estabelecer uma conexão comigo numa plataforma como a LinkedIn. À maneira de Grouxo Marx,
também não admitiria estabelecer qualquer conexão profissional comigo. O certo
é que sem mexer uma palha, praticando com diligência o aboboramento, fui
ficando conectado com conhecidos e desconhecidos, recebendo mensagens para
parebenizar (palavra que me deixa logo com revoluções no estômago) este e
aquele pelos novos empregos ou cargos a que tinham sido promovidos. Fui
estranhando nunca ter recebido convites para dar os pêsames aos despedidos ou
aos despromovidos, mas inferi desse silêncio que todas as minhas conexões eram
com gente vencedora na vida. Hoje recebi um novo pedido de conexão. Abri a
conta e com ela escancarada procurei como acabar com ela. Liquidei-a em três
tempos. Recebi de imediato uma mensagem a dizer que sentiam muito pela minha
saída. Eu, pelo contrário, sinto muito pela minha entrada. Nunca se deve entrar
em sítios aonde não vamos fazer nada.
Distinções linguísticas
Fui à loja ortopédica que há aqui no prédio para comprar umas pantufas para alguém que já não tem grande disponibilidade física para fazer este tipo de compras. Nunca tinha lá entrado e, por alguma razão inconsciente, evitava olhar através dos vidros. Foi uma revelação. Parece haver lá tudo o que é necessário para a miséria física humana. Eu sei que tudo é uma hipérbole, mas esta está-me na massa do sangue e o melhor é dar algum desconto às coisas que me põem aqui a dizer. Bengalas, cadeiras de rodas, bancos com abertura para o que não vou especificar e uma parafernália de dispositivos e objectos que sou incapaz de denominar ou de descrever. Evitamos pensar nas múltiplas formas que a desgraça tem e só quando nos bate à porta entramos naquele mundo e descobrimos que as estratégia da doença para nos humilhar são incontáveis. Chegado a casa, sentei-me e li um artigo (de Marco Neves) sobre o uso das palavras vermelho e encarnado. Quem diz encarnado – e isto não vem lá – por norma não diz prenda mas presente. Recusa-se, não sem veemência, a dizer funeral. A palavra correcta é enterro, asseveram pimpões. É possível que quem usa vermelho prefira oferecer prendas e, quando tem de ser, vai a um funeral. A língua também é um exercício de diferenciação social e quem quer diferenciar-se não se faz rogado. Por mim, só me apetece usar vermelho, prendas e funeral quando estou num círculo de amigos do encarnado. Se me calhar estar no círculo mais popular, posso cair na tentação de evitar o vermelho. Isto, porém, deve-se a ter nascido com uma inclinação patológica para contrariar o que está dado, contrariando-me muitas vezes a mim mesmo. Se estou sozinho não digo vermelho nem encarnado, não distingo prenda de presente e nem me lembro se se trata de um enterro ou de um funeral. Se estou sozinho, evito dizer seja o que for, embora na minha mente prossiga um diálogo infinito, em que falo comigo mesmo como se já tivesse enlouquecido. Estes textos estão a ficar excessivos. Também a verborreia faz parte do meu amor à hipérbole.
domingo, 22 de dezembro de 2019
Imaginações
Um alarme lança aos ares o aviso contra imaginários ladrões e quebra o silêncio onde mergulhara neste entardecer de domingo. Ninguém acode ao estabelecimento e o dispositivo prossegue na sua cegarrega mecânica, avisando o mundo de um perigo que não há. Nunca se sabe que ameaças são as piores, se as visíveis se aqueles que só a imaginação descobre. Não devemos descurar o que esta nos diz, apesar de serem secretos os seus caminhos. Num livro de contos de um escritor japonês, em nota prévia, é explicada a pronúncia que se deve dar aos nomes desta língua. Resolveu a meu favor uma pequena contenda relativa à leitura do w, se deve ser feita ao modo dos ingleses ou dos alemães. O alarme calou-se, havia nele cansaço de tanto esperar por ladrões que não vinham. Levantei-me para ir cumprir uma tarefa doméstica, mas ia tão distraído que a meio da viagem já não sabia o que ia fazer. Tive de parar e actualizar a informação. Lá me ocorreu o que era. Hoje o mundo visto da janela do meu escritório parece sombrio. Será porque o sol se esconde atrás das nuvens ou porque no meu coração nascem sombras que se derramam na paisagem. Uma voz diz é cansativo pertencer à espécie humana. Procuro o autor da mensagem mas não encontro ninguém. Rio-me e levanto-me da cadeira. Daqui a pouco terei de atravessar a cidade e, nem sei porquê, isso entristece-me.
sábado, 21 de dezembro de 2019
Ocorrências
Nestes dias Portugal tem sido um país cheio de ocorrências. Não fora o mau tempo e nada ocorreria por cá. Somos um povo sábio dado à imutabilidade. Nove séculos de história ensinaram-nos a não correr para lado nenhum. Há várias razões para os povos marcharem a grande velocidade. Os germânicos e escandinavos labutam para combater o frio, dito de outro modo trabalham para aquecer. Os americanos possuem outra motivação. São um povo muito jovem, inocente e ainda em formação. Não sabem muito bem quem são e o querem. Por isso precipitam-se com fragor para o futuro, pois imaginam que lá adiante encontrarão respostas às suas perguntas, ilusão recorrente nos povos em início de vida. Os portugueses, porém, têm um clima temperado, por vezes demasiado quente, e nove séculos de história. Já nos tínhamos aposentado há muito do nosso trabalho histórico quando nasceram os Estados Unidos. Por tudo isto, e eu neste caso sou absolutamente português, não gostamos de ocorrências, evitamos sempre que podemos que alguma coisa ocorra. Contemplar o mundo a partir de uma sabedoria de nove séculos só nos pode aproximar da eternidade e na eternidade tudo é imutável. O pior é o mau tempo, pois com ele chegam ocorrências sobre ocorrências, como agora se chamam os incidentes provocados pela ira dos elementos, o que nos deixa irritados, pois fazem-nos descer do pináculo onde nos encontramos e tratar do que ocorre no mundo. As depressões climáticas deprimem-nos porque fazem ocorrer coisas onde nada deve ocorrer e nos retiram da nossa sábia contemplação da eternidade.
sexta-feira, 20 de dezembro de 2019
A agonia do Outono
Olho pela janela e digo estamos no Inverno. Depois observo a
palavra e gosto de a ver com maiúscula. Uma estação do ano não merece o
despropósito com que agora é tratada, tornando-lhe o início rasteiro, sem
perceberem que cada uma delas é um acontecimento único na sua repetição e que devem
ser consideradas como pessoas ou deuses, com as suas idiossincrasias, humores,
o ritmo secreto que as faz oscilar, o vigor ao entrarem em cena e o cansaço ao
despedirem-se da vida. A chuva persiste, constante na sua frieza, enquanto os
cedros do pequeno bosque ao fundo se erguem rígidos para o céu, indiferentes à
água que sobre eles cai. Na avenida, alguns transeuntes seguram guarda-chuvas,
mas correm a abrigar-se. Os carros passam, criam pequenos tsunamis que se levantam violentos e logo morrem, sem que nenhuma
devastação aconteça. É sexta-feira, embora o corpo não acredite que o
fim-de-semana se aproxima. Remexo-me na cadeira e medito no que ainda hoje
terei de fazer. Ao longe, o edifício do hospital lembra-me uma ruína, o sinal
de um mundo acabado que persiste difuso na memória dos vivos. Não pára de
chover e talvez fosse apenas isto o que queria dizer.
quinta-feira, 19 de dezembro de 2019
O último combate
O Outono despede-se invernoso, irado pela aproximação do dia em que o carrasco fará deslizar pelo seu pescoço o gélido fio da guilhotina. Visto da janela o espectáculo da resistência outonal faz recordar um velho guerreiro que trava o seu último combate. Há sabedoria no modo como maneja a lança da chuva e a espada do vento, há nobreza na face envelhecida que enfrenta a condenação. Indiferentes ou temerosas da refrega, as pessoas fecham-se em casa e, embrulhadas nas suas lareiras, sonham com dias primaveris, enquanto os gatos ronronam ao calor. Um ou outro louco caminha na rua sem guarda-chuva, encharcado, como se fosse um penitente que se lava na água caída dos céus. As iluminações de Natal derramam tristeza pela cidade e trazem à memória, como contraponto, os dias em que tudo era mais frugal e eu mais ingénuo. O vento percute a persiana e lá dentro uma velha canção de Natal deixa cair as notas sobre os presépios. A Virgem demora-se na espera e S. José, longe da carpintaria, parece inquieto e deslocado. O silêncio tomou conta dos seus corações como a água se apoderou da terra.
quarta-feira, 18 de dezembro de 2019
Sub specie aeternitatis
No facebook
alguém, para sustentar uma certa posição sobre determinado assunto, coloca um link para uma entrevista dada ao
Expresso por um especialista da matéria, a qual não vem ao caso. Como um cão
segue uma pista, também eu sigo a ligação e ponho-me a ler, até que que começo
a achar uma certa estranheza no conteúdo. Procuro a data e descubro que é de
2008. Não é a primeira nem a segunda vez que isto me acontece, mas hoje foi uma
revelação. O tempo foi abolido. A eternidade desceu dos céus, digitalizou-se e
passeia-se na terra. Não posso esconder que isso me perturbou um pouco. Cada um
tem um estilo e o meu passa por cultivar um certo anacronismo. Se tudo agora é
eterno, até o meu anacronismo se torna em sincronismo, que palavra
desagradável esta, apesar do seu pedigree
ser autêntico. Lá se vai o estilo perdido no magma da indiferenciação, foi a
reacção que se desenhou na minha cabeça. Há pouco entrei num café, sentei-me e
olhei à volta. Apenas duas mesas estavam ocupadas, cada uma por um homem a ler
o jornal, ambos mais velhos que eu. Estavam empenhados na leitura, voltavam as
páginas com uma certa ânsia. Suspeitei, não sem razão, que eles pudessem estar
a ler jornais de 2008 ou mesmo de antes. Seja o que for o que estivessem a ler
deve agora entender-se sub specie
aeternitatis, que é uma forma pretensiosa de um anacrónico sem-abrigo dizer
do ponto de vista da eternidade.
terça-feira, 17 de dezembro de 2019
Da ordem das coisas
Ao fechar a janela pensei que não tarda e os dias começam a crescer. Senti uma leve nostalgia do tempo em que não me ocorria se os dias eram grandes ou pequenos. Havia nisso uma aceitação do mundo tal como ele é e nessa aceitação residia toda a possibilidade de estar vivo. Depois, começa-se a sentir incómodo pelas temperaturas, mais tarde pelo excesso ou pela falta de luz, a seguir protesta-se, ainda que em segredo, contra o calendário, para se acabar numa recusa sem tino da ordem do mundo. Claro que quando se envelhece a ordem do mundo deixa de ser promissora. Nunca deixo de sorrir quando oiço aquelas pessoas, os cavaleiros do progresso e irmãos gémeos dos do Apocalipse, que proclamam a bondade que o futuro há-de trazer. A única coisa que o futuro traz é a morte e quanto aos que cá ficam terão como presente o seu quinhão de bem e o seu lote de mal, talvez distribuídos ao acaso, talvez fruto dos méritos, talvez vindos na barcaça da injustiça. Não esperava estar tão meditabundo. É o que faz fechar janelas quando o dia se perde no covil da noite. Daqui a uma semana é noite de Natal. A luz triunfará sobre as trevas exteriores até que tudo se inverta, enquanto a mecânica da universo não se cansar.
segunda-feira, 16 de dezembro de 2019
Uma bela aparência
Tenho nas mãos quatro livros e todos eles, com as suas capaz magníficas, são objectos que não apenas pedem para serem comprados como exigem que se lhes toque como quem toca a pele do objecto do seu desejo. Esta frase, com o seu aroma psicanalítico, deveria ser censurada. Haverá uma relação entre o objecto livro e o que nele está escrito? Também no mundo dos vinhos há garrafas e rótulos que pedem para serem comprados. Nesta relação entre o conteúdo e a forma como ele é apresentado não há apenas um truque para enganar o comprador incauto. É plausível que quem se preocupa a fazer excelentes vinhos cuide da sua apresentação. Também as editoras que escolhem certos autores terão um cuidado acrescido na forma como apresentam as suas obras. Uma certa consciência ingénua vocifera dentro de mim. Ainda não sabes que deves distinguir a aparência da realidade? Olho para ela com desdém e pergunto-lhe se não sabe que já não tenho idade para me preocupar com a realidade, que não há coisa melhor no mundo que uma bela aparência? E se o vinho não prestar ou se o livro for ilegível? Paciência, não podemos querer tudo.
domingo, 15 de dezembro de 2019
Não cair em tentação
Acordei a meio da noite e para combater a insónia abri o
romance Os Enamoramentos, de Marías. Agora que passei a fronteira do primeiro
terço da obra começo a vislumbrar por que razão Maria Dolz, a narradora, me envinagra
levemente o ânimo. Não sei o que me reserva o que falta do texto, mas aquela
não é uma mulher plausível. Desconfio que seja um travesti. Que não seja mal
entendido. Um travesti mental. Os homens deveriam ter cuidado em colocarem-se dentro
da pele das mulheres e inventarem discursos que imaginam serem o delas. Se
forem perspicazes, o melhor que conseguem perceber é se estão ou não diante de
um pensamento feminino, mas sem a pretensão de ultrapassar uma visão muito
genérica e exterior da gestalt desse pensamento, cuja composição interior, pela
complexidade, lhes escapa. Talvez seja eu que tenha uma perspicácia diminuta e
não interprete como devia a atracção que a narradora sente pela boca de Díaz-Varela,
o homem a quem as mulheres sem dificuldade se dobram, mas cujos lábios possuem
um recorte feminino que tanto a fascina. É natural que eu não seja levado a
sério. Com tantas coisas a fazer neste mundo, com tantos tortos a endireitar,
com tanta gente a libertar, e eu de candeias às avessas com o perfil
psicológico e a verbosidade de uma mulher que só existe no papel. O dia está
tristonho, um pombo poisou agora no parapeito da janela e, mais uma vez, tomo
consciência que não nasci para salvar a humanidade. Num caderno apontei: nunca
ter a tentação de escrever do ponto de vista de uma mulher. Não apenas por
falta de talento, mas por
impossibilidade ontológica e assim acabo com um ar pretensamente filosófico. O
pombo cansou-se do poiso e foi contemplar o mundo para outro miradouro.
sábado, 14 de dezembro de 2019
Não me faltam temas
Por fim uma boa notícia. Depois de semanas a desafiar a
minha paciência, a balança cedeu uns hectogramas. Sublinhei alto o sucedido e
disse que a meditação transcendental e a recitação do mantra estavam a dar
efeito ou, alternativa mais científica, que o facto de ter mudado a pilha à
balança refreou o seu ímpeto para me vexar. Ouvi um gélido é verdade, esta
semana foi mais agitada e não jantámos um único dia fora de casa. O meu olhar
ficou parado no vazio. Este senso comum irrita-me. Ainda pensei retorquir sobre
a falta de elevação espiritual do comentário ou a pouca crença na ciência que
nele havia, mas calei-me, antes que a conversa derivasse sobre a necessidade de
fazer exercício para disfarçar a barriga. Este tema também me está a irritar e
parece que não tenho outro. Ora isso não é verdade. Temas não me faltam. Aliás
tenho mesmo uma lista de assuntos a tratar. O que acontece é que muitas vezes
não sei onde tenho a lista e outras esqueço-me dela. Na lista, para que não se
pense que estou a mentir, está como assunto o agastamento que a narradora de Os
Enamoramentos, de Javier Marías, me
está a causar. Estou farto da opinião da senhora, se é que ela pode entrar na
classe das senhoras. Este tema, o da classe das senhoras, é delicado e as
minhas opiniões poderiam ofender alguém. Uma sirene anuncia um paciente
a caminho do hospital. Eis uma matéria que não consta na minha
lista e, por isso, sobre ela não falo. Logo vem o meu neto. Espero que ele
queira falar comigo.
sexta-feira, 13 de dezembro de 2019
Um problema de consciência
Olhei para a rua e pensei que devia enfrentar este tempo
incerto e fazer uma caminhada. A necessidade de andar tornou-se um pensamento
recorrente nos últimos meses e chego a temer que se transforme numa obsessão.
Quando tomo consciência de que estou a pensar nisso, encolho os ombros,
sento-me à secretária e espero que outra coisa venha ocupar-me o espírito. Se o
malfadado pensamento persiste, sou mais drástico, encho o peito de ar e fecho a
janela. A minha consciência diz-me que não devia escrever coisas como estas,
pois o fitness, que o estrangeirismo
me seja perdoado, não deve ser objecto de ironias de mau gosto, ainda por cima vindas
de alguém que anda sempre em conflito com a balança e a leitura que esta se
atreve a fazer da realidade. Vale-me olhar com condescendência, se não com
desprezo, para a minha consciência. Toda a gente estima muito a consciência que
tem, não havendo no mundo melhor que a sua. Por mim, vendia a minha ou, se
ninguém a comprasse, deitava-a num daqueles depósitos que recolhem materiais
usados para reciclar. Não para que ela possa ser reutilizada, mas para não
poluir mais este pobre planeta, que geme e arfa sob as poluções nocturnas de
consciências inquinadas, que não param de distribuir sentenças e bons conselhos
por tudo o que é sítio. Uma réstia de sol ilumina as paredes da escola ao fundo
da rua. Convida-me a sair de casa e ir caminhar cidade fora. A continuar com
pensamentos destes ainda tenho de marcar consulta no psiquiatra. Talvez todas
as sextas-feiras sejam dias de paixão.
quinta-feira, 12 de dezembro de 2019
Rebelião
Ataranta-me a proliferação de senhas que os diversos sites com que interajo me obrigam a coleccionar. Não fora perigoso e criaria um herbário onde colocaria cada uma das senhas e a respectiva catalogação. Assim tenho de recorrer ao registo mnésico para poder entrar e sair de portas e portões onde a vida me faz entrar. Poderia ser como aqueles loucos benignos que possuem uma memória prodigiosa e que sabem de cor a lista telefónica de uma zona ou os resultados, jogo a jogo, do campeonato nacional de futebol desde que ele começou até aos dias de hoje. A loucura ainda não é a casa onde habito, mas nada me diz que não venha ser, por muito que me custe. Já a memória vai fenecendo dia após dia, num trabalho de rasura que começa pelas coisas mais recentes e, como uma onda, se vai propagando pelo passado. Enlouquecido e desmemoriado está o aquecimento desta casa. Para o tratar puseram-lhe um termóstato novo. Parecia ter serenado, trabalhava segundo a programação feita, não se esquecia dos parâmetros. Teve porém uma recidiva e trabalha furioso. Tenho de lhe pôr um colete-de-forças e mandá-lo internar, antes que morra de calor. Aborreço-me quando as coisas decidem ter autonomia e agem por conta própria, quando exibem uma contumácia de propósitos que contrariam as ordens que lhes prescrevo. Conheço pessoas que se pudessem ordenavam o mundo segundo os seus critérios e só assim ele, na sua opinião, seria perfeito e não o caos que é. Não me incluo nesse universo de ordenadores do mundo, mas também era evitável que meras maquinetas se rebelassem contra a minha vontade.
quarta-feira, 11 de dezembro de 2019
Do Inverno que se aproxima
Já faltam poucos dias para que o Inverno triunfe sobre o Outono e alcance o primeiro lugar no grande campeonato das estações do ano. Esta estratégia retórica baseada numa analogia pouco vigorosa não deixa de fazer pensar que a natureza tem uma certa inclinação para a repetição e para a igualdade. A vitória de hoje é a derrota de amanhã e vice-versa. Pena é que o mundo dos homens não seja assim. Não por uma questão de justiça, mas pela perfeição que há em tudo o que é cíclico. Os gregos antigos – alguns, para não fazer uma generalização precipitada – tinham grande veneração por tudo o que tivesse a ver com círculos e esferas. Em Portugal, também se manifesta esse tipo de amor como se pode ver pela sábia proliferação de rotundas. Todas estas derivações quase me faziam esquecer o assunto. O Inverno e o seu triunfo iminente. Imagino-o com mantos de neve, frios glaciais e lareiras acesas. A imaginação é muito mais poderosa que a realidade. Aqui neva tão raramente que é preciso que os deuses estejam muito distraídos. É um Inverno insípido e triste que me dá vontade de fincar os pés no Outono e impedir o calendário de perder as folhas. A realidade nunca tem a mesma medida que os nossos desejos.
segunda-feira, 9 de dezembro de 2019
Da interpretação dos sonhos
Um acaso levou-me a um texto escrito em português mas com um
vocábulo alemão por título. Traumdeutung,
interpretação dos sonhos. Invejo as pessoas que têm sonhos para interpretar.
Muito raramente me recordo de um e quando isso acontece, vejo-o apagar-se e
voltar para o esconso lugar de onde veio, privando-me da arte da interpretação.
Quem não tem sonhos para deles fazer hermenêutica é uma espécie de ocioso
psicológico ou, no pior dos casos, um indigente da psicologia, que nem um sonho
tem para contar. A noite chegou e aquilo que estive a fazer não me deu o melhor
dos humores. Talvez aqueles que não têm sonhos para submeter à busca da sua
significação devessem tentar interpretar a variação de humor que sofrem. O
gargalo da noite partiu-se e os demónios saíram da garrafa, saltitam pelas ruas
sempre prontos a tentar as almas que vão por aí transidas de frio. Como todos
sabem, o material das almas é muito sensível à temperatura. Muito calor, elas
evaporam-se. Muito frio, e elas encolhem tanto que o seu proprietário parece um
desalmado. Se eu tivesse um sonho para interpretar escusava de estar a falar daquilo
de que não se pode falar. O melhor é seguir o conselho do senhor Wittgenstein e
calar-me.
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