segunda-feira, 31 de março de 2025

Um dia com a Primavera

Saí de casa, de manhã, vestido para enfrentar a Primavera. Não falhei. Estava mesmo na rua, esperava-me. Olhou-me nos olhos e, se nos meus existia uma vontade de guerra, os dela eram habitados pela mais pura benevolência. Isso dissuadiu-me e, de imediato, me dispus a um pacto. Andámos juntos o dia inteiro. Não sei se fui boa companhia, mas ela foi excelente. Custou-me, ao voltar para casa, deixá-la na rua. Convidei-a, mas recusou sem acinte. Que não podia entrar, uma estação de ano, disse-me, habita na rua, é um sem-abrigo, acrescentou, rindo-se. Depois, referiu, como por acaso, que não sabia se ia estar nos próximos dias. Também ela tem afazeres fora de portas e é possível, disse, que vá primaverar para outras paragens. Não comentei, mas, chegado a casa, fui ao site meteorológico. A vida é o que é. Uma boa amizade e logo ela tem de ir dar uma volta sabe Deus para onde. No seu lugar, haverá chuva e mais chuva, numa saudade invernosa. Não se desse o caso de ele estar morto, era com o Inverno que iria conflituar. Assim sendo, resta-me aceitar o que vier, sem protestar nem reivindicar seja o que for. As estações do ano são deusas volúveis e a sua vontade depende de um arbítrio que nem os meteorologistas conhecem.

domingo, 30 de março de 2025

Um domingo mais

Saí depois de almoço. A cidade estava iluminada por um sol dominical. Tudo nela cheirava a um domingo de província. Senti-me em casa, pois é na província que os provincianos se sentem chez-soi. A expressão francesa foi para dar um ar de culto. Uma aparência, é mais exacto do que ar. Movemo-nos no mundo ostentando as aparências que construímos. O que é uma aparência? Eis uma pergunta ontológica. Qual o ser da aparência? Ora, o ser da aparência é aparecer. Aparecemos como uma persona – uma máscara – envolta numa história que não cessamos de contar, de inventar, de alterar. Não fora o caso de eu ser finito, a história que inventaria sobre mim seria infinita. Sempre a contar uma coisa diferente da anterior, a reescrever a biografia, para que ela fosse cada vez mais exacta, isto é, para que ela fosse cada vez mais uma melhor falsificação. Há falsificações tão boas que aparecem aos olhos dos especialistas como verdadeiras. O grande falsificador da sua biografia é aquele que torna a falsificação verdade. Não devia pensar estas coisas num domingo de província, mas o pudor que me devia conter sumiu-se. Uma coisa que acontece muito neste mundo, o sumiço das coisas. Elas estão aí, muito seguras de si, muito exuberantes na sua dimensão ontológico e, como por encanto, evolam-se, perdem o ser. Foi o que aconteceu ao meu pudor. Isto está de acordo com a ordem do mundo. O pudor perdeu a boa imprensa. Quem, nos dias que correm, acha dignidade no pudor? Ninguém. Perdi-o, também, e agora falo de coisas da minha biografia, embora, desconfie que não tenho biografia. Porém, o facto de ter usado a expressão chez-soi e ter-me confessado um provinciano – isto é, um homem sem mundo – poderá ser um indício forte que tenho uma biografia, embora falsa, o que é a mais verdadeira das biografias. Os domingos na província – mas também nas capitais – dão nisto.

sábado, 29 de março de 2025

Ir ao teatro

Mais logo, depois de jantar, irei ao teatro. Confesso que o apetite é nulo. Nem sei o nome da peça. Por vezes, temos obrigações, e as obrigações funcionam como um imperativo: obrigam. É o caso. Não que houvesse qualquer problema em faltar a essa obrigação, mas seria deselegante. Na verdade, trata-se de uma obrigação estética. Evitar ser deselegante com terceiros. Há a possibilidade desses terceiros nem darem por isso, mas é tarde, para mudar de ocupação neste sábado à noite. Sempre podia ficar em casa e dormitar em frente ao computador. Era uma opção razoável, mas menos elegante. Não tenho qualquer conflito com a arte dramática. Pelo contrário. Talvez um sábado de Primavera não seja o mais indicado para assistir a uma peça, ainda por cima a uma peça de que não sei o nome, tão pouco o autor. Não, não é Shakespeare, nem Sófocles ou Eurípides. Nenhum clássico antigo ou moderno. Nenhum clássico contemporâneo. Nenhum contemporâneo que possa tornar-se um clássico. A partir de certa altura da existência, comecei a cortar os laços sociais, o que me trouxe alguns benefícios, como a diminuição do número de eventos a que teria de ir por boa educação. Como se prova pela noite de hoje, esse corte foi apenas parcial. Serei um misantropo? Não. Não alimento qualquer ódio à humanidade, apenas uma consideração realista da sua natureza. Onde a aprendi? No lugar mais indicado para fazer essa aprendizagem: em mim. Em mim, vejo os outros. Nem comigo me desavim, ao contrário do que aconteceu com Sá de Miranda, mas olho-me com condescendência e é esse olhar condescendente que espalho sobre a humanidade em geral, enquanto penso que a realidade é aquilo que é e não aquilo que desejo. Fico sempre espantado quando oiço alguém dizer que não queria ser outra coisa. Penso longo que sofre de um défice acentuado de imaginação. Eu não sou aquilo que desejo, mas apenas o que sou. O meu desejo é infinito e o meu ser é finito. E é por causa dessa finitude que logo vou ao teatro.

sexta-feira, 28 de março de 2025

Cansaço de santo

Caso não se trave o ânimo primaveril, não tarda e estamos em pleno Verão. Já hoje tive calor e pensei que me tinha enganado na roupa. O que me perturba, porém, é S. Pedro. Foi-lhe atribuída a função de regular o clima, mas ele está cansado da tarefa. Constou-me que já se quis reformar, mas foi-lhe recusada a aposentação. O cargo é vitalício, disseram-lhe. E se um santo conquistou a vida eterna, então o seu cargo é para toda a eternidade. Talvez tenha ficado atarantado com a ordem das coisas e começou a descurar a função. Há quantos anos desapareceu aquela idílica regularidade com que as estações coincidiam com o calendário? Há tanto tempo, que nem eu já me lembro dela. Parece, por outro lado, que é imune a preces e procissões para restaurar a velha ordem. Não quer ser acusado de corrupção e participação em negócio ilícito. Não cederá, por mais que o tentem demover através festas e orações. Consta que passa anos e anos a olhar cá para baixo, tentando reconhecer o sítio onde nasceu, onde viveu, onde conheceu o Mestre. Sofre de nostalgia, disseram-me. Não quer saber se o Verão chega na Primavera ou no Inverno. Queria reformar-se e cultivar, sem preocupação, as memórias, antes que desapareçam, pois mesmo para um santo mergulhado na vida eterna, as memória são passageiras.

quinta-feira, 27 de março de 2025

Nada

Acabei de chegar de uma caminhada, pequena, não vá ficar com uma preparação para as olimpíadas. Tornei-me um aristotélico inveterado. O lema é: nada em excesso! Escrito isto, pergunto-me se o uso do ponto de exclamação não será já um excesso. Não será o ponto de exclamação um extremo, que tem no outro lado do eixo o ponto de interrogação? O excesso de enfatização, de um lado, e o excesso de dúvida, no outro. O sinal gráfico aristotélico, por excelência, seria então o ponto. Nem a dúvida dos cépticos, que não param de colocar pontos de interrogação, nem a certeza exuberante dos fanáticos, que cultivam a exclamação. Isto significa que a afirmação nada em excesso! É já um excesso. Deveria ter escrito apenas: nada em excesso. Estava eu tão pronto para falar da minha moderada caminhada, do pecúlio de pontos cardio – aqueles que sobre os quais a OMS diz terem o poder de prolongar a vida, caso se atinjam 150 por semana –, das árvores que começam a florir, e eis que a minha mente, como um macaco enjaulado, me desvia, com um salto mortal, o pensamento para a questão da moderação no uso dos sinais de pontuação. Coisa que não interessa a ninguém, nem a mim próprio que, apesar do justo meio – ou da mediocridade, para ser mais exacto –, sou dado, em certo dia da semana, à hipérbole. Se se tivesse paciência e espírito de entomologista ou botânico, depressa se descobriria que o uso de figuras de estilo – ou tropos – varia conforme os dias da semana. Há dias específicos para se ser hiperbólico. Outros para usar metáforas. As sextas-feiras são-me propícias para os oxímoros. Também há dias próprios para as anáforas, bem como para as metonímias. Tudo usto entre segunda e sexta. Sábado e domingo são dias de descanso e as figuras de estilo também têm o seu direito ao repouso. Todo o discurso é, nesses dias, despido de desvio, quero dizer: uma procissão de catacreses, que é como quem diz metáforas mortas. Até ao último ponto final escrevi 332 palavras para dizer o que disse, isto é, nada. Mas não é este o destino da linguagem humana? Coloquemos o caso do seguinte modo. Imaginemos que Deus existe e usa a linguagem. Então, Deus diz laranjeira, e logo surge uma bela árvore carregada de laranjas. Eu digo laranjeira, e não surge nada. O que prova que não passo de um mortal com uma linguagem virada para nada.

quarta-feira, 26 de março de 2025

De vício a virtude

Está confirmado. Estamos na Primavera. O tempo hesita entre o frio e o calor. Isso tem repercussão sobre o meu corpo, mas guardo para mim as dores, pois são mais desagradáveis do que dolorosas. Estive a ouvir o antropólogo e historiador francês Emmanuel Todd sobre a relação entre as formas de família e os regimes políticos. Estes são, de alguma maneira, uma emanação do modo como as famílias se organizam. Estas transportam em si valores culturais e políticos, que se manifestam na organização dos Estados. Todd põe em causa a ideia de um regime universal, isto é, idêntico em todos os lados. Quando determinadas potências tentam transferir regimes políticos para outras paragens, por norma não são bem sucedidas, pois não têm em conta aquilo que ele denomina por inércia antropológica. Bastava esta expressão para ter valido a pena ouvir o antropólogo francês. É verdade que temos também uma mobilidade antropológica, mas a inércia talvez seja mais persistente. Quando era lamentavelmente jovem e verde, habitava-me a mobilidade. Na adolescência, esse amor à mobilidade centrava-se nos grandes-prémios de Fórmula 1, nas míticas 24 Horas de Le Mans ou nas 500 milhas de Indianápolis. Era a minha forma de amar a mobilidade, sentado em frente ao televisor ou a ler as reportagens num jornal ou revista da especialidade. Isso, a mobilidade, teve, numa certa altura, uma tradução política, coisa que não vem para o caso. Olhando a partir dos dias de hoje, constato que as corridas de automóveis não me interessam há décadas, nem a tradução política da mobilidade, mas a inércia antropológica foi tomando conta de mim. Não, totalmente. Ainda caminho e, acima de tudo, mexo os dedos para digitar estes textos, mas a palavra inércia soa-me cada vez mais a virtude e cada vez menos a vício.

terça-feira, 25 de março de 2025

Um demónio que é um daimon

Alemão é uma das muitíssimas coisas que ignoro. Não vou, porém, escrever sobre o oceano infinito da minha ignorância, mas da minha possível adicção à compra de livros. Não sei bem a razão, mas tomei conhecimento da existência de um poeta alemão de nome Durs Grünbein. Agradou-me o que soube dele. Faço umas pesquisas e decido comprar – num livraria online de livros usados – cinco das suas obras. Todas em alemão. A minha expectativa é de ir traduzindo os poemas com recurso a essa demónio dos tempos  modernos denominado inteligência artificial. A verdade é que a tarefa nem me parece estar a correr mal. Entre mim e o tal demónio estabelece-se um diálogo frutuoso que me permite não apenas compreender os poemas, mas chegar a traduções que me parecem interessantes. O demónio faz apenas uma primeira tradução literal, meramente funcional. A partir daí funciona como uma espécie de dicionário-gramática de largo espectro, com o qual discuto sobre o sentido das palavras e dos versos. O primeiro livro que estou a enfrentar denomina-se, em português, Porcelana. Poema sobre a queda da minha cidade. Os primeiros dois versos do primeiro poema dizem: Para quê lamentar-se por nascer tarde? Há muito desaparecera / A cidade-natal, amigo, quanto a tua pequena pessoa chegou. A cidade é Dresden. A porcelana do título remete de imediato para a fragilidade das coisas belas. A beleza de Dresden desaparecera dezassete anos antes do poeta nascer. Eclipsara-se nos bombardeamentos de 1945. A beleza antiga de Dresden é irrecuperável, como é a de Lisboa anterior ao terramoto de 1755. Contudo, há belezas que estão perdidas em línguas que nos são estranhas, mas os tempos modernos que trouxeram os aviões e os bombardeamentos aéreos também trouxeram esse demónio – melhor, esse daimon (δαίμων) – que nos permite, com paciência e humildade, encontrar a beleza que está enterrada nos escombros de uma língua que desconhecemos, pois qualquer língua desconhecida não passa, para o ser humano, de escombros de uma comunicação que se distorceu.

segunda-feira, 24 de março de 2025

Animal ritual

Somos animais ritualistas. Talvez eu esteja a fazer uma generalização precipitada. Deveria antes afirmar: eu sou um animal ritualista. Dei por mim a cumprir um ritual que alimento há muito. Retiro com todo o cuidado, da contracapa de um livro, a etiqueta com o preço e colo-a no interior da badana da capa dianteira. Caso não exista esse prolongamento da capa e da contracapa, colo-a no verso da capa. Por que razão faço isto? Não faço a mínima ideia. Talvez o tenha feito uma vez por acaso e, sem motivo aparente, repeti o feito até que se tornou um hábito. Irrito-me, se a etiqueta se rasga e fica sem préstimo para a transferência. Poderia dizer que é para memória futura, para um dia poder comparar o preço dos livros, mas isso não faz sentido, pois cada vez será mais curto esse futuro e a comparação exigiria um cálculo da inflação entretanto ocorrida, o que me parece uma tarefa inútil. Se a minha generalização não for precipitada, se, de facto, formos animais dispostos para o ritual, talvez pudéssemos trocar a tradicional definição de homem como animal racional por homem como animal ritual. Somos mais propensos a rituais do que ao uso da razão. Se eu fosse um verdadeiro animal racional, evitaria escrever estes textos, cuja razoabilidade deixa muito a desejar. Mas não, eu sou um animal ritual. Habituei-me a escrevê-los. E todos os dias – ou quase – entrego-me ao rito. Escrevo textos como transfiro etiquetas da contracapa para o interior da badana da capa de um livro. Sem razão. Claro que o dr. Sigmund Freud não estaria de acordo comigo. Diria que sou movido por causas inconscientes. Um trauma de infância que me leva ora a escrever, ora a transferir etiquetas. Talvez ele tenha razão, mas não me ocorre qualquer trauma infantil. Claro, que não, diria o ilustre médico vienense, o trauma reside no fundo do inconsciente, está guardado no mais inacessível que há em si. A prova que o trauma existe, continuaria, são os seus rituais aparentemente sem sentido. Eu, então, olharia para o dr. Freud e no meu olhar haveria piedade e um clarão zombeteiro. E calava-me.

domingo, 23 de março de 2025

Meditações climáticas

Já em casa, olho pela janela e penso que a Primavera chegou hoje. Algumas nuvens pairam no céu, mas a luz solar cai, ainda indecisa, sobre a cidade. É esta indecisão que marca as estações benévolas. O Inverno e o Verão pautam a sua existência por uma dogmática contumaz. São o que são, afirmam. Não quero dizer que sejam sempre fiéis a si mesmos, mas são-no aos dogmas climáticos que os orientam. Isso acontece com todos os dogmáticos. São mais fiéis aos dogmas do que a si mesmos. Não me quero desviar do assunto. A Primavera – também o Outono – são marcados pela indecisão, por uma hesitação estrutural que os faz balançar entre Inverno e Verão. Meditam longamente sobre a sua natureza, mas nunca sabem muito bem o que são. Essa ignorância é benfazeja, uma graça benévola para os seres humanos. É uma douta ignorância. Primavera e Outono sabem que não sabem, enquanto o Inverno e o Verão, apesar de ignorantes, estão convencidos de que são sábios e por isso geram um clima cheio de moléstias. Nos quase quinhentos quilómetros que fiz hoje, apanhei, aqui e ali, Inverno, mas a generalidade da viagem foi feita sob os auspícios da Primavera. Talvez devesse falar de outra coisa, mas não me ocorreu nada. Talvez um protesto contra os gritos que as crianças emitem no parque infantil aqui ao lado, mas isso seria injusto. Se não gritarem agora, movidas por um entusiasmo autêntico, quando o poderão fazer? Nunca? Quanto o seu entusiasmo for já apenas uma encenação? Também elas têm direito a festejar a indecisão da Primavera, neste primeiro dia em que ela chega, ainda um pouco estremunhada. Como eu.

sábado, 22 de março de 2025

Pulgões saltitantes

Quase 500 km debaixo de chuva para ver o neto jogar rugby. Não num jogo importante, pois nada idade dele jogos são jogos, sem classificação de importância, mas naqueles torneios que servem de convívio entre criançada de diversos países. Vindo ontem, hoje vi dois, dos três jogos – o primeiro foi demasiado cedo. As partidas são de 15 ou 20 minutos. A equipa portuguesa a que ele pertence, o CDUL, está a milhas de distâncias das espanholas com que jogaram. Os sub-oito espanhóis são mais altos, possantes e tecnicamente muito evoluídos. Os portugueses pareciam pulgões saltitantes perante miúdos bem mais adultos no jogo. Num dos jogos, a certa altura, o meu neto, nos seus seis anos e meio, é abalroado por um adversário bem mais alto e muito mais pesado. Conseguiu parar a jogada, mas nem percebeu o que lhe aconteceu. Levantou-se, choramingou, foi substituído e passados uns minutos entrava de novo. Pensei que tudo aquilo lhe fazia muito bem. Aprender a lidar com a dor, a resistir às contrariedades. Isto para além do convívio com colegas e adversários, bem como com as regras que qualquer desporto impõe, e que o rugby não é excepção. Pelo contrário. Depois, ele desapareceu com a equipa e os avós e os pais foram tratar da vida sem rugby. S. Pedro foi benévolo com os jogadores. Numa Espanha inundada, não enviou chuva durante toda a competição. Reservou o seu ímpeto lacrimoso para a tarde. Em vez de estar por aí a passear, estou confinado a escrever, enquanto oiço a avó a falar como uma outra neta, indicando-lhe não sei o quê sobre a escola, esse martírio que a espécie humana inventou para massacrar as novas gerações, com a esperança – infundada, diga-se – de as civilizar, como se entre escolaridade e civilidade existisse uma relação de causa-efeito. Não há. Haverá uma correlação, mas talvez nem seja muito forte. Espero que a chuva dê tréguas, pois o que me apetece é deambular por aí, sem destino, ao sabor da gramática da cidade. S. Pedro tem piedade destes portugueses – não são poucos – que vieram atrás dos filhos e dos netos.

sexta-feira, 21 de março de 2025

Intervalo

Chegou o fim-de-semana. Existe neste um problema estrutural. É curto, demasiado curto, uma espécie de intervalo entre as duas partes de um jogo de futebol soporífero, a que o espectador assiste por dever ou devoção clubista. A vida semanal não passa desse jogo, em que uns participam por dever e outros por devoção, ambos movidos pela necessidade. Ora, o problema é que a necessidade é o que se opõe à liberdade. Sempre que alguém se move por necessidade está a negar a sua liberdade. Não há, porém, ser humano que não esteja submetido a um império de necessidades, isto é, que não esteja escravizado à necessidade que o habita. O fim-de-semana é apenas o vestígio de um tempo mítico onde nós, os sapiens sapiens, vivíamos no Éden. Contudo, não descansámos enquanto não arranjamos motivo para cartão vermelho. O árbitro, impávido e implacável, não se fez rogado. Expulsão. Não houve tribunal da relação para apelo. O fim-de-semana é apenas o resultado de um acto de misericórdia desse mesmo árbitro, que se condoeu dos jogadores expulsos, mas não revogou a sentença. Onde me encontro não chove. Vou entrar nesse espaço onde a necessidade se suspende e a liberdade reina por algumas horas. Intervalo.

quinta-feira, 20 de março de 2025

Um grande descoberta

Consta que começou a Primavera, mas o Inverno insiste em continuar vivo. Não se pode recorrer à eutanásia, perguntei. A pobre estação contorce-se de dores, geme e grita como uma perdida. Alguém me disse – não vi quem: há dois problemas para eutanasiar o Inverno. Um de ordem religiosa e outro de ordem jurídica. A eutanásia é um pecado, por um lado; pelo outro, não foi legalizada neste país. Não quis entrar em controvérsia sobre religião ou política com quem não conheço, mas não me coibi de responder, embora sem ver a face do interlocutor, caso existisse algum. Respondi impante: Do ponto de vista religioso, não há qualquer problema. Uma estação do ano é destituída de alma, logo é permissível matá-la. Quanto ao aspecto jurídico, o problema ainda é mais fácil de resolver. Além de não ter alma, o Inverno também não tem corpo. Se for eutanasiado, não haverá qualquer problema com o corpo de delito. O que me espanta em toda esta história é a estação que já devia ter morrido continuar por aí, ainda por cima sem alma e sem corpo. Chegámos ao ponto fundamental desta comunicação, um ponto onde a falta de seriedade do assunto aterra num problema de ontologia fundamental. Tínhamos por um lado os seres corporais, tínhamos por outro os seres espirituais, puras almas, tínhamos, ainda, os seres compostos, aqueles que têm ao mesmo tempo corpo e alma. E isto completava o conjunto de seres possíveis. Ora, acabei de abrir uma brecha na muralha ontológica. Além desses seres que todos conhecemos, temos uma outra classe, a dos seres que não têm corpo e não têm alma, mas existem. A prova é eles manifestam-se. E se se manifestam, logo existem. É o caso do Inverno. Nunca ninguém lhe viu corpo, nunca religião alguma descobriu nele alma, mas mesmo assim ele existe, e, no caso actual, persiste, recusando-se a entrar para o túmulo onde deveria ser sepultado para toda a eternidade.

quarta-feira, 19 de março de 2025

Os abominadores da modernidade

Por motivos que não vêm ao caso, detive-me na leitura de análises sobre duas obras literárias distintas. O livro de poemas Quatro Quartetos, de T. S. Eliot, e  o romance A Parede, de Marlen Haushofer. Ora, um dos pontos comuns na leitura analítica dessas obras é representá-las como críticas da modernidade. Esta crítica da modernidade é recorrente na literatura e noutras artes. Pode-se mesmo afirmar que se há um tema que percorre a arte moderna é o da crítica à modernidade. Esta crítica que é um exercício de lucidez, pois torna patente aquilo que os tempos modernos têm de limitado e mesmo de malsão, é ao mesmo tempo um exercício de cegueira. A modernidade é investida com um aura luciferina, que está muito longe de ser ajustada à realidade. O que os artistas e a militância antimoderna não percebem é que sem essa modernidade, esses artistas e esses críticos não seriam nada, não passariam de artesãos e pregadores, segundo uma ordem que jamais dependeria do seu livre-arbítrio. Antes dos tempos modernos, o que existia era a idade média. E aquilo que estamos a começar a descobrir nesta aurora dos tempos pós-modernos parece pior do que as piores visões que foram pintadas sobre esses tempo pré-moderno. É provável que no espírito de todos os abominadores dos tempos modernos exista uma fantasia: os benefícios que usufruem trazidos pela modernidade seriam possíveis sem que se tivesse de pagar por eles. Esta doce fantasia pode ser uma porta aberta – já está a ser, basta olhar com atenção para o perceber – para que se percam os benefícios e no seu lugar não seja posto nada de mais saudável do que a loucura colectiva ateada por incendiários.

terça-feira, 18 de março de 2025

O indivíduo

A certa altura do romance Fuga sem fim, Joseph Roth escreve: Porém, Tunda também a aborrecia – era um homem sem energia, reincidente na ideologia burguesa, facto esse que se evidenciava notoriamente através da sua disponibilidade sempre mais forte para fazer amor. A aborrecida era Natacha, que de seguida partiria para Kiev, onde nascera. Há uma ironia em Roth: essa disponibilidade sempre mais forte para fazer amor é interpretada não como um excesso de energia, mas como falta. Natacha exigia-lhe uma transferência energética do sexo para a transformação social, mas Franz Tunda não se comove com os sonhos revolucionários e centra-se no prazer individual. Daí a acusação de ser reincidente na ideologia burguesa. Ora, esta só em aparência está ligada a uma classe social ou a uma casta, mas antes à afirmação do indivíduo, da sua singularidade. A busca do prazer sexual que fere a pobre Natacha é uma manifestação dessa afirmação do indivíduo sobre o todo. Talvez o melhor exemplo disso seja a obra do Marquês de Sade. A forma hiperbólica que nela toma a sexualidade – o exercício de uma pornografia orientada pela razão como processo de aumento do prazer do indivíduo – é o outro lado, embora muito mais radical, uma espécie de Terror erótico, da afirmação do indivíduo com a vitória do terceiro estado na Revolução Francesa, que não dispensou o exercício da guilhotina. A questão sexual é sempre muito perturbante porque ela representa a afirmação da singularidade radical do prazer do indivíduo em detrimento das construções sociais. O problema, na verdade, não é o sexo. É o indivíduo.

segunda-feira, 17 de março de 2025

Santa ignorância

A ignorância é o mais vasto de todos os oceanos, e, como se sabe, um oceano que se preze é excessivamente vasto. A ignorância que refiro é a minha, e o que desencadeou o seu reconhecimento foi não saber quem é – ou quem foi – Dag Solstad. Já não é, pois morreu na passada sexta-feira. E o que não sabia eu de Dag Solstad? Tudo. Não imaginava que existia alguém com esse nome. Para piorar as coisas, esse alguém foi um escritor norueguês, para tornar ainda pior o que já era mau, consta que é um génio literário, um digno sucessor de Knut Hamsun, talvez um rival Karl Ove Knausgaard. Tudo isso, até hoje, era para mim nada. Vejo-lhe a biografia na peço necrológica e, na verdade, noto alguns pontos de contacto com Hamsun. Uma certa inclinação para regimes políticos pouco dignos de consideração, mas de sinal contrário. Suspeito, porém, que Solstad se foi afastando dos delírios da juventude, coisa que acontece a muita gente boa e honrada, que não evitou certos pecadilhos quando as hormonas estavam carregadas. A nota necrológica aponta para dois autores com os quais partilha a sua forma de escrever. Um é o referido Knut Hamsun; o outro, o austríaco Thomas Bernhard. Ambos pertencem ao meu Olimpo literário. Será que Solstad também merece fazer parte dos olímpicos? Acabei de encomendar um dos seus romance. Eis um caso para resolver no futuro. Talvez não entre no meu Olimpo como um deus efectivo, mas, pelo menos, poderá passar lá algumas temporadas. Refiro-me, agora, ao egípcio Naguib Mahfouz. Em Entre os dois palácios, somos conduzidos numa visita à sociedade do Cairo durante e após a primeira guerra mundial. Mahfouz fixa o olhar numa família da classe média e, com a paixão de um naturalista, mostra-a no seu devir existencial – que expressão mais sem tino – e, a partir dela, leva-nos a suspeitar como será aquele mundo, cujos princípios nos são quase estranhos. Não descodifico aqui o quase, mas recordo que estamos em Portugal. E com este enigma edulcoro a minha ignorância, enquanto deixo que o crepúsculo me invada os olhos para anunciar o reino da Rainha da Noite, cuja área na Flauta Mágica, de Mozart, nunca me cansa.

domingo, 16 de março de 2025

Causas perdidas

O domingo deslizou em silêncio, e eu, sonâmbulo, deixei-me levar sem que uma resistência tenha erguido contra o despudor do tempo. A luta seria inútil, dir-se-á. Sim, é verdade, mas talvez as únicas causas que mereçam a luta são as que estão perdidas. Pode-se fazer um esboço de taxionomia das causa perdidas. Estas podem ser classificadas em duas grandes categorias. As que estão possivelmente perdidas e as que estão necessariamente perdidas. Grandes são os heróis que triunfam nas causas que estão possivelmente perdidas. Mas que maior heroísmo existirá do que combater em causas que estão necessariamente perdidas? Combater o tempo é uma dessas causas necessariamente perdidas. Não se trata sequer de aniquilar esse inimigo, mas de o reter um pouco, atrasá-lo, evitar que o desenlace se aproxime na hora que Cronos lhe destinou. Mesmo este combate está necessariamente perdido. Fosse eu um herói, como o foi Heitor ao defrontar Aquiles, teria acordado do meu sonambulismo e erguido uma muralha contra o tempo, o seu despudor, a sua argúcia inexorável. Contudo, preferi ir caminhar, deixar-me levar pelas fantasias que a corrente de consciência não se detém em trazer-me, para que eu me esqueça desse inimigo mortal que não pára nunca de trabalhar. Não fui talhado no mármore dos heróis. É uma pena, mas também não fui que me talhei ou escolhi a matéria de que sou feito.

sábado, 15 de março de 2025

Bocejos e espirros

Bocejo. O pós-almoço tornou-se um tempo difícil. Também o dia se endificultou. Que pena não existir o verbo endificultar. Dificultar diz-nos que algo se tornou difícil, mas se lhe juntar o prefixo en- dizemos o processo pelo qual uma coisa – neste caso, o dia – se tornou difícil. Quando saí de manhã, o dia não estava difícil, nem para mim nem para ele. Havia luz solar e um suave calor acompanhava os passos perdidos dos transeuntes por ruas, praças e avenidas. Depois de almoço, a disposição mudou e foi aí que o dia começou a endificultar-se, enquanto eu ia bocejando. Céu cinzento, chuva, algum vento frio. Tudo dificuldades desnecessárias. O sábado decretou-se, assim, como tempo de confinamento. Talvez esteja com saudades daquela época, tão longínqua, em que nos confinávamos em casa por causa de um vírus. O melhor é deixar essa memória retida nos arrabaldes da consciência, isto é, no subconsciente. Tê-la aí é útil por dois motivos. Em primeiro lugar, evitamos andar com a consciência viva do que foi uma coisa pouco agradável. Depois, é melhor que essa memória esteja à mão no subconsciente do que recalcada no inconsciente, que era como se não existisse. Se precisarmos dela, com facilidade retiramos de onde está e a trazemos para a consciência, para a usarmos, em caso de necessidade. Continuo a bocejar, os olhos querem fechar-se, nenhuma ideia me ocorre, a não ser coisas sem sentido: invenção de palavras, associações espúrias, memórias avulsas. Quando bocejo, o pensamento torna-se uma assembleia de assuntos avulsos (eis a assonância em exercício), coisas que saltitam na consciência e cuja finalidade não descortino. O melhor é ir dormir uma sesta. Acabei de espirrar. Talvez me tenha constipado. Ou talvez esteja a sonhar que me constipei. Devia evitar o uso de talvez. Há que fingir que se tem certezas e que elas resistem aos assaltos da dúvida, por metódica que seja.

sexta-feira, 14 de março de 2025

O caminho do Golgotá

Antigamente, era às quartas-feiras à tarde. Agora, o ensaio do grupo musical da escola aqui ao lado – parece um conjunto de animação de antigos bailes de província – passou para as tardes de sexta-feira. Um saudosista desfilar de músicas dos anos sessenta e setenta do século passado. A certa altura, comecei a ouvir We don't need no education / We don't need no thought control… Teacher, leave them kids alone / Hey! Teacher! Leave them kids alone! Pensei, levado pela ingenuidade – mas, como uma amiga salientava, ingenuidade depois dos 40 não é ingenuidade é burrice – que não seria a canção mais adequada para estar a ser cantada por professores numa escola. Depois, mudei de opinião. Os professores que formam o grupo têm uma idade tal que só saberão francês. Não sabem o que estão a cantar. Achei a explicação satisfatória – mais uma vez a questão da ingenuidade – e esperei que o ensaio acabasse, para poder abrir a janela e deixar o ar entrar, numa renovação que anuncia a Primavera. Entrou ar e sol, a música dos Pink Floyd foi tragada por coisas mais decisivas. Ontem, morreu Sofia Gubaidolina. Vai acompanhar-me este fim-de-semana. Como estamos na Quaresma, começo pela Paixão segundo S. João. Já há muito que não ouvia a sua música. Numa nota necrológica leio uma frase da compositora russa: a vida reduz o homem a tantas peças que não conheço outra missão mais séria do que ajudar, através da música, a reconstituir a sua integridade espiritual. Muitos são os caminhos da arte, mas nenhum será mais decisivo do que essa ajuda à reconstituição da integridade espiritual do homem. Haverá quem argumente que isso será atribuir à arte uma finalidade estranha a ela própria, um ataque à autonomia da arte. Ora, a arte é uma das manifestações essenciais do espírito humano, e se arte se põe como fim ajudar essa restituição da integridade espiritual, ela está a ajudar-se a si mesma, a procurar a sua integralidade, a enfrentar a fragmentação que a conduz a uma irrelevância no destino dos homens. Os dias estão já bastante grandes. Uma luz amistosa desce sobre a praceta. Adolescentes jogam à bola e eu oiço a Paixão. Um baixo, um barítono e dois coros encenam o caminho de Cristo para o Gólgota.

quinta-feira, 13 de março de 2025

Palavras

Fechei as janelas e a noite ficou a dormir lá fora. Aqui é como se dia fosse, mas de luz temperada, nada de excessos, sóis de brilho cauteloso, não vão os olhos ficar ofuscados e nem capaz seja de ver aquilo que escrevo. E se há coisa conveniente neste mundo – e talvez noutros – é ver bem aquilo que se escreve, não vão as palavras arrastar uma sombra ou mesmo um véu negro, talvez uma mantilha escura como breu. Há uma diferença fundamental entre as palavras ditas e as escritas. As que saem da boca, o vento leva-as. Mesmo se alguém as ouve, elas perdem a solidez, tornam-se vestígios agarrados na memória, e não há coisa menos digna de confiança do que a memória. As palavras escritas, porém, enquanto permanecerem escritas, ficam ali, firmes, sólidas, prontas a ser reactivadas por quem as lê, e até a má literatura encontra quem a leia. A minha descrição da liquidez da oralidade só numa primeira aproximação faz sentido. Se eu estivesse em disputa comigo mesmo, diria: e se as palavras ditas forem gravadas? Não ganham elas a solidez da escrita? E teria de concordar que as palavras podem tornar-se sólidas, mesmo no estado gasoso. Os dispositivos de gravação de sons são, deste modo, formas de solidificação das emissões sonoras e, entre estas, de cada flatus vocis a que se dá o nome de palavra. Moral da história: quando se trata de palavras, todo o cuidado é pouco, mesmo se elas são ditas e não escritas. Não vá alguém estar a gravá-las. Temos de pensar nas múltiplas possibilidades e nas ameaças que se escondem nelas.

quarta-feira, 12 de março de 2025

Falar consigo mesmo

Fui apanhado. Estás a falar com o espelho, escutei. Desmenti. Não que eu vi bem, estavas a falar com o espelho. Silêncio. Ao desmentir não estava a mentir. Não estava a falar com espelho. Estava envolvido num diálogo comigo. O facto de estar em frente ao espelho foi um acaso. De há uns tempos para cá, dei por mim em diálogos comigo mesmo. Toda a gente dialoga consigo mesma mas essa conversa fica retida dentro de si, sem transparecer para o exterior. Fui apanhado. Não por estar a falar com o espelho, mas por falar sozinho comigo mesmo. Vais enlouquecer, ouvi. Talvez, repliquei. Ou talvez já tenha enlouquecido, atrevi-me a informar. Para Platão, pensar é um diálogo interior e silencioso consigo mesmo. O meu problema é que o diálogo interior e silencioso comigo mesmo está a perder algumas características que me permitiam parecer saudável. Está a exteriorizar-se e a tornar-se menos silencioso. Acabarei a falar sozinho pelas ruas? Quem me garante que não o faço já? Estes diálogos interiores e silenciosos que se exteriorizam e se tornam quase vocálicos são interessantes, pois sucedem à volta de coisas que me preocupam ou que me irritam, ou as duas coisas ao mesmo tempo. Nessas conversas comigo, o meu pobre ego é um herói, impante, destemido, glorioso. O interlocutor – o si mesmo – é pouco vocálico, parece perdido no discurso do ego, incapaz de o mandar calar. Por vezes, consegue uma aberta e sublinha que o melhor é prestar atenção ao que se está a fazer e, quando se está atento ao que se faz, não se fazem figuras tristes ao falar consigo mesmo, pelo menos de modo a ser apanhado desprevenido. A verdade é que gosto cada vez mais de falar comigo mesmo, e as conversas que entretenho comigo são as mais exaltantes. Estou a exagerar, mas tenho uma certa propensão para a hipérbole. Ora, falar consigo mesmo e ser hiperbólico não é cartão de visita que se apresente. Talvez já não existam cartões de visita, uma coisa extraordinária que houve em tempos, mas que nunca tive. Para me visitar, basto-me eu. A conversa será animada e, se descambar em disputa, a minha vitória está certa — também a derrota, mas o mundo está longe de ser uma coisa perfeita. Talvez devesse experimentar falar com o espelho; a ideia nem é má. Entre mim e a minha imagem especular há uma diferença tal que raramente reconheço naquele simulacro um reflexo meu.