sexta-feira, 6 de março de 2020

As memórias inúteis

Desembrulho devagar a sexta-feira, mas ela teima em contrariar-me a lentidão, apressada em chegar ao fim-de-semana. O telhado do pavilhão desportivo da escola ao lado reverbera, batido por um sol desavindo com a estação. Mais ao longe o pequeno bosque de cedros é já um pasto de sombras, ocupado pelos rebanhos da noite. Irrito-me com esta propensão para a metáfora fácil. Tivesse eu mão em mim e impor-me-ia uma escrita rasa, sem o pathos do desvio. Barulhos metálicos, como se escravos acorrentados arrastassem os pés pela calçada, chegam até mim. Rugosos, crus, quase acastanhados. Também devia evitar as sinestesias. Agora um momento de silêncio abriu o caminho por entre os rumores do mundo. Toco-lhe, sinto-lhe a transparência e recosto-me na cadeira à espera que uma revoada de anjos passe no céu. Pensei expulsar a humanidade destes textos, mas não posso deixar de referir o nome de Dharmottara, um filósofo budista que viveu no século oitavo em Caxemira. O que ele pensou não vem ao caso, mas lembrei-me da veneração que havia pela lã de caxemira e é essa recordação que contemplo. Tenho em mim muitas memórias que não servem para nada e são essas que cultivo para minha perdição. A que mais me espanta é a do vento a soprar defronte da escola onde aprendi a ler. Em nenhum outro lugar ele sopra assim. Tenho um rol não pequeno de tarefas para executar. O baloiço do parque voltou a ranger e eu ranjo com ele, irmanados na falta de sentido que nos anima.

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