domingo, 1 de março de 2020

Cultivar um jardim

Aos domingos à tarde, durante aquelas partes do ano em que a realidade tem um efeito devorador na vida, sou acometido por uma náusea que me enche o coração de um certo despeito e, confesso-o, desprezo por mim. Depois, com a aproximação da noite, o enjoo existencial passa e a vida conforma-se com o que tem de ser. As trevas tornam-se assim luz que ilumina a escuridão que há-de vir. Hoje, porém, a náusea recusou-me a sua presença e fiquei sem saber a razão. É certo que o meu neto esteve cá e que conseguimos já fazer em conjunto umas patifarias ingénuas só para irritar os circunstantes, o que significa que está a nascer aquilo que há-de ser, assim o espero, uma bela cumplicidade. Talvez tenha sido isso que me dissipou o fastio tradicional deste dia e mesmo quando ele foi para Lisboa a repulsa metafísica pela realidade já não teve poderes para se impor. Ontem comprei um livro do filósofo coreano Byung-Chul Han com o belo nome de Louvor da Terra. Um dia, escreve ele, sentiu uma profunda nostalgia da terra e então decidiu cultivar um jardim. Fê-lo durante três anos e o livro é uma meditação sobre essa experiência, na qual a terra, o revolver da terra é central. Em mim nada apela para que cultive um jardim, mas existem imagens muito arcaicas de terra revolvida, memórias dos cheiros que dela se desprendiam, mas não tenho alma de lavrador ou de jardineiro. Os pássaros meus vizinhos entoam um cântico. Distingo nele um hossana em louvor do céu. Também eles sentem nostalgia do seu elemento natural e, enquanto desenham estranhas espirais no ar, talvez cultivem o seu jardim suspenso. Mais ao longe distingo, num céu de antracite, os vultos negros de dois corvos. Sombras rápidas, carregadas de anos e de uma sabedoria antiga que não partilham com ninguém. Os dias vão crescendo, mesmo que a luz, nesta hora, esteja cansada e sonolenta. Passam das seis da tarde e ainda nenhum anjo poisou no telhado do prédio em frente. O que andarão a fazer, pergunto sem esperar que alguém me responda.

Sem comentários:

Enviar um comentário