domingo, 15 de março de 2020

Uma palavra vinda de longe

Hoje é domingo, pensei ao levantar-me. Havia sol nas ruas, mas a aplicação do telemóvel tratou logo de me esclarecer que a temperatura não chegaria aos vinte graus. Noutra altura, seria ocasião para ficar grato ao deus do clima. Uma vaga apreensão nasceu em mim, mas logo a afastei, esperando que o tempo se compadeça e dê uma ajuda. Agora, enquanto escrevo, olho para a rua, o céu cobriu-se de um manto de cinza que os raios solares têm dificuldade em atravessar. Novos hábitos começam a desenhar-se, constato.  Outros porém são difíceis de combater, como a tentação sem fim de levar as mãos à cara. É um exercício de vigilância difícil e nós, há muito, perdemos o hábito de nos vigiarmos. A partir de certa altura a autovigilância começou a ter má reputação, pois contraria um modo de estar espontâneo e a espontaneidade foi entendida como prova de ser autêntico. A vida, porém, contínua. No Facebook, descubro que a missa dominical da TVI é transmitida da Igreja de S. Pedro, oficiada pelo pároco local e pelo bispo da diocese para um auditório vazio. Num site noticioso sou informado que um homem foi assassinado à facada e que a Rainha Isabel II abandona o Palácio de Buckingham. Percorro uma edição online de um tratado medieval atribuído, primeiramente, a Hugo de S. Victor e, depois, a um anónimo cisterciense, companheiro de Bernardo de Clairvaux. Numa pequena introdução dizem-me que está redigido sem ordem nem método e, a partir de certa altura, cheio de repetições. Percorro-o rapidamente e encontro isto: e aquilo que fatiga o lutador coroa o vencedor. Repito para mim a mensagem e talvez ela baste para fazer esquecer toda a desordem que, segundo o editor, macula o texto ou as nossas vidas, acrescento. Alguém, ainda na Idade Média, deixou uma palavra para todos os tempos difíceis. E aquilo que fatiga o lutador coroa o vencedor.

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