quinta-feira, 5 de março de 2020

Tendência para a dissipação

Olho à minha volta e observo com demora as dezenas de livros que comprei nos últimos tempos. Há neles uma ameaça demasiado grande para ser ignorada. Entre o desejo que me levou a comprá-los e a possibilidade física de os ler vai uma distância tão grande que não tenho qualquer possibilidade de a percorrer. Há quem defenda a teoria de que perante uma vida sempre demasiado curta só se deva ler os clássicos, aqueles que o tempo canonizou. Racionalmente, parece-me uma boa ideia, mas entre a razão e o desejo há uma distância infinita. Por vezes, faço planos para ler aqueles romancistas portugueses que ninguém lê, os esquecidos do cânone ou então os filósofos que o tempo derrotou. Assim, levado pelo pela incongruência do desejo, vou comprando livros, empilhando-os conforme posso. O que em mim me espanta é esta capacidade para a dissipação, o cultivo de objectivos que nem ao diabo lembrariam, o poder de escolher sempre aquilo que não deveria escolher. Há em tudo isto uma libertinagem que não augura nada de bom ou sequer de remediável. Bem me avisaram que o desejo era mau conselheiro e pior que as tentações era não lhes resistir. Haverá alguém que leia O Prato d’Arroz Doce, de Teixeira de Vasconcellos, ou Memórias d’um Doido, de Lopes de Mendonça? Haverá alguém que saiba quem são os autores? Não, claro que não, mas esses romances repousam na minha secretária, como se chamassem por um derradeiro leitor e eu, suficientemente doido ou amante de arroz doce, existisse para lhes cumprir a última vontade. Tenho de ter uma paciência infinita para aturar estas idiossincrasias.

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