terça-feira, 18 de junho de 2024

Falência narrativa

Estava cinzento o dia quando me levantei. Caso se mantenha, pensei, depois de almoço, aproveitando o tempo sombrio, irei caminhar, o que me permitirá, depois, realizar as tarefas que tenha para fazer sem que a digestão se intrometa entre mim e mim. Não se pense que sou dado a almoços pesados. Pelo contrário, o meu almoço foi frugal, talvez mais frugal do que o de um monge cartuxo. O corpo, porém, tem as suas idiossincrasias. Plano baldado, pois o sol rompeu e pairava no ar a ameaça de calor naquela hora. Entretive-me a fazer isto e aquilo, coisas práticas que me impunham estar de pé, e, depois, voltei para as minhas tarefas. Quando o que um narrador tem para narrar é isto, o melhor que terá a fazer é fechar a loja e inscrever-se no fundo de desemprego da associação de narradores em falência narrativa. Não o faço, pois há sempre a esperança de ter alguma coisa para contar, nem que seja que recebi um vídeo do meu neto a saltar de uma rocha para o mar ou a notícia de que a minha neta mais velha foi fazer análises e um electrocardiograma, pois vai ser operado ao septo nasal. O dia está ventoso, o sol anémico e na rua não passa ninguém, talvez ela tenha sido proibida aos peões, depois de ter sido proibida aos carros. Estou a mentir. Apenas proibiram a circulação nos dois sentidos. As acácias projectam a sombra nos muros da escola aqui ao lado, sombras inquietas, movendo-se para a frente e para trás. O silêncio foi quebrado pelo ladrar de um cão. Ainda é cedo para o crepúsculo.

segunda-feira, 17 de junho de 2024

Chamo-lhe Diotima

A nossa mente, ou a nossa consciência, é um macaco saltitante. Vai de assunto para assunto, numa indisciplina generalizada. Caso as mentes fossem ao serviço militar, nunca aprenderiam a marchar. O que vale é que aquilo que vai para a tropa é o corpo, muito mais fácil de adestrar. A minha mente pensou naquela história narrada por Platão em que um sacerdote egípcio dizia que os gregos eram crianças, faltava-lhes a profundidade do tempo. Não passavam de recém-nascidos. O mundo era, porém, muito mais antigo. Daqui, desta limitação das qualidades dos gregos, a minha mente navegou para O homem sem qualidades, de Musil. Abro o primeiro volume ao acaso e leio E foi sobretudo Diotima quem confirmou nele, por uma via diferente, este sentimento de que a superfície e o fundo da sua pessoa não coincidiam. O ele em que tal suspeita foi considera é Ulrich. No homem sem qualidades, podemos pensar, há uma descoincidência e talvez seja nesse não coincidir entre superfície e fundo, entre aparência e essência, numa versão mais filosófica, que as qualidades desaparecem. Depois, penso que me agrada o nome de Diotima, não que o desse a uma filha ou o desejasse para uma neta, mas enquanto nome de personagem romanesca é perfeitíssimo. Uma coisa estranhíssima, por falar em personagens romanescas. Estou a ler um romance do dinamarquês Henrik Pontopiddan. Tem por título Hans Kvast e Melusina. Pensa-se, de imediato, que a obra se centrará em personagens com esses nomes, mas não parece ser assim. As que surgem, e já li mais de um terço, denominam-se Hugo Maertens e Matilde. A sensação de estranheza é de tal ordem que fui investigar e os dados recolhidos mostram que é mesmo assim. Talvez, lá mais para a frente, surjam Hans Kvast e Melusina. Ou, então, será uma referência cultural que me escapa. Não sou dinamarquês. O romance não está publicado em português. Está no domínio público em dinamarquês e com os modernos meios de tradução consegue-se um resultado muito interessante. Em dois anos a técnica de tradução automática melhorou assustadoramente. E assim, a minha mente, saltando como uma macaca, pulou desde o assunto da mente até aos dispositivos técnicos de tradução. Tenho uma mente indisciplinada. Esta é a verdade crua. Não me parece que seja a melhor das mentes possível. Acho que lhe deveria chamar, à minha mente, Diotima.

domingo, 16 de junho de 2024

Um fungagá

Uma novidade por aqui. A alguém terá ocorrido que as pracetas públicas existentes entre os prédios era o local ideal para organizar uma festa de aniversário de uma criança. Será melhor para a criança e os amigos estarem na rua, correrem, gritarem e guincharem, formas plausíveis de exercitar os pulmões. É aborrecido para terceiros, mas há que ser caridoso. Os progenitores acharam por bem montar um insuflável para a criançada saltar e fazer aquilo que as crianças fazem nesse tipo de coisas. A caridade não se deve suspender aqui. O que é inaceitável é a montagem de uma coluna de grande potência que emite uma coisa que, por certo, chamarão música. Ora, não se pense que é música para crianças. Não é. É o tipo de música que adultos consomem, do pior que se possa imaginar. Suportar guinchos é uma coisa, ter de levar com o lixo sonoro que habita a cabeça dos nossos congéneres é outra. As pessoas não percebem o que é a justa medida. Estão convencidas de que pelo facto não ser legalmente proibido, durante as horas do dia fazer ruídos ou obrigar os outros a ouvir o mau gosto que nos corre no coração, também não é moralmente errado. Podemos distinguir entre ética e moral a partir de duas ideias. A ética refere-se ao modo como habitamos o mundo. A moral relaciona-se com o respeito devido aos outros. As duas coisas estão relacionadas e sempre que se observa o desprezo pelo respeito que se deve aos outros, pode-se desconfiar que a forma como se habita o mundo está longe de ser saudável. Enfim, isto está um fungagá e não é o da bicharada, é mesmo de seres humanos adultos. Terei e fechar a janelas. Ainda não decidi se este é o melhor mundo possível ou se é possível que exista outro mundo onde não se montem fungagás destes.

sábado, 15 de junho de 2024

Uma meditação involucionista

Em Túnis, nasceu ainda dentro do primeiro terço do século XIV um homem que haveria de morrer já no outro século no Cairo, e a quem deram um tão longo nome que não me apetece escrevê-lo. Ficou conhecido, para abreviar, com Ibn Khaldun, e é tido, não sei se com justiça ou se com excessiva generosidade, como um dos pais de diversas disciplinas das áreas das ciências sociais e humanas. A certa altura do seu Discurso sobre a História Universal diz O reino animal desenvolve-se, as suas espécies aumentam e, dentro do progresso gradual da Criação, termina no homem, dotado de pensamento e reflexão. O plano humano é atingido a partir dos macacos, nos quais existe sagacidade e percepção, mas que ainda não atingiram a reflexão e o pensamento. Dentro deste ponto de vista, o primeiro nível humano vem depois do mundo dos macacos; a nossa observação fica-se por aqui. É plausível a existência de quem veja em Khaldun também um precursor do evolucionismo darwiniano, mas o mais inquietante é a declaração final, a nossa observação fica-se por aqui. Será porque não haveria mais nada para observar para além do homem? Será porque o observador se recusa a observar mais alguma coisa? Talvez este contentamento com o observado dissimule um temor, aquele de descrever a existência de muitos homens que não usam nem o pensamento nem a reflexão, limitando-se a macaquear os próprios macacos ou nem isso, pois não é incomum encontrar exemplares da espécie humana a quem falta a sagacidade e a percepção que ele descortina nesses nossos primos. Isso implicaria que a um esboço de uma teoria evolucionista, ele teria de acrescentar o esboço de uma teoria involucionista, que começaria na degradação do homem em macaco, para a qual não faltam exemplos, seria seguida de descrições de quedas cada vez mais fundas, nas quais se chegaria aos homens protozoários e, entre estes, aos homens ameba, aqueles que parasitam o seu próprio intestino. Também eu, como Ibn Khaldun, fico por aqui. Para um sábado de Junho, esta minha contribuição para o conhecimento das coisas escondidas desde o princípio do mundo é suficientemente gloriosa e acrescentará, por certo, uma nova página na notável gesta deste cavaleiro andante sem destino nem cavalo.

sexta-feira, 14 de junho de 2024

Por falar em Pavlov

Continuam as experiências com um chatbot. Ele é a imagem do mundo, uma real projecção desse mundo que desagua na internet. Introduzi uma reprodução de uma pintura abstracta e pedi-lhe que me contasse uma história a partir dela. A sua inclinação para o kitsch parece inultrapassável. Numa terra distante e etérea, onde os limites entre a terra e o céu se confundem, existia um vale místico conhecido como as Planícies Sussurrantes. O vale estava envolto em uma névoa perpétua, escondendo os seus segredos do mundo exterior. Este foi o começo. Insuportável, o número de lugares-comuns. Nem continuei a leitura. Pedi-lhe então que me escrevesse uma história como se fosse Franz Kafka. Anuiu e devolveu-me este começo: Numa cidade sombria e claustrofóbica, vivia um homem chamado Gregório Duarte. Gregório era um funcionário de uma repartição pública, onde passava os seus dias a carimbar documentos e a arquivar papéis. A sua vida era uma rotina monótona e repetitiva, e ele sentia-se como uma engrenagem insignificante numa máquina colossal e indiferente. O pobre do Gregor Samsa surge metamorfoseada não num insecto, mas num português chamado Gregório Duarte, empregado numa repartição do Estado. Enfim. Não vou aqui contar todas as tentativas, nem sequer aquelas em que pedi que escrevesse ao estilo de Pessoa e, depois, de Saramago. Os chatbots têm uma lógica de resposta que os aproxima dos cães de Pavlov. Nós tocamos a campainha, e eles salivam. Coisa que acontece também com muitos seres humanos. Por enquanto, a arte humana está salvaguardada de concorrência. Por aqui, houve uma súbita animação. Os festejos de Santo António prosseguem, embora o que se ouve é uma cantiga popular ao S. João. Talvez devesse ir comer umas sardinhas. Isto por falar em Pavlov.

quinta-feira, 13 de junho de 2024

Linha do horizonte

Não o fazia há muito, mas hoje abri um dos cadernos de Eduína, com disposição de percorrer algumas páginas. De dentro, caiu uma folha manuscrita. Entre muros de pedra, a terra árida abria-se ao segredo do esquecimento. O vento, inflexível arauto do futuro, traçava sulcos na angústia densa inscrita na poeira. Pilares tocados pela brancura da cal vigiavam sonhos enterrados por cavaleiros sonâmbulos, pastores perdidos, amantes sem a tragédia do amor. A paisagem era uma recolecção de lembranças esculpidas no fundo esconso da memória, deserto rasgado por caminhos que se bifurcam e, como rios, desaguam no grande oceano do nada. A letra não é a de Eduína. É possível que seja uma letra masculina, talvez a de algum amante a quem ela poupou a tragédia do amor e, resignado, não teve a coragem de evitar a inclinação para o pathos que dorme no fundo do coração de todos os homens. Pergunto-me quais as razões que a levaram a guardar aquele bilhete. Piedade? É possível, mas não compreendo por que o guardou num dos cadernos que decidiu deixar-me como herança. Peguei no papel e coloquei-o ao acaso no caderno de onde caíra. Depois, guardei tudo, e fiquei a olhar o horizonte, mas não vi mais nada do que a linha do horizonte.

quarta-feira, 12 de junho de 2024

Do espírito e do mundo

Cresci numa velha tradição que Hegel, nos inícios do século XIX, sintetizou numa daquelas frases lapidares que têm uma fortuna sem fim, a leitura dos jornais é a oração da manhã do homem moderno. Naquela altura, o homem moderno era ainda muito jovem. Nietzsche, porém, décadas depois, achava que ler os jornais todas as manhãs à hora do pequeno-almoço não passava de uma imbecilidade parlamentar. Nietzsche não era um homem moderno ou, pelo menos, não o queria ser. Imaginava-se, presumo, um sobre-homem, o qual surge nas traduções como super-homem, mas esse só há um, o Clark Kent e mais nenhum. Hegel via na leitura matinal das notícias a possibilidade de auscultar a pulsação do espírito do mundo, o que é uma ruptura com a anunciação crística o Meu reino não é deste mundo. Hegel via na marcha do mundo o caminho do Espírito para si mesmo. Talvez quando o espírito chegasse a si, estivesse chez soi, como dizem os franceses, descobrisse a sua casa já num outro mundo e não neste, ou, então, o outro mundo é este, que é o melhor dos mundos possíveis, isto para nos atermos ao que outro filósofo alemão, Leibniz, proclamou e que, mais tarde, talvez na sequência do terramoto de Lisboa, Voltaire não se cansou de ridicularizar. Continuo a ler de manhã o jornal, já não em papel, mas online, embora não o faça ao pequeno-almoço. Não por respeito ao espírito de Nietzsche, espírito frágil que se desintegrou rapidamente, mas porque não me dá jeito. Continuo a ser um moderno, falha-me a paciência para os sobre-homens e, aos poucos, começo a conceder a Leibniz que este é o melhor dos mundos possíveis, até porque não tenho outro.

terça-feira, 11 de junho de 2024

Um problema de autoria

Hoje, a certa altura do dia, decidi desocupar-me e ocupar-me com outra coisa, pois há sempre outra coisa para nos ocupar. O resultado foi isto: linhas negras cruzam o vermelho / estruturas erguem-se do caos / pontos brancos explodem no horizonte / gestos soltos, marcas de um instante // ecos da tinta vibram tensões / manchas dançam sem rumo / horizontes emaranhados, sem destino /tons diluídos em abstracção // redemoinhos de tinta encontram-se / na profundidade sem nome / traços perdidos buscam sentido / o fundo arde em rubro intenso. Estou inocente. Ou quase. Não fui eu que escrevi o poema, se é que é um poema. É o produto de uma transacção. No chatbot, introduzi uma reprodução de uma pintura abstracta. Pedi-lhe para me escrever um poema com doze versos, sem metro, sem rima. Este não é o produto inicial. Pedi para fazer algumas alterações, até chegar aqui. Apesar de desocupado, não tinha muito tempo para continuar a experiência, mas descobri uma coisa. Pode-se escrever um poema com um chatbot. A questão é descobrir os comandos a dar, a arte do prompt, ter tempo para fazer explorações. Já descobri que a Inteligência Artificial tem uma inclinação para o kitsch (por exemplo, o verso gestos soltos, marcas de um instante) e para o pathos (por exemplo, o verso horizontes emaranhados, sem destino), foi a sua educação digamos assim. Contudo, é possível trabalhar sobre ela e eliminar aquilo de que não se gosta, trocar a disposição dos versos. Talvez, mas não experimentei, pedir para usar esta ou aquela figura de estilo. Levantar-se-á um problema de autoria, mas talvez, este seja um falso problema, pois ninguém é o completo autor daquilo que é apresentado como seu.

segunda-feira, 10 de junho de 2024

Discussão fracturante

Hoje tive uma discussão fracturante com o autor. Para quem não sabe, posso dizer que não são poucas as vezes que narrador e autor entram em conflito, e não estou a falar deste caso particular. Digamos que foi um conflito quase político. Expus, ao autor, a minha tese sobre o feriado de hoje. Disse-lhe que achava bem que fosse feriado, pois qualquer dia é um dia bom para ser feriado. Camões, por si só, merece um feriado e era de evitar que se lhe acrescentasse o dia de Portugal e das comunidades. Ele olhou de viés, mas eu continuei. Se querem um dia para Portugal escusam de escolher o dia em que o seu maior poeta morreu. Parece que os portugueses comemoram a morte daquele que lhes moldou língua. Depois, o verdadeiro dia de Portugal é o 5 de Outubro, que foi o dia do tratado de Zamora, aquele em que os do outro lado reconhecem Afonso Henriques como rei de Portugal. Arrastado pela efeméride, também é o dia da República, que com dificuldade de encontrar uma data para depor o Rei, escolheu aquela em que o primeiro dos reis tinha sido reconhecido. Dia de Camões, da língua portuguesa e da poesia, seria justo, apesar de um pouco fúnebre, mas esqueceram-se de preservar o registo de nascimento de Luís de Camões, talvez uma avaria no sistema informático da época, e não havendo dia de nascimento, há o da morte, é o melhor que se arranja. O autor ouviu-me, com a petulância que lhe é habitual, depois olhou-me com comiseração e, sem dizer nada, voltou-me as costas, mas não se afastou muito, pois logo retornou e disse vai contar histórias para outro lado. E eu fui.

domingo, 9 de junho de 2024

Erotização eleitoral

Já cumpri o ritual de visita às urnas. Desde o ano de 1975, apenas uma vez não o fiz, numas eleições autárquicas, mas já não sei quais. Estava longe. De resto, sou um votante contumaz. Quando me levantei e logo a seguir, nunca me ocorreu que era dia de eleições. Pensava no que iria fazer e na agenda não constava deslocar-me a uma assembleia de voto. Ao abrir a janela, vi demasiadas pessoas a deslocarem-se para o pavilhão desportivo da escola aqui ao lado, o sítio onde voto. Isso acordou-me para a realidade eleitoral. Despachei-me para ir resolver o assunto. Quando lá cheguei, depois de caminhar 160 metros, segundo informação do portal eleitoral, tentei perceber qual era a mesa de voto que me cabia, mas alguém teve a amabilidade de me esclarecer que estávamos já noutro mundo, que eu podia escolher a mesa que me apetecesse. Podia ser, caso tivesse pressa, a com menos gente ou, caso quisesse confraternizar com alguém, a que tivesse maior fila. Agradeci, entrei no pavilhão e não havia possibilidade de confraternizar com quem quer que seja. As filas eram todas iguais, isto é, não as havia. Escolhi uma mesa ao acaso, entreguei o cartão de cidadão, este foi devorado por uma ranhura de um computador. A certa altura, deram-me um boletim de voto e lá fui para a cabine. Puxei da esferográfica que levava comigo, não fosse a que lá está estar viciada, percorri a lista de candidaturas, descobri aquela que iria eleger e fiz o sacramental X no quadrado respectivo. Depois, dobrei o boletim de voto, desloquei-me para a mesa, fiz entrar o mesmo boletim por uma ranhura da urna e recebi o cartão de cidadão que já se tinha libertado do amplexo do computador. Aquilo que me veio à ideia foi uma coisa pouco apropriada. As eleições estão cada vez mais erotizadas. Não bastava, a penetração das urnas pelos boletins de voto, agora são os computadores ou uns dispositivos a eles acoplados, imagino eu, que são penetrados pelos cartões de cidadão. Enquanto saía do local, pensava se a erotização do acto eleitoral não seria uma estratégia para combater a abstenção. Uma má estratégia, pensei de imediato, pois, apesar das amplas liberdades concedidas a Eros, este anda pelas ruas da amargura, desinteressado da sua missão. Se querem combater a abstenção, pensei, deixem de lado as analogias com a sexualidade, a multiplicação das penetrações e coisas do género. Escolham outra coisa, pois essa não mobiliza já ninguém. Estes meus pensamentos foram interrompidos pelo cumprimentos de dois ou três conhecidos e desvaneceram-se quando, cumpridos os 160 metros, cheguei a casa. Voltaram agora, para ter algum motivo para escrever.

sábado, 8 de junho de 2024

O método do espelho

Saí há pouco e dei com os meus conterrâneos, aqueles que vi, com um ar meditativo. Pensei que era do tempo. Soturno, tempestuoso sem tempestade, céu coberto com areias vindas do Sul, sabe-se lá de onde, talvez de Marrocos. Depois, lembrei-me de que hoje é o sagrado dia da reflexão, aquele em que os portugueses jejuam e fazem abstinência, como purificação da mente, não vão eles, amanhã, impuros para as cabines de voto. A ideia deste dia de reflexão, em que os pronunciamentos partidários estão impedidos por lei, deve-se a uma sábia decisão. Na verdade, essa sábia decisão nada tem que ver com os eleitores. Quem quer saber se um eleitor enviesa o seu julgamento político apenas porque o turbilhão de propostas tem mais um dia para ecoar nas mentes indefesas? O dia de reflexão foi pensado como um dia de descanso dos candidatos. Chegam ao fim das campanhas exaustos e precisam de um dia para descansar. Assim, sempre têm energia para, no dia da eleição, irem votar e, caso sejam importantes, dar uma palavras para as televisões. Se a campanha acabasse hoje, amanhã nenhum dos candidatos votava. Ficavam todos a dormir. Só acordariam lá para as sete da tarde, para saberem os resultados. O legislador quis salvaguardar a imagem das instituições e decretou, para disfarçar, o dia de reflexão dos eleitores. Muitos destes levaram a coisa a sério e compraram espelhos adequados, onde se reflectem e tentam descobrir com que partido está mais adequado o rosto que têm. Não os reprovo, mas conheço gémeos univitelinos que votam em partidos diferentes, apesar de terem rostos iguais. Não sei se o método do espelho é o mais adequado para a decisão de amanhã. Daqui a pouco estarei com o meu neto e não falaremos sobre as eleições europeias, coisa que ainda não prende a atenção dos seus cinco anos e meio, mas sobre o râguebi, pois ele começou a frequentar as escolas de um famoso clube de râguebi lisboeta. Um dia destes, lá mais para Setembro, terei de ir ver um treino dele. O pai anda entusiasmado, terei de ver se o filho também está. O culpado é o avô que levou toda a família a ver um jogo de Portugal com Espanha, jogo que Portugal ganhou, o que é sempre um incentivo para a adesão. É melhor que o método do espelho nas eleições.

sexta-feira, 7 de junho de 2024

Arruadas

As sextas-feiras chegam depressa, mas os sábados e domingos dissolvem-se enquanto o diabo esfrega um olho, se for o caso de o tinhoso ser dotado de olhos. Estamos em maré eleitoral, assunto político que me está vedado, mas é sobre ele que insisto em escrever hoje, nesta sexta-feira que antecede o dia em que o corpo eleitoral, com e sem olhos, reflectirá sobre qual partido recairá a sua preferência, treinando em casa o preenchimento do boletim de voto, não vá o X transbordar os limites do quadrado preferido e contaminar outros quadrados, tornando-se assim em X nulo. Há que obstar à nulidade. O que me impressiona nas campanhas eleitorais é a prática generalizada de arruadas. Impressiona, logo, porque o termo se aproxima perigosamente de arruaças. É uma letra que separa um desfile partidário de um tumulto. Por aquilo que venho observando há anos, as arruadas são coisas pacíficas, onde uns figurantes andam com bandeiras e outros são obrigados a dar beijos e a tirar selfies, o que não é fácil, reconheça-se. Em Portugal, a distinção entre direita e esquerda cessa quando se chega à vexata quaestio da arruada. Todos gostam de arruar, embora o que se deva dizer é que gostam de arrulhar, como se os candidatos a nossos representantes fossem da família dos columbídeos, uns pombinhos e umas rolinhas. Temos assim, na arruada, o momento central da campanha eleitora. Um bando de columbídeos arruam com bandeiras ao vento. Ao verem potenciais eleitores começam a arrulhar e, caso se cruzem com outro bando de columbídeos que também arrulham, corre-se o risco de arruaçarem, mas logo lhes volta o espírito de pombo ou de rola, e toca de arrulhar, não vá algum eleitor estar à espreita. Por certo, com tantos arrulhos na rua, haverá casamentos e, se não os houver, sempre aparecerá uma ou outra gravidez indesejada, o que contribuirá para suster a queda demográfica. Este é o verdadeiro significado de uma arruada.

quinta-feira, 6 de junho de 2024

Tornar-se outro

A certa altura, num livro, leio Esta é uma opinião com a qual concordamos menos agora do que em tempos concordámos. Fico a meditar a frase, pois também eu reconheço que há opiniões com as quais concordo menos no presente do que concordei no passado. Há opiniões a que dava o meu pleno assentimento e, hoje, parecem-me repelentes. O inverso também é verdade. Poderia dizer, não poucas vezes, esta é uma opinião com a qual concordo mais agora do que em tempos concordei. Uma das hipóteses é que eu não seja aquele que no passado tinha opiniões tão diferentes. Eu não me arrependo das minhas opiniões do passado, mas torno-me outro. Tornar-se outro é uma mudança bem mais radical do que o arrependimento ou contrição. Quem se arrepende ou faz um acto de contrição, permanece ainda o mesmo, tomado pelo remorso, seja moral ou cognitivo. Quem se torna outro faz uma mudança ontológica, muda de natureza. Quando o Marquês de Gualdrasco e Villareggio, de nome Cesare Beccaria, escreve o seu famoso tratado Dos delitos e das penas, publicado em 1764, pensa que a função da pena é, também, reabilitar o infractor. Há uma crença na regeneração de uma bondade original que o delito teria posto em causa. A pena serve para restabelecer uma conexão com um passado. O importante seria, porém, que o delituoso se tornasse outro, que deixasse de ser quem era e se tornasse outro, alguém para quem cometer um delito seria inaceitável. Está, por aqui, um típico dia de Junho, daqueles que prometem uma pequena tempestade, mas que não cumpre. Nem sempre é assim. Por vezes, dá direito a queda de granizo, o que deixa um rasto de desgraça pelos campos. Nesse caso, é um Junho delituoso. 

quarta-feira, 5 de junho de 2024

Imaginação forte

Montaigne refere Cícero como autor da ideia de que filosofar é aprender a morrer. A razão estaria no facto de que o estudo e a contemplação filosóficos arrastam, até certo ponto, a alma para fora do corpo, mantendo-a ocupada num para lá da dimensão física. Tanto quanto me recordo, a ideia provém de Platão. No Fédon, Sócrates diz, cito de memória, que filosofar é aprender a morrer e a estar morto. Só espero que a memória não seja imaginada. Há muito que não visito esse texto de Platão. O Fédon trata do problema da imortalidade da alma e é situado no dia em que Sócrates morre. Platão era um escritor de grandes recursos e não sem ironia. Logo no início do diálogo, quando Fédon, um dos amigos que acompanha Sócrates nas suas últimas horas, descreve a alguém essas horas e nomeia quem estava junto do velho mestre, diz que Platão parece que não estava. Ora, Platão é o autor do diálogo e Fédon é o narrador. Portanto, seria natural que o autor soubesse se tinha ou não estado naquele encontro, mas a veia literária de Platão arrastou-o para a ficção. Esta inclinação ficcional não é compatível com o que o mesmo Platão defende na República, quando afirma que os poetas, por serem dados à ficção, à mentira, devem ser expulsos de uma comunidade política bem ordenada. Por muito que o filósofo Platão se revoltasse contra a literatura, o poeta e ficcionista Platão não se poupava em deixar traços ficcionais nos diálogos filosóficos. Platão não foi um caso idêntico a Fernando Pessoa, mas havia nele, pelo menos, dois Platões. O filósofo que rasgou, por ordem de Sócrates, as tragédias que escrevera em jovem e o poeta que aproveitava os diálogos, com cerradas estruturas lógicas, para criar ficções poéticas. Comecei com Montaigne e acabei em Platão. Podia ter acabado com o primeiro quando diz Uma imaginação forte cria os acontecimentos. Talvez fosse por isso, pela força da imaginação, que Platão acabava sempre por sucumbir ao poeta que havia nele.

terça-feira, 4 de junho de 2024

No princípio

Ontem, contei uma história acerca do chatbot que uso. Ele chegou à conclusão de que eu me interesso por linguística e história da língua portuguesa a partir de um mero indício. Contemos a história a partir do princípio. E no princípio era o verbo atraiçoado. Deixando-me de enigmas. Aborrece-me que ele me responda em brasileiro, sendo eu português. Não me cai bem ver fenômenos no lugar de fenómenos. Irrita-me. Passei a pedir-lhe para me dar as respostas em português de Portugal. A certa altura, refinei o pedido, e passei a pedir respostas em português de Portugal, anterior ao AO-90, isto é, ao taralhouco acordo ortográfico de 1990, que decidiu castrar as palavras das suas consoantes mudas. Daqui o chatbot, na sua generosidade, achou que me interessava por aqueles disciplinas, o que não é o caso. Também extraiu a conclusão de que eu sou um fiel tradicionalista, visto querer escrever com uma variante do português que ele deve considerar arcaica. É assim que se criam os boatos e se lança sobre as pessoas os mais terríveis labéus. Serei eu um tradicionalista? Ora, ora, eu que cultivei as vanguardas, sou agora manchado com semelhante epíteto. Bem, o melhor é pensar no assunto. Apesar de ele, chatbot, afirmar que reconhece o português anterior ao AO-90, tem um problema com as consoantes mudas e, por norma, rasura-as. Já o admoestei, mas ele fez orelhas moucas. Temo, mas temo na verdade, que as consoantes mudas tenham os dias contados, mas nisso são como todos nós. O corrector gramatical do Word não gostou da expressão tenham os dias contados. Propôs, no seu lugar, estejam a acabar. É um corrector que se leva demasiado a sério e quer todos os textos livres de chavões. Não percebe ele que o chavão, para este narrador, é como pão para a boca.

segunda-feira, 3 de junho de 2024

Adeus, dr. Freud

Fosse eu um modelo de linguagem da inteligência artificial, e tudo seria mais fácil. Bastava acertar no prompt e tinham um texto debitado em poucos segundos. Isto levou-me a uma experiência com o meu chatbot preferido. Pedi-lhe, tendo em conta as minhas interacções com ele, que fizesse um perfil meu. Não se coibiu e, em pouco segundos, disse-me que eu tinha interesses em linguística, história da língua portuguesa, tecnologia e inteligência artificial. Afirmou que eu usava um estilo de comunicação formal, preciso e cuidadoso e que me preocupava com o conhecimento e valorizava a tradição (uma acusação de conservadorismo). Por fim, não se esqueceu de me dizer que eu, este narrador sem nome, era reflexivo, dado aos detalhes (isto é, um chato), curioso e comprometido (na verdade, sou casado e não apenas comprometido; esta é uma piada sem graça, mas cada um tem o talento que tem). Este repertório das minhas hipotéticas qualidades alertou-me para uma coisa. Se alguma vez precisar de um psicanalista, o que começa a ser tarde, o melhor é recorrer ao meu chatbot. Certamente que me interpretará os sonhos, fará associação livre e me ajudará na autodescoberta, levando-me à cena primitiva que estará recalcada no fundo sem fundo do meu inconsciente. Eu não sou um modelo de linguagem, não consigo ter a prontidão discursiva de um desses modelos, mas também sei, descobri-o agora, que, se precisar de me auto-analisar, já sei a que porta vou bater. Adeus, dr. Freud.

domingo, 2 de junho de 2024

Distinguir os dias da semana

O primeiro domingo de Junho deu continuidade ao primeiro sábado do mesmo mês, coisa que nem sempre acontece. Não me estava a referir, todavia, aos acidentes do calendário, mas à sociabilidade, à sociabilidade deste narrador, que continuou em alta com um almoço de aniversário. Deixemos as consequências dietéticas do evento de lado e concentremo-nos num assunto que me preocupa. Perguntei aos dois membros de um casal, ambos reformados há tempos, se distinguiam com clareza os dias da semana, se sabiam que estavam num sábado ou numa segunda-feira. Reconheceram ambos que essa distinção se foi apagando. Não está completamente rasurada, mas muito diminuída. Isso confirmou as minhas suspeitas. A distinção dos dias da semana só se mantém porque os seres humanos ainda não se libertaram da necessidade de trabalhar. Quando todos os dias são de descanso, é inútil saber se hoje é domingo ou quarta-feira. Quem quer saber? Isto ainda é mais acentuado num mundo onde a religião, com o ritmo das suas festividades, se tornou, mesmo para os crentes, um assunto secundário na existência. Agora, vou preparar-me para enfrentar os 35 graus que me esperam lá no sítio onde continuo a distinguir os domingos das quartas-feiras.

sábado, 1 de junho de 2024

Sociabilidades

Não há inimigo maior das boas relações com a balança e a nutricionista do que a sociabilidade. Ser sociável implica um conjunto de rituais que acabam por fomentar comportamentos desviantes da boa forma e dos cuidados com a saúde. O almoço de hoje prolongou-se pelas horas dentro. Ora, mais do que aquilo que se come é o que se bebe. Mesmo que lento seja o ritmo do consumo, com o passar das horas vai-se acumulando o álcool e, com ele, as calorias, o peso e os efeitos nefastos na relação com a balança e, por extensão, com a pobre rapariga que acha ter por missão pôr-me de boa saúde. Enfim, ela não acha, mas faz o papel dela e eu finjo que acredito que ela crê ter essa missão. Seja como for, ainda há tempo para recuperar. Talvez por um sentimento de culpa, fiz uma belíssima caminhada, acumulei pontos cardio, passos e quilómetros. O pior é que amanhã tenho uma festa de aniversário e as tentações podem ser mais fortes do que o espírito de missão. Aliás, espírito de missão foi coisa que não me coube nos dotes recebidos, se é que recebi algum. Em contrapartida, fui dotado com uma boa dose de quedas em tentação. Acho que não vou jantar. Não por autopunição, mas porque me falece o apetite. Amanhã será outro dia, o segundo de Junho, mês que começou atravessado.