quarta-feira, 26 de junho de 2024

Do vício e da virtude

Uma longa tradição que tem o seu primeiro momento de exaltação em Platão – mas, por certo, seria bem anterior – faz da vida virtuoso dos indivíduos a condição de possibilidade do bem público, do bem da comunidade. O que se terá passado no mundo para que, cerca de dois mil anos depois, alguém afirme que os vícios privados poderão ser o suporte do bem público? Esse alguém é Bernard de Mandeville que publicou em 1714 A Fábula das Abelhas: Vícios Privados, Benefícios Públicos. A disjunção entre a virtude privada e o bem público não deixou de se aprofundar desse início do século XVIII até aos dias de hoje. Mais, o incremento da viciosidade privada foi visto como emancipação de uma tutela exterior hipocritamente imposta aos indivíduos, como um movimento de libertação, que, ainda no XVIII, recebe o contributo do Marquês de Sade, e tem um dos seus momentos mais espectaculares com o Maio de 68. Alguma coisa se terá alterado drasticamente, no sistema de valores dos europeus, nessa viagem entre a Atenas de Platão e a Inglaterra onde viveu parte da sua vida, apesar de nascido na Holanda, Mandeville. Ou então é um problema de classe, a diferença entre o descendente de reis atenienses e o descendente de comerciantes de Roterdão. Pensamentos inúteis como este são os efeitos colaterais do ataque de um vírus sem nome que ainda não desistiu de me assombrar. Espero que passe depressa, para evitar assuntos tão lúgubres.

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