terça-feira, 18 de junho de 2024

Falência narrativa

Estava cinzento o dia quando me levantei. Caso se mantenha, pensei, depois de almoço, aproveitando o tempo sombrio, irei caminhar, o que me permitirá, depois, realizar as tarefas que tenha para fazer sem que a digestão se intrometa entre mim e mim. Não se pense que sou dado a almoços pesados. Pelo contrário, o meu almoço foi frugal, talvez mais frugal do que o de um monge cartuxo. O corpo, porém, tem as suas idiossincrasias. Plano baldado, pois o sol rompeu e pairava no ar a ameaça de calor naquela hora. Entretive-me a fazer isto e aquilo, coisas práticas que me impunham estar de pé, e, depois, voltei para as minhas tarefas. Quando o que um narrador tem para narrar é isto, o melhor que terá a fazer é fechar a loja e inscrever-se no fundo de desemprego da associação de narradores em falência narrativa. Não o faço, pois há sempre a esperança de ter alguma coisa para contar, nem que seja que recebi um vídeo do meu neto a saltar de uma rocha para o mar ou a notícia de que a minha neta mais velha foi fazer análises e um electrocardiograma, pois vai ser operado ao septo nasal. O dia está ventoso, o sol anémico e na rua não passa ninguém, talvez ela tenha sido proibida aos peões, depois de ter sido proibida aos carros. Estou a mentir. Apenas proibiram a circulação nos dois sentidos. As acácias projectam a sombra nos muros da escola aqui ao lado, sombras inquietas, movendo-se para a frente e para trás. O silêncio foi quebrado pelo ladrar de um cão. Ainda é cedo para o crepúsculo.

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