domingo, 17 de março de 2019

Bavardage

Ainda tenho o hábito de ler jornais, já não em papel, mas digitais. Apiedei-me, por certo, das florestas ou, então, assumi-me como um moderno, mesmo que o não pareça. Os jornais, por um espírito de misericórdia, nunca deixam de me surpreender com o que me dão a conhecer. Um deles informa-me que os alunos portugueses querem educação sexual menos vaga e mais interessante e eu não sei como interpretar um desejo tão vago e tão pouco inesperado. Não me passa pela cabeça que currículo tornaria a educação sexual concreta e interessante. O mundo é um repositório de desejos que se cruzam e entrechocam, meditei sorumbático por me ter deitado tarde. Se se dá ouvidos aos desejos, nunca mais se há-de parar nessa peregrinação em busca do santo graal que há satisfazer a desordenação hormonal dos adolescentes. A tarde aproxima-se velozmente da noite. A escuridão há-de chegar e talvez em mim se ilumine a necessidade de tanta bavardage, para utilizar um termo francês e assim aparentar cultura. Não há idiotice que uma boa aparência não cubra.

sábado, 16 de março de 2019

Um bom conselho

Hoje dediquei o início da tarde a fazer compras. Nessa altura, quase não há gente nos hipermercados. Hipermercados, digo bem, pois vivo num concelho que tem cerca de três dúzias de milhares de habitantes, mas a que não faltam grandes superfícies, onde as nossas necessidades se vêem acolhidas e saciadas. Somos um concelho feliz, penso eu, com tanta liberdade de escolha para podermos escolher em tantos sítios diferentes as mesmas coisas. E não há ironia nas minhas palavras, até porque pude ir, numa dessas superfícies comerciais, à lavandaria levantar – e não lavar – a Nova Gramática do Latim, do Frederico Lourenço. O mundo tornou-se uma coisa bizarra, dirá o leitor. Não sou eu que irei desmenti-lo. Eu não sei Latim nem tenho esperança de o aprender, mas só a "Introdução à língua latina" do autor vale o investimento. E essa Introdução começa da melhor forma lembrando uns versos intraduzíveis da Eneida, onde Anquises, já morto, comunica a Eneias o destino futuro dos romanos. Ora uma gramática que começa com uma comunicação de um morto merece ser lida do princípio até ao fim, mesmo que não se perceba nada do que vem no meio. Eu sei, sou um caso perdido. Comecei a falar de compras de detergentes e batatas, e ainda não me calei, misturando gramáticas e mortos que falam, com concelhos despovoados e lavandarias onde se levantam livros. Vou ver se está a chover, um conselho que não havendo quem mo dê, dou eu a mim mesmo.

sexta-feira, 15 de março de 2019

Glória

Esta indecisão que tolda as tardes de sexta-feira corrói o prazer com que o fim-de-semana se apresenta no horizonte. O mal das expectativas, ocorre-me de imediato, não é a sua realização, mas a velocidade assombrosa com que se cumprem, para logo entrarem no território inexplorado do passado. Não és particularmente virtuoso, diz-me a consciência, mancomunada com o espírito deste mundo. Esse desejo de parar o tempo nos dias de ócio ainda te há-de perder. Eu encolho os ombros e viro as costas à consciência. Perdido estou eu há muito. Naufrágio por naufrágio, ao menos que seja em dia de descanso, remato a controvérsia e mergulho no intrincado raciocínio de um pensador que faz da obscuridade a porta por onde entra para o reino da glória. As sextas-feiras são pouco propícias, comprovo-o de imediato, para conviver com coisas obscuras e fecho o livro, deixando o pensador encerrado na reputação que é a sua. A minha única glória, constato miserável, era aquela que, na infância, alcançava, se a alcançava, num jogo da Majora, em que lançava dois dados para poder mexer a minha marca, numa corrida cheia de precipícios, infernos, purgatórios, mortes e aquilo que já não me lembro, para chegar à casa da Glória, onde encontrava sentado o tal pensador cujo livro fechei há pouco, e que eu não sabia que era pensador e um amante de coisas obscuras. A vida está cheia de surpresas e de encontros inesperados, concluí.

quinta-feira, 14 de março de 2019

Serenidade

Na conversa, depois de almoço, alguém, que nunca vira dado a confidências, diz: tirando uma ou outra paixão amorosa, e mesmo essas de curta duração, nada no mundo me provocou esse estado de efervescência a que se dá o nome de paixão. O vinho não era mau, pensei ao ouvir essa declaração inusitada de serenidade. Não tenho propensão para a febre, acrescentou, e quando ela se torna iminente tomo um antipirético. Não me ocorreu perguntar qual. O início da tarde fazia já pressentir as primeiras florações do tempo quente e talvez isso me tenha feito sorrir da ironia. As paixões são exercícios difíceis, pensei, de consequências muitas vezes funestas. Na rua, passava gente desapaixonada, carros com destino obscuro e um cão vadio. Um pombo pousou no chão e caminhava plácido e tranquilo, batido pelo vento leve vindo da serra. Este desapaixonamento pelas coisas do mundo tem a vantagem de evitar certas calamidades que os corações fervorosas não hesitam em espalhar quando uma causa os abrasa, meditei, enquanto bebia o resto do vinho e a porta abria-se para dar entrada a um casal tocado pelo espírito primaveril.

quarta-feira, 13 de março de 2019

Encantamento

Estava a arrumar uns livros antigos. Entre eles havia dois romances, comprados em segunda mão, da George Eliot, Rómula e Encantamento nas Trevas (Silas Marner), ambos da Livraria Romano Torres, edições dos anos cinquenta do século passado. Quando compro livros usados procuro sempre marcas de anteriores proprietários, como se esses sinais os dotassem de uma sobrevida e os tornassem mais dignos de serem lidos. Em Rómula havia uma dedicatória datada de 4 de Agosto de 1954: Recordando mais um dia 4, o “nosso dia”, ofereço-te esta pequena lembrança, a tua, e seguia-se a assinatura. E esta marca do passado, de um passado no qual eu nem sequer existia, alegrou-me a tarde e devolveu-me um sentido de realidade que o dia se encarregara de me levar. Essa realidade, porém, resvalou de imediato para uma longínqua memória. Os primeiros livros que vi da Romano Torres, ainda criança, eram vendidos numa mercearia, onde, ao lado das montras das fazendas e das utilidades domésticas, havia uma com livros para crianças e adultos. Por vezes, o passado tem destas coisas. Habita nele uma perfeição que o tempo dissolveu, como por certo terá dissolvido o laço mais-que-perfeito entre quem ofereceu e quem recebeu o livro da Eliot. A noite aproxima-se exposta no escaparate de uma montra de cristal, trazendo no seu bolso um encantamento nas trevas.

terça-feira, 12 de março de 2019

Da insignificância

Olho o calendário com um gesto inconformado de desdém. Março vai já no décimo-segundo dia. Irrompeu inexorável pela malha crespa do tempo e, não tarda, deixa-nos à porta translúcida de Abril. Não há assunto no mundo mais glorioso que o passar do tempo, que, com as suas garras de algodão, vai abrindo um serralho de rugas onde vivem, encerradas e esquecidas, as antigas esperanças. Fico fascinado com as aliterações em erre da última frase, mas logo um desânimo sobrevém e me devolve ao raio da realidade, e assim, sem vergonha, continuo a aliterar. Muito gostaria de ter, juro-o, assuntos elevados sobre os quais discorrer e partilhar com os outros a indústria da minha sabedoria, mas não tenho propensão para a melancolia meditabunda e raramente me ocorre alguma coisa digna de nota. És frívolo, digo-me a mim próprio. Com tantos assuntos importantes, prossigo a acusação, e preenches o espaço e o tempo com bagatelas e minúcias que nem ao mais indigente dos mortais ocorreriam. Se fosse Homero, respondo-me, escreveria uma Ilíada e uma Odisseia, mas não sou. Basta-me a babugem da insignificância.

segunda-feira, 11 de março de 2019

Um fardo

É um fardo que se leva aos ombros, pensei, enquanto me dedicava a um jogo de estatísticas e comentários avulsos sobre dados que tinha ajeitado não sem critério. É deste modo ínvio que os mortais consomem a existência, enquanto a tenaz do relógio não deixa de apertar o pobre pescoço da vida. O telemóvel não pára de piscar, insiste em ter alma. Comunica-me que hei-de ter uma reunião. Agradeço, mas não me sinto obrigado. A vida moderna é um desastre ocioso, de tal maneira que as ociosidades se tornaram um exercício duro e implacável. Talvez fosse a isso que, noutros tempos, se referia a ambígua expressão de alegria no trabalho. Uma porta bateu com violência e depois o silêncio cresceu sobre mim, para me perder e deixar-me a falar só comigo mesmo. Por vezes, embora raras, chego a concordar com o que me digo e tenho uma fundada inveja daqueles que estão sempre de acordo consigo mesmos. Deles será o reino dos céus, presumo.

domingo, 10 de março de 2019

Resplendores

Talvez tenha sonhado esta madrugada. Acordei com uma frase eloquente e perfeita a dançar-me no espírito, uma daquelas conjugações de palavras que nunca me ocorrem quando estou desperto. Só poderia ser um sonho ou o sopro de alguma musa. Depois, como é hábito, ao sentar-me para a escrever, os direitos autorais foram reivindicados e eu esqueci o que tanto me tinha impressionado. O sol de domingo ateia fagulhas de verde nas árvores. As folhas cintilam e cobrem de reverberações o silêncio onde me escondo. Oiço o barulho de um secador de cabelo e tapo os ouvidos. A vida não passa de pequenos resplendores que logo se apagam, filosofo sem convicção. Olho a rua e vejo as pessoas vestidas com a displicência que se tornou imperativa nos dias de ócio. Fingem desocupação e tempos livres, e eu finjo que as compreendo. E neste fingimento geral, tento lembrar-me da frase que, pela sua beleza, iria salvar o mundo de todas as ficções. A memória, porém, nem a mim, seu eventual proprietário, está disposta a salvar. Nesta revolta da propriedade contra o proprietário vejo anunciado o fim do mundo.

sábado, 9 de março de 2019

Viagens na minha terra

Há muitos, muitos anos que não ia às Portas de Sol em Santarém. É um daqueles lugares que residem na nossa memória medidos pelos olhos da infância, e esta tem uma tendência despropositada para a hipérbole. Afinal, tudo aquilo é pequeno e sem mistério. Mesmo a paisagem que se abre diante das muralhas parece ter encolhido. O Tejo faz doer a alma, tão pouca a água que leva, tantas são as ilhotas de areia, como se houvesse ali um arquipélago fluvial, erguido no leito onde o rio jaz moribundo. Depois dei uma volta pela cidade e passei pelo Sá da Bandeira. Quando lá prestei provas de admissão aos liceus era, para os meus nove anos, um edifício descomunal, um verdadeiro e temível liceu. Hoje não passa de uma escola secundária, ajoujada aos tempos que vivemos, sem o halo com que se cobria aos meus olhos. No retorno, descobri que as giestas já estão em flor. O tear do tempo nunca se esquece de tecer os dias e não há Penélope que pela noite desfaça a sua obra. Não é Ulisses quem quer, concluí, não sem ponta de enfado ou de inveja.

sexta-feira, 8 de março de 2019

Ociosidades

Depois de almoço, nuns instantes livres, sentei-me em frente ao computador para tratar de um texto que estou a trabalhar. Logo adormeci. Acordei atónito ou aparvalhado, se assim o quiserem, passado uns minutos. Cantavam uns pássaros cujo nome nunca soube e que insistem, nem sei bem o porquê, em tomar-me por vizinho. Talvez fosse assim que Adão e Eva acordavam no paraíso, pensei enquanto me imaginava a gravar os sons das aves para lhes decifrar a linguagem. Messiaen registava o canto dos pássaros para o traduzir para piano e compor os livros do Catalogue d’oiseaux, eu iria mais longe. Elaborava um alfabeto, construía o léxico, adicionava-lhe uma gramática, filmava os contextos e confeccionava uma pragmática. O que uma pessoa não faz quando não lhe apetece fazer nada, meditei. A tarde espera-me numa rua ensolarada, enquanto a semana declina e eu, incapaz de sonhar enquanto durmo, entrego-me, acordado, a jogos oníricos sem senso nem destino. Depois ocorreu-me que a ociosidade é a mãe de todos os vícios. Sempre lhe poderia perguntar se o pai era incógnito, mas hoje não estou em dia de contrariar a sabedoria popular e a inteligência comum. Os pássaros voltaram a cantar, mas não sei onde arrumei o maldito do gravador.

quinta-feira, 7 de março de 2019

Antevisão

Ontem fui à Gulbenkian ouvir a Elena Zhidkova cantar Mahler. Tenho sempre uma sensação ambígua perante grande parte do público que ali vai. Faz-me sentir que a minha idade ainda não é um caso desesperado, mas logo me projecto naquelas pessoas e vejo-as como uma imagem minha vinda do futuro, caso lá chegue. Tenho vontade de as cumprimentar como se me cumprimentasse a mim, e, imagino, ali vou eu, a arrastar os pés, suportado por uma bengala ou empertigado como uma múmia para disfarçar os centímetros que os anos me roubaram. Para piorar as coisas dizem-me que muitas daquelas mulheres fazem lembrar as professoras do Maria Amália de há cinquenta anos. Sorrio e penso na Zhidkova que, com os seus belos olhos azuis e ar impertinente, não se parece nada com uma professora de há cinquenta anos. A Zhidkova e o Mahler foram ontem e hoje, observo, não há lied que afugente o mau tempo. As pessoas passam de guarda-chuva na mão, marcham receosas, como um exército em debandada. Olho para o relógio e ainda me faltam duas horas para chegar a casa. Quando chegar, prometo a mim mesmo, hei-de ouvir uns lieder do Schubert. Talvez evite que uma chuva de disparates saia de mim.

quarta-feira, 6 de março de 2019

O estado dos campos

Com estas chuvas talvez o estado dos campos tenha melhorado, pensei ao ver a bátega de água ressaltar no vidro da janela. Chegámos a quarta-feira de Cinzas, mas isso já não quer dizer nada. Perdemos o sentido dos dias, arrancámos-lhes as raízes, a história e o encanto, para tudo reduzir a dias de ócio ou de trabalho, azáfama de prazeres e de desprazeres. Que meditação melancólica, disse-me a minha consciência, ainda não refeita da brusca transição entre o Carnaval e a Quaresma. Bem precisavas, continuou ela para disfarçar, de te entregares à penitência e oportunidades não te hão-de faltar, ameaçou. Cada vez suporto menos a minha consciência e sua infinita tendência para moralizar. Ao menos, o estado dos campos é uma coisa objectiva, murmurei. Pena é que não me interesse por aí além. Vivo na cidade e nunca tive uma alma campestre. Se a tivesse talvez escrevesse poemas bucólicos ou, melhor, não escrevesse nada, que é a única coisa que deveria fazer e não faço.

terça-feira, 5 de março de 2019

Livros

Está a ficar um caos, assenti. Como os coelhos, os livros têm uma capacidade reprodutora inimaginável e com facilidade geram as agruras dos lugares sobrepovoados, o que produz inevitáveis problemas de habitação. Que analogia tão reles, pensei para mim. Por muito que se invista em novas bairros, acrescento em voz alta, os sem-abrigo não hesitam em empilhar-se por aqui e por ali, sem o pudor que um lugar estável numa estante sempre oferece. Crescem em número e ameaçam a ordem com as suas faces de mendigos à espera de esmola. O dia está cinzento, passam pessoas com guarda-chuvas na mão e não diviso no horizonte foliões espontâneos. Os pátios da escola ao fundo da rua estão vazios, os campos de jogos abandonados e não se ouvem as interjeições com que a adolescência rasga o denso véu da vida. Nada disto tem a ver com livros, mas a maior parte das coisas que me passam pela cabeça não têm a ver com nada. São borbulhas que vêm e logo rebentam. Não me foi dada a vocação das coisas profundas nem a inteligência da continuidade. Vou ver se ponho um pouco de ordem no caos, já que não comprei serpentinas para as jogar janela fora.

segunda-feira, 4 de março de 2019

Medida

A manhã desfila perante os meus olhos. Vai num carro alegórico onde a tristeza é rainha e se cobre com véus de seda e nuvens de cinza batidas pelo sol. As pessoas passam desamparadas pela avenida, caminham com faces de percalina e gestos sem cintilação nem aspirações ao infinito. O que se perdeu nestes tempos, medito em silêncio, foi esse sonho do que não tem fim, sendo a medida de tudo dada pelo metro inexorável da morte. Na secretária, esperam-me os trabalhos e os dias, mas eu resisto e deixo-os a maturar. Uma mulher pára, leva a mão à cabeça e ajeita o cabelo, logo retoma a caminhada para se perder ali onde a minha vista já não alcança. Como um relâmpago, um raio solar fende a parede de nuvens que separa o céu da terra. Ilumina por instantes o prédio da frente, mas logo desaparece engolido pelo esquecimento. Um sinal no telemóvel rouba-me à contemplação. É uma fotografia do meu neto. Ri-se e eu deixo-me levar e rio-me, insensato, com ele, como se ele estivesse aqui, a meu lado, e não a mais de cem quilómetros de distância. Talvez o espaço não exista, penso, e logo torno a rir do pendor que tenho para me iludir e perder a noção de toda a medida.

domingo, 3 de março de 2019

Profecias

Se eu fosse uma pessoa razoável, evitaria comprar certos livros. O mais sensato seria mesmo deixar de os comprar. Não o sou, não resisti e adquiri um livro com o estranho título de O Futuro do Comunismo Soviético. O meu grau de desfasamento da realidade não é tal que eu julgue que ainda existe o comunismo soviético. Caminho alegremente para a segunda infância, mas ainda não troco, por completo, as datas históricas. Por enquanto. O que me interessou foi a profecia. Há dias como os de hoje, em que o sol magro da tarde se combina com a tristeza de um domingo de Carnaval – meu Deus, nunca mais chega a quarta-feira de Cinzas –, que o meu espírito é atravessado por singulares sugestões vindas sabe-se lá de onde e que cedo à tentação dos profetas. O original, publicado na Alemanha é de 1975, e a tradução brasileira que adquiri é de 1977. O espírito arde-me de curiosidade para saber se o profeta profetizou o futuro ou expeliu em forma de letra os seus desejos ou temores, que são outra forma de desejos. Também eu gostava muito de profetizar. Desisti da ideia quando descobri que nem sobre o passado era capaz de vaticinar quanto mais sobre o futuro. Vou apanhar sol enquanto não chega a chuva que a meteorologia prognosticou.

sábado, 2 de março de 2019

A minha tradição

Levantei-me tarde para os meus hábitos. Tornei-me com o tempo um bicho madrugador. Nisto, não há virtude alguma, apenas a incapacidade de dormir que o passar dos anos trás. Agora, preparo-me para sair e espero ir ver o Tejo num certo sítio onde ele corre manso e solitário. Sempre que olho aquelas águas, que nunca são as mesmas, bem o sei, sinto-me pertencer a uma cadeia de gerações ou àquilo a que se pode chamar uma tradição. Não daquelas tradições, hoje muito em voga, que começaram há dez anos, se não mesmo há dois ou três. Não, não se trata dessas tradições modernas, mas de outra mais antiga, vinda dos fundos do tempo, a daqueles que se dão à contemplação. Sentam-se e deixam o olhar repousar sobre as águas. Estas passam e eles olham. E nisto está a toda a sua verdade, que também é a minha. Ou inutilidade, dirão almas menos caridosas e mais dadas às bravatas da acção e à fortuna do desassossego.

sexta-feira, 1 de março de 2019

Revelação

Sexta-feira de Carnaval. A tarde entristece sob um manto de nuvens escuras e rajadas de vento frio vindas da serra. De manhã, quando atravessei a cidade, havia desfiles carnavalescos de crianças da escola primária. Lembrei-me dos dias em que a frequentei. Não havia desfiles, nem alunos foliões. Os professores eram gente sisuda com pouco ar de saberem sequer que o Carnaval existia. Talvez não existisse. Havia o entrudo e alguns pobres mascarados espalhavam a tristeza pelas ruas. Eu ficava fascinado com as serpentinas, as pistolas de água e os estalinhos, talvez com alguma caraça de papelão, que então se vendia nas papelarias. Mais tarde aprendi a mascarar-me. Foi uma revelação. De tal maneira que nunca mais deixei de o fazer, faça frio ou calor, seja Verão ou Inverno. Quem precisa de três dias de Carnaval se o tem durante o ano inteiro?

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

Cicatrizes

Uma das árvores perto de casa tem uma longa cicatriz. Imagino a fenda que lhe deu origem, a seiva a deslizar vagarosa, quase hesitante, pelo tronco, para se ocultar no interior húmido da terra. Depois, o trabalho da natureza para cerzir o rasgão e a marca da imperfeição que ali está, eterna e transitória, perante os meus olhos. Como as árvores, também os homens, pensei então, têm as suas cicatrizes. Umas nasceram de feridas que sangraram, outras nem tanto. Pergunto-me se terá cicatrizes a mulher que mora no prédio da frente e que todos os dias vejo, solitária e inquieta, a correr para o carro. Pior são as cicatrizes invisíveis, aquelas que costuram o lençol rasgado da alma. Se tivessem sangrado não passariam agora de um leve risco incerto na superfície da pele. As pessoas sentam-se na esplanada e cultuam o sol desmaiado do início da tarde. Talvez não tenham cicatrizes ou tenham perdido a alma nalguma das rotundas que florescem por aí.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

O sentido da história

Envelhecer é ler coisas que outrora levámos a sério, como se fossem mercadoria da melhor qualidade, e que hoje apenas nos fazem sorrir. Leio que determinado pensador proclamava ter descoberto um significado no curso da história. Rio-me, acabo de beber o café e vou até à janela. Um casal vai pela avenida fora. Ele à frente e ela atrás, e no hiato que os separa está todo o sentido da sua vida. Ele não pensa, por certo, no enigma da História e ela, quase lhe oiço os pensamentos, rumina as tarefas que a aguardam, e das quais não espera nada a não ser a insignificância. Se eu descobrisse um significado na história, evitava proclamações, calava-me bem calado e talvez pensasse encontrar uma mulher que quisesse andar atrás enquanto eu seguia seguro e silencioso na frente, como um timoneiro cego que finge saber para onde vai.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

Castigo

Um motivo que não vem aqui ao caso levou-me a chocar de frente com um pequeno texto de Tomás de Aquino com o título A legitimidade do recurso à astrologia. Não é que o tema me interesse, mas os seres humanos são habitados por uma curiosidade mórbida. O angélico doutor argumenta que recorrer aos astros em matérias puramente físicas não só é legítimo como faz todo o sentido. Poupo aos leitores explicações e exemplos. Seria, porém, uma falta muito grave, argumenta, recorrer aos decretos dos astros para determinar a vontade humana. Isso implicaria que não seríamos livres. E como o texto é de um santo ocorreu-me logo que talvez tenha sido esse o maior castigo que Deus impôs ao homem, quando o expulsou do paraíso por causa daquela histórica, nunca bem contada, do pecado original. A partir de agora és livre, arcas com o bem e o mal que fazes, e zás, toca de fechar o Éden a sete chaves. Se isto não é um castigo, essa obrigação de andar sempre a ponderar para que lado da balança cai o que se pensa, diz ou faz, então não sei o que é um castigo.