sexta-feira, 20 de março de 2020

Viagem de Inverno

Olhei para a rua e, de súbito, apeteceu-me ouvir o ciclo de canções Winterreise (Viagem de Inverno), de Franz Schubert. Oiço a primeira interpretação que encontro, com a esperança de uma surpresa, mas não era aquilo que desejava. Procuro uma edição que junta Alfred Brendel e Friedrich Fischer-Dieskau e deixo-me deslizar na tarde. Segundo o calendário estamos a abandonar o Inverno e na próxima estação tomamos o comboio da Primavera, mas o dia chegou mascarado de invernia. Chove e o horizonte cobre-se de uma melancolia tépida. Os campos de jogos da escola aqui ao lado estão vazios, cobertos por finos lençóis de água. As árvores vestem-se de verde, mas os seus matizes são tão distintos que só um hábito enraizado me permite usar a mesma palavra para designar cores tão diferentes. Uma vez, talvez num documentário, descobri que uma certa tribo de esquimós teria mais de sessenta palavras para designar o branco. Também eu agora necessitaria de um vocabulário enorme para designar os verdes que vejo ou para classificar estes dias, em que a nomenclatura semanal começa a diluir-se. Sim, hoje é sexta-feira, e depois? Que diferença faz? Ainda não fui espreitar as torres do castelo, mas a orquídea amarela deu as primeiras flores. Há pouco recebi um vídeo com o meu neto a desarranjar a madrugada aos pais. Do que temos mais saudades aqui é de uma mera possibilidade, a de poder estar com os netos. Deixo o espírito entregue à voz de Fischer-Dieskau e agradeço ao mundo da técnica que nos deixa ouvir os que partiram sabe-se lá para onde. Talvez Deus sinta prazer em ouvir Schubert. Prometo-me, apesar de mortal, que dedicarei as próximas horas a ouvir os três ciclos de canções de Schubert. Hoje é sexta-feira, dia 20 de Março.  O Inverno e a Primavera lutam arduamente pela prevalência. O tempo porém é um deus impiedoso e fará o calendário triunfar.

quinta-feira, 19 de março de 2020

Florestas de símbolos

Abri a janela e com o ar entra também o canto dos pássaros e o bulício do mundo. Oiço a voz alteada de uma criança já em pré-adolescência, mas não percebo o que diz. Respiro lentamente para sorver o ar renovado. Nestes dias não faltam profetas do apocalipse, detectives que revelam as mais tenebrosas conspirações, analistas que desenham futuros que nos esmagarão como mosquitos. Podia ter evitado a comparação e optado por um enunciado metafórico, mas não devo esgotar rapidamente o stock retórico, a espera parece prolongada. Também não faltam idiotas, que aliás se confundem com as várias classes enunciadas ou os que lhes mimam as teorias. Eu não descobri nenhum segredo, não me foi dada visão de raio-X que equipa esses extraordinários super-homens. Tenho, porém, a vantagem sobre eles de não ser afectado pela Kryptonite, embora isso não me proteja de nada. Os vidros dos carros estacionados no hospital reverberam, enviam mensagens luminosas mas não há quem as saiba decifrar. Numa das leitura que fiz ontem, um filósofo francês referia que tudo é símbolo e logo a minha mente, perdida nos arcanos da volubilidade, chama por Baudelaire e põe-se a declamar La Nature est un temple où de vivants piliers / Laissent parfois sortir de confuses paroles ; / L’homme y passe à travers des forêts de symboles / Qui l’observent avec des regards familiers. Ponho fim ao soneto e volto a mim, mas sinto a saudade de certos olhares familiares. Penso neles e sorrio. À minha frente estão tarefas a realizar e olho para elas com inusitada benevolência. Ligam-me ao mundo, mesmo que esse não seja o melhor dos mundos possíveis. Hoje é quinta-feira, dia 19 de Março. É dia do pai e lembro-me do meu, de como gostaria de falar com ele sobre tudo isto ou sobre nada.

quarta-feira, 18 de março de 2020

Quando on a que l’amour

Mantenho os hábitos instalados. Não sei, porém, quanto tempo as rotinas resistirão ou se uma nova normalidade virá tomar conta dos dias para lhes dar uma aparência de sentido. Oiço o ruído de um corta-relvas. Levanto-me e confirmo aquilo que oiço, há alguém a aparar a relva da praceta. A partir de agora talvez precisemos de uma nova forma de verificação da realidade. Não basta que uma coisa soe para que ela exista. É preciso vê-la. E nada garante que esta dupla verificação esteja correcta, embora seja um pouco mais difícil, apenas um pouco, que se seja vítima ao mesmo tempo de ilusões sonoras e alucinações visuais. Na minha secretária amontoam-se papéis. Ordeno-os e nisso há um prazer específico, pois toda a classificação é um começo de vitória sobre o caos, e vitórias é aquilo que as pessoas mais precisam. Desenho estratégias para manter a sanidade e as actividades correntes a correr. Oiço vozes e vou à janela. Três homens confraternizam, fumam, mantêm uma quase distância. Um casal que conheço bem, ambos entrados na casa dos oitenta, passeia devagar, ela amparada por uma bengala e pelo braço dele, ele direito como se dissesse podes confiar em mim. Partilham o peso da solidão e a ameaça que parece tudo rodear sem alterar rotinas. Ao vê-los lembro-me de uma canção de Brel que começa assim Quando on a que l’amour / A s’offrir en partage / Au jour du grande voyage / Qu’est notre grand amour. Já pouca gente sabe francês, lembro-me, e sinto uma estranha saudade dos tempos em que descobri a música de Brel. Então recorro ao Youtube e escuto a canção. Contrariamente à minha natureza, pouco dada a manifestações sentimentais, acompanho-a e canto em surdina Quando on a que l’amour / A s’offrir en partage / Au jour du grande voyage / Qu’est notre grand amour. Depois, paro e deixo que a canção se escoe e olho para mim atónito. Hoje é quarta-feira, dia dezoito de Março. Escrevo o nome do mês com maiúscula e esse pequeno prazer ortográfico contenta-me.

terça-feira, 17 de março de 2020

O verde das primeiras folhas

Oiço o canto dos pássaros meus vizinhos. De mais longe chega o ronco de um carro pertencente a alguém que imagina estar em Le Mans. Há coisas que nunca passam e mesmo a actual situação não assegura que exista um salto no QI das pessoas. Não estamos num tempo de vigília mas de vigilância, digo-me para me convencer. Vigiamo-nos a nós mesmos temerosos dos sinais. O pior é a dilação da espera, de uma espera que nem se sabe do quê e que se resume em aguardar que tudo isto passe e a velha vida volte. Agora, faço pequenas caminhadas dentro de casa. De um lado, vejo o hospital com as paredes maculadas pelos fungos, do outro avisto duas torres do velho castelo, batidas por um sol quaresmal. Evito explorar a simbólica que a paisagem guarda e olho para a praceta aqui em baixo. Não posso furtar-me à recordação dos quadros de Giorgio de Chirico. Na verdade, são poucas as coisas de que podemos resguardar-nos desde que chegámos a esta terra. Ocorre-me, então, que somos extraterrestres que lutam por se habituar ao ambiente de um planeta quase hostil e para o qual não foram feitos. São tempos propícios para a proliferação de metáforas e alegorias. Toda a literatura nasce de uma estranheza, de uma inquietante estranheza, e este é um tempo propício. A sirene dos bombeiros acabou de assinalar as doze horas. O dia dobra o cume e começa a diminuir, as orquídeas, porém, erguem-se em direcção aos meus olhos. Olho-as e lembro-me dos netos. Sorrio para enfrentar a ausência. As acácias começam a deixar escapar dos seus dedos imploradores o verde das primeiras folhas.

segunda-feira, 16 de março de 2020

Olhar as orquídeas

Não vale a pena contar os dias, pois eles serão mais do que suporta o nosso desejo. Fui à varanda, na avenida quase não havia ninguém e só muito a espaços passava um carro. Ao longe, o castelo reverberava, mas o vento estava frio. Voltei para dentro e olhei para o friso das orquídeas. Não cessam de florir e a mim só me resta a gratidão. Comecei a trabalhar pouco passava das oito da manhã. Ordeno papéis, envio mensagens, verifico o que tenho e o que deveria ter, para expedir novas mensagens. Não sei se os destinatários as querem receber ou mesmo se se dignam vê-las. Tudo se tornou aleatório como se o princípio de incerteza de Heisenberg transbordasse do mundo das partículas subatómicas e invadisse o quotidiano e os devaneios de conhecermos a realidade onde se embrulha a existência. E isso pode ser um dos grandes perigos, pois apesar de tudo ser incerto é necessário que à certeza de um comportamento adequado corresponda não a maximização da incerteza do que pode acontecer, mas o contrário. Deveria evitar entrar por caminhos para os quais não fui feito. Deixemos Heisenberg em paz. Há pouco falei com um amigo que se exilou há uns tempos no Alentejo. Ontem troquei emails com outro que está fechado em Lisboa e tem a mulher também fechada em casa em S. Paulo, ambos em duplo isolamento. Lá fora oiço o trabalhar de máquinas que não consigo avistar. O café da praceta está aberto, com a esplanada ensolarada à espera de clientes renitentes em chegar. O ruído mecânico parece um cântico de esperança e não tarda terei saudades de ouvir o ranger insuportável dos baloiços do parque infantil. Vou sentar-me lá dentro para que possa ir olhando as orquídeas.

domingo, 15 de março de 2020

Uma palavra vinda de longe

Hoje é domingo, pensei ao levantar-me. Havia sol nas ruas, mas a aplicação do telemóvel tratou logo de me esclarecer que a temperatura não chegaria aos vinte graus. Noutra altura, seria ocasião para ficar grato ao deus do clima. Uma vaga apreensão nasceu em mim, mas logo a afastei, esperando que o tempo se compadeça e dê uma ajuda. Agora, enquanto escrevo, olho para a rua, o céu cobriu-se de um manto de cinza que os raios solares têm dificuldade em atravessar. Novos hábitos começam a desenhar-se, constato.  Outros porém são difíceis de combater, como a tentação sem fim de levar as mãos à cara. É um exercício de vigilância difícil e nós, há muito, perdemos o hábito de nos vigiarmos. A partir de certa altura a autovigilância começou a ter má reputação, pois contraria um modo de estar espontâneo e a espontaneidade foi entendida como prova de ser autêntico. A vida, porém, contínua. No Facebook, descubro que a missa dominical da TVI é transmitida da Igreja de S. Pedro, oficiada pelo pároco local e pelo bispo da diocese para um auditório vazio. Num site noticioso sou informado que um homem foi assassinado à facada e que a Rainha Isabel II abandona o Palácio de Buckingham. Percorro uma edição online de um tratado medieval atribuído, primeiramente, a Hugo de S. Victor e, depois, a um anónimo cisterciense, companheiro de Bernardo de Clairvaux. Numa pequena introdução dizem-me que está redigido sem ordem nem método e, a partir de certa altura, cheio de repetições. Percorro-o rapidamente e encontro isto: e aquilo que fatiga o lutador coroa o vencedor. Repito para mim a mensagem e talvez ela baste para fazer esquecer toda a desordem que, segundo o editor, macula o texto ou as nossas vidas, acrescento. Alguém, ainda na Idade Média, deixou uma palavra para todos os tempos difíceis. E aquilo que fatiga o lutador coroa o vencedor.

sábado, 14 de março de 2020

Dias de excepção

Cheguei aqui já a noite tinha descido em turbilhão sobre mais um dia em que a excepção se torna a norma. Nestas situações, à falta de experiência, recorre-se ao que se tem à mão para lhes dar um sentido. Muitos lembram A Peste, de Albert Camus. Outros não deixam de recordar o Decameron, de Giovanni Boccaccio. Ainda hoje havia quem referisse um conto de Edgar Allan Poe. A mim ocorre-me A Montanha Mágica, de Thomas Mann. Em todos eles vemos a excepção tornar-se a vida habitual. Apesar de difícil, será uma aprendizagem rápida, embora a lógica destas coisas tenha uma inclinação para nos escapar, mesmo aos que possuem uma armadura racional mais poderosa. Há pouco parei uns instantes diante do friso das orquídeas. Estão esplendorosas e indiferentes ao que inquieta os humanos, enchem o espaço com a subtil emanação da beleza, como se ela fosse a mensageira da esperança. Nem todas floriram ainda, reparei, depois voltei-lhes as costas e vim sentar-me, a pensar no que tenho de fazer, no que tenho de cuidar. A verdade é que nos disseram que o paraíso não era aqui, mas noutro lugar de onde fomos expulsos, mas não acreditámos. Imaginámos, contra todas as evidências, que poderia nascer neste mundo e pelas nossas mãos, o que suscitou um não pequeno número de teologias, de incontáveis homilias e de legiões de mensageiros do admirável mundo que estaria à nossa espera. Depois um qualquer incidente recorda-nos o outro lado da história, aquele que nos diz que este é um lugar de exílio. Encolho os ombros e digo entre dentes a cada um a sua metáfora. No telemóvel surge uma mensagem. É uma fotografia do meu neto de chapéu na cabeça. Quer vir para a província, pensei.

sexta-feira, 13 de março de 2020

Um pássaro canta

No correio havia duas cartas. Pego nelas, olho-as de soslaio e não consigo reprimir um momento de suspeição. Há em nós comportamentos muito arcaicos vindos daqueles tempos em que ainda não tínhamos estabelecido um cordão sanitário eficaz em torno das comunidades humanas para as proteger dos predadores e da própria natureza. Estabelecido este, esses comportamentos foram recorrentemente avivados ora com a guerra ora com a epidemia. Voltam a manifestar-se. Está uma tarde soturna e caminha-se para a Páscoa como se estivéssemos efectivamente na Quaresma. Os lugares estão mais vazios, o bulício das ruas baixou de intensidade e na face das pessoas há um esgar de preocupação. São imensas as coisas por fazer, mas a vontade está avara. Nada corrói mais o querer do que a suspeita e esta tornou-se, também ela, pandémica, uma reacção psicológica à ameaça. Em ambientes destes surgem todas as teorias marcadas pelo terror e a própria razoabilidade vai sendo escavada até que derrui. Nos telhados em volta, não vejo nenhum dos anjos que lá costuma parar. Talvez tenham partido em serviço, talvez tenham ido a um congresso angélico discutir o que fazer connosco, talvez tenham sido chamados pelo Criador para escutar ordens e receber recomendações. Na escola ao lado ainda há bolas a rolar, rapazes a correr, gritos de golo. Um pássaro poisa no parapeito da janela e canta.

quinta-feira, 12 de março de 2020

Dias difíceis

Não sem dificuldade juntei os bocados em que me divido para chegar a esta hora que anuncia o crepúsculo. Os dias não têm sido fáceis e a prova disso é que as minhas leituras se resumem a O Homem que era Quinta-Feira, de G. K. Chesterton. Não me atenua o cansaço mas faz-me sorrir. Lera-o há muito e havia muitos pormenores que se tinham apagado. Na mesma época li O Ente Querido, de Evelyn Waugh, e A Relíquia, de Eça de Queirós. Lembro-me de os ter juntado, mas não sei precisar a razão. Porventura, um acaso. Tenho pena de já não conseguir situar na existência a época em que os li. Talvez fosse um tempo em que precisasse de me rir um pouco, embora, ao contrário do que por vezes parece, não tenho propensão depressiva. Gosto de pintar o mundo com tintas escuras, mas o mundo faz muito por isso e teima com frequência elevada em não me desmentir. Um pessimismo antropológico não faz mal a ninguém e talvez ajude a que todos sejamos um pouco menos bárbaros. As sombras arrastam-se pelo chão, restos de luz batalham com denodo contra a vinda da noite, qualquer coisa cai num dos andares contíguos, oiço um bater metálico e depois o silêncio desce em espirais sobre mim. No ar, há uma exaltação contida, algum medo disfarçado por risos forçados. Não é fácil ser-se despojado dos hábitos, que são uma segunda natureza no dizer do velho Aristóteles. Nada melhor que citar uma autoridade para acabar.

quarta-feira, 11 de março de 2020

O deus do vazio

Anúncio do Verão. A temperatura chegará por aqui aos vinte e nove graus. O inferno insinua-se ainda a estação fria olha para o deve e haver e faz o balanço final, antes de entregar a contabilidade nas mãos da Primavera. Os últimos dias deixaram-me a cabeça mais vazia do que o habitual. Uma descoberta já não recente ensinou-me que quando lidamos com o vazio tornamo-nos como ele. O nada contamina a realidade e fá-la explodir. Com os anos fui descobrindo que a nulidade é uma divindade poderosa e tem ao seu serviço um sacerdócio persistente, auxiliado por janízaros impiedosos. São pagos para destruir tudo o que faça sentido e instituir a nova ordem onde nada existirá. Continuo a falar por enigmas e isto não é sinal de sanidade mental. Daqui a pouco irei para a rua e não sei se hei-de fingir-me no Inverno rigoroso ou se cedo à tentação estival. A cidade estará ensolarada e no sítio onde me esperam haverá sacerdotes do deus do vazio, perdidos em liturgias que só o demónio poderia ter inventado. O hospital ergue-se sombrio, as paredes maculadas por fungos, um bloco preso à terra para me roubar a vista dos campos. Desvio o olhar e vejo ao longe a serrania e penso que nunca sabemos para o que estamos votados.

terça-feira, 10 de março de 2020

O dardo refulgente

Sob o olhar atónito um espectro silencioso desenha a sua sombra de antracite na prosa gasta do mundo. Universidades e escolas fechadas, eventos cancelados, um país em quarentena. A fragilidade de tudo borbulha e ouve-se o ploc-ploc das bolhas ao rebentar. Tivera pendor para moralista e que magníficas máximas poderia agora expelir sobre a vaidade dos homens e as ilusões da vida. Não passo todavia de um mero narrador cujas palavras são o capricho de um autor com o qual nem sempre mantenho as melhores relações. Há que evitar moralizar sobre a desgraça, diz-me e eu obedeço-lhe. Sento-me à secretária e vejo o tempo, como um dardo refulgente, a deslizar à minha frente. Ao lado dele vai um casal de mãos dadas, perdido na verdura dos anos, o vigor dos corpos ainda disfarça aquilo que os espera na curva dos dias. O ranger do baloiço está cada vez mais insuportável, lembra o crocitar de uma ave agoirenta, enquanto uma criança vai e vem, vai e vem, impelida por uma mãe distraída, que por vezes leva as mãos à cabeça para compor os cabelos que o vento teima em desalinhar. Ao longe, no vazio dos campos, erguem-se ciprestes, um aqui outro ali, mais dois ou três à esquerda. Estão silenciosos e a sua sombra cresce oblíqua pelo chão. A reverberação da luz espalha um traço de melancolia na tarde e em tudo descubro a convocação de um romantismo chegado no vapor que deixou a estação do século XIX. Lá em baixo um adolescente grita ó Filipe anda cá já, um imperativo cambado, tinto pela incerteza de se fazer obedecer. Na avenida, os carros passam, param na passadeira para que peões cheguem ao outro lado, como se houvesse outro lado aonde chegar.

segunda-feira, 9 de março de 2020

Tempo de sacrifício

Daqui a pouco devo participar num exercício de penitência. Penso isto e rio-me. Afinal estamos na Quaresma e este é um tempo penitencial. Depois ocorre-me a possibilidade de já não ser assim. Não vejo ninguém com ar penitente, nem que se exima de carnalidades. Os jejuns passaram de moda e a abstinência contraria as regras do mercado. A ideia é nunca nos abstermos seja do que for. Alguém terá de fazer sacrifícios pelo bem da comunidade e hoje cabe-me a mim, intimo-me com a habitual tendência para o exagero. Lembro-me de imediato de alguns sacrifícios célebres. O de Isaac, que prazer em não escrever Isaque, por Abraão e o de Ifigénia. Naqueles tempos as coisas eram bem mais sérias. A tarde espuma um sol esbranquiçado, preguiçoso, enquanto eu antecipo o altar que me espera, os artifícios dos sacerdotes e sacerdotisas de serviço e o próprio deus, perante o qual sou completamente ateu, a que eles votaram as suas vidas. Há escolhas que são tão eloquentes que nem vale e pena sublinhá-las. O melhor é não fazer juízos apressados, pois houve quem visse no carrasco um ser sagrado, a pedra angular sobre a qual se constrói o edifício social. Hoje estou com uma tendência desmedida para o enigma, mas tudo no mundo é enigma, a começar por esta chávena por onde bebo o café e a acabar no facto cru de haver tardes, noites e manhãs. Respiro fundo e só espero que chegada a hora, em plena liturgia, não me dê o sono. Ando a dormir pouco e mal.

domingo, 8 de março de 2020

Um treino para o futuro

Realizo com método e sem prazer um conjunto de tarefas que tem por finalidade coisa nenhuma. Conheço muita gente que faz coisas úteis, mesmo que isso não lhe dê um especial prazer. Eu especializei-me em inutilidades. A inutilidade tem uma estratégia insidiosa para impor a sua natureza despótica. Durante muito tempo ela traveste-se, mostra-se como um farol que iluminará o bem. Quando o incauto, neste caso eu, dá por isso, está enrolado de pés e mãos e já passou há muito o tempo em que poderia ter-se posto a grande distância. A partir daí terá de sofrer, e isto não é uma hipérbole, os desvarios das coisas inúteis, o poder infinito dos produtores de irracionalidades, das imaginações transbordantes com que conseguem apresentar as maiores idiotices como sinal de razoabilidade. Alturas há em que chego a apreciar este meu destino, o treino que me dá lidar com a insensatez. Tenho esperança que no futuro me seja de grande préstimo, quando a idade, se a ela chegar, me trouxer a demência ou coisa semelhante. Terei paciência para mim, serei condescendente com os esquecimentos, a troca de nomes, as frases truncadas, até com os risos idiotas que haverei de ter sobre coisas que não têm graça nenhuma. Deus escreve direito por linhas tortas, é o que penso quando me deixo invadir pela cultura ao gosto popular. Dá-me uma realidade insensata para que eu aprenda a viver com a insensatez que me espera. O domingo está cinzento e preciso de sair, mas muitas são as coisas idiotas que me retêm.

sábado, 7 de março de 2020

Mistérios da botânica

Acordei muito cedo. Pus-me a ler e tornei a adormecer. Não é que Chesterton me dê sono, mas dormira muito pouco. Quando dei por mim a manhã tinha entrado na idade madura, com uma luz quente e uma temperatura sensata. Lembrei-me que ainda há uns meses o pequeno almoço começava ritualmente, sem qualquer expectativa terapêutica e apenas por puro prazer, com um copo de sumo de toranja. Entre esta e um medicamento que tenho de tomar existe uma incompatibilidade tal que não podem coexistir no meu pobre organismo. Durante muito tempo, pus de lado o medicamento. Agora rendi-me à realidade, que é sempre mais perversa do que deveria ser. Antes de tomar o pequeno almoço dei uma volta pela casa para abrir janelas. De todas as coisas teóricas que me interessaram, a botânica não foi uma delas. E entre as poucas coisas práticas que me solicitaram o desejo, não consta a jardinagem. A verdade, porém, é que nunca deixo de contemplar o friso das orquídeas e o pequeno mistério que lá habita. O friso dar orquídeas é uma hipérbole para designar o parapeito de uma janela onde habitam dez exemplares desta espécie. Estão a florescer. O mistério é o da orquídea branca que chegou aqui nos finais de Março do ano passado com as flores abertas. Enquanto as suas novas vizinhas entregavam a beleza ao criador e hibernavam, ela manteve-se florida até hoje e, conforme pude constatar, promete continuar. Durante os meses de Outono e Inverno foi incansável, oferecendo o imaculado da sua brancura como uma bandeira para apaziguar os espíritos. Quando a olho imagino que será um anjo cansado de voar e que tomou a forma de uma planta. Os anjos são capazes de tudo, embora também angelologia não seja uma das áreas a que tenha dedicado atenção, o que não me permite ter a certeza se entre as hierarquias angélicas existirá alguma cujos membros se possam transformar em orquídea. O sábado já passou pelo portal do meio-dia. A minha consciência olha-me acusadora e pergunta-me por que razão não dei atenção à botânica nem ao estudo dos anjos. Olhei-a nos olhos e fiz-lhe um gesto que por decoro me abstenho de descrever.

sexta-feira, 6 de março de 2020

As memórias inúteis

Desembrulho devagar a sexta-feira, mas ela teima em contrariar-me a lentidão, apressada em chegar ao fim-de-semana. O telhado do pavilhão desportivo da escola ao lado reverbera, batido por um sol desavindo com a estação. Mais ao longe o pequeno bosque de cedros é já um pasto de sombras, ocupado pelos rebanhos da noite. Irrito-me com esta propensão para a metáfora fácil. Tivesse eu mão em mim e impor-me-ia uma escrita rasa, sem o pathos do desvio. Barulhos metálicos, como se escravos acorrentados arrastassem os pés pela calçada, chegam até mim. Rugosos, crus, quase acastanhados. Também devia evitar as sinestesias. Agora um momento de silêncio abriu o caminho por entre os rumores do mundo. Toco-lhe, sinto-lhe a transparência e recosto-me na cadeira à espera que uma revoada de anjos passe no céu. Pensei expulsar a humanidade destes textos, mas não posso deixar de referir o nome de Dharmottara, um filósofo budista que viveu no século oitavo em Caxemira. O que ele pensou não vem ao caso, mas lembrei-me da veneração que havia pela lã de caxemira e é essa recordação que contemplo. Tenho em mim muitas memórias que não servem para nada e são essas que cultivo para minha perdição. A que mais me espanta é a do vento a soprar defronte da escola onde aprendi a ler. Em nenhum outro lugar ele sopra assim. Tenho um rol não pequeno de tarefas para executar. O baloiço do parque voltou a ranger e eu ranjo com ele, irmanados na falta de sentido que nos anima.

quinta-feira, 5 de março de 2020

Tendência para a dissipação

Olho à minha volta e observo com demora as dezenas de livros que comprei nos últimos tempos. Há neles uma ameaça demasiado grande para ser ignorada. Entre o desejo que me levou a comprá-los e a possibilidade física de os ler vai uma distância tão grande que não tenho qualquer possibilidade de a percorrer. Há quem defenda a teoria de que perante uma vida sempre demasiado curta só se deva ler os clássicos, aqueles que o tempo canonizou. Racionalmente, parece-me uma boa ideia, mas entre a razão e o desejo há uma distância infinita. Por vezes, faço planos para ler aqueles romancistas portugueses que ninguém lê, os esquecidos do cânone ou então os filósofos que o tempo derrotou. Assim, levado pelo pela incongruência do desejo, vou comprando livros, empilhando-os conforme posso. O que em mim me espanta é esta capacidade para a dissipação, o cultivo de objectivos que nem ao diabo lembrariam, o poder de escolher sempre aquilo que não deveria escolher. Há em tudo isto uma libertinagem que não augura nada de bom ou sequer de remediável. Bem me avisaram que o desejo era mau conselheiro e pior que as tentações era não lhes resistir. Haverá alguém que leia O Prato d’Arroz Doce, de Teixeira de Vasconcellos, ou Memórias d’um Doido, de Lopes de Mendonça? Haverá alguém que saiba quem são os autores? Não, claro que não, mas esses romances repousam na minha secretária, como se chamassem por um derradeiro leitor e eu, suficientemente doido ou amante de arroz doce, existisse para lhes cumprir a última vontade. Tenho de ter uma paciência infinita para aturar estas idiossincrasias.

quarta-feira, 4 de março de 2020

O verbo reunir

Olho para a minha agenda, uma agenda imaginária, claro, e sou assaltado por uma pergunta. Que mistério haverá no verbo reunir para que ele exerça sobre tantos tão poderosa atracção? Vou a um dicionário, olho o verbo bem nos olhos, perscruto-lhe a intimidade e começo a vislumbrar aquilo que nele há de tão poderoso. Exprime uma nostalgia e uma recusa. Imaginemos a expressão toca a reunir. Nela há uma urgência na recusa do estado de dispersão. Haverá medo de que dispersos, perdidos na singularidade, não consigamos resistir a não se sabe bem o quê. E é aqui que nasce a nostalgia desse tempo mítico em estávamos todos unidos. As instituições estão cheias de reuniões porque muitos daqueles que as ordenam são pessoas nostálgicas e medrosas. Não suportam a solidão do estado de dispersão, desejam ardentemente voltar ao estado arcaico que habita a sua imaginação. Tudo isto para dizer que tenho duas reuniões para me ocuparem a tarde, sem que lhes vislumbre a necessidade, a não ser para aqueles que têm medo da solidão. Uma motorizada ronca pelas ruas aqui à volta. O ruído da maquineta é inversamente proporcional à inteligência de quem a conduz. Depois imagino que também ele terá pressa para se reunir. Os pássaros meus vizinhos parecem corroborar a minha ideia, mas logo abandonam o assunto para se entregar a uma conversa sobre os planos de voo. Também eles precisam de acertar detalhes, tomar decisões, fazer escolhas. Calaram-se agora, sinal que tudo está resolvido.

terça-feira, 3 de março de 2020

A insurgência contra a voz

O céu sobre o hospital parece chumbo, tão carregadas estão as nuvens. Tenho alguns assuntos pouco entusiasmantes para resolver, mas folheio um livro de memórias de Elias Canetti, O Archote no Ouvido – História de Uma Vida. Leio umas frases aqui, outras ali, saltitando com inconstância, enquanto vou espreitando os meteoros. Já ninguém emprega esta palavra para designar o que acontece na atmosfera. A terceira parte do livro, que trata da vida do autor em Viena entre 1926 e 1928, tem um título extraordinário, A Escola do Ouvir. Será, por certo, uma metáfora, mas representa um modo de existência. Aprender a ouvir e aprender ouvindo são a mais profunda forma de aprender a viver. Só a voz toca as cordas do coração e abre caminhos insuspeitos, muitos dos quais se manterão secretos até que, por um qualquer acidente de percurso, eles se revelem, com o que têm de benfazejo. Hoje ninguém quer aprender a ouvir. Não se suporta escutar uma voz. As crianças não devem aprender ouvindo, diz-se, mas devem fazer, experimentar, como se estivessem todas condenadas à fabricação. O que me impressiona é o medo que se tem de saber escutar. Esse medo nasce da recusa da voz. Os filhos não escutam a voz dos pais. Os alunos recusam a voz dos professores. Temem que essas vozes não sejam as do futuro ou não foram educados a suportar o imenso peso do passado que uma voz traz em si. Não é por acaso que um certo livro do Novo Testamento começa dizendo que no princípio era o Verbo. No início está a voz que profere a palavra. A insurgência contra a voz, a recusa da escola do ouvir, não representa progresso algum, mas a perda da nossa humanidade, que está toda ela nessa voz que faz ouvir e que se escuta. Hoje cheguei à tarde envolvido num pathos metafísico, o mais sensato será ir comer chocolate.

segunda-feira, 2 de março de 2020

Uma tarde na vida de um pobre mortal

A tarde não podia ter começado da pior maneira. Uma ida ao banco para resolver assuntos pendentes e a pendência demorou quase duas horas, entre papéis e sorrisos, uma linguagem esotérica, talvez uma iniciação à Cabala, sobre pacotes e anuidades, cuja finalidade já esqueci. Almocei de cabeça vazia passava já das três da tarde. A seguir fui à farmácia, mas havia gente e tive de esperar a minha vez, que veio sorrateira, sem grandes demoras, entre sorrisos e consultas ao computador, temos nesta versão, mas se quiser outra, mandamos vir. Não mandam vir nada, que eu fico com esta, há-de tratar-me tão bem que nunca hei-de esquecer-lhe o nome e saí grato com o colírio benfazejo que me há-de tratar de ser quem eu sou. Chegado a casa lembrei-me – por milagre – que me tinha esquecido de confirmar a consulta no cardiologista. Liguei para o consultório, sou recebido por uma música que nunca ouviria por livre iniciativa e uma voz mecânica informa-me que estou em fila de espera, serei atendido tão breve quanto possível. Por vezes, faz-se silêncio, tenho esperança que alguém me atenda, mas continuo na fila, uma fila invisível, um objecto idealizado onde não existe ninguém, apenas aquela música e a informação de que estou em espera, como se eu não soubesse que o estava. Entrei numa distopia, tenho de sair o mais rápido possível dela, anotei na minha agenda. Depois, uma voz feminina atende-me, imagino que também ela sorri, explico-lhe o meu problema, ela diz um momento e lá fico outra vez em fila de espera, mas sem música. Os minutos passam, a vida passa com eles, eu olho para o relógio, até que a voz feminina retorna, pede desculpa porque teve de dar assistência a um médico. Que não se preocupasse, respondi-lhe. Lá trato da consulta e escapo-me para o silêncio do meu escritório, sem transacções bancárias, nem medicamentos com multiversões ou consultas a confirmar. Não sei porquê, mas o meu telemóvel informa-me que a Terra pode ser expulsa do Sistema Solar por causa de uma estrela. Leio a descrição das consequências. O nosso planeta seria arrastado para as profundezas do espaço interestelar, condenado a vaguear pelas terras congeladas da nossa galáxia. Perguntou-me se é para isto, por que hei-de andar a tomar medicamentos e a confirmar consultas, depois o artigo informa-me que a hipótese disso acontecer é pequena. Recomponho-me e torno a anotar na agenda, como se fosse em rodapé, uma tarda perdida, embora a possibilidade da Terra ser expulsa do seu lugar seja diminuta. Lá fora a anemia cresce dentro dos raios solares e uns adolescentes jogam à bola. A vida desliza-me do corpo.

domingo, 1 de março de 2020

Cultivar um jardim

Aos domingos à tarde, durante aquelas partes do ano em que a realidade tem um efeito devorador na vida, sou acometido por uma náusea que me enche o coração de um certo despeito e, confesso-o, desprezo por mim. Depois, com a aproximação da noite, o enjoo existencial passa e a vida conforma-se com o que tem de ser. As trevas tornam-se assim luz que ilumina a escuridão que há-de vir. Hoje, porém, a náusea recusou-me a sua presença e fiquei sem saber a razão. É certo que o meu neto esteve cá e que conseguimos já fazer em conjunto umas patifarias ingénuas só para irritar os circunstantes, o que significa que está a nascer aquilo que há-de ser, assim o espero, uma bela cumplicidade. Talvez tenha sido isso que me dissipou o fastio tradicional deste dia e mesmo quando ele foi para Lisboa a repulsa metafísica pela realidade já não teve poderes para se impor. Ontem comprei um livro do filósofo coreano Byung-Chul Han com o belo nome de Louvor da Terra. Um dia, escreve ele, sentiu uma profunda nostalgia da terra e então decidiu cultivar um jardim. Fê-lo durante três anos e o livro é uma meditação sobre essa experiência, na qual a terra, o revolver da terra é central. Em mim nada apela para que cultive um jardim, mas existem imagens muito arcaicas de terra revolvida, memórias dos cheiros que dela se desprendiam, mas não tenho alma de lavrador ou de jardineiro. Os pássaros meus vizinhos entoam um cântico. Distingo nele um hossana em louvor do céu. Também eles sentem nostalgia do seu elemento natural e, enquanto desenham estranhas espirais no ar, talvez cultivem o seu jardim suspenso. Mais ao longe distingo, num céu de antracite, os vultos negros de dois corvos. Sombras rápidas, carregadas de anos e de uma sabedoria antiga que não partilham com ninguém. Os dias vão crescendo, mesmo que a luz, nesta hora, esteja cansada e sonolenta. Passam das seis da tarde e ainda nenhum anjo poisou no telhado do prédio em frente. O que andarão a fazer, pergunto sem esperar que alguém me responda.