quinta-feira, 23 de abril de 2020

Noutro mundo

Ao fim de não sei quantas semanas comprei livros. Heróides, de Ovídio, Poemas,  de Tibulo e Epístolas, de Horácio. O confinamento predispôs-me para os clássicos, dir-me-ão. Falso, os motivos são vulgares. A editora está a vendê-los com um belo desconto e ao fim de tão grande período de abstinência decidi que estava na hora de fingir que as coisas são como sempre foram, que a natureza é imutável e a realidade voltou aos carris de onde nunca deveria ter saído. Uma ilusão, mas agora tenho um novo horizonte, o da chegada dos livros, o ritual de os desembrulhar, de passar as mãos pelas capas e os olhos pelas páginas impressas. Há que ter cuidado na tarefa de lidar com o correio, não seja uma carta armadilhada, não venha na encomenda uma bomba invisível. Sem darmos conta, movemo-nos já noutro mundo, novas regras emergem, outros gestos são obrigatórios. Talvez aprendamos a justa distância, diz-me a consciência, sempre agastada com as homilias dos afectos, com as pessoas a beijocarem-se por tudo e por nada. Neste caso, um dos poucos, partilho o ponto de vista da minha consciência. O ideal seria introduzir a vénia como forma de cumprimento habitual. Uma leve inclinação da cabeça e o mundo pareceria mais sensato e, por certo, o deus Eros agradeceria, pois nada o torna mais alegre do que essa distância que mantém o desejo em tensão. Bem, o autor assim como me proibiu tiradas políticas, também não me permita derivas eróticas ou sequer considerações sobre o assunto. Sou um narrador obediente. É mais recomendável falar do céu cinzento, do verde das árvores, do silêncio do mundo ou da algazarra que se deixou de ouvir. Tenho pena da minha caixa de email. Parece uma Penélope a atrair pretendentes, mas não há Ulisses que lhe valha. Hoje é quinta-feira, dia 23 de Abril. Não chove, mas imagino a água pelos córregos, os campos a verdejar e, de súbito, descubro-me um amante da natureza. No hospital, os vidros dos carros reverberam, enquanto a tarde lépida se afasta da manhã. Espera-a a noite.

quarta-feira, 22 de abril de 2020

Dias intérminos

As águas de Abril recolheram-se à cisterna, onde um deus imprevisível e de má catadura as armazena para as usar ora como bênção, ora como castigo dos mortais, segundo uma disposição cujo segredo está oculto aos poderes humanos. Louvo-me nestas banalidades e evito pensar seja no que for. O ideal seria pensar em nada e o mais belo de todos os ideais seria que certas pessoas evitassem o uso sempre deficiente do cérebro e se entregassem a um estado vegetativo contumaz. O mundo tornar-se-ia um lugar menos triste se esses animadores nos poupassem os rasgos. De manhã, ao levantar-me, havia sol na rua. A Primavera endireitava-se sobre as pernas ainda cambas e ensaiava um passeio pelas ruas. Ninguém diria que cambo tem a sua origem num radical céltico. Asseveram-me, porém, que assim é. Eu acredito, pois o que mais resta a um confinado do que crer? Continuo a praticar os pequenos gestos quotidianos de sempre, faço-o como se tratassem de rituais que me ligam a esse tempo sagrado antes da queda nesta situação. Estes dias fazem-me lembrar, por vezes, aquelas tarde intérminas do Verão, em que as horas de calor terrível se recusavam a passar e eu lia, lia. Não, não era Tolstoi, nem Kafka, nem Thomas Mann. Nesses dias ainda não tinha adoecido o suficiente. Lia o Texas Jack, o Condor, o Ciclone, o Falcão e as célebres aventuras do major luso-britânico Jaime Eduardo de Cook e Alvega. O que eu não sabia na altura é que, no original inglês, o major era tenente-coronel e de português tinha nada. Também não sabia que o tradutor era Anthímio de Azevedo, o mais célebre meteorologista português. Agora que sei isso tudo, não faço ideia para que me serve essa sabedoria. Hoje é quarta-feira, dia 22 de Abril. O vento estremece a folhagem do arvoredo, contínuo a ouvir a voz de Montserrat Figueras. O Major Alvega deixou de combater, já não me recordo das histórias do Condor nem do Ciclone e talvez Texas Jack tenha sido abatido num duelo. Um dias destes, caso não me cuide, ainda acabo a falar na Ponderosa, o rancho dos Cartwright.

terça-feira, 21 de abril de 2020

Alexandrinos e redondilhas

Escando os dias como se fossem versos, espero encontrar neles a métrica que dê ritmo ao desconcerto, que transforme a cacofonia numa peça musical digna de ser escutada num futuro em que a memória destes dias seja apenas uma sombra rente ao entardecer. Oiço o barulho de uma rebarbadora, mas não consigo perceber de onde vem. Não é a primeira vez que me atinge, nestes dias, a rugosidade daquele ruído, vindo da rua. Malditas aliterações e assonâncias. Devia evitá-las para não me estragarem a prosa. Vou à janela, olho para aqui e para ali, mas não descubro a fonte do incómodo. Talvez seja apenas parte de um pesadelo, embora eu jure que estou bem desperto, e não me venham com a história de Descartes que não se é capaz de distinguir o sono da vigília. Na avenida é notório já o corrupio dos automóveis. Deslizam como se tivessem conquistado a cidade a um inimigo implacável. Reparo que dei um erro ortográfico, emendo-o, mas fico infeliz, a palavra era mais bela com o erro do que sem ele. Daqui se prova que entre ortografia e estética não tem de haver compatibilidade. Correcção e beleza raramente andam de mãos dadas, mas não quero lançar falsos testemunhos. As oliveiras que ontem tinham desaparecido voltaram para o seu lugar e isso tranquiliza-me, como se me dissessem que todas as coisas têm um lugar a que podem voltar. Hoje é terça-feira, dia 21 de Abril. Continuo a enunciar o dia da semana e o do mês. Faço-o como se isso me protegesse de qualquer inimigo inominável, mas o mais certo é que ainda me transformo em calendário. Antes em calendário do que em herbário, digo-me, mas não estou certo se deveria ter feito tal comentário. Se cada dia fosse um alexandrino, Abril teria trezentas e sessenta sílabas métricas. Não haveria quem suportasse tanta poesia. Talvez bastasse a redondilha maior e ainda dava letra para um fado.

segunda-feira, 20 de abril de 2020

Simulacros

O melhor é não crer naquilo que os olhos vêem. O que até ontem sempre me pareceu ser oliveiras apresenta-se hoje sob uma outra capa que, fora eu dado a crer em metamorfoses súbitas, diria que alguém trocou as árvores. Eu sei que a luz é senhora do mundo e basta que ela mude para que as coisas pareçam outras, e a luz de hoje não parece confiável a ninguém. Um dia destes, tenho a esperança, as oliveiras voltarão para o lugar que era o delas e aqueles simulacros que lhes ocupam os espaços serão levados para longe dos meus olhos. O principal problema de tudo isto é a dúvida para a qual sou de imediato arrastado. Não serei eu também um simulacro de mim mesmo? Não estou certo, mas inclinar-me-ia para a possibilidade disso acontecer rondar os oitenta por cento. Uma estimativa conservadora, dirá um especialista nestas coisas. Não sou eu, portanto, que escrevo, mas o simulacro de mim. A manhã não me terá feito muito bem. Hoje já videoconferenciei duas vezes, pensei em coisas práticas, logo eu tão pouco dado ao prático, e li coisas que não deveria ler. No mundo proliferem coisas ilegíveis, embora sejam as que mais leitores têm. Na consciência deixo correr as coisas que tenho para fazer esta tarde, mas logo o pensamento muda de agulha e se centra não no que devo mas no que desejo fazer. Uma tragédia esse eterno conflito entre dever e desejar. Observo com demora a rua e vejo o dia a cambalear tristonho e choroso pelas áleas escuras do tempo, como se o crepúsculo se devesse demorar hora sobre hora, incapaz de dar à luz a noite escura. Não me ocorre nada de assinalável para assinalar e o melhor é calar-me. Hoje é segunda-feira, dia 20 de Abril. Chove e o mês entrou no seu último terço. Um pássaro abusa do efeito de redundância na emissão da mensagem e do gira-discos, como sou velho, chega-me a voz da Montserrat Figueras e a música de Jordi Savall, no prodígio de misturar vivos e mortos que só a técnica consegue.

domingo, 19 de abril de 2020

A vila sitiada

Sem motivo, deitei-me tarde e tarde me ergui. Quando a janela se abriu havia sol, olhei-o, mas logo descobri que não saberia o que fazer com ele, como começo a não saber o que fazer com muitas coisas. O mês anda resfriado e as tarefas com que os dias são ocupados nunca deixam de exibir a marca de pechisbeque que é a delas. Ainda não fui espreitar o movimento na Sá Carneiro. Talvez a própria avenida se tenha movido para outro lado e eu agora viva num sítio inóspito, cheio de felinos ameaçadores e répteis que nem nos piores pesadelos existem. Ou então terei sido transportado para a Idade Média. A vila está sitiada talvez por castelhanos, talvez por mouros. Estamos em casa, passam dragões fumegantes, as muralhas contêm o inimigo e a peste grassa por entre os dois exércitos. Rio-me com a propensão para a hipérbole e lembro-me que a velha vila foi despromovida a cidade, para que todos se ufanassem da urbanidade decretada, apesar dos dedos rústicos e das mãos calosas. Quem é que quer ser um vilão? Não deveria fazer considerações destas. Avisto, sob a copa das árvores, uma rotunda coberta de repuxos e edulcorada com uma estatuária inominável, talvez comprada em algum leilão aquando da falência de um país socialista, mas estou interdito pelo autor de me meter em assuntos políticos. Sou um narrador obediente e na rotunda apenas vejo os carros que passam. Oiço o grasnar de uma motorizada, a buzina de um carro, o latir de um cão, vozes que vêm da praceta. Abro a janela e oiço o vento, um vento triste, comprometido, com a impotência estampada no rosto. Hoje é domingo, dia 19 de Abril. Anoto na minha agenda que terei de limpar a secretária e arrumar os papéis, ponho o telemóvel a carregar e sinto uma súbita saudade de ir ver o Tejo. As oliveiras da escola aqui ao lado dançam, embaladas pelo vento e nas suas folhas há um brilho de cinza e prata. Cada vez gosto mais delas.

sábado, 18 de abril de 2020

Um armistício com a balança

Até que enfim. Depois de meses de disputa, a balança convenceu-se, não sei se por piedade, a devolver-me, quando pisada, um peso próximo daquele que me é recomendado naquelas equações entre peso e altura, talvez com idade a entrar também no problema. Não se pense que isso se deve ao facto de há mais de um mês não pôr um pé num restaurante, ou à dieta seguida em confinamento, ou sequer à prática diária de quase uma hora de exercício. Há que evitar interpretações maldosamente materialistas. Tudo aconteceu devido à meditação transcendental e à recitação quase ininterrupta do mantra om mani padme hum. Não se trata da ideia pouco espiritual de que se uma pessoa recita um mantra não come. Pode ser verdade. A questão, porém, é outra. A balança pensou, ao dar conta dos meus exercícios espirituais para combate ao excesso de peso, que eu ia enlouquecer e, por um acto de misericórdia, começou a devolver-me números mais afáveis, embora na semana passada tenha hesitado. Assinámos hoje, eu e a balança, um armistício e, continuando ela assim, haveremos de celebrar um tratado de não beligerância. O dia está semi-radioso, o céu é uma manta multicolorida de retalhos, suficientemente esburacada para deixar passar um sol temeroso e pouco convicto dos seus poderes. Na avenida, passam mais carros do que tem sido habitual e um transeunte, que ainda não chegou a acordo com a sua balança, arrasta um peso excessivo sobre a calçada, movendo devagar as pernas, descansando sob a sombra das árvores, olhando estupefacto para um lado e para outro. Oiço o barulho de garrafas a cair num vidrão e recordo-me de que fui acordado pelo ronco de um corta-relvas de uma empresa de jardinagem que cuida dos espaços públicos. É uma empresa muito preocupada com aquilo que as pessoas podem fazer na cama ao sábado de manhã e, por isso, elegeu-o para enviar os seus batalhões de cortadores de relva, com os tanques de combate. Hoje é sábado, dia 18 de Abril. Os dias passam sorrateiros, a minha caixa de email continua a ser bombardeada e o telemóvel mostra-me duas fotografias da minha neta mais velha com um ano de diferença. Abro a boca de espanto, mas logo a fecho. O tempo passa. Não há nada como um truísmo para acabar.

sexta-feira, 17 de abril de 2020

Ser a quarentena

O enfolhamento das árvores caducifólias vai a bom ritmo, não faltará muito para que a exuberância tome conta delas e as pessoas comentem o quanto estão frondosas. Logo se recolherão na sua sombra, protegendo-se dos raios desferidos por um Sol que se há-de tornar desabrido, senão mesmo inclemente. A espécie humana tem o curioso destino de criar continuamente palavras. Depois envolve-se nelas e pensa que fica ao abrigo das intempéries e da volubilidade da natureza. Não fica, pois esta nunca se cansa de congeminar armadilhas para capturar os seres humanos, humilhá-los na sua vaidade e submetê-los a leis que eles não deram a si próprios. Não são pensamentos para se ter a uma sexta-feira. Lembrei-me dos tempos em que ia a um restaurante ou ao cinema, mas tudo isso foi há muito. Se a quarentena fosse apenas um espaço de quarenta dias, tudo seria mais fácil, mas não. Quarentena é agora uma forma de existir e não tarda uma maneira de ser. Deixamos de estar em quarentena e passamos a ser a própria quarentena. Não estamos isolados, passamos a ser o isolamento. Enquanto escrevo, vou bebendo água. Talvez tenha esperança de que a água me lave e desinfecte por dentro. Oiço Hildegard von Bingen. Se fosse um filósofo teria dito oiço a música de Hildegard von Bingen, não o sendo deixo-me levar pela preguiça e caio no alçapão das metonímias. Penso, de imediato, que a metonímia é mais verídica do que a expressão corrente, mas nada disso me salva de estar na circunstância em que estou. Hoje é sexta-feira, dia 17 de Abril. O estado de emergência vai continuar a emergir. Recebo um vídeo onde o meu neto aprende a trepar para uma cadeira de adulto e logo tenta subir para uma mesa, mas a autoridade diz-lhe que não se sobe para cima das mesas. O mundo está cheio de interditos. Felizmente, diz-me a minha consciência.

quinta-feira, 16 de abril de 2020

Voltar à normalidade

Um tempo como o que vivemos é pródigo em linguagem esotérica. Por todo o lado vejo a expressão voltar à normalidade. É uma frase difícil de compreender. Nunca se volta, pois não podemos retroceder no tempo. Mais intrigante ainda é a palavra normalidade. Isso quer dizer o quê? Talvez seja eu que não saiba compreender a língua portuguesa e tenha sido dotado de um baixo poder interpretativo. A inteligência neste mundo não será coisa lá muito bem distribuída, e ter-me-á calhado um quinhão menor. Esta é uma hipótese que não ponho de lado e afinal pode ser que se viaje no tempo e exista mesmo uma normalidade. Não sei bem a razão, mas estou um pouco irritado com o S. Pedro. Insiste num tempo triste, como se lhe faltasse ânimo para entremear umas fatias de sol entre as côdeas desengraçadas da chuva e do vento. Também estas metáforas me deixam sem ânimo, sempre podia ter achado coisa melhor. Na rua, dois cães ladram. Um deles está exaltado e, não fora intervenção humana, reduziria o outro a farinha. A minha caixa de email não pára de receber mensagens. De tanto trabalhar, ainda me há-de cair para o lado, exausta. Numa notícia sou informado de que foi avistada uma estrela a dançar em torno de um buraco negro. E esse facto será mais um prova de que Einstein tinha razão. Não sou informado a que tipo de dança se entrega a estrela, mas espero que não seja o cancã ou o tango, não estamos em tempo dessas coisas. E depois nada garante que o buraco negro possua inclinações eróticas. Só me ocorrem coisas idiotas, mas tenho de ser compassivo com a minha imaginação, ou a falta dela. Hoje é quinta-feira, dia 16 de Abril. Daqui a pouco terei uma reunião online, depois hei-de ir espreitar o friso das orquídeas, as torres do castelo e o trânsito na Sá Carneiro. São exaltantes estes dias, talvez tenhamos de voltar à normalidade.

quarta-feira, 15 de abril de 2020

Arrumações e astrologia

Abril chegou a meio do caminho envolto em água fria, caída das incertezas do céu. Ontem trovejou, mas hoje os deuses estão menos irados e guardaram na algibeira relâmpagos e raios que não usaram para fulminar a terra. Acumulam-se papéis na secretária. Tenho resistido à tentação de os arrumar. Preciso de esclarecer o que entendo por arrumação de papéis, não vá dar-se o caso de se imaginar que tenho um sítio onde, depois de devidamente analisados e classificados, os guardo, para memória futura. Na minha linguagem, arrumar papéis significa enviá-los para reciclagem, devolvê-los ao ciclo da produção e consumo. Escrevo esta frase e quase me sinto um economista, o que está longe de ser um elogio. Economistas são aquelas pessoas que estão sempre a fazer previsões, mas que nunca acertam, nem mesmo depois dos factos consumados. Não deveria serrazinar profissão tão distinta, de cujos humores depende a nossa mercearia, não vão os seus cultores começar a ornear na praça pública contra aqueles que os confundem com astrólogos. É o meu caso, mas não o digo a ninguém. Uma antiga canção brasileira dizia que a dor da gente não sai no jornal, mas agora os jornais começam a estar cheios de dor, estampam-na para que se torne viva, não vá ela, a dor, ser apenas um ponto na curva de um gráfico, um número na contabilidade da vida e da morte. Não sei o que pensar de tudo isto, mas isso também não é novidade. Oiço o vento a murmurar, incomodado com as persianas que o tolhem. Vejo da janela algumas pessoas, vão de máscara, o vento levanta-lhes o cabelo e empurra a máscara contra o rosto, enquanto elas caminham, caminham, à procura de um destino. Hoje é quarta-feira, dia 15 de Abril. Das colunas da minha cansada aparelhagem sai uma música coeva de Bruegel, o Velho. Há dias em que me sinto como se tivesse nascido nesses tempos, mas como se sabe sou dado ao exagero e cultivo a hipérbole.

terça-feira, 14 de abril de 2020

Tudo é vaidade

A Primavera prossegue o seu caminho, um pouco desgrenhada. O vento sopra, sopra, os ramos das árvores inclinam-se, mas logo voltam ao lugar, pouco dóceis aos desígnios de Eolo. Passei a manhã a teletrabalhar e tenho a tarde para resolver alguns problemas, mas são resoluções à distância, pois o nosso próximo é aquele que se mantém ao longe. Começo a evitar as notícias, não por elas, mas porque estão eivadas de profecias, vaticínios e augúrios. Nos homens, o desejo nunca se cala, nunca se conforma com aquilo que há, nunca se senta pacientemente à espere que chegue o que lhe pertence. Daí, abre a boca e desata a fabricar futuros. Ora o futuro é uma coisa que me cansa tanto como o presente, e este é o que se sabe. Vejo um vídeo do meu neto. Observo tudo o que estou a perder, embora ele não dê por nada. Nos últimos dias não tenho visto cinema e essa é uma alteração sensível. Outra é que também não tenho feito palavras cruzadas. O que tudo isto quer dizer não faço a mínima ideia. Talvez a maior parte das coisas que acontecem não queira dizer nada, limita-se a acontecer e encontrar-lhe razões é um desporto que serve para mostrar a argúcia do ego, uma vaidade. E aqui deveria dizer com o Eclesiastes vi tudo o que se faz debaixo do sol, e eis: tudo vaidade, e vento que passa, mas não digo, guardo-o para outro dia, em que não oiço o zumbir monótono de um aspirador. As acácias bastardas estão mais compostas de folhas e na rua não passa ninguém. Daqui a pouco hei-de espreitar as torres do castelo. Uma delas começa a ficar tapada pela ramagem de um pinheiro manso. Hoje é terça-feira, dia 14 de Abril. O aspirador calou-se, os pombos desenham círculos no ar e as horas desfazem-se em minutos, os minutos em segundos e estes fiam o nada que a tudo envolve.

segunda-feira, 13 de abril de 2020

Um dia cinzento

O dia parece o fruto de uma imensa tristeza. Cobre-se com um véu de cinza e esconde-se em cada beco por onde ninguém passa. Acompanho-lhe o sentimento, mas será mais assisado quebrar esta lealdade e arvorar um sorriso como se houvesse razão para uma imensa alegria. Desdobro diante de mim as tarefas que tenho de realizar ainda hoje e pergunto-me se isso serve para alguma coisa. A consciência, porém, diz-me que a ocupação é o melhor remédio para estados de alma escuros. Olho-a com desprezo, mas ela não se faz rogada e vinca a sua opinião, exorbitando funções. Volto às minha tarefas. Com elas componho um puzzle, encaixo, com paciência, as peças, rio-me se me engano. Ontem descobri um conjunto de textos que noutra época me interessariam, agora não sei o que fazer com eles. Leio-os, mas é tanto o enfado, que o melhor é esquecê-los. Oiço Andreas Scholl num Stabat Mater de Marco Rosano, um compositor italiano actual. Deixo-me surpreender pela música, fujo do fascínio que o mesmo tema tem na composição de Giovanni Battista Pergolesi. Há obras que têm uma luz tão intensa que lançam uma enorme sombra sobre todas as outras. Rosano também não é capaz de fugir por completo ao sortilégio do seu compatriota. Esqueço tudo isso e deixo a música vir sobre mim. A tristeza daquela mãe, porém, redime-me da melancolia da tarde que agora começa. Vou almoçar como se fosse um dia normal. Hoje é segunda-feira, dia 13 de Abril. Os campos da escola ao lado estão vazios, os cedros continuam a crescer e os pássaros cantam iludidos pelo calendário.

domingo, 12 de abril de 2020

Estranha forma de vida

Ao acordar, naquele momento em que a consciência abandona o estado penumbroso onde se entrega às habituais deambulações, numa negociação difícil entre as pulsões do inconsciente e os imperativos do superego, veio-me à memória um fado cantado por Amália Rodrigues. Estranha Forma de Vida. Pensei, então, que tudo se resumiria a transitar da vida habitual para esta estranha forma de vida, até que se tornasse um hábito e perdesse a estranheza, a inquietante estranheza que é a dela. Depois, tudo isto se apagou. Há pouco sentei-me no chão de uma das varandas e, enquanto lia, apanhava sol. Se a vida decorresse conforme o habitual, a casa transbordaria e aqui encontrar-se-iam quatro gerações, em que a pessoa mais velha tem mais 85 anos do que a mais nova. Nestes momentos, a precisão aritmética torna-se central. No jornal, vejo que morreu Stirling Moss. Não me lembro dele correr, mas quando me deu a febre da Fórmula 1, lá num dos recantos da adolescência, ele era uma lenda ao lado de Juan Manuel Fangio. Num dos capítulos da sua longa diatribe contra os deuses dos romanos, em A Cidade de Deus, Agostinho de Hipona lembra que em Roma se tinha Fórculo como deus das portas, Cardea por deusa dos gonzos e Limentino como deus protector dos umbrais. Contrariamente ao que os historiadores contam, não foi o engenheiro Taylor que descobriu a especialização do trabalho, mas as religiões politeístas que chegaram a um grau tal de precisão que o deus que se ocupa das portas nada sabe da protecção dos gonzos, das fechaduras nem dos umbrais. E tudo isto interessa para quê? Para nada, claro. Hoje é domingo, dia 12 de Abril. Os católicos revivem a ressurreição de Cristo fechados em catacumbas. O sol foi coberto por nuvens e eu, dentro de minutos, tenho uma missão a cumprir.

sábado, 11 de abril de 2020

Realidade metafísica

Hoje, mais uma vez, ao olhar a rua, tive a sensação de que os quadros de Giorgio de Chirico tinham abandonado o mundo imaginário da arte e se tinham tornado realidade. A praceta que se vê de um dos lados da casa estava vazia, o café fechado, o sítio da esplanada sem os chapéus de sol, sem as mesas e as cadeiras que, noutros tempos, abrigavam pessoas, que ali tomavam café, faziam confissões, diziam trivialidades, animavam as manhãs antes que chegasse a hora de almoço. Do outro lado da casa, também a visão tem a mesma natureza da pintura metafísica. O bar da esquina fechado, a esplanada desfeita, os passeios com uma ou outra sombra fugaz, de alguém que é passeado à trela pelo seu cão. As árvores estão exuberantes, resplandecem se o sol toca a folhagem, sombreiam o chão indiferentes à ausência de pessoas. Os espaços públicos são agora puras projecções imaginárias, atravessados, uma vez por outra, por fantasmas arrastados pela sua própria sombra. Que novas geografias se hão-de fabricar. Oiço ao longe o roncar contínuo de uma máquina, mas não a vejo nem consigo perceber que tipo de engenho é. Um ruído contínuo, a música de fundo de um filme distópico. Ao longe, avisto o hospital, com as paredes maculadas pelos fungos e as janelas como seteiras por onde entra o sol e saem, como flechas, os olhares de quem por lá combate. Hoje é sábado, dia 11 de Abril. Oiço os pássaros meus vizinhos e penso que lhes deveria gravar as conversas. Depois, lembro-me que talvez elas estejam abrangidas pela protecção de dados e desisto da ideia. Com tanta proibição, nunca mais hei-de conseguir desvendar a sua linguagem. Rio-me e pergunto-me se já terei dados os primeiros passos em direcção à pátria da loucura. Não consigo ouvir a resposta.

sexta-feira, 10 de abril de 2020

Sexta-Feira de Paixão

Passa do meio-dia e nada me faz lembrar ser hoje feriado. Os dias tornaram-se indistintos. Acumulam-se uns em cima dos outros e ficam por aí a esmo, perdidos, sem cor que os anime, sem nome que os distinga, pois já ninguém acredita que tenham nome. Se lhe chamam sexta-feira é apenas por hábito, não por crença que assim seja. O calendário ainda se há-de tornar uma relíquia. Ganhei novos hábitos. Faço palavras cruzadas, com muita moderação, e vejo, menos moderadamente, cinema. Em cima da secretária tenho o cartão de um restaurante de Santiago de Compostela. É um documento arqueológico, daquele tempo em que as pessoas viajavam, mesmo eu que não sou um especial apreciador da viagem turística. Tenho um número razoável de cartões de restaurantes. Guardo-os, não para os coleccionar, mas porque os uso para marcar livros. Muitas vezes, o livro acabado de ler, os cartões ficam lá. São mensagens para o futuro. Quando morrer – ou talvez antes, quem sabe? – e venderem a minha biblioteca, um comprador de um livro que fora meu há-de descobrir que havia tal restaurante em tal sítio e sinta vontade de perceber quem era o dono do livro, se esse restaurante ainda existe, se valerá a pena. Emociona-me quando descubro, num livro comprado em segunda mão, uma dedicatória ou algum texto perdido. Não sei o que fazer com tudo isto. Olho para as estantes e percebo de imediato que ainda não é a altura em que começarei a pôr ordem nelas. Hoje é sexta-feira, dia 10 de Abril. Não há cerimónias religiosas públicas, pois os templos estão fechados e os dias correm com algum azedume. Consulto as tabelas da epidemia e os augúrios não me parecem favoráveis, mas não percebo nada da arte do vaticínio.

quinta-feira, 9 de abril de 2020

Quinta-Feira de Endoenças

Confirmo na aplicação meteorológica do telemóvel aquilo que os meus olhos vêem. Está a chover. Em caso de conflito entre ambos, a qual deverei dar crédito? Aos meus olhos que com tanta facilidade se iludem ou à fria informação digital? Com pensamentos destes ocupo uma parte do tempo, a outra nem faço ideia o que se passa nela. O melhor é nem pensar nisso. Em tempos chamou-se a este dia Quinta-Feira de Endoenças. Dia dedicado à indulgência que assinalava também a última ceia de Cristo. Tudo isso se esfumou, pois vivemos num mundo – ou vivíamos – em que a indulgência foi substituída pela complacência. Desde que não nos aborreçam somos complacentes com os outros. Eu sempre pratiquei a autocomplacência, suporto-me assim e evito ter de aborrecer-me comigo. Olho para a rua e penso que este não será um ano de seca, mas não é seguro que assim seja. A água evapora-se com muita rapidez e não tardará os campos estarão à mingua dela, ressequidos por um Sol destituído de moderação e boas maneiras. Queria ter pensamentos elevados, mas a lei da gravidade impede-me. Tenho diversas tarefas entre mãos, mas elas deslizam pelos dedos que não consigo manter unidos. Tudo se tornou líquido nestes tempos. Hoje é quinta-feira, dia 9 de Abril. Apesar da chuva, os pássaros cantam e a Primavera desenrola o seu manto de enganos. A paisagem que me servia de horizonte desapareceu engolida pelo indisposição do clima. Não há sombras, mas a sombra cresce sobre o mundo.

quarta-feira, 8 de abril de 2020

Não é uma oportunidade

Enovelo-me em casa, sou um narrador que trocou a leviandade com que o autor o dotou pelo sentimento trágico daquilo que se vive. A tragédia é um artifício de purificação e vive da desventura daqueles que não a merecem, mas vou deixar Aristóteles a dormir o sono eterno e não o convocar para os nossos infortúnios actuais. Uma sirene anuncia que é quase meio-dia e fico na expectativa se ela assinalará esse instante em que o dia se divide exactamente em duas partes iguais, uma vivida e outra por viver. O mundo está cheio de marcas, sinais, indicações para que regulemos o nosso caminho e não nos despenhemos no primeiro precipício que nos apareça. Muitas vezes toda essa parafernália de símbolos é inútil, pois olhamos para eles, mas não os vemos. Como Édipo somos cegos para o que está sob os nossos olhos. Uma amiga minha escreveu que o que se está a passar não é uma oportunidade para nada, é uma tragédia. Há gente que não vê o que está sob os olhos e outra que vê o que não existe. Não haverá sentido mais difícil de afinar do que a visão. Talvez por isso tenho visto, nestes dias, muito cinema. Ontem quase que me comovi, não com a sorte das personagens, mas com a beleza depurada da obra. Não há coisa mais perturbante do que a beleza. De tal maneira que a arte expulsou-a do seu domínio, ou quase. Talvez a verdadeira tragédia resida na beleza, na sua transitoriedade, nesse desejo que sentimos perante ela e que nos leva a querer que seja eterna e ao mesmo tempo saibamos que o tempo a degradará até a dissolver, a transformar em nada. Hoje é quarta-feira, dia 8 de Abril. A sirene não tocou ao meio-dia, mas os pássaros cantaram dolentes e entregaram-se incautos à acrobacia do voo. Pertencem ao mundo do ar e eu ao da terra. Leio que mais de metade da população mundial está fechada em casa. Por uma vez, faço parte da maioria.

terça-feira, 7 de abril de 2020

Cenários mínimos

Um súbito raio de sol e logo me sentei na varanda para o apanhar, mas as nuvens não estiveram pelos ajustes e cobriram-no, passados instantes, de cinza e chumbo. No meio de tudo isto, não é propriamente a vida que encolhe mas as possibilidades onde a haveríamos de dissipar. Os cenários minguaram de tal modo que se tornaram minimalistas, breves alusões, traços simbólicos a representar qualquer coisa, que começamos já a não saber muito bem o que é. O refluxo doméstico a que se está sujeito é a negação do homem público, mas o que significa isto ainda ninguém sabe e não sou eu que o vou descobrir. Limito-me à minha domesticidade e domestico alguma tentação reflexiva. Bebo água. É um imperativo biológico e uma mudança que se está a dar em mim. A Semana Santa progride, mas também ela ficou presa ao confinamento e já li que até a peregrinação de Maio se realizará em casa, talvez entre o quarto e sala. Um exercício que, nos últimos dias, vou desenvolvendo é uma espécie de história contrafactual, onde imagino o que faria se não estivesse confinado aonde estou. O resultado não é exaltante, as alternativas que se abrem aos homens não são infinitas nem sequer muitas. Depois, lembro-me do dito ao gosto popular contra factos não há argumentos e abandono o meu projecto contrafactual. Hoje é terça-feira, dia 7 de Abril. Não chove nem faz sol, nem as bruxas fazem pão mole. Inspiro longamente e temo pela minha sanidade mental, ou talvez nem isso. Ainda não foi hoje que usei a palavra plumitivo.

segunda-feira, 6 de abril de 2020

Sinestesias e vaticínios

Oiço o deslizar do aço nas roldanas de um estendal de roupa. Ao mesmo tempo, a porta de um carro bate ao fechar-se. Logo de seguida, é a pressa de um outro na avenida que o faz roncar. Agora, há um silêncio tenso, prolonga-se, expande-se, mas um pássaro chama por outro e a tensão dissolve-se, voltam os ruídos do mundo, embora este se tenha tornado uma mera ideia, talvez uma ideia da razão ou o produto do foco imaginário que há em nós. Há que treinar a audição, desligá-la dos outros sentidos, fundamentalmente da visão, o mais despótico dos membros do nosso aparelho sensorial.  Não tenho nada para contar, mas isto nem será uma grande novidade. Volto para a audição e entrego-me a jogos inúteis. Qual o som do vermelho, qual o timbre do azul ao misturar-se com o verde, como soaria o amarelo sob a luz inclemente do sol? Será, pergunto-me, a tentação da sinestesia um sintoma de que estarei a enlouquecer? Chove. Nos sites dados à meteorologia vaticina-se que assim será durante a semana. Esta é uma época favorável aos que se entregam à antecipação do futuro. Consultam gráficos, modelam dados, discorrem sobre linhas e curvas. Cada época tem a sua numerologia e cultiva o seu tarot. Também a estes prognosticadores não poupo a admiração, pois eu nem consigo antecipar o passado ou vaticinar sobre o que aconteceu. Fiquei preso dentro do presente e o presente é, ao mesmo tempo, aquilo que não existe e a única coisa que existe. Deveria evitar o paradoxo, pois não tarda começo a cultivar o oxímoro e a dizer coisas como o ruído silente desta brancura negra que cai sobre a tarde. Hoje é segunda-feira, dia 6 de Abril. As netas deveriam, em tempos normais, estar aqui. Este ano estava programado que iniciariam o neto na caça aos ovos de Páscoa. É o que dá os humanos fazerem programações.

domingo, 5 de abril de 2020

Imitar a realidade

Nunca fui grande adepto de amêndoas da Páscoa, nas suas mais variadas encarnações, mas hoje comi três, daquelas que são envoltas em chocolate e canela. Talvez isso me parecesse um sinal de normalidade, talvez não tivesse mais nada para fazer, talvez não tivesse qualquer razão. Nunca me canso de louvar aqueles que têm sempre claras as suas motivações e distintos os objectivos. Algures, num qualquer apeadeiro da minha existência, entrei em conflito com a clareza e a distinção. Desconfio sempre dos meus motivos e há muito que perdi o norte aos meus objectivos. Talvez os tenha vendido para serem traficados numa qualquer feira da ladra. Tenho pena de quem os tenha comprado. Na televisão vejo que é Domingo de Ramos e que o Papa celebra a missa numa catedral vazia. Não tenho nenhuma interpretação para o acontecimento, apenas uma descrição factual. Hoje o almoçou imitou os almoços dos domingos pré-pandémicos, e nessa imitação vejo já um símbolo e não um mero facto. O que se nos pede é talento para a mimese, o aportuguesamento da palavra causa-me um leve arrepio, um exercício contínuo de ficcionalização. O dia segue o dress code do Inverno. Farda cinzenta e aguaceiros persistentes, para afastar incautos, essa gente que deambula por aí como sonâmbulos em busca de um sonho. Na minha secretária estão duas obras cinematográficas de grande fôlego, O Decálogo, de Krysztof Kieslowski, e Berlin Alexanderplataz, de Rainer Werner Fassbinder. Não consigo decidir-me por qual hei-de começar. Protelo a decisão. Talvez mais logo chegue a um acordo comigo mesmo ou então faço exactamente o contrário do que decidir. Antes de almoço contemplei o friso das orquídeas. Trinta por cento estão renitentes em florir. Nem mesmo no reino vegetal há unanimidade, constato. Hoje é domingo, dia 5 de Abril. O vento estremece as persianas e na rua uma chuva fina e acidulada fustiga a cidade. A palavra plumitivo atravessou-me a consciência, mas não sei o que fazer agora com ela. Talvez amanhã lhe dê algum uso ou não.

sábado, 4 de abril de 2020

Da incerteza

A expectativa de me sentar um pouco ao sol saiu gorada. O céu cobriu-se de cinzento e as nuvens coam a luz, deixando passar uns raios difusos que descem sem ânimo sobre o mundo. O vento faz ramalhar as árvores e a voz de um pai chama continuamente pelo nome do filho. Ocupam toda a praceta aqui em baixo, aproveitando o espaço que, por falta de transeuntes, se tornou excessivo. Em tempos de grande incerteza manifesta-se à luz do dia, amplificada pelo ócio e a tecnologia, uma plebe opinativa cheia de certezas, das mais estapafúrdias e inverosímeis certezas, génios a quem tínhamos recusado a reconhecer-lhe a vesga genialidade que os atormenta. A propensão para a vaidade e o dogma é sempre grande. A colheita de indignados e irados também começa a inchar. A vida foi sempre incerta. Um acidente, uma doença súbita, e a pessoa desaparecia. Agora que todos os dias a contabilidade é actualizada, somos confrontados com a pergunta se acabaremos por entrar no número dos infectados e, estando neste, a que percentagem pertenceremos, à dos que se salvam ou à dos que se perdem. Esta consciência sobrecarregada de que a vida é incerta tem o condão de atormentar aqueles que se esqueceram da realidade e tinham no hábito uma defesa para o medo de uma existência acidental. Um pássaro canta. Não o vejo, mas oiço-lhe o conselho. Não é altura para meditações dessas, trina ele com tonalidade sarcástica. Respondo-lhe que sim, que tem imensa razão, mas nem sempre fazemos aquilo que queremos. Ele olha-me condescendente e cala-se. Ao longe, corvos passeiam-se entre árvores, exibem com orgulho o brilho da plumagem negra. Chamo-os, mas não me ouvem. Observo os telhados e vejo alguns anjos. Conversam, riem-se. Uns fumam, outros bebem. Talvez contem histórias indecentes sobre os homens. Talvez tracem planos para o resto da tarde ou para a noite. Hoje é sábado, dia 4 de Abril. Os dias encadeiam-se uns nos outros com morosidade, como se nos dissessem há que beber o cálice até ao fim. Bebamos, então.

sexta-feira, 3 de abril de 2020

A pequenez da realidade

De todos os dias da semana o que mais sofre da presente indiferenciação será a sexta-feira. Funcionava, antes da instalação da era viral, como um marco que anunciava uma transmutação no tempo, o fim dos dias profanos, onde os homens se entregavam aos negócios que os imperativos da necessidade e do desejo impunham, e a chegada do tempo sagrado do ócio ou de qualquer festividade, nem que seja a festa de estar só, que havia de lhes dar ânimo para que, chegada a segunda-feira, aceitassem que a míngua lhes reimpusesse a canga e eles se entregassem ao ajoujamento que lhes mataria a fome. Olho para a frase e descubro-a enorme, mas também eu estou indiferente à elegância da escrita, à extensão das frases, ao acerto na escolha dos vocábulos, ao alinhamento das sílabas. De manhã, sentei-me no chão de uma das varandas e fiquei ali a apanhar sol. Consta que faz falta ao organismo. Nunca me imaginei numa varanda em tal função. Arrependo-me de não ter comigo nenhum dos meus panamás, haveria agora de me dar jeito. Um dia destes assim sou visto sentado à varanda com um chapéu feito de folha de jornal, se por acaso ainda houver por casa algum. Oiço ao longe o barulho de uma rebarbadora. Imagino-lhe o disco a girar a alta velocidade, a entrar no ferro, ferindo-o, primeiro, ao de leve, para depois o decepar, ouvindo-se o tilintar metálico da parte cortada a saltitar no chão, antes de se aquietar e imóvel entrar no meu esquecimento. Os dias continuam a crescer, indiferentes à sorte dos homens. Alguém manda-me uma mensagem com uma fotografia e pergunta se sou eu. Não sou, o que me deixa mais tranquilo. Bebo água, espreito um vídeo em que o meu neto faz umas experiências sobre o funcionamento do mundo e espero. Hoje é sexta-feira, dia 3 de Abril. Uma nuvem tapou o sol e lembro-me de que este ano a família não se reunirá no almoço de Domingo de Páscoa. As coisas são o que são. Nada melhor que uma tautologia para engrandecer a pequenez da realidade.

quinta-feira, 2 de abril de 2020

Um mundo possível

Os dias correm lassos, tomados pela acédia, esse pecado capital que abatia o ânimo dos ascetas e os desviava dos cuidados que a alma e o corpo exigiam. Depois, foram-lhe dando outros nomes como preguiça ou indolência, mas em nenhuma dessas variantes se compreende a angústia e o estado de torpor que sentiam aqueles que sofriam de acédia. Era uma doença, apesar de considerada pecado, que atingia os que se sujeitavam, por motivos do espírito, à vida solitária. Se se continuar assim, muitos serão contaminados por esse estupor. O dia acordou alegre, com um sol primaveril a animar a manhã, mas o céu vai-se enchendo de nuvens e talvez a alegria seja curta. Consulto um site que vive do estado dos meteoros e sou informado que a partir de sábado volta a chuva. Ficará, diz a profecia, quase uma semana. Domingo de Páscoa fará sol. Ou não. Podia aproveitar para arrumar livros, CD, DVD ou mesmo a mim. A desordem ainda não é um caos e, quanto a mim, já é tarde para arrumações e encontrar uma ordem que vença o caos. Se tivesse estudado Física, agora poderia construir umas belas metáforas com a entropia e haveria de parecer pessoa sapiente. Um carro passa numa das ruas laterais. É um acontecimento, como aqueles que se davam quando, num passado tão remoto que nem eu me lembro, um automóvel surgia numa aldeia, para lhe quebrar o silêncio e abrir as bocas de espanto, enquanto as mãos faziam o sinal da cruz e os mais rápidos se persignavam, não fora aquilo uma emanação dos poderes ínferos. Intuo que os assunto começam a faltar-me à força de tanta contenção, uma bela desculpa para quem tem imaginação fraca. Hoje é quinta-feira, dia 2 de Abril. O pequeno bosque da escola aqui ao lado lança sobre o chão sombras breves e na praceta não se vê vivalma. Talvez de todos os mundos possíveis, o da humanidade recolhida não seja dos piores, ocorre-me.

quarta-feira, 1 de abril de 2020

Um dia sem tino

Abril nasceu com ar de desterrado, alguém a quem tenham imposto a pena de um longo exílio, dez anos de ostracismo. Envolto em chuva fria, começa a viagem desapegado das dores dos homens. Não sei se para compensar o olímpico desdém do recém-nascido, oiço as Canções do Pôr-do-Sol, de Frederick Delius. Hoje não há sol para se pôr e o anacronismo da música deu-me um súbito contentamento. Talvez tudo se resuma a um desarranjo cronológico, a uma crise gerada pela mudança da hora ou pela inconstância do calendário. Passo a mão pelos cabelos, olho para a rua, respiro lentamente e deixo que a voz do barítono ecoe, até que a contralto a interrompe. Também para mim deveriam contar os óstracos para me banirem desta república. Não que seja cidadão influente, mas porque há que limpar a cidade de indigentes e eu já não consigo disfarçar a minha aptidão para a inópia. Usei este termo que ninguém usa apenas para não usar indigência, que ficava mal naquele lugar e há que ter cuidado com o que fica mal, nesta hora em que ninguém nos vê. Consolou-me hoje a palavra de um filósofo ao dizer que as pessoas habituadas a seguir as reformas linguísticas são mais fáceis de manipular. Sinto-me assim protegido contra todas as manipulações, pois sou um fervoroso defensor da contra-reforma linguística, ortográfica, gramatical e o mais que quiserem. Sou um velho reaccionário linguístico e por mim poderiam restaurar a ortografia do tempo da monarquia. Como se vê, o isolamento social não é o mais indicado para cultivar a sensatez dos indivíduos, ainda por cima num dia sem tino como este. Hoje é quarta-feira, dia 1 de Abril. Parece confirmar-se o adágio popular de que teremos águas mil. A sabedoria comum fascina-me e tomo-a sempre por verdadeira, mesmo que o mês seja de seca extrema. Há que preservar as tradições.

terça-feira, 31 de março de 2020

Março acaba

Imagino que esteja frio lá fora. O aquecimento central tem trabalhado com zelo e um site de meteorologia confirma que a temperatura está baixa para a época. O ano passado, por esta altura, há muito que a caldeira não trabalhava. Também as estações e os meses são volúveis, incapazes de seguirem um plano uniforme, planeado com cuidado. Lastimo que a natureza tenha trocado a burocracia pelos impulsos espontâneos, frutos do acaso e filhos da incerteza. Entrega-se a variações apenas para se distrair e confundir os mortais, já de si tão confusos. Chega até mim o zunir de um aspirador, alguém que num apartamento vizinho mata o tempo com excessos de limpeza e, sabe-se lá, de arrumações. Também eu precisava de arrumar a minha mente, mas não encontro armários disponíveis e as estantes existentes não têm prateleiras. Deveria haver um Ikea para consciências em convulsão. Sou obrigado a amontoar informações, sem que um princípio de ordem se estabeleça e num qualquer futuro me permita, sem tropeções, usá-las. Encolho os ombros. Qual a importância de falar em bugalhos mesmo que me perguntem por alhos? Deveria censurar esta tendência para recorrer a ditos ao gosto popular, mas talvez seja tarde para arrepiar caminho. Já pensei em começar a descrever as paisagens que se avistam das diversas janelas do escritório, mas ainda não estou suficientemente enlouquecido. Recosto-me na cadeira e deixo-me invadir pela música para piano de Fauré. Devolve-me alguma sanidade. Depois, olho lá para fora e tudo parece normal. Um pássaro voa de uma árvore para outra, um carro contorna uma rotunda e as acácias, esgalgadas, vão-se cobrindo de um folhedo verde que as há-de compor. Hoje é terça-feira, dia 31 de Março. O mês acaba envolto numa capa cinzenta de tristeza, sem aura nem fortuna, contente por ir desaguar no dia das mentiras.

segunda-feira, 30 de março de 2020

O verdadeiro nome

Recebo dois vídeos no telemóvel. O meu neto, do alto dos dezasseis meses, exibe-se para um público restrito ampliado pela câmara de telemóvel. Faz grandes discursos, mas fala numa língua que deixei de perceber há muitas décadas. Quem sabe se os discurso que fiz nos meus dezasseis meses não foram os mais sensatos e profundos de toda a minha vida. Talvez nesse tempo designasse as coisas pelo verdadeiro nome delas e que, com a aprendizagem da língua, começasse a falhar irremediavelmente a nomeação do mundo. Hoje levantei-me cedo. O dia nascia enfastiado e assim foi crescendo. Agora que atingiu a maioridade não apresenta melhoras. Progride com tédio, faz umas caretas de nojo, suspira maçado. Tento entabular conversa com ele, mas ignora-me e prossegue o seu caminho tomado pela náusea e má educação. Um existencialista da rive gauche. Oiço um bater de asas e volto-me. É um pombo. Nos campos ao longe avisto ciprestes. Distribuem-se ao acaso. Dizem que são memórias que ficaram de umas escaramuças havidas por aqui aquando das invasões francesas. Chegam a durar mil anos, descubro em pesquisa rápida. Consola-me a existência destes seres que ultrapassam a medida humana, sem que ostentem sobranceria  nem sejam dados a chamar a atenção para si. Crescem em silêncio e contenção. Espera-me mais uma vídeo-reunião. Colecciono-as e não tarda serei especialista. Hoje é segunda-feira, dia trinta de Março. O mundo encolhe, enquanto os meus olhos se esforçam por alargar o horizonte. Começo a ficar cansado de conviver comigo.

domingo, 29 de março de 2020

Mudança da hora

Hoje a tarde chegou mais cedo. Março declina envolto numa melancolia de nuvens, a luz difusa exausta pela longa cavalgada que a trouxe do Sol à Terra. O pretérito perfeito do verbo trazer, agora usado, fez-me parar. Que estranho verbo, cheio de irregularidades na conjugação. Vá uma pessoa investigar-lhe a vida e ainda descobre coisas que não devia. Concubinatos secretos, casamentos paralelos, dívidas de casino, mancomunações quadrilheiras, sabe-se lá mais o quê. Há verbos assim. Procura-se-lhe a regularidade e só se encontram anomalias, como se tivesse sido fruto de uma linha de montagem deficiente ou a criação d'un génie malin, aquele diabrete que assediava o pobre Descartes nos seus ócios meditativos. Não paro de olhar para o relógio para me certificar das horas. Também eu preciso de certezas e de estar certificado, de vencer com método a dúvida a hiperbólica. Fora eu um relojoeiro e tudo seria mais fácil, afinaria o relógio para um futuro mais tranquilo, caso esse existisse. Não me parece que seja de utilidade pública esta minha deriva da gramática para o Descartes e deste para a relojoaria. Hoje fui visitar três vezes o outro lado da casa. Pareceu-me que estava no mesmo sítio que ontem e que nele nada mudara, mas não estou certo. Aproveitei os passeios e espreitei as torres do castelo, contei os carros que passam na Sá Carneiro, assegurei-me que os baloiços estão protegidos com fitas plásticas brancas e vermelhas, para impedir que crianças com pais desavisados andem por ali a baloiçar-se. Contei as orquídeas floridas e descobri que sessenta por cento já o fez. Respirei fundo e atendi um telefonema. Confirmei que a hora tinha mudado e que talvez o relógio de parede estivesse agora certo, se não era só esperar para a próxima mudança. Almoçarei mais tarde e talvez ainda tenha tempo para contar o sonho que imaginei que tinha tido esta noite. Havia um anjo de pedra, disso estou certo, mas quem é que quer saber de pedras e de anjos? O melhor é inventar o sonho só para mim. Hoje é domingo, dia 29 de Abril. As igrejas estão fechadas e nelas não haverá missa. Tenho de ir. Chamam-me para o almoço.

sábado, 28 de março de 2020

Dos nomes e outras coisas incertas

Não vejo razão para dar ao dia de hoje o nome de sábado ou outro. Recordo-me de imediato que não haverá para qualquer coisa que seja razão para lhe dar o nome que tem ou tão pouco denominá-la de forma diferente. Afasto estes pensamentos penumbrosos para não me afogar num oceano de contradições, agora que faço parte de um imenso arquipélago, cujas ilhas deixaram de ter modo de se ligarem. Fui a uma das varandas, onde havia sol. O ar era frio e um vento irritante batia-me de frente, trazia-me notícias que não consegui ler. Sim, há um livro da natureza cheio de mensagens, mas estão de tal modo cifradas que não sei descodificá-las. Galileu, a quem por vezes se atribui o cunhar da designação, julgava que esse livro estava escrito em caracteres matemáticos, mas outros antes dele, na obscura Idade Média, criaram livros da natureza, onde esta se descrevia em latim. Não sei porque me ocorrem estas coisas, embora esteja habituado a que me ocorram muitas coisas que não interessam para nada nem a ninguém. Não sei que impulso me moveu, pus-me a escutar Canto Gregoriano e logo me imaginei como um monge que leva a vida entre a cela e o lugar de culto, onde canta um Ofício de Trevas, nestes dias em que todos eles são Sextas-feiras de Paixão. Escrito isto, rio-me. O espírito hiperbólico voltou-me, como se fosse a anunciação da normalidade. Não o é. Olho para a rua e fico fascinado com o verde cinzento da folhagem das oliveiras que, na escola ao lado, foram deixadas vivas como testemunho do passado. O sol ilumina-as, desenha nelas paisagens fantasmagóricas a que o vento incita à mobilidade, numa cadência incerta, hesitante. Hoje é sábado, dia 28 de Março. Oiço vozes na praceta aqui em baixo. Depois calam-se, e apenas o canto dos pássaros vem da rua. Os monges continuam os seus cânticos pascais e a tarde progride indiferente por dentro das paredes translúcidas do dia.

sexta-feira, 27 de março de 2020

Desenhar espirais

Desenho espirais no tampo da secretária. Fixo um dedo num ponto do vidro, julgo que os geómetras lhe chamam pólo, e depois traçando curvas cada vez mais amplas vejo-o afastar-se desse centro onde tudo começou. Parece uma alegoria aos dias de hoje, mas não era essa a intenção. Quando paro o exercício circular, os meus olhos não detectam vestígio da actividade, e essa é outra alegoria. Faça o que fizer, daqui a um tempo ninguém encontrará sinal ou pista que conduza ao que fiz, ao que fui, ao que desejei. Não lamento que seja assim e será mesmo uma boa razão para ficar grato com a ordem do mundo e a natureza das coisas. A tarde desliza nimbada por uma luz esquiva, sorrateira, que dardeja a terra a medo, como se também ela temesse a contaminação. Cresceram muito as árvores do pequeno bosque da escola aqui ao lado, erguem-se para os céus, mas não rogam por nós, ou será que o fazem e nós não sabemos escutar? Abri a porta da varanda e entrou uma mosca. Parece perdida, voando para aqui e para ali, como se a sua bússola se tivesse desregulado. Hoje estou com uma forte inclinação para o discurso alegórico. Melhor era o tempo em que as hipérboles me ocupavam o espírito e desse modo me entregava a discursos fantasiosos, onde o exagero expandia os textos para ocultar o grande vazio que há em mim. Estou mais contido. Hoje participei em duas reuniões virtuais e ainda me espera uma terceira. Sou para mim mesmo uma imagem virtual, uma fotografia de passe inquieta no canto de um computador. Mal frequento a televisão, como é hábito, e sou frugal nas notícias, há que evitar a realidade. Hoje é sexta-feira, dia 27 de Março. Vou a uma dessas aplicações que virtualizam o mundo e imploro, como se distribuísse imperativos, um vídeo do meu neto. Vou desenhar mais espirais.

quinta-feira, 26 de março de 2020

Esquece-te a ti mesmo

Bati devagar e a porta da tarde abriu-se. Ao fundo, um grande espelho devolveu-me a imagem. Pensei em Narciso e logo a minha mente, presa na sua inalterável volubilidade, o associou ao que um certo Sócrates inquieto pensou das palavras à entrada do Oráculo de Delfos. A cada um o seu narcisismo. Em vez de me conhecer a mim mesmo prefiro olhar o horizonte, distanciar-me e, se tal fora possível, esquecer-me. Esquece-te a ti mesmo, eis a minha divisa para o dia de hoje, amanhã logo se verá. Uma divisa por dia, dá saúde e afasta a melancolia. Isto sim, seria um belo slogan. Logo mudo de ideias e julgo que deveria dedicar-me à construção de longas écfrases, daquelas cuja minúcia faz bocejar o leitor, mas o tempo das descrições passou. Uma imagem vale por mil palavras, segundo a sabedoria que nunca compreendeu o que era uma palavra e que nela não há mil, mas milhões de imagens. A rosa que eu vejo quando digo rosa não é rosa que tu vês ao escutar-me, mas isto não interessa a ninguém e há que evitar o didactismo. Tamborilo com os dedos sobre a secretária, dedilho com paciência os minutos e construo com eles um rosário de contas minúsculas e sem fim. Gostava de ser especialista numa especialidade qualquer, mas faltou-me o talento para a especialização e agora, que anda meio mundo a usar da sua autoridade de especialista sobre coisas que não conhece, estou confinado à mudez. Reparo na primeira frase do texto e coro. Não devia escrever coisas daquelas. Quantas pessoas não bateram devagar e a porta da tarde se lhes abriu? Vou fechá-la. Os pássaros meus vizinhos trocam acusações. Apuro o ouvido, quero ver se descubro a causa da dissensão. Hoje é quinta-feira, dia 26 de Março. No campo de jogos da escola aqui ao lado alguém corre como se fugisse de um inimigo astuto e invisível.

quarta-feira, 25 de março de 2020

Uma mutação

Imagino-me a escrever um diário de bordo, mas o barco não sai do lugar. Os ventos não sopram e a armada está retida. Como não sou caçador não corro o risco de ter irritado a deusa ao matar-lhe um cervo na floresta sagrada. Também não sou Agamémnon, nem a minha missão é ir pôr cerco a Tróia. Tudo isso deixa-me um pouco mais tranquilo. Desde manhã que oiço Sonatas e Partitas de Bach, mas é um ouvir distraído, uma música ao fundo, que se derrama sobre mim enquanto trabalho, envolve-me e talvez fale com alguma coisa escondida na cave da minha consciência. Olho à volta e contemplo todas as coisas inúteis que fui acumulando ao longo da vida. Em tudo isso ainda arde a febre do desejo, a pouca conta que tenho das possibilidades finitas que me são concedidas, a grande fábrica da fantasia que recebi de presente já não sei de quem. A Primavera cresce no ramalhar do arvoredo, embalada pelo canto dos pássaros e o zunir dos insectos. A luz alivia o tom carregado do verde dos cedros e não oiço vozes humanas. Daqui a pouco terei uma reunião. Cada um dos reunidos estará em sua casa e todos se hão-de espreitar com espanto através do monitor, como se fossem fantasmas, gente desencarnada, tomada por preocupações risíveis. Sem se dar por isso sofremos uma transformação ontológica. Transitámos de seres de carne viva para imagens virtuais. Lembro-me então que a grande promessa da Páscoa dos cristãos é a ressurreição da carne. Hoje é quarta-feira, dia 25 de Março. Os dias deslizam vagarosos, como as nuvens que ocultam o sol. Oiço vozes infantis, agora que Bach se calou. Tenho de ir espreitar o friso das orquídeas ou as torres do castelo.

terça-feira, 24 de março de 2020

Espaço e tempo

Da praceta aqui ao pé de casa vem o som da campainha de uma bicicleta. Levanto-me e vou espreitar. Uma adolescente pela idade das minhas netas passeia-se. Estava combinado que elas estariam cá pela Páscoa e haveriam de ir para ali andar de bicicleta, como acontece quase sempre. Agora estão confinadas muito longe daqui, mas a lonjura tornou-se risível. O meu neto está a dois minutos de carro e também está tão longe quanto elas. Assistimos a uma lenta dissolução do espaço. Há pontos, mas não segmentos de rectas ou curvas que os unam. Deveria evitar referências à geometria, aconselho-me. Não há distâncias que possam ser percorridas num determinado tempo. A suspensão do espaço e das trajectórias lança-nos para um mundo onde a única coisa que conta é o deslizar contínuo da areia na ampulheta. Os gregos tinham relógios de água, clepsidras que mediam o tempo pelo escoar da água. O termo teve um feliz destino na poesia portuguesa. Dá nome à recolha de poemas de Camilo Pessanha. Muito mais tarde, João Miguel Fernandes Jorge intitula O Roubador de Água um dos seus livros de poesia. E será isso o que uma clepsidra é, um roubador de água, ou de tempo, ou de vida. A suspensão do espaço talvez pudesse alimentar um romance distópico, onde cada um estivesse afastado dos outros por um abismo inultrapassável, enquanto uma gigantesca clepsidra deixava escoar, com lentidão inusitada, a água. Rio-me da falta de imaginação. Oiço uma buzina e o rumorejar dos carros ao longe. O som de um aspirador sai pela janela de um apartamento contíguo e entra pela minha. Devia fechá-la. Hoje é terça-feira, dia 24 de Março. Os pássaros cantam, enquanto eu descubro um erro de ortografia no texto e apresso-me a emendá-lo. Sem espaço, mas com a ortografia correcta.

segunda-feira, 23 de março de 2020

Stabat Mater

Num tempo em que a mobilidade se tornou, também ela, uma pandemia, com toda a gente a mover-se para todo o lado, não deixa de ser curioso que ficar em casa se torne uma verdadeira epopeia. Os helenos não se deslocam para Tróia, nem os Gamas demandam a Índia. Ficam em casa e esse é todo o heroísmo que nos resta. Somos heróis domésticos e enfrentamos não pequenos perigos sentados à secretária ou num sofá, enquanto o tempo passa, agora tão vagaroso, tão dado a demoras, tão lânguido, tão pouco compassivo com os anseios dos novos semideuses. Não tarda e não há Penélope que suporte o seu Ulisses, que não deseje que ele se vá para a primeira Tróia que o chame. Fora eu dado ao filosofar esotérico e que belos pensamentos haveria de ter sobre a languidez da duração ou sobre a diferença entre Cronos, o tempo medido pelo relógio, e Kairós, o tempo oportuno para que algo aconteça. Não sou dado, porém, nem à filosofia nem ao esoterismo, cujas competências o destino decidiu negar-me. Evito bater à porta de tais arcanos e embrulho-me na capa da perplexidade. Sento-me à janela e contemplo o deslizar das nuvens, a cor do arvoredo, o vazio da rua. Das colunas sai o Stabat Mater, de Pergolesi. Deixo-me envolver na dor daquela mãe e olho o horizonte, na esperança de que exista ainda um horizonte que espere que o olhem. Hoje é segunda-feira, dia 23 de Março. A Quaresma progride no silêncio da cidade. Stabat Mater dolorosa iuxta crucem lacrimosa dum pendebat Filius, e isto é tudo o que me ocorre.

domingo, 22 de março de 2020

Sem eventos na agenda

No email, o calendário da Google informa-me que não tenho eventos marcados para hoje. Olho-o e enternece-me o vazio social da minha existência. Rio-me, pois todos os dias recebo a mesma mensagem. Nunca usei aquela artimanha, ou outra, para dar ordem ao que me acontece. Há pessoas que cultivam agendas, eu tenho apenas uma imaginária, onde registo na memória todas as coisas que hei-de esquecer. Os ramos das acácias ainda estão muito despidos, mas as suas pontas já estão tintas de um verde claro, que escurecerá com o passar dos dias. Da minha janela não avisto ninguém. Há um pequeno restaurante numa aldeia debruçada sobre o Tejo, não muito longe daqui. Uma vez por outra, vou lá aos domingos. Gosto do ambiente provinciano e sem pretensões, da comida e de ver as águas do Tejo a encaminharem-se para uma Lisboa distante. Depois desço a um parque, sempre sem ninguém, mesmo na margem do rio e olho os remoinhos que a água traiçoeira desenha para avisar os incautos. Ir lá não faz parte dos eventos que me esperam hoje. Volto aos domingos de adolescência na exuberância da vida na província. A ida à missa, o almoço de família e a tarde dedicada ao futebol ou ao cinema. Aquela família já não pode almoçar junta, e não há missas, nem futebol nem cinema. Foi tudo suspenso, para que a vida se abrigue de si mesma e das armadilhas que a si estende. Desocupado, passarei a tarde a trabalhar. Hoje é domingo, dia 22 de Março. É o octogésimo segundo dia do ano, um dia primaveril. Há exactamente oitenta e sete anos Roosevelt acabou com a Lei Seca e permitiu o consumo de bebidas alcoólicas. Há que dar importância às coisas verdadeiramente importantes.

sábado, 21 de março de 2020

Anjos pelos telhados

Chegámos ao tempo da verdadeira contabilidade, aquela cujas razões se dão a conhecer não no segredo dos escritórios mas nos escaparates das notícias. Um exercício de balanços e balancetes, onde se anota os movimentos a débito e a crédito. Lá vêm os mortos e os que escaparam, na falibilidade que há em toda a fuga, os infectados e os que não o estão ou ainda não o estão. Novas rotinas instalam-se, como se nos habituássemos ao cerco que os exércitos inimigos decidiram pôr às portas da cidade. Passei parte da manhã a enviar emails, mensagens que não encontram destinatários dispostos a recebê-las, mas a isso estou habituado há muito. Quem quer saber daquilo que eu tenha para comunicar? Se fosse eu o destinatário das minhas mensagens também me recusaria a abri-las. De mim apenas pode vir spam e o melhor é evitar espreitar o que contêm, será por certo publicidade enganadora. Desde ontem que não largo os ciclos de canções de Schubert, na voz de Fischer-Dieskau. Na minha secretária está a Nova Gramática do Latim. No entanto, é apenas a prova de uma longa hesitação. Acompanharei ou não as lições do autor no facebook? Está um dia de início de Primavera. Depois penso na frase e descubro que ela não quer dizer absolutamente nada, como a maior parte das coisas que digo. Num livro do poeta Daniel Jonas, leio o seguinte verso: Aqui nesta Tebaida, ouço a paz. Fico em silêncio, pois não sei se aquilo que oiço é a paz ou a guerra. Talvez tenha começado a ficar um pouco surdo. Hoje é sábado, dia 21 de Março. A Primavera trouxe alguns anjos que estão sentados nos telhados. Vou à varanda acenar-lhes.

sexta-feira, 20 de março de 2020

Viagem de Inverno

Olhei para a rua e, de súbito, apeteceu-me ouvir o ciclo de canções Winterreise (Viagem de Inverno), de Franz Schubert. Oiço a primeira interpretação que encontro, com a esperança de uma surpresa, mas não era aquilo que desejava. Procuro uma edição que junta Alfred Brendel e Friedrich Fischer-Dieskau e deixo-me deslizar na tarde. Segundo o calendário estamos a abandonar o Inverno e na próxima estação tomamos o comboio da Primavera, mas o dia chegou mascarado de invernia. Chove e o horizonte cobre-se de uma melancolia tépida. Os campos de jogos da escola aqui ao lado estão vazios, cobertos por finos lençóis de água. As árvores vestem-se de verde, mas os seus matizes são tão distintos que só um hábito enraizado me permite usar a mesma palavra para designar cores tão diferentes. Uma vez, talvez num documentário, descobri que uma certa tribo de esquimós teria mais de sessenta palavras para designar o branco. Também eu agora necessitaria de um vocabulário enorme para designar os verdes que vejo ou para classificar estes dias, em que a nomenclatura semanal começa a diluir-se. Sim, hoje é sexta-feira, e depois? Que diferença faz? Ainda não fui espreitar as torres do castelo, mas a orquídea amarela deu as primeiras flores. Há pouco recebi um vídeo com o meu neto a desarranjar a madrugada aos pais. Do que temos mais saudades aqui é de uma mera possibilidade, a de poder estar com os netos. Deixo o espírito entregue à voz de Fischer-Dieskau e agradeço ao mundo da técnica que nos deixa ouvir os que partiram sabe-se lá para onde. Talvez Deus sinta prazer em ouvir Schubert. Prometo-me, apesar de mortal, que dedicarei as próximas horas a ouvir os três ciclos de canções de Schubert. Hoje é sexta-feira, dia 20 de Março.  O Inverno e a Primavera lutam arduamente pela prevalência. O tempo porém é um deus impiedoso e fará o calendário triunfar.

quinta-feira, 19 de março de 2020

Florestas de símbolos

Abri a janela e com o ar entra também o canto dos pássaros e o bulício do mundo. Oiço a voz alteada de uma criança já em pré-adolescência, mas não percebo o que diz. Respiro lentamente para sorver o ar renovado. Nestes dias não faltam profetas do apocalipse, detectives que revelam as mais tenebrosas conspirações, analistas que desenham futuros que nos esmagarão como mosquitos. Podia ter evitado a comparação e optado por um enunciado metafórico, mas não devo esgotar rapidamente o stock retórico, a espera parece prolongada. Também não faltam idiotas, que aliás se confundem com as várias classes enunciadas ou os que lhes mimam as teorias. Eu não descobri nenhum segredo, não me foi dada visão de raio-X que equipa esses extraordinários super-homens. Tenho, porém, a vantagem sobre eles de não ser afectado pela Kryptonite, embora isso não me proteja de nada. Os vidros dos carros estacionados no hospital reverberam, enviam mensagens luminosas mas não há quem as saiba decifrar. Numa das leitura que fiz ontem, um filósofo francês referia que tudo é símbolo e logo a minha mente, perdida nos arcanos da volubilidade, chama por Baudelaire e põe-se a declamar La Nature est un temple où de vivants piliers / Laissent parfois sortir de confuses paroles ; / L’homme y passe à travers des forêts de symboles / Qui l’observent avec des regards familiers. Ponho fim ao soneto e volto a mim, mas sinto a saudade de certos olhares familiares. Penso neles e sorrio. À minha frente estão tarefas a realizar e olho para elas com inusitada benevolência. Ligam-me ao mundo, mesmo que esse não seja o melhor dos mundos possíveis. Hoje é quinta-feira, dia 19 de Março. É dia do pai e lembro-me do meu, de como gostaria de falar com ele sobre tudo isto ou sobre nada.

quarta-feira, 18 de março de 2020

Quando on a que l’amour

Mantenho os hábitos instalados. Não sei, porém, quanto tempo as rotinas resistirão ou se uma nova normalidade virá tomar conta dos dias para lhes dar uma aparência de sentido. Oiço o ruído de um corta-relvas. Levanto-me e confirmo aquilo que oiço, há alguém a aparar a relva da praceta. A partir de agora talvez precisemos de uma nova forma de verificação da realidade. Não basta que uma coisa soe para que ela exista. É preciso vê-la. E nada garante que esta dupla verificação esteja correcta, embora seja um pouco mais difícil, apenas um pouco, que se seja vítima ao mesmo tempo de ilusões sonoras e alucinações visuais. Na minha secretária amontoam-se papéis. Ordeno-os e nisso há um prazer específico, pois toda a classificação é um começo de vitória sobre o caos, e vitórias é aquilo que as pessoas mais precisam. Desenho estratégias para manter a sanidade e as actividades correntes a correr. Oiço vozes e vou à janela. Três homens confraternizam, fumam, mantêm uma quase distância. Um casal que conheço bem, ambos entrados na casa dos oitenta, passeia devagar, ela amparada por uma bengala e pelo braço dele, ele direito como se dissesse podes confiar em mim. Partilham o peso da solidão e a ameaça que parece tudo rodear sem alterar rotinas. Ao vê-los lembro-me de uma canção de Brel que começa assim Quando on a que l’amour / A s’offrir en partage / Au jour du grande voyage / Qu’est notre grand amour. Já pouca gente sabe francês, lembro-me, e sinto uma estranha saudade dos tempos em que descobri a música de Brel. Então recorro ao Youtube e escuto a canção. Contrariamente à minha natureza, pouco dada a manifestações sentimentais, acompanho-a e canto em surdina Quando on a que l’amour / A s’offrir en partage / Au jour du grande voyage / Qu’est notre grand amour. Depois, paro e deixo que a canção se escoe e olho para mim atónito. Hoje é quarta-feira, dia dezoito de Março. Escrevo o nome do mês com maiúscula e esse pequeno prazer ortográfico contenta-me.

terça-feira, 17 de março de 2020

O verde das primeiras folhas

Oiço o canto dos pássaros meus vizinhos. De mais longe chega o ronco de um carro pertencente a alguém que imagina estar em Le Mans. Há coisas que nunca passam e mesmo a actual situação não assegura que exista um salto no QI das pessoas. Não estamos num tempo de vigília mas de vigilância, digo-me para me convencer. Vigiamo-nos a nós mesmos temerosos dos sinais. O pior é a dilação da espera, de uma espera que nem se sabe do quê e que se resume em aguardar que tudo isto passe e a velha vida volte. Agora, faço pequenas caminhadas dentro de casa. De um lado, vejo o hospital com as paredes maculadas pelos fungos, do outro avisto duas torres do velho castelo, batidas por um sol quaresmal. Evito explorar a simbólica que a paisagem guarda e olho para a praceta aqui em baixo. Não posso furtar-me à recordação dos quadros de Giorgio de Chirico. Na verdade, são poucas as coisas de que podemos resguardar-nos desde que chegámos a esta terra. Ocorre-me, então, que somos extraterrestres que lutam por se habituar ao ambiente de um planeta quase hostil e para o qual não foram feitos. São tempos propícios para a proliferação de metáforas e alegorias. Toda a literatura nasce de uma estranheza, de uma inquietante estranheza, e este é um tempo propício. A sirene dos bombeiros acabou de assinalar as doze horas. O dia dobra o cume e começa a diminuir, as orquídeas, porém, erguem-se em direcção aos meus olhos. Olho-as e lembro-me dos netos. Sorrio para enfrentar a ausência. As acácias começam a deixar escapar dos seus dedos imploradores o verde das primeiras folhas.

segunda-feira, 16 de março de 2020

Olhar as orquídeas

Não vale a pena contar os dias, pois eles serão mais do que suporta o nosso desejo. Fui à varanda, na avenida quase não havia ninguém e só muito a espaços passava um carro. Ao longe, o castelo reverberava, mas o vento estava frio. Voltei para dentro e olhei para o friso das orquídeas. Não cessam de florir e a mim só me resta a gratidão. Comecei a trabalhar pouco passava das oito da manhã. Ordeno papéis, envio mensagens, verifico o que tenho e o que deveria ter, para expedir novas mensagens. Não sei se os destinatários as querem receber ou mesmo se se dignam vê-las. Tudo se tornou aleatório como se o princípio de incerteza de Heisenberg transbordasse do mundo das partículas subatómicas e invadisse o quotidiano e os devaneios de conhecermos a realidade onde se embrulha a existência. E isso pode ser um dos grandes perigos, pois apesar de tudo ser incerto é necessário que à certeza de um comportamento adequado corresponda não a maximização da incerteza do que pode acontecer, mas o contrário. Deveria evitar entrar por caminhos para os quais não fui feito. Deixemos Heisenberg em paz. Há pouco falei com um amigo que se exilou há uns tempos no Alentejo. Ontem troquei emails com outro que está fechado em Lisboa e tem a mulher também fechada em casa em S. Paulo, ambos em duplo isolamento. Lá fora oiço o trabalhar de máquinas que não consigo avistar. O café da praceta está aberto, com a esplanada ensolarada à espera de clientes renitentes em chegar. O ruído mecânico parece um cântico de esperança e não tarda terei saudades de ouvir o ranger insuportável dos baloiços do parque infantil. Vou sentar-me lá dentro para que possa ir olhando as orquídeas.

domingo, 15 de março de 2020

Uma palavra vinda de longe

Hoje é domingo, pensei ao levantar-me. Havia sol nas ruas, mas a aplicação do telemóvel tratou logo de me esclarecer que a temperatura não chegaria aos vinte graus. Noutra altura, seria ocasião para ficar grato ao deus do clima. Uma vaga apreensão nasceu em mim, mas logo a afastei, esperando que o tempo se compadeça e dê uma ajuda. Agora, enquanto escrevo, olho para a rua, o céu cobriu-se de um manto de cinza que os raios solares têm dificuldade em atravessar. Novos hábitos começam a desenhar-se, constato.  Outros porém são difíceis de combater, como a tentação sem fim de levar as mãos à cara. É um exercício de vigilância difícil e nós, há muito, perdemos o hábito de nos vigiarmos. A partir de certa altura a autovigilância começou a ter má reputação, pois contraria um modo de estar espontâneo e a espontaneidade foi entendida como prova de ser autêntico. A vida, porém, contínua. No Facebook, descubro que a missa dominical da TVI é transmitida da Igreja de S. Pedro, oficiada pelo pároco local e pelo bispo da diocese para um auditório vazio. Num site noticioso sou informado que um homem foi assassinado à facada e que a Rainha Isabel II abandona o Palácio de Buckingham. Percorro uma edição online de um tratado medieval atribuído, primeiramente, a Hugo de S. Victor e, depois, a um anónimo cisterciense, companheiro de Bernardo de Clairvaux. Numa pequena introdução dizem-me que está redigido sem ordem nem método e, a partir de certa altura, cheio de repetições. Percorro-o rapidamente e encontro isto: e aquilo que fatiga o lutador coroa o vencedor. Repito para mim a mensagem e talvez ela baste para fazer esquecer toda a desordem que, segundo o editor, macula o texto ou as nossas vidas, acrescento. Alguém, ainda na Idade Média, deixou uma palavra para todos os tempos difíceis. E aquilo que fatiga o lutador coroa o vencedor.

sábado, 14 de março de 2020

Dias de excepção

Cheguei aqui já a noite tinha descido em turbilhão sobre mais um dia em que a excepção se torna a norma. Nestas situações, à falta de experiência, recorre-se ao que se tem à mão para lhes dar um sentido. Muitos lembram A Peste, de Albert Camus. Outros não deixam de recordar o Decameron, de Giovanni Boccaccio. Ainda hoje havia quem referisse um conto de Edgar Allan Poe. A mim ocorre-me A Montanha Mágica, de Thomas Mann. Em todos eles vemos a excepção tornar-se a vida habitual. Apesar de difícil, será uma aprendizagem rápida, embora a lógica destas coisas tenha uma inclinação para nos escapar, mesmo aos que possuem uma armadura racional mais poderosa. Há pouco parei uns instantes diante do friso das orquídeas. Estão esplendorosas e indiferentes ao que inquieta os humanos, enchem o espaço com a subtil emanação da beleza, como se ela fosse a mensageira da esperança. Nem todas floriram ainda, reparei, depois voltei-lhes as costas e vim sentar-me, a pensar no que tenho de fazer, no que tenho de cuidar. A verdade é que nos disseram que o paraíso não era aqui, mas noutro lugar de onde fomos expulsos, mas não acreditámos. Imaginámos, contra todas as evidências, que poderia nascer neste mundo e pelas nossas mãos, o que suscitou um não pequeno número de teologias, de incontáveis homilias e de legiões de mensageiros do admirável mundo que estaria à nossa espera. Depois um qualquer incidente recorda-nos o outro lado da história, aquele que nos diz que este é um lugar de exílio. Encolho os ombros e digo entre dentes a cada um a sua metáfora. No telemóvel surge uma mensagem. É uma fotografia do meu neto de chapéu na cabeça. Quer vir para a província, pensei.

sexta-feira, 13 de março de 2020

Um pássaro canta

No correio havia duas cartas. Pego nelas, olho-as de soslaio e não consigo reprimir um momento de suspeição. Há em nós comportamentos muito arcaicos vindos daqueles tempos em que ainda não tínhamos estabelecido um cordão sanitário eficaz em torno das comunidades humanas para as proteger dos predadores e da própria natureza. Estabelecido este, esses comportamentos foram recorrentemente avivados ora com a guerra ora com a epidemia. Voltam a manifestar-se. Está uma tarde soturna e caminha-se para a Páscoa como se estivéssemos efectivamente na Quaresma. Os lugares estão mais vazios, o bulício das ruas baixou de intensidade e na face das pessoas há um esgar de preocupação. São imensas as coisas por fazer, mas a vontade está avara. Nada corrói mais o querer do que a suspeita e esta tornou-se, também ela, pandémica, uma reacção psicológica à ameaça. Em ambientes destes surgem todas as teorias marcadas pelo terror e a própria razoabilidade vai sendo escavada até que derrui. Nos telhados em volta, não vejo nenhum dos anjos que lá costuma parar. Talvez tenham partido em serviço, talvez tenham ido a um congresso angélico discutir o que fazer connosco, talvez tenham sido chamados pelo Criador para escutar ordens e receber recomendações. Na escola ao lado ainda há bolas a rolar, rapazes a correr, gritos de golo. Um pássaro poisa no parapeito da janela e canta.

quinta-feira, 12 de março de 2020

Dias difíceis

Não sem dificuldade juntei os bocados em que me divido para chegar a esta hora que anuncia o crepúsculo. Os dias não têm sido fáceis e a prova disso é que as minhas leituras se resumem a O Homem que era Quinta-Feira, de G. K. Chesterton. Não me atenua o cansaço mas faz-me sorrir. Lera-o há muito e havia muitos pormenores que se tinham apagado. Na mesma época li O Ente Querido, de Evelyn Waugh, e A Relíquia, de Eça de Queirós. Lembro-me de os ter juntado, mas não sei precisar a razão. Porventura, um acaso. Tenho pena de já não conseguir situar na existência a época em que os li. Talvez fosse um tempo em que precisasse de me rir um pouco, embora, ao contrário do que por vezes parece, não tenho propensão depressiva. Gosto de pintar o mundo com tintas escuras, mas o mundo faz muito por isso e teima com frequência elevada em não me desmentir. Um pessimismo antropológico não faz mal a ninguém e talvez ajude a que todos sejamos um pouco menos bárbaros. As sombras arrastam-se pelo chão, restos de luz batalham com denodo contra a vinda da noite, qualquer coisa cai num dos andares contíguos, oiço um bater metálico e depois o silêncio desce em espirais sobre mim. No ar, há uma exaltação contida, algum medo disfarçado por risos forçados. Não é fácil ser-se despojado dos hábitos, que são uma segunda natureza no dizer do velho Aristóteles. Nada melhor que citar uma autoridade para acabar.

quarta-feira, 11 de março de 2020

O deus do vazio

Anúncio do Verão. A temperatura chegará por aqui aos vinte e nove graus. O inferno insinua-se ainda a estação fria olha para o deve e haver e faz o balanço final, antes de entregar a contabilidade nas mãos da Primavera. Os últimos dias deixaram-me a cabeça mais vazia do que o habitual. Uma descoberta já não recente ensinou-me que quando lidamos com o vazio tornamo-nos como ele. O nada contamina a realidade e fá-la explodir. Com os anos fui descobrindo que a nulidade é uma divindade poderosa e tem ao seu serviço um sacerdócio persistente, auxiliado por janízaros impiedosos. São pagos para destruir tudo o que faça sentido e instituir a nova ordem onde nada existirá. Continuo a falar por enigmas e isto não é sinal de sanidade mental. Daqui a pouco irei para a rua e não sei se hei-de fingir-me no Inverno rigoroso ou se cedo à tentação estival. A cidade estará ensolarada e no sítio onde me esperam haverá sacerdotes do deus do vazio, perdidos em liturgias que só o demónio poderia ter inventado. O hospital ergue-se sombrio, as paredes maculadas por fungos, um bloco preso à terra para me roubar a vista dos campos. Desvio o olhar e vejo ao longe a serrania e penso que nunca sabemos para o que estamos votados.

terça-feira, 10 de março de 2020

O dardo refulgente

Sob o olhar atónito um espectro silencioso desenha a sua sombra de antracite na prosa gasta do mundo. Universidades e escolas fechadas, eventos cancelados, um país em quarentena. A fragilidade de tudo borbulha e ouve-se o ploc-ploc das bolhas ao rebentar. Tivera pendor para moralista e que magníficas máximas poderia agora expelir sobre a vaidade dos homens e as ilusões da vida. Não passo todavia de um mero narrador cujas palavras são o capricho de um autor com o qual nem sempre mantenho as melhores relações. Há que evitar moralizar sobre a desgraça, diz-me e eu obedeço-lhe. Sento-me à secretária e vejo o tempo, como um dardo refulgente, a deslizar à minha frente. Ao lado dele vai um casal de mãos dadas, perdido na verdura dos anos, o vigor dos corpos ainda disfarça aquilo que os espera na curva dos dias. O ranger do baloiço está cada vez mais insuportável, lembra o crocitar de uma ave agoirenta, enquanto uma criança vai e vem, vai e vem, impelida por uma mãe distraída, que por vezes leva as mãos à cabeça para compor os cabelos que o vento teima em desalinhar. Ao longe, no vazio dos campos, erguem-se ciprestes, um aqui outro ali, mais dois ou três à esquerda. Estão silenciosos e a sua sombra cresce oblíqua pelo chão. A reverberação da luz espalha um traço de melancolia na tarde e em tudo descubro a convocação de um romantismo chegado no vapor que deixou a estação do século XIX. Lá em baixo um adolescente grita ó Filipe anda cá já, um imperativo cambado, tinto pela incerteza de se fazer obedecer. Na avenida, os carros passam, param na passadeira para que peões cheguem ao outro lado, como se houvesse outro lado aonde chegar.

segunda-feira, 9 de março de 2020

Tempo de sacrifício

Daqui a pouco devo participar num exercício de penitência. Penso isto e rio-me. Afinal estamos na Quaresma e este é um tempo penitencial. Depois ocorre-me a possibilidade de já não ser assim. Não vejo ninguém com ar penitente, nem que se exima de carnalidades. Os jejuns passaram de moda e a abstinência contraria as regras do mercado. A ideia é nunca nos abstermos seja do que for. Alguém terá de fazer sacrifícios pelo bem da comunidade e hoje cabe-me a mim, intimo-me com a habitual tendência para o exagero. Lembro-me de imediato de alguns sacrifícios célebres. O de Isaac, que prazer em não escrever Isaque, por Abraão e o de Ifigénia. Naqueles tempos as coisas eram bem mais sérias. A tarde espuma um sol esbranquiçado, preguiçoso, enquanto eu antecipo o altar que me espera, os artifícios dos sacerdotes e sacerdotisas de serviço e o próprio deus, perante o qual sou completamente ateu, a que eles votaram as suas vidas. Há escolhas que são tão eloquentes que nem vale e pena sublinhá-las. O melhor é não fazer juízos apressados, pois houve quem visse no carrasco um ser sagrado, a pedra angular sobre a qual se constrói o edifício social. Hoje estou com uma tendência desmedida para o enigma, mas tudo no mundo é enigma, a começar por esta chávena por onde bebo o café e a acabar no facto cru de haver tardes, noites e manhãs. Respiro fundo e só espero que chegada a hora, em plena liturgia, não me dê o sono. Ando a dormir pouco e mal.

domingo, 8 de março de 2020

Um treino para o futuro

Realizo com método e sem prazer um conjunto de tarefas que tem por finalidade coisa nenhuma. Conheço muita gente que faz coisas úteis, mesmo que isso não lhe dê um especial prazer. Eu especializei-me em inutilidades. A inutilidade tem uma estratégia insidiosa para impor a sua natureza despótica. Durante muito tempo ela traveste-se, mostra-se como um farol que iluminará o bem. Quando o incauto, neste caso eu, dá por isso, está enrolado de pés e mãos e já passou há muito o tempo em que poderia ter-se posto a grande distância. A partir daí terá de sofrer, e isto não é uma hipérbole, os desvarios das coisas inúteis, o poder infinito dos produtores de irracionalidades, das imaginações transbordantes com que conseguem apresentar as maiores idiotices como sinal de razoabilidade. Alturas há em que chego a apreciar este meu destino, o treino que me dá lidar com a insensatez. Tenho esperança que no futuro me seja de grande préstimo, quando a idade, se a ela chegar, me trouxer a demência ou coisa semelhante. Terei paciência para mim, serei condescendente com os esquecimentos, a troca de nomes, as frases truncadas, até com os risos idiotas que haverei de ter sobre coisas que não têm graça nenhuma. Deus escreve direito por linhas tortas, é o que penso quando me deixo invadir pela cultura ao gosto popular. Dá-me uma realidade insensata para que eu aprenda a viver com a insensatez que me espera. O domingo está cinzento e preciso de sair, mas muitas são as coisas idiotas que me retêm.

sábado, 7 de março de 2020

Mistérios da botânica

Acordei muito cedo. Pus-me a ler e tornei a adormecer. Não é que Chesterton me dê sono, mas dormira muito pouco. Quando dei por mim a manhã tinha entrado na idade madura, com uma luz quente e uma temperatura sensata. Lembrei-me que ainda há uns meses o pequeno almoço começava ritualmente, sem qualquer expectativa terapêutica e apenas por puro prazer, com um copo de sumo de toranja. Entre esta e um medicamento que tenho de tomar existe uma incompatibilidade tal que não podem coexistir no meu pobre organismo. Durante muito tempo, pus de lado o medicamento. Agora rendi-me à realidade, que é sempre mais perversa do que deveria ser. Antes de tomar o pequeno almoço dei uma volta pela casa para abrir janelas. De todas as coisas teóricas que me interessaram, a botânica não foi uma delas. E entre as poucas coisas práticas que me solicitaram o desejo, não consta a jardinagem. A verdade, porém, é que nunca deixo de contemplar o friso das orquídeas e o pequeno mistério que lá habita. O friso dar orquídeas é uma hipérbole para designar o parapeito de uma janela onde habitam dez exemplares desta espécie. Estão a florescer. O mistério é o da orquídea branca que chegou aqui nos finais de Março do ano passado com as flores abertas. Enquanto as suas novas vizinhas entregavam a beleza ao criador e hibernavam, ela manteve-se florida até hoje e, conforme pude constatar, promete continuar. Durante os meses de Outono e Inverno foi incansável, oferecendo o imaculado da sua brancura como uma bandeira para apaziguar os espíritos. Quando a olho imagino que será um anjo cansado de voar e que tomou a forma de uma planta. Os anjos são capazes de tudo, embora também angelologia não seja uma das áreas a que tenha dedicado atenção, o que não me permite ter a certeza se entre as hierarquias angélicas existirá alguma cujos membros se possam transformar em orquídea. O sábado já passou pelo portal do meio-dia. A minha consciência olha-me acusadora e pergunta-me por que razão não dei atenção à botânica nem ao estudo dos anjos. Olhei-a nos olhos e fiz-lhe um gesto que por decoro me abstenho de descrever.

sexta-feira, 6 de março de 2020

As memórias inúteis

Desembrulho devagar a sexta-feira, mas ela teima em contrariar-me a lentidão, apressada em chegar ao fim-de-semana. O telhado do pavilhão desportivo da escola ao lado reverbera, batido por um sol desavindo com a estação. Mais ao longe o pequeno bosque de cedros é já um pasto de sombras, ocupado pelos rebanhos da noite. Irrito-me com esta propensão para a metáfora fácil. Tivesse eu mão em mim e impor-me-ia uma escrita rasa, sem o pathos do desvio. Barulhos metálicos, como se escravos acorrentados arrastassem os pés pela calçada, chegam até mim. Rugosos, crus, quase acastanhados. Também devia evitar as sinestesias. Agora um momento de silêncio abriu o caminho por entre os rumores do mundo. Toco-lhe, sinto-lhe a transparência e recosto-me na cadeira à espera que uma revoada de anjos passe no céu. Pensei expulsar a humanidade destes textos, mas não posso deixar de referir o nome de Dharmottara, um filósofo budista que viveu no século oitavo em Caxemira. O que ele pensou não vem ao caso, mas lembrei-me da veneração que havia pela lã de caxemira e é essa recordação que contemplo. Tenho em mim muitas memórias que não servem para nada e são essas que cultivo para minha perdição. A que mais me espanta é a do vento a soprar defronte da escola onde aprendi a ler. Em nenhum outro lugar ele sopra assim. Tenho um rol não pequeno de tarefas para executar. O baloiço do parque voltou a ranger e eu ranjo com ele, irmanados na falta de sentido que nos anima.

quinta-feira, 5 de março de 2020

Tendência para a dissipação

Olho à minha volta e observo com demora as dezenas de livros que comprei nos últimos tempos. Há neles uma ameaça demasiado grande para ser ignorada. Entre o desejo que me levou a comprá-los e a possibilidade física de os ler vai uma distância tão grande que não tenho qualquer possibilidade de a percorrer. Há quem defenda a teoria de que perante uma vida sempre demasiado curta só se deva ler os clássicos, aqueles que o tempo canonizou. Racionalmente, parece-me uma boa ideia, mas entre a razão e o desejo há uma distância infinita. Por vezes, faço planos para ler aqueles romancistas portugueses que ninguém lê, os esquecidos do cânone ou então os filósofos que o tempo derrotou. Assim, levado pelo pela incongruência do desejo, vou comprando livros, empilhando-os conforme posso. O que em mim me espanta é esta capacidade para a dissipação, o cultivo de objectivos que nem ao diabo lembrariam, o poder de escolher sempre aquilo que não deveria escolher. Há em tudo isto uma libertinagem que não augura nada de bom ou sequer de remediável. Bem me avisaram que o desejo era mau conselheiro e pior que as tentações era não lhes resistir. Haverá alguém que leia O Prato d’Arroz Doce, de Teixeira de Vasconcellos, ou Memórias d’um Doido, de Lopes de Mendonça? Haverá alguém que saiba quem são os autores? Não, claro que não, mas esses romances repousam na minha secretária, como se chamassem por um derradeiro leitor e eu, suficientemente doido ou amante de arroz doce, existisse para lhes cumprir a última vontade. Tenho de ter uma paciência infinita para aturar estas idiossincrasias.

quarta-feira, 4 de março de 2020

O verbo reunir

Olho para a minha agenda, uma agenda imaginária, claro, e sou assaltado por uma pergunta. Que mistério haverá no verbo reunir para que ele exerça sobre tantos tão poderosa atracção? Vou a um dicionário, olho o verbo bem nos olhos, perscruto-lhe a intimidade e começo a vislumbrar aquilo que nele há de tão poderoso. Exprime uma nostalgia e uma recusa. Imaginemos a expressão toca a reunir. Nela há uma urgência na recusa do estado de dispersão. Haverá medo de que dispersos, perdidos na singularidade, não consigamos resistir a não se sabe bem o quê. E é aqui que nasce a nostalgia desse tempo mítico em estávamos todos unidos. As instituições estão cheias de reuniões porque muitos daqueles que as ordenam são pessoas nostálgicas e medrosas. Não suportam a solidão do estado de dispersão, desejam ardentemente voltar ao estado arcaico que habita a sua imaginação. Tudo isto para dizer que tenho duas reuniões para me ocuparem a tarde, sem que lhes vislumbre a necessidade, a não ser para aqueles que têm medo da solidão. Uma motorizada ronca pelas ruas aqui à volta. O ruído da maquineta é inversamente proporcional à inteligência de quem a conduz. Depois imagino que também ele terá pressa para se reunir. Os pássaros meus vizinhos parecem corroborar a minha ideia, mas logo abandonam o assunto para se entregar a uma conversa sobre os planos de voo. Também eles precisam de acertar detalhes, tomar decisões, fazer escolhas. Calaram-se agora, sinal que tudo está resolvido.

terça-feira, 3 de março de 2020

A insurgência contra a voz

O céu sobre o hospital parece chumbo, tão carregadas estão as nuvens. Tenho alguns assuntos pouco entusiasmantes para resolver, mas folheio um livro de memórias de Elias Canetti, O Archote no Ouvido – História de Uma Vida. Leio umas frases aqui, outras ali, saltitando com inconstância, enquanto vou espreitando os meteoros. Já ninguém emprega esta palavra para designar o que acontece na atmosfera. A terceira parte do livro, que trata da vida do autor em Viena entre 1926 e 1928, tem um título extraordinário, A Escola do Ouvir. Será, por certo, uma metáfora, mas representa um modo de existência. Aprender a ouvir e aprender ouvindo são a mais profunda forma de aprender a viver. Só a voz toca as cordas do coração e abre caminhos insuspeitos, muitos dos quais se manterão secretos até que, por um qualquer acidente de percurso, eles se revelem, com o que têm de benfazejo. Hoje ninguém quer aprender a ouvir. Não se suporta escutar uma voz. As crianças não devem aprender ouvindo, diz-se, mas devem fazer, experimentar, como se estivessem todas condenadas à fabricação. O que me impressiona é o medo que se tem de saber escutar. Esse medo nasce da recusa da voz. Os filhos não escutam a voz dos pais. Os alunos recusam a voz dos professores. Temem que essas vozes não sejam as do futuro ou não foram educados a suportar o imenso peso do passado que uma voz traz em si. Não é por acaso que um certo livro do Novo Testamento começa dizendo que no princípio era o Verbo. No início está a voz que profere a palavra. A insurgência contra a voz, a recusa da escola do ouvir, não representa progresso algum, mas a perda da nossa humanidade, que está toda ela nessa voz que faz ouvir e que se escuta. Hoje cheguei à tarde envolvido num pathos metafísico, o mais sensato será ir comer chocolate.

segunda-feira, 2 de março de 2020

Uma tarde na vida de um pobre mortal

A tarde não podia ter começado da pior maneira. Uma ida ao banco para resolver assuntos pendentes e a pendência demorou quase duas horas, entre papéis e sorrisos, uma linguagem esotérica, talvez uma iniciação à Cabala, sobre pacotes e anuidades, cuja finalidade já esqueci. Almocei de cabeça vazia passava já das três da tarde. A seguir fui à farmácia, mas havia gente e tive de esperar a minha vez, que veio sorrateira, sem grandes demoras, entre sorrisos e consultas ao computador, temos nesta versão, mas se quiser outra, mandamos vir. Não mandam vir nada, que eu fico com esta, há-de tratar-me tão bem que nunca hei-de esquecer-lhe o nome e saí grato com o colírio benfazejo que me há-de tratar de ser quem eu sou. Chegado a casa lembrei-me – por milagre – que me tinha esquecido de confirmar a consulta no cardiologista. Liguei para o consultório, sou recebido por uma música que nunca ouviria por livre iniciativa e uma voz mecânica informa-me que estou em fila de espera, serei atendido tão breve quanto possível. Por vezes, faz-se silêncio, tenho esperança que alguém me atenda, mas continuo na fila, uma fila invisível, um objecto idealizado onde não existe ninguém, apenas aquela música e a informação de que estou em espera, como se eu não soubesse que o estava. Entrei numa distopia, tenho de sair o mais rápido possível dela, anotei na minha agenda. Depois, uma voz feminina atende-me, imagino que também ela sorri, explico-lhe o meu problema, ela diz um momento e lá fico outra vez em fila de espera, mas sem música. Os minutos passam, a vida passa com eles, eu olho para o relógio, até que a voz feminina retorna, pede desculpa porque teve de dar assistência a um médico. Que não se preocupasse, respondi-lhe. Lá trato da consulta e escapo-me para o silêncio do meu escritório, sem transacções bancárias, nem medicamentos com multiversões ou consultas a confirmar. Não sei porquê, mas o meu telemóvel informa-me que a Terra pode ser expulsa do Sistema Solar por causa de uma estrela. Leio a descrição das consequências. O nosso planeta seria arrastado para as profundezas do espaço interestelar, condenado a vaguear pelas terras congeladas da nossa galáxia. Perguntou-me se é para isto, por que hei-de andar a tomar medicamentos e a confirmar consultas, depois o artigo informa-me que a hipótese disso acontecer é pequena. Recomponho-me e torno a anotar na agenda, como se fosse em rodapé, uma tarda perdida, embora a possibilidade da Terra ser expulsa do seu lugar seja diminuta. Lá fora a anemia cresce dentro dos raios solares e uns adolescentes jogam à bola. A vida desliza-me do corpo.

domingo, 1 de março de 2020

Cultivar um jardim

Aos domingos à tarde, durante aquelas partes do ano em que a realidade tem um efeito devorador na vida, sou acometido por uma náusea que me enche o coração de um certo despeito e, confesso-o, desprezo por mim. Depois, com a aproximação da noite, o enjoo existencial passa e a vida conforma-se com o que tem de ser. As trevas tornam-se assim luz que ilumina a escuridão que há-de vir. Hoje, porém, a náusea recusou-me a sua presença e fiquei sem saber a razão. É certo que o meu neto esteve cá e que conseguimos já fazer em conjunto umas patifarias ingénuas só para irritar os circunstantes, o que significa que está a nascer aquilo que há-de ser, assim o espero, uma bela cumplicidade. Talvez tenha sido isso que me dissipou o fastio tradicional deste dia e mesmo quando ele foi para Lisboa a repulsa metafísica pela realidade já não teve poderes para se impor. Ontem comprei um livro do filósofo coreano Byung-Chul Han com o belo nome de Louvor da Terra. Um dia, escreve ele, sentiu uma profunda nostalgia da terra e então decidiu cultivar um jardim. Fê-lo durante três anos e o livro é uma meditação sobre essa experiência, na qual a terra, o revolver da terra é central. Em mim nada apela para que cultive um jardim, mas existem imagens muito arcaicas de terra revolvida, memórias dos cheiros que dela se desprendiam, mas não tenho alma de lavrador ou de jardineiro. Os pássaros meus vizinhos entoam um cântico. Distingo nele um hossana em louvor do céu. Também eles sentem nostalgia do seu elemento natural e, enquanto desenham estranhas espirais no ar, talvez cultivem o seu jardim suspenso. Mais ao longe distingo, num céu de antracite, os vultos negros de dois corvos. Sombras rápidas, carregadas de anos e de uma sabedoria antiga que não partilham com ninguém. Os dias vão crescendo, mesmo que a luz, nesta hora, esteja cansada e sonolenta. Passam das seis da tarde e ainda nenhum anjo poisou no telhado do prédio em frente. O que andarão a fazer, pergunto sem esperar que alguém me responda.