quarta-feira, 8 de fevereiro de 2023

Um pré-moderno

Afinal, não será uma patologia, mas o eco persistente de um hábito que os tempos modernos vieram destruir, talvez sem o conseguir por completo. Estou a falar por enigmas? É possível, mas são estes o sal da vida. Referia-me à vexata quæstio da insónia que, com regularidade, me atormenta. Uma entrevista, na excelente Electra (Inverno 2022/23), a Roger Ekirch, autor de At Day’s Close: Night in Time Past, descubro que a ideia de que o padrão consolidado do sono é o de oito horas contínuas não passa de uma invenção moderna, demasiado moderna. O autor descobrira que, antes da Revolução Industrial e da iluminação nocturna, o sono era bifásico, havendo uma interrupção de cerca de uma hora, entre o primeiro e o segundo sonos, na qual as pessoas se entregavam às mais diversas actividades. Quais, perguntar-se-á. Bem, actividades que não exigissem grande iluminação. Como por exemplo? Certas tarefas domésticas, ou meditar, rezar, ter relações sexuais. Constato que as possibilidades tinham certa variedade, embora algumas fossem de compatibilização se não impossível, pelo menos difícil. A não ser que se fosse um cultor do Tantra, como se poderia compatibilizar o sexo e a meditação? E o que tem isso que ver com a insónia de que padeço? Segundo a tese de Ekirch, a insónia a meio da noite é um eco persistente desse anterior padrão de sono. Talvez isto seja um sintoma de que o meu tempo não é este, mas um que já passou, aquele em que a escuridão induzia a um sono bifásico (outra tese do autor). Em resumo, fui atingido pelo ferrete da obsolescência. Não há dia que não descubra mais um indício do estado em que me encontro. Definitivamente, sou um pré-moderno.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2023

Pensamentos ociosos

Há muito tempo que não oiço as Hochzeitskantaten, de Bach. Por acaso, ou por uma determinação cujas causas desconheço, peguei num CD em que Christine Schäffer as interpreta, acompanhada pelo Musica Antiqua Köln, dirigido por Reinhard Goebel. Uma edição da Deutsche Grammaphon. Que razão me terá levado a esse disco e não, por exemplo, à Sinfonia “Kullervo”, de Jean Sibellius, ou a Kagel by Mauricio Kagel. O que me interessa é se o acontecimento foi aleatório ou, parecendo fruto do acaso, alguma secreta inclinação me conduziu, em primeiro lugar, à obra de Bach e, só depois, às outras. Afasto três explicações. A primeira, a tese aleatória, diz que o acaso é mero acaso e não mais do que isso. A segunda diz que uma cadeia causal, vinda dos primórdios do universo e gerida pelas leis da natureza, me levou até àquela obra. Uma terceira sublinha que estava fadado pelo destino a encontrá-la neste preciso momento. O que gostaria de saber é que secreta decisão se deu em mim para que, inconsciente, me dirigisse a ela e a reconhecesse como aquilo que queria ouvir. Portanto, nada de leituras influenciadas pelo indeterminismo da mecânica quântica, nem pela física determinística, nem pela metafísica esotérica. Em que ponto de nós se dá uma decisão que parece ter sido formada antes de se ter dela consciência? Melhor seria falar do estado do tempo, do adiantamento dos trabalhos dos campos ou, então, de um poema que começa assim: De perfil. As rugas por metade. / Mais fundas junto à boca desgostosa. / Nenhuma rosa. / No cristal da idade. O que seria um poema pouco concorde com o espírito nupcial das cantatas de Bach. Nem sempre as terças-feiras são dias propícios à clareza de espírito. Volto para a realidade, essa casa de correcção que trata de pessoas com condutas viciosas e não há coisa mais viciosa do que ter pensamento ociosos.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2023

Puro e impuro

Um dos pares de categorias mais antigo, por isso, mais estruturantes da vida social dos homens, será o de puro e impuro. Por motivos alheios aos meus interesses, mas movido por um certo acaso, deparei-me com uma pequena notícia de 2019 do Expresso. Uma jovem mulher nepalesa morrera sufocada numa cabana sem janelas, onde acendera uma fogueira para se aquecer. Estava isolada, pois, estando no período menstrual, era considerada impura, o mesmo aconteceria se tivesse acabado de dar à luz. Os tempos de impureza implicavam isolamento, o que muitas vezes acabava mal. Este par de categorias talvez esteja na origem de todas as atitudes discriminatórias que compõem a vida da espécie. Podemos pensar, na ignorância que temos dos factos, que num momento muito arcaico da cultura humana, arcaico pois a força dessas categorias parece ser universal, algum acontecimento traumático levou a consciência dos nossos antepassados a fixarem-se no problema da mácula e a construir um terrível jogo de distinções entre o puro e o impuro, o maculado e o imaculado. Estas distinções não tiveram apenas valor cognitivo, mas deram origem a múltiplos mandamentos que ordenam as acções dos seres humanos. Uma irracionalidade, dir-se-á, a que tempos mais esclarecidos acabarão por pôr fim. Disso, este narrador tem fundadas dúvidas. Esse jogo entre o puro e o impuro acontece mesmo – por vezes, com inusitada intensidade – em culturas modernas, marcadas por forte educação da razão. Mesmo um filósofo supinamente racional, Immanuel Kant, não resistiu à atracção que o par puro/impuro exerce sobre o espírito humano, ao escrever a sua mais célebre obra, a Crítica da Razão Pura. Também ele pretendeu isolar numa cabana destituída de janelas o uso da razão contaminado pela sensibilidade. Ora, se o expoente do pensamento iluminista caiu na armadilha do puro/impuro, o que haverá de suceder connosco, pobres mortais, cujo pensamento não se eleva às alturas onde habitava o senhor Kant, enquanto dava aqueles célebres passeios pela velha Konigsberg e as pessoas acertavam os relógios pela sua passagem?

domingo, 5 de fevereiro de 2023

Da tristeza

Domingo. A tristeza da tarde escorre das paredes batidas por um sol pálido. Na avenida, pessoas passam devagar. Duas mulheres, talvez amigas de longa data, caminham com lentidão, para que a pele receba ainda a luz solar. Um homem passeia um cão minúsculo. Outro entra no bar da esquina. São assim os domingos de província, quando já não há cinema e ninguém vai ao futebol ver jogar a equipa da terra. Poderá haver outros eventos mais animados, mas esses escondem-se dos olhos públicos, e daquilo que não se dá à publicidade, o mais sensato é não falar, não vá o desconhecimento cobrir com o véu escuro da mentira a verdade daquilo que acontece. Sobre a tristeza, Montaigne começa assim o ensaio que lhe dedica: Conto-me entre os mais isentos desta paixão, que não amo nem aprecio, pese embora os homens a terem honrado, como que por convenção, com um favor particular. Vestem com ela a sabedoria, a virtude, a consciência; néscio e monstruoso ornamento! Os Italianos baptizaram-na mais convenientemente com o nome de malícia. Há no texto do pensador francês uma dificuldade. Começa por dizer que a tristeza é uma paixão. Ora, paixões são coisas que se sofrem, nas quais somos passivos. Podemos resistir-lhes, mas não está na nossa mão evitar que nos atinjam. Depois, faz notar que os homens vestem com a tristeza a sabedoria, a virtude, a consciência. Se o fazem, então essa tristeza resultada de uma decisão. Se assim é, então a tristeza não será uma paixão. Se, no entanto, for realmente uma paixão, aquilo com que os homens revestem a sabedoria, a virtude, a consciência não será a tristeza, mas um simulacro. Simulam-se tristes para adquirirem uma gravidade que temem não possuir. Um domingo de província não é uma simulação da tristeza, mas a tristeza em acto. Os dias são mais autênticos do que os homens, coincidem consigo mesmos, enquanto nós nunca coincidimos connosco. Entre nós e nós existe sempre uma fenda. Talvez a vida seja essa tentativa vã de preencher o hiato. Ou talvez seja outra coisa qualquer de que não sei o nome, nem conheço o sentido, nem descortino a que se refere. Isto, porém, não é motivo de tristeza, mas de júbilo.

sábado, 4 de fevereiro de 2023

Do sofrimento das palavras

Esteve, está ainda, um magnífico dia de Primavera, apesar do Inverno oficial estar mais ou menos no meio. Está a faltar à estação fria resiliência, para utilizar uma palavra que, caso tivesse poder para tal, aboliria. Em si mesmo, o vocábulo é inócuo, mas ao cair nas bocas do mundo, tornou-se jargão de homilias insuportáveis. Pergunto-me, não poucas vezes, sobre o mal que terão feito certas palavras para terem assim um destino tão atroz. Depois, é verdade, passada a fase pandémica, voltam à normalidade, entrando a mais das vezes no esquecimento. Uma outra é paradigma. Não há cão nem gato que não se veja perante uma mudança de paradigma. Como é que uma noção polémica vinda da história da ciência, da interpretação das transformações nos campos científicos, se propagou nas vãs bocas deste mundo? Sabe-se lá. O mais interessante é que o autor da ideia de aplicar paradigma à mudança científica, sete anos depois altera o nome de paradigma para matriz disciplinar, mais conforme com os seus intentos e reservou o termo, agora mágico, para outra coisa bem mais modesta e que não vem ao caso. O mal estava feito. Agora, andamos sempre, cheios de resiliência, a mudar de paradigma, prova de que os paradigmas estão cada vez menos resilientes. Tenho de me preparar para observar como chega a noite, para compreender aqueles versos de Homero referindo-se ao deus Febo Apolo:  Nos ombros trazia o arco e a aljava duplamente coberta; / aos ombros do deus irado as setas chocalhavam / à medida que avançava. E chegou como chega a noite. É uma extraordinária analogia. Os deuses chegam como chega a noite. Homero, porém, estaria a explorar uma ciência comum que existiria nos homens, a de saber como chega a noite, ou, pelo contrário, pretendia explorar a mais banal das ignorâncias, aquela que nasce de o hábito da noite chegar, mas nunca deixar de ser um mistério o como ela chega? Em que paradigma o semiverso de Homero deve ser colocado? É melhor acabar, não me ponha por aí, resiliente, a semear uma seara de interrogações.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2023

Toponímia

Desconfio que não tardará e estaremos, mais uma vez, em seca severa. Depois de um Janeiro que, após um começo lacrimoso, se desfez das águas e abraçou a causa do fogo, estamos no terceiro dia de Fevereiro e a tendência mantém-se até, pelo menos, meados da semana que vem. Já floriu a primeira orquídea cá por casa. Outras prometem para breve o abrir-se em flor. Esta expressão, abrir-se em flor, deveria ser evitada. Não me ocorreu outra melhor. O pequeno bosque da escola aqui ao lado é uma mistura de luz e sombra. Na Sá Carneiro, os transeuntes transitam com vagar, gente sem idade que procura as esplanadas onde possa ainda deixar o corpo sorver um pouco de sol. O nome da avenida não se refere ao poeta, mas ao antigo primeiro-ministro. Não é o resultado de um reconhecimento artístico, mas da paixão política. Julgo que a nenhuma rua ou avenida daqui foi atribuído o nome de um grande escritor. Nem Eça, nem Pessoa, nem mesmo Camões. Há uma excepção, a grande referência nacional do século XIX, Alexandre Herculano. Consta que o autor de Eurico, o Presbítero teve tanta glória em vida, quanto Camões ou Pessoa depois de mortos. Essa glória chegou aqui e tomou o nome de uma rua. De resto, as artes e as letras não comovem a comissão toponímica local, uma congregação que imagino secreta, reunindo em conclaves nos quais, com gravidade, se delibera a alteração de nomes existentes ou, se aparece alguma rua nova, o baptismo da recém-nascida. Daqui a pouco, chegam as minhas netas para passar o fim-de-semana. Os novos óculos continuam a oferecer-me uma visão mais nítida da realidade, o que pode não ser um bem.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2023

Próteses

Surpreendentemente, as letras não apenas cresceram como se tornaram mais nítidas. No Word, caderno onde estes textos são escritos, o negro apresenta-se acintosamente retinto. Não imaginava que o preto fosse tão preto. Para esta metamorfose, bastou a troca de óculos. Pena não haver uns óculos para a inteligência. Por certo, tornar-me-ia num cartesiano. Tudo seria mais claro e mais distinto. Uma prótese para o intelecto ser-me-ia ainda mais útil do que para os olhos. Sendo assim, contento-me com o que me saiu na lotaria genética. Saliente-se, todavia, que ver as coisas difusas tem enormes vantagens, pois é provável que quando as coisas se apresentam de modo claro e distinto não consigam disfarçar aquilo que nelas há de repelente. Imagino que um poeta como Herberto Helder tivesse essa compreensão do mundo quando escreveu Os jardins contorcem-se entre o estio e as trevas. Eu veria apenas um jardim agradável, ele vê-o a contorcer-se, em espasmos, talvez mesmo a babar-se. O oculista onde mandei fazer os dispositivos que me aumentam a visão terá a minha idade. Pertence a um género de comerciante em vias de extinção. Lida com cada cliente como se este fosse a pessoa mais importante do mundo, embora não passe nunca a linha da contenção, aquela fronteira que impede a queda no ridículo. Faz-me lembrar uma história contada, salvo erro, pelo historiador britânico, descendente de rabinos lituanos, embora os pais fossem judeus seculares, Tony Judt. O avô tinha um grande armazém e dedicava um dia por semana para estar à porta onde cumprimentava qualquer cliente, rico ou pobre, com a máxima deferência. Para dizer a verdade, não estou certo de que a história seja de Judt e já não sei onde a procurar. Talvez seja do sociólogo norte-americano Richard Sennett, ou de um outro autor que agora não me ocorre. Pena não haver óculos para a memória. Seja como for, juro que a história não é apócrifa.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

Sub specie aeternitatis

Janeiro, como água, escapuliu-se entre os dedos. O novo mês entrou levemente buliçoso, uma mistura de frio cortante e sol fúlgido. Ontem alguém que conheço muito bem sugeriu-me a candidatura a uma certa actividade, numa certa publicação cujo nome não vem ao caso. Estariam interessados, por certo. Respondi que não. A publicação, apesar de estar na moda, não era do meu agrado, o meu interesse em dar-me a conhecer nulo, o assunto não me comovia, apesar de poder escrever sobre ele muitas páginas e de o conhecer com alguma profundidade. E, acrescentei, que já era tarde para fazer uma coisa dessas, mesmo num lugar que me agradasse. É preciso ter consciência de que todos temos um tempo de validade e o meu passou, acrescentei como argumento final. Os gregos distinguiram duas modalidades de tempo, chronos e kayrós. O primeiro é o tempo banal, aquele que medimos através de relógios e calendários. O outro é o tempo oportuno, a hora propícia para tomar uma decisão ou realizar uma acção. Não sei bem a razão, mas sempre tive dificuldades com ambas as modalidades do tempo. Imaginemos um certo romance que sai. Não olho para ele do ponto de vista da novidade, o que implicaria uma atenção ao chronos e à sua oportunidade de leitura, o kairós, mas sub specie aeternitatis, isto é, tanto faz lê-lo agora como daqui a dez anos. O que acontece com esse imaginário romance, acontece com muitas outras coisas, mesmo as mais pessoais. Olho-as do ponto de vista da eternidade. Isto tem as consequências mais funestas. Por um lado, na dimensão cronológica, tenho uma enorme propensão para o serôdio, num mundo que valoriza o temporão sob a designação de precoce, e, na dimensão kairológica, inclino-me sempre para perder a hora. Se alguém, tomado por alguma insensatez, me pedisse um conselho sobre como agir no mundo, coisa que certamente não ocorrerá, dir-lhe-ia apenas que nunca sobre si deixe que caiam os raios da eternidade. Destroem os relógios, confundem os calendários e escondem o momento certo.

terça-feira, 31 de janeiro de 2023

O colapso das coisas

O admirável mundo das coisas. Hoje estive numa daquelas videoconferências que, com a pandemia, se tornaram marca de modernidade. Intrigou-me ver na janela que me dizia respeito aparecer uma imagem tão difusa que mais parecia a de um vidro martelado que em tempo haveria nas casas de banho. A certa altura, perguntei se me viam a mim ou a outra coisa. Outra coisa, uma espécie de vidro da casa de banho. Confirmei a minha suspeita. Tinha decaído ao nível da vidraça martelada. Tendo sido proferido o ite, missa est, desliguei e fui fazer experiências. Nunca consegui que a imagem, no caso a minha, superasse o nível de vidro fosco de uma casa de banho. Imagino que a câmara colapsou. Aliás, neste computador existem várias coisas a entrar em colapso. Recusa-se a funcionar, enquanto lhe ordeno que funcione, corrompe ficheiros, de preferência Excel, quando eu muito gostaria que os preservasse. Também o microondas se recusou a aquecer o que tinha de aquecer, mas o problema não estava nele, descobri ao fim de alguns dias, mas na tomada onde estava ligada, de onde não tomava energia suficiente para que as microondas microondeassem. Em resumo, as coisas andam em maré de colapso. Quase poderia afirmar, sem exagero, estar perante um apocalipse do mundo material. Para minimizar o efeito da acção dos maus espíritos, oiço Chet Baker, não no trompete, mas a cantar. My Funny Valentine, neste momento. Tenho de fazer ainda um conjunto de coisas esta tarde, pois a realidade nunca pára de se realizar e, ainda por cima, tenho um jantar de aniversário. O sol desta terça-feira está um pouco mais anémico do que o de ontem, todo ele músculo e exuberância.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

Desencarnações e encarnações

É numa longuíssima entrevista (272 páginas na edição francesa) publicada em livro, dada a Bénédite Délorme-Montini, que Pierre Manent, um pensador político francês influenciado por Léo Strauss, se afasta deste seu mestre, não tanto na questão política, mas na figura do filósofo. O que marca a figura do filósofo? A indiferença perante as coisas humanas. O olhar imparcial com que ele se deve voltar para o mundo em que vive, implica essa indiferença. É Allan Bloom, se não estou em erro, que abre a compreensão de Pierre Manent para essa figura que, de certo modo, o próprio Strauss encarnava, dizendo-lhe que Sócrates não amava a mulher, não amava os filhos. O eros socrático estaria todo ele concentrado na busca da verdade. A filosofia, desde o seu início, tem um ideal de desencarnação. Platão, o discípulo a quem Sócrates impôs que rasgasse ou queimasse as tragédias que teria escrito, definiu o empreendimento filosófico como um aprender a morrer e a estar morto. É possível pensar que na filosofia exista uma revolta contra a condição humana. Essa revolta mascara-se no desejo de saber que exige a indiferença por aquilo que é humano, demasiado humano, como amar uma mulher ou os filhos. Há também uma outra coisa, uma hübrys, uma desmedida, um desejo insensato de divinização. Tornar-se um deus, pelo desprezo daquilo que é humano. Ora, a coisa mais espantosa é o modo como este impulso grego acabou por se consociar, a certa altura, com outro impulso em que o divino, por interesse excessivo pelo humano, toma carne, na figura de Cristo, para morrer pela salvação dos homens. De um lado, um excesso de indiferença. Do outro, uma atenção excessiva, escandalosa. Talvez tenham podido caminhar juntos, durante alguns séculos, porque se contrabalançavam, porque o impulso da vida em direcção à morte, projecto de toda a filosofia digna desse nome, era equilibrado pelo impulso que da condição mortal pretende extrair ainda uma vida. Nem sempre, ou quase nunca, as segundas-feiras proporcionam as condições para manter um módico de sanidade mental. A noite já caiu. Tenho ainda tarefas à minha espera, pois, a realidade nunca deixa de bater à porta.

domingo, 29 de janeiro de 2023

Meditações

Um domingo de reclusão. Como um monge na cela medita sobre os mistérios da salvação, também eu meditei no escritório, embora os motivos de meditação fossem mais terrenos e inúteis. Durante toda a minha vida, o inútil foi aquilo que mais me atraiu. Não há como um dia inútil para que se medite sobre coisas inúteis. Poderia ser de outra maneira? Claro que podia. O que me impediria de meditar, por exemplo, na terrível Cláusula Filioque? Terrível, pois é uma das razões do grande cisma do oriente. Será que o Espírito Santo tem a sua origem apenas no Pai, como pretendem os ortodoxos, ou no Pai e no Filho, como advogam os católicos? Nada mo impediria e o motivo de tal meditação nunca seria esgotado, pois como poderia um mero mortal conceber um teste que provasse a verdade de uma das teses e a falsidade da outra? O que parece provar essa impossibilidade é que o cisma ocorreu há quase mil anos e, ao que consta, não se avançou um passo na resolução do enigma. Seria, todavia, mais útil meditar sobre a teoria das cordas, sobre essa possibilidade de unificar matematicamente a teoria da relatividade e a mecânica quântica? Tenho as minhas dúvidas. Seja como for, sei tanto de teologia como de física, o que significa que não poderiam, nem uma nem outra, ser motivos de meditação de um recluso de domingo na cela do seu escritório. Também é possível que tudo isto seja mentira e que tenha saído de casa e caminhado pela cidade, acumulando pontos cardio que, segundo a Organização Mundial da Saúde, contribuem para prolongar a vida e o bem-estar. Poderei ainda ter ido em excursão a uma certa aldeia do concelho, onde os agricultores vendem laranjas à beira da estrada, e comprado um saco delas. Um desses proprietários de laranjais, por acaso uma senhora já de alguma idade, também vende toranjas. Isso faz-me lembrar os tempos em que começava o dia com um copo de sumo de toranja. Depois, motivado pela necessidade de tomar um certo medicamento incompatível com esse citrino, abandonei o pequeno prazer diário. Agora, oiço o Quinteto para Piano n.º 1, da compositora polaca Grażyna Bacewicz. Muito gostava de saber pronunciar tal nome.

sábado, 28 de janeiro de 2023

Publicidades

Falham-me aventuras para vir contar aqui, proezas que, se somadas, haveriam de constituir uma gesta mais elevada que a dos romances de cavalaria. Limitei-me a ir às compras, a deambular de prateleira em prateleira. Notei  que os vinhos se transtornaram com a ideia de que existe inflação. Não apenas acompanham a senhora no seu processo de inflar, como a ultrapassaram largamente, com preços a aumentar entre vinte e cinco e cinquenta porcento. Há casos ainda mais exuberantes, tal a presunção. Talvez fosse por coisas destas que D. Quixote confundia moinhos com gigantes. Diante de mim tenho o romance Aldeia das Águias, de Guedes de Amorim. Faz parte daqueles livros que vou comprando em alfarrabistas online. Por norma, são de escritores portugueses que ninguém lê, que poucas pessoas sabem que existiram e que entraram mansamente no território do esquecimento. Guedes de Amorim, de que apenas li Morfina, faz parte desse imenso grupo de esquecidos do público e abandonados pelos leitores. Ele teve-os, por certo. É uma personagem curiosa, pois começa no cristianismo, no qual terá sido educado, passa pelo agnosticismo e, como filho pródigo, volta à casa paterna, tendo-se tornado franciscano e vivido em conformidade com o ideal de S. Francisco, sobre o qual escreveu uma obra. O que me interessa, todavia, é aquilo que encontrei dentro do livro de 1939, publicado pela Editorial Minerva. E o que encontrei foi um postal dirigido a um certo Exmº. Snr. Dr., imagino que seja o proprietário original do livro, que vivia na rua do Conde Redondo, em Lisboa. Omito o número e o andar. Era um postal publicitário dos Laboratórios Jaba, os quais terão sido vendidos já neste milénio a um grupo italiano. Num dos lados, publicita-se a Nutricina. Quem estivesse com dificuldade de ganhar corpo e aumentar de peso, já sabia, tinha ali um precioso auxiliar composto com suco de carne, oxihemoglobina e glicerofosfatos. Se o problema, porém, não fosse a falta de peso, mas perturbações do sistema nervoso, bastava olhar para o verso do postal e encontrava a solução à base de passiflora incarnata, salix alba e crataegus oxyacantha, que é como quem diz flor-da-paixão, salgueiro branco e pilriteiro, tudo com o extraordinário nome comercial de Calmoflorina. A publicidade a este produto era acompanhada com uma colecção de opiniões de médicos, apenas identificados pelas iniciais, que se concentravam em Lisboa, havendo apenas um que viveria desterrado em Algés. Das cinco opiniões clínicas, uma delas tinha um sabor patriótico, Tenho receitado freqüentes (naqueles dias usava-se o trema) vezes a CALMOFLORINA. É um produto que substitui com agrado o seu congénere estrangeiro. Portanto, era uma questão de prazer, de tornar a coisa agradável. A mais extraordinária, porém, é a última: Experimentei a CALMOFLORINA em minha mulher e fiquei absolutamente satisfeito com os resultados obtidos. Pena que não se tivesse dignado informar quais os resultados que tanto o satisfizeram, mas não se pode saber de tudo o que se passa na vida das pessoas. Uma pesquisa na internet conduziu-me à Ephemera, de Pacheco Pereira, onde encontrei uma colecção notável de mata-borrões publicitários a estes e a outros produtos do mesmo laboratório. O espírito de uma época resumidos em meia-dúzia de imagens publicitárias.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2023

O novo

Frio e sol. De manhã, estava um frio cortante, ainda por cima animado pelo vento norte. O sol, porém, dava – ainda dá – um sinal de que o Inverno não será eterno. A luz fazia cintilar as folhas das árvores, daquelas que não foram despidas pela viagem das estações. O pequeno bosque da escola aqui ao lado é composto apenas por árvores de folhas persistentes. Olho-o e sinto que poderia ser o sinal de uma grande floresta, talvez de alguma que, em tempos muito recuados, por aqui tenha existido. Tanto quanto me lembro, estes terrenos eram campos com oliveiras e figueiras, numa consociação que terá sido o cuidado de muitas gerações. A pequena vila foi durante muito tempo limitada por muralhas imaginárias, pois as reais, construídas ou reconstruídas no tempo de D. Fernando, caíram no terramoto de 1755 e, no início do século XIX, certamente por falta de dinheiros para as reerguer, os escombros foram removidos. Elas, porém, continuaram a existir na imaginação dos habitantes durante mais de um século. Quebrado o sortilégio, a vila transformada em cidade, como se tornou moda a certa altura, cresceu para os terrenos agrícolas, com novas urbanizações que acabaram por liquidar, em termos de ambiência, o velho centro histórico. É no famoso livro de Paul Hazard, A Crise da Consciência Europeia: 1680-1715, que encontrei uma citação de Paul Valéry, que retrata o tipo de consciência que permitiu ultrapassar os limites imaginários das velhas muralhas: O novo, que é, contudo, o transitório por essência, é para nós uma qualidade tão eminente, que a sua ausência nos corrompe todas as outras, e a sua presença as substitui. À custa da nulidade, do desprezo, do tédio, constrangemo-nos a ser sempre mais avançados nas artes, nos usos, nas políticas e nas ideias, e preparámo-nos para só apreciar o espanto e o efeito instantâneo do choque. Foi essa busca do novo que rasgou as paredes caídas e permitiu que o simulacro do mundo urbano invadisse a propriedade rural, como se esta fosse uma afronta ao orgulho dos novos citadinos. Como compensação, talvez como salvação, todos nós continuamos os mesmos provincianos de sempre, presos a uma vida lenta, sem acreditar nas vanguardas que trazem as novidades, seja nas artes, nos usos, nas políticas ou nas ideias. Haja sol para nos passearmos nas manhãs frias de Inverno e isso bastará.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2023

Máscaras

Quando nada se tem para dizer, o melhor não é calar-se, mas fazer uma citação. Por exemplo, esta: Os homens pressentem confusamente a ameaça, mas são cegos e surdos, ou melhor, foram cegados e ensurdecidos. Pressupõe o autor que houve um tempo em que os homens viam e ouviam e que depois, por acção de um agente por identificar, nem os oftalmologistas nem os otorrinolaringologistas lhes valeram. Somos agora todos cegos e surdos. É possível que sim, mas a verdade é que não somos mudos. Posso imaginar que a cegueira e a surdez tenham soltado a língua à espécie, tal o grau de ruído que há por esse mundo fora. A minha experiência, porém, não confirma a citação. Ainda na segunda-feira fui a uma oftalmologista e ela não me diagnosticou qualquer cegueira. Com esta frequência de consultórios médicos, devo já ter material para me dedicar a elaborar uma taxinomia dos descendentes de Hipócrates. Ou será de Esculápio? Arrastado até lá por uma pessoa muito próxima que se fizera operar pela senhora, predispus-me a ser consultado. Deparei-me com uma mulher muito elegante, para quem o tempo fora benévolo, pois não será muito mais nova do que este narrador, sofisticada e com umas mãos belíssimas, talvez as mais belas que vi em toda a minha vida. O rosto estava oculto pela máscara, mas a parte visível indiciava que não desmereceria da visão global. Fiquei, porém, levemente desconcertado ao sentir-me que estava perante uma técnica, que todos os seus gestos e palavras eram técnicos, como se a técnica fosse uma segunda máscara, bem mais eficaz do que aquela que lhe cobria o rosto, um disfarce que ela necessitava de usar. Este desconcerto nascido do confronto entre elegância e técnica foi ontem acentuado ao ver o filme de Ulrich Seidl, Na Cave. É uma obra feita em modo de documentário, onde se mostra as fantasias das pessoas que ganham vida e substância nesses subterrâneos romanescos que são as caves dos prédios modernos das grandes cidades. No filme, não vemos como são as pessoas à luz do dia, mas o que são quando os olhos dos outros se tornam cegos. Não consegui deixar de me perguntar o que haverá na cave de quem usa a técnica como máscara quando a luz do dia incide sobre si e existem olhos que não são cegos e ouvidos que não surdos por perto. Talvez sinta nos outros uma ameaça.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2023

Obsolescência

Peças de arqueologia. Em busca de uma informação, abri um livro. Descobri que em Dezembro de 1989 ainda assinava e datava os livros que comprava. Um desprezível gesto de posse. Uma outra descoberta foi o custo da obra, 2300$00, preço colocado pelo livreiro a lápis. Lá dentro, encontrei um cartão natalício, referente ao Natal desse ano, da Secretaria de Estado das Comunidades Portuguesas. Como chegou até mim, não faço ideia. Nunca tive qualquer contacto com tal instituição. O cartão reproduz um presépio de altar de um artesão de Estremoz. A peça mais interessante que encontrei foi, porém, um postal RSF das Publicações e Livrarias Europa-América. Servia para encomendar, através dos CTT, livros à editora, sem que se tivesse de pagar portes pelo envio da nota de encomenda. Esta estratégia comercial existia um pouco por todo o lado. Desconfio que os editores da altura não imaginavam que em breve se tornaria obsoleta. Talvez seja isso que acontece sempre. É mais do que provável que esteja obsoleto, mas penso que não. Julgo que ainda posso fazer uma ou outra coisa com interesse, mas isso é, na verdade, pura presunção. Há um momento em que se deixa de entender o mundo e este deixa de nos compreender. Isso deve-se a uma transformação do Zeitgeist – uso o termo alemão para parecer erudito – que é impiedoso para com a sua ascendência. Enquanto Cronos – ou Saturno, para quem tenha uma alma mais romana – devorava os próprios filhos, o Zeitgeist devora os seus pais. Esta é uma diferença central entre os tempos modernos e a antiguidade. Nesta, o futuro é uma ameaça. Nos dias de hoje, o passado apavora tanto que tem de desaparecer sem deixar rasto. Tornar-se obsoleto é uma das formas de ser tragado pelo deus da modernidade, o tal Zeitgeist. O resultado é que não encontrei a informação que procurava, mas a caixa de correio não deixa de ser bombardeada por emails. Desconfio sempre que não terão nada de interessante para me contar. Talvez os próprios emails já estejam obsoletos e ainda não saibam.

domingo, 22 de janeiro de 2023

O humor

Uma longa conversa ao telemóvel, mais de uma hora, com o padre Lodovico Settembrini. Uma parte da conversa é irreproduzível, pois, para meu espanto, o padre Lodo estava particularmente interessado na situação política. Durante todos estes anos, sempre o vira acercar-se desse tipo de questões com a prudência, mesclada de ironia, que é a virtude dos jesuítas. Essa prudência manifestava-se na parcimónia dos comentários sobre a situação de cada momento. Por vezes, dizia que tudo aquilo fazia parte da espuma da vida e que acabaria por ficar nos eixos. E não será preciso que venha alguém para o pôr na ordem, acrescentava, lembrando-se, por certo, de Hamlet. A inércia das coisas acabará por resolver o assunto. Hoje, porém, essa crença na inércia das coisas – uma forma eufemística usada por ele para designar a acção da Providência – parecia senão abalada, pelo menos toldada. Disse-lhe que já não tinha idade para uma crise de fé. Respondeu-me que, para vergonha e perdição dele, sempre desconfiara dos homens. Portanto, não era uma crise religiosa. Depois, mudou de assunto e informou-me que andava a reler os escritos do padre Manuel Antunes. Daí derivou para o modo como nos conhecemos. Estava eu numa aula dessa grande figura da cultura portuguesa do século passado, um jesuíta que dirigiu a revista Brotéria, e saí para vir para o corredor fumar um cigarro. Nesses dias gloriosos, fumava-se dentro das aulas, mas o padre Manuel Antunes estava já muito débil e os fumadores, como forma de reverência, tinham esse pequeno ritual. Saíam da sala de aula, um anfiteatro cheio, para se submeterem ao gesto vicioso. Quando saí fui abordado por alguém com um português estranho, que me perguntou se faltava muito para a aula acabar. Tinha um encontro com o professor Antunes, assim me disse. E ficámos ali a conversar, enquanto eu sorvia o fumo e acrescentava um cigarro ao anterior. Na altura, não imaginei que aquela pessoa fosse, também ela, um jesuíta, pois nada na indumentária, na voz e nos gestos me indicava estar perante um padre. Só, mais tarde, o descobri. Foi nessa altura que nos tornámos amigo. Ao discernir a sua condição de membro da Companhia, disse-lhe: com que então um discípulo de Leo Naphta. Ele olhou-me perplexo, quase furioso. Depois, os músculos da face descontraíram-se e deu uma grande gargalhada e disse com um italiano aportuguesado: é verdade, o humor é uma das coisas mais preciosas que nos foi dada. Faz parte da nossa imagem e semelhança com Ele. Eu respondi que de imagens e semelhanças nada sabia, mas que estava de acordo com a preciosidade do humor.

sábado, 21 de janeiro de 2023

Inclinações

Por vezes tenho inclinações homicidas. Por exemplo, liquidar este blogue. Este é um blogue tardio. Começou muito depois da febre da blogosfera estar debelada. As pessoas transitaram para as redes sociais, onde tudo é mais rápido. Como estou cada vez mais lento e, acima de tudo, como acho a lentidão inerente a uma vida bem vivida, abri esta casa, onde narro a coisa nenhuma que me vai acontecendo, acrescentando e subtraindo pontos aos contos. Também posso registar aquilo que espero fazer no futuro. Por exemplo, daqui a pouco irei ver a minha mãe, que não me reconhecerá e perguntará quem sou. Isto no caso de se dispor a interagir comigo. Depois, mais ao fim da tarde, irei à aldeia onde a minha mãe me deu à luz, sítio onde raramente vou, ao lançamento de um livro de um amigo. Um trabalho de história sobre o culto local do Espírito Santo. Para o jantar, terei a presença do meu neto. Está um espevitadão na conversa, embora não no crescimento. Irá ao quarto dos brinquedos e arrastará uma série deles atrás de si. É possível que brinquemos com as miniaturas de automóveis que por lá estão. Desviei-me na conversa. Oiço o Quator pour la fin du temps, de Olivier Messiaen. A expressão que dá título ao quarteto é equívoca. Pode pressupor uma visão apocalíptica em que este mundo acaba, a intenção de Messiaen, presumo. Pode também dizer apenas que é o tempo que acaba, mas não o mundo. Não consigo, porém, imaginar o que será um mundo sem tempo, mas será mais fácil pensar que tudo colapsa e se afunda no puro nada. Continuo a desviar-me, enquanto as linhas crescem, como metástases, numa fuga ao assunto original, a do homicídio deste blogue. É uma inclinação, mas nem sempre devemos ceder ao que nos inclina. O Quator de Messiaen prossegue, aproxima-se do quinto andamento Louange à la Éternité de Jésus. A peça foi escrita durante o cativeiro na Alemanha, aquando da segunda guerra mundial. Messiaen compôs o Quator, Paul Ricoeur traduziu Husserl para francês, em circunstâncias idênticas. A afrontosa derrota francesa teve o condão de poupar alguns dos seus artistas e intelectuais. Curiosamente, isso não salvou a França de se tornar, nos dias que correm, uma potência cultural irrelevante. A morte da cultura francesa não será resultado de um homicídio, mas talvez de um suicídio. Ou, então, morreu de velhice, isto é, de causas naturais.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2023

Na fronteira

Este dia de Inverno tem uma aparência outonal. Talvez seja da luz, talvez seja da música de Satie que oiço. Talvez seja da imaginária perfeição que atribuo ao Outono. A lentidão das Gnossiennes quase me faz mergulhar num daqueles devaneios onde se dilui a fronteira entre o sono e a vigília. Deambular numa fronteira não é o pior dos males, embora essa linha imaginária possa ser uma terra de ninguém. No caso, nem a pátria onde se sonha, nem a nação onde se vive de olhos bem abertos. As notas deslizam como se fossem pequenas bolas de cristal a descer do céu, num planeta onde a gravidade quase não existe. Começo a preocupar-me com os erros que dou. Quando quis escrever ‘descer do céu’, escrevi ‘descer do seu’. Estas confusões fonéticas estão a tornar-se cada vez mais frequentes. Os dedos encaminham-se para elas sem qualquer pudor. Uma chamada profissional devolveu-me à realidade. Esta não é feita de devaneios, mas de acções que inscrevem na tela do tempo – devia evitar as aliterações na prosa – os alicerces que prendem a vida ao solo deste pobre planeta. Pascal Rogé continua ao piano a dedilhar a música de Satie. Agora, uma pequena peça com o nome Sports et Divertissements: Le Tango. Há nela uma ironia que me faz sorrir e abre a porta para uma nova fuga à realidade. A caixa de correio não deixa de ser bombardeada por emails. Imagino que as baterias antiaéreas não estão a funcionar.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2023

Profecia e tédio

Na passada segunda-feira, encomendei online um livro numa livraria francesa. Os portes foram idênticos aos cobrados pelas portuguesas e, o melhor da história, o livro estava na caixa de correio quando hoje saí de casa. Entre a encomenda e a recepção mediaram menos de 72 horas, e não foi um envio expresso. Isto significa que a distância entre Paris e esta pequena cidade perdida no Ocidente da Península encolheu drasticamente. O livro, cujo título e autor omito, começa de um modo assaz pomposo: Le destin de la civilisation d’Occident, le destin de l’homme tout court, sont aujourd’hui menacés. Este hoje referia-se ao ano de 1927. Passado quase um século alguém poderia escrever a mesma coisa. Imagino, porém, que a natureza do Ocidente e a do homem seja a de verem constantemente o seu destino ameaçado. Talvez chegue o dia que a profecia se realize ou, melhor, se auto-realize. Oiço farrapos da lição online de Matemática a que a minha neta mais velha, pobre dela, está a ser submetida. Fui-lhe dizer adeus. Mostrou-me o novo cartão de cidadão. Um metro e setenta e cinco centímetros. Não está mal para os 14 anos. Tomado pela preguiça, dei uma vista de olhos pelos jornais. A preguiça transformou-se em tédio. Tal é a repetição da venalidade humana, que esta não gera mais do que um encolher de ombros. A palavra venalidade deriva de venal, que em latim (venāle) significa, como em português, o que se vende ou pode vender. Kant acreditava que os homens, devido à dignidade resultante de serem fins em si mesmos e não meros instrumentos, não tinham preço. Este dizia respeito às coisas. Talvez o filósofo que nunca saiu de Konigsberg estivesse equivocado ou, então, fosse generoso com a espécie a que pertencia. O dia correu sem sobressaltos, a não ser a avaria do termostato que regula o aquecimento. Amanhã, prometeram-me, será arranjado. O amanhã é o mais competente consertador ao cimo da terra, mesmo que, na maior parte dos casos, não passe de um remendão.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2023

Viagem no Inverno

Uma viagem no Inverno. Por vezes, chuva. Outras, um sol brilhante. A uma dada altura, o arco da aliança unia o céu e a terra. Sempre, um frio cortante, mas que tinha um poder revigorador, como se fosse uma memória que me ligasse ao que há de mais essencial na existência, como se esta fosse marcada pelo que há de mais rude e silvestre. Talvez os genes transportem memórias de outras existências, não nossas, mas dos que vieram antes de nós e a que damos o nome de antepassados. Talvez algum dos meus antepassados longínquos tenha vindo das terras frias e tenha deixado em herança aos que vieram depois a nostalgia do mundo em que terá vivido. Mesmo que isso seja falso, não deixa de ser uma conjectura interessante. Sempre se pode imaginar a altura que terá chegado à Península ou que por cá tenha passado e lançado a semente dos seus genes na terra rica que por aqui havia. O passado de cada um de nós é tão susceptível à imaginação quanto o futuro. Imagine-se que na cadeia dos ascendentes se encontra um longínquo avô ou avó que nasceu de um estupro. Em nós repousariam ainda, por diluídos que fossem pelos sucessivos cruzamentos, os genes de um violador e de uma violada. Se se pensa nisso, depressa se tem impressão de que não haverá ser humano que não descenda de um acto desses, tão grande é a cadeia de gerações e tão rudes os costumes. O que teria o corolário de que somos todos descendentes de um não consentimento. O processo de chegar a filhos fruto de um mútuo consentimento deve ter sido muito árduo e encontrado enormes obstáculos. Ainda hoje haverá fortes resistências a esse refinamento das relações humanas, no qual só é possível aquilo que resulta do acordo das partes. Nada disto tem que ver com a viagem no Inverno, mas a vida é mesmo assim, começa-se a falar de uma coisa e não se sabe a onde se vai parar. E só se pára porque a nossa natureza não nos permite continuar. Um homem imortal arrastaria atrás dele uma conversa infinita. Talvez por isso, os deuses conspiraram para que ele se tornasse finito e mortal. Não tinham paciência para tanta conversa.