sábado, 4 de fevereiro de 2023

Do sofrimento das palavras

Esteve, está ainda, um magnífico dia de Primavera, apesar do Inverno oficial estar mais ou menos no meio. Está a faltar à estação fria resiliência, para utilizar uma palavra que, caso tivesse poder para tal, aboliria. Em si mesmo, o vocábulo é inócuo, mas ao cair nas bocas do mundo, tornou-se jargão de homilias insuportáveis. Pergunto-me, não poucas vezes, sobre o mal que terão feito certas palavras para terem assim um destino tão atroz. Depois, é verdade, passada a fase pandémica, voltam à normalidade, entrando a mais das vezes no esquecimento. Uma outra é paradigma. Não há cão nem gato que não se veja perante uma mudança de paradigma. Como é que uma noção polémica vinda da história da ciência, da interpretação das transformações nos campos científicos, se propagou nas vãs bocas deste mundo? Sabe-se lá. O mais interessante é que o autor da ideia de aplicar paradigma à mudança científica, sete anos depois altera o nome de paradigma para matriz disciplinar, mais conforme com os seus intentos e reservou o termo, agora mágico, para outra coisa bem mais modesta e que não vem ao caso. O mal estava feito. Agora, andamos sempre, cheios de resiliência, a mudar de paradigma, prova de que os paradigmas estão cada vez menos resilientes. Tenho de me preparar para observar como chega a noite, para compreender aqueles versos de Homero referindo-se ao deus Febo Apolo:  Nos ombros trazia o arco e a aljava duplamente coberta; / aos ombros do deus irado as setas chocalhavam / à medida que avançava. E chegou como chega a noite. É uma extraordinária analogia. Os deuses chegam como chega a noite. Homero, porém, estaria a explorar uma ciência comum que existiria nos homens, a de saber como chega a noite, ou, pelo contrário, pretendia explorar a mais banal das ignorâncias, aquela que nasce de o hábito da noite chegar, mas nunca deixar de ser um mistério o como ela chega? Em que paradigma o semiverso de Homero deve ser colocado? É melhor acabar, não me ponha por aí, resiliente, a semear uma seara de interrogações.

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