quinta-feira, 2 de fevereiro de 2023

Próteses

Surpreendentemente, as letras não apenas cresceram como se tornaram mais nítidas. No Word, caderno onde estes textos são escritos, o negro apresenta-se acintosamente retinto. Não imaginava que o preto fosse tão preto. Para esta metamorfose, bastou a troca de óculos. Pena não haver uns óculos para a inteligência. Por certo, tornar-me-ia num cartesiano. Tudo seria mais claro e mais distinto. Uma prótese para o intelecto ser-me-ia ainda mais útil do que para os olhos. Sendo assim, contento-me com o que me saiu na lotaria genética. Saliente-se, todavia, que ver as coisas difusas tem enormes vantagens, pois é provável que quando as coisas se apresentam de modo claro e distinto não consigam disfarçar aquilo que nelas há de repelente. Imagino que um poeta como Herberto Helder tivesse essa compreensão do mundo quando escreveu Os jardins contorcem-se entre o estio e as trevas. Eu veria apenas um jardim agradável, ele vê-o a contorcer-se, em espasmos, talvez mesmo a babar-se. O oculista onde mandei fazer os dispositivos que me aumentam a visão terá a minha idade. Pertence a um género de comerciante em vias de extinção. Lida com cada cliente como se este fosse a pessoa mais importante do mundo, embora não passe nunca a linha da contenção, aquela fronteira que impede a queda no ridículo. Faz-me lembrar uma história contada, salvo erro, pelo historiador britânico, descendente de rabinos lituanos, embora os pais fossem judeus seculares, Tony Judt. O avô tinha um grande armazém e dedicava um dia por semana para estar à porta onde cumprimentava qualquer cliente, rico ou pobre, com a máxima deferência. Para dizer a verdade, não estou certo de que a história seja de Judt e já não sei onde a procurar. Talvez seja do sociólogo norte-americano Richard Sennett, ou de um outro autor que agora não me ocorre. Pena não haver óculos para a memória. Seja como for, juro que a história não é apócrifa.

5 comentários:

  1. Talvez Herberto Helder esteja só a fingir. Ou os jardins, que também fingem muito, e podem facilmente enganar o poeta. Mas quase nunca um bom jardineiro.

    ResponderEliminar
  2. Tenho aqui ao lado o Ofício Cantante. Gostava de encontrar o poema desse verso. Estará neste livro?

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Obrigada. E estava marcado, com uma daquelas marcas sem nenhuma importância.

      Eliminar